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Unidade 1 Princípios do Direito Penal Direito Penal Diretor Executivo DAVID LIRA STEPHEN BARROS Gerente Editorial CRISTIANE SILVEIRA CESAR DE OLIVEIRA Projeto Gráfico TIAGO DA ROCHA Autoria FERNANDA SILVEIRA COSTA AUTORIA Fernanda Silveira Costa Olá! Sou formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, advogada criminalista, pós-graduanda em Direito Público, mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra. Tenho experiência técnico-profissional em educação não formal pelo programa Erasmus Plus da União Europeia e trabalho como professora para a Modular Acadêmico, empenhada cada dia mais em contribuir para a educação do nosso país. Foi com grande alegria que aceitei o desafio de participar e dar o meu contributo para esse maravilhoso projeto da Editora Telesapiens, fazendo parte do elenco de autores independentes. Me sinto muito grata por poder contribuir para o seu aprendizado. Conte comigo! ICONOGRÁFICOS Olá. Esses ícones irão aparecer em sua trilha de aprendizagem toda vez que: OBJETIVO: para o início do desenvolvimento de uma nova compe- tência; DEFINIÇÃO: houver necessidade de se apresentar um novo conceito; NOTA: quando forem necessários obser- vações ou comple- mentações para o seu conhecimento; IMPORTANTE: as observações escritas tiveram que ser priorizadas para você; EXPLICANDO MELHOR: algo precisa ser melhor explicado ou detalhado; VOCÊ SABIA? curiosidades e indagações lúdicas sobre o tema em estudo, se forem necessárias; SAIBA MAIS: textos, referências bibliográficas e links para aprofundamen- to do seu conheci- mento; REFLITA: se houver a neces- sidade de chamar a atenção sobre algo a ser refletido ou dis- cutido sobre; ACESSE: se for preciso aces- sar um ou mais sites para fazer download, assistir vídeos, ler textos, ouvir podcast; RESUMINDO: quando for preciso se fazer um resumo acumulativo das últi- mas abordagens; ATIVIDADES: quando alguma atividade de au- toaprendizagem for aplicada; TESTANDO: quando o desen- volvimento de uma competência for concluído e questões forem explicadas; SUMÁRIO Princípios constitucionais Penais..........................................................12 Introdução ........................................................................................................................................... 12 Princípio da Reserva Legal ..................................................................................................... 15 Princípio da Anterioridade da Lei Penal .......................................................................... 16 Princípio da Individualização da Pena ............................................................................. 17 Princípios da Intervenção Mínima, da Subsidiariedade e da Fragmentariedade .......................................................................................................................... 18 Princípio da Insignificância ou da Criminalidade de Bagatela ....................... 19 Princípio da Adequação Social ............................................................................................. 20 Princípio Ne bis in idem ..................................................................................20 Princípio da Intranscendência da Pena ou da Personalidade ........................ 21 Princípio da limitação das penas ou da humanidade .......................................... 21 Princípio da Presunção de Inocência ou Presunção de Não Culpabilidade ..................................................................................................................................... 21 Teoria da Lei Penal ..................................................................................... 24 Interpretação da lei penal .........................................................................................................28 Analogia ................................................................................................................................................ 30 Lei penal no tempo, no espaço e em relação às pessoas .............................. 30 Conflito aparente de leis penais ...........................................................................................32 Teoria do Crime ............................................................................................34 Fato típico ............................................................................................................................................. 36 Fato ilícito ............................................................................................................................................. 39 Fato culpável...................................................................................................................................... 39 Etapas da realização do crime ............................................................................................. 40 Concurso de crimes e concurso de pessoas .............................................................42 Causas de Exclusão da Tipicidade, Ilicitude e da Culpabilidade ...45 9 UNIDADE 01 Direito Penal 10 INTRODUÇÃO Por vezes, a primeira indagação feita pelo aluno quanto à disciplina de Direito Penal diz respeito à sua denominação. Por que Direito Penal? Por que não Direito Criminal ou outra denominação qualquer, já que as medidas dessa área jurídica têm em vista evitar os crimes? Para responder essa pergunta temos, primeiro, que esclarecer que essa discussão não se encontra pacificada na doutrina e que ambas as denominações são utilizadas em nosso sistema jurídico. A nossa Constituição, por exemplo, difunde a expressão Direito Penal, entretanto, o local onde tramitam as ações penais é denominado Vara Criminal, e o advogado que milita nessa área é chamado de advogado criminalista. O Brasil, desde sua independência, sempre utilizou a expressão Direito Penal, exceto no período de vigor do Código de 1830, chamado de Código Criminal do Império, como bem coloca Greco (2012, p. 2). Os autores que defendem essa nomenclatura afirmam que a pena é o conceito central dessa disciplina, bem como a condição de existência jurídica do crime, como nos ensina Batista (2003, p. 116). Entendeu? Se não entendeu completamente, tenha calma! Ao longo desta Unidade você vai mergulhar neste universo e, juntos, iremos conhecer os principais conceitos trabalhados no âmbito do Direito Penal, sua historicidade, função, princípios, institutos e muito mais! Direito Penal 11 OBJETIVOS Olá. Seja muito bem-vinda (o). Nosso propósito é auxiliar você no desenvolvimento das seguintes objetivos de aprendizagem até o término desta etapa de estudos: 1. Compreender qual o papel dos princípios em Direito Penal e quais são os princípios penais constitucionalmente previstos. 2. Entender em que consiste a lei penal, como se classificam, quais são as suas limitações e as técnicas utilizadas para interpretá-las. 3. Identificar os elementos técnicos de uma conduta criminosa. 4. Reconhecer quais são as causas de exclusão da tipicidade, ilicitude e culpabilidade. Então? Preparado para uma viagem sem volta rumo ao conhecimento? Ao trabalho! Direito Penal 12 Princípios constitucionais Penais OBJETIVO: Ao final deste capítulo, você será capaz de entender como funciona o ordenamento jurídico brasileiro, no qual se insere as normas de Direito Penal, bem como os princípios fundamentais que regem a presente matéria jurídica. Isso será fundamental para que você compreenda como se estrutura o Direito em tela e o limite de sua aplicação. Estudar o Direito Penal sem perpassar por essas questões introdutórias tornará extremamente dificultosa a nossa tarefa de compreender como funciona e como se aplica seus institutos na prática. E então? Animado para começar a entender o que é o Direito Penal e como elese estrutura? Avante! Introdução É sabido por todos que o Direito Penal é o ramo do Direito que aplica pena de prisão às pessoas que cometem crimes. Mas em que consiste o Direito Penal? Qual é a sua função? Há limites para a edição das normas penais? E para sua aplicação? Iremos tratar de todas essas questões ao longo da nossa caminhada. Direito Penal 13 Figura 1 – O Direito Penal pode ser entendido como um conjunto de normas que nos orienta sobre o que é crime e o que não é, bem como quais as penalidades que iremos incorrer caso seja escolhido enveredar pelos caminhos criminosos Fonte: Freepik Iniciaremos nossos estudos sobre o Direito Penal trazendo um conceito muito utilizado pela doutrina: “Direito Penal é o conjunto de regras e princípios destinados a combater o crime e as contravenções penais, mediante a imposição de sanção penal” (MASSON, 2019, p. 3). A partir desse conceito, podemos extrair que o Direito Penal se ocupa das leis e dos princípio que resguardam bens jurídicos fundamentais para a sociedade, criminalizando as condutas que atentem contra um desses bens jurídicos de forma relevante. Além de garantir a proteção dos bens jurídicos fundamentais para o convívio em sociedade, ao Direito Penal também é reservado o Direito Penal 14 controle social, ou seja, a manutenção da paz, portanto, suas regras são direcionadas a todos; e a função de proteger o cidadão de eventuais excessos e arbitrariedades cometidas pelo Estado no exercício do seu direito de punir (jus ou ius puniendi). Enquanto ciência, a dogmática penal tem como objeto a interpretação, sistematização e aplicação lógica-racional das regras e dos princípios destinados ao combate dos crimes e das contravenções penais. Isso posto, veremos agora os princípios essenciais ou valores fundamentais que inspiram a criação e a manutenção do sistema jurídico penal. A esses princípios daremos o nome de “princípios constitucionais penais”, cuja principal função é a de orientar o legislador e o aplicador do Direito, no sentido de limitar o poder punitivo estatal face à imposição dos direitos e das garantias fundamentais dos cidadãos. Antes de entrar propriamente no tema, você sabe a diferença entre regras e princípios? Segundo Reale (2011, p. 59), “as regras regem situações específicas de forma objetiva”, ou seja, a norma é válida ou não, se aplica ou não ao caso concreto, bem como produz seus efeitos de forma universal, respeitando uma ordem hierárquica. Já os princípios são normas estruturantes, de caráter geral, ou seja, não se aplicam a situações específicas, mas regem as estruturas a partir das quais as regras podem ser constituídas. Nesse sentido, os princípios são gerais e abstratos, regidos por pesos e contrapesos, de modo que mais de um princípio pode ser aplicado a uma situação específica ou a um vasto campo de situações. Portanto, é possível afirmar que não há hierarquia entre os princípios, eles coexistem no ordenamento jurídico. Desse modo, podemos concluir que os princípios constitucionais penais são normas constitucionais com alto grau de abstração que estruturam a forma como o nosso ordenamento jurídico deve prever e aplicar as normas de Direito Penal. A quantidade e a denominação desses princípios variam entre os autores da doutrina especializada. Portanto, nas seguintes seções veremos em espécie apenas os principais princípios. Direito Penal 15 Princípio da Reserva Legal REFLITA: Quem decide o que é crime? E como isso é feito? A resposta para o questionamento é encontrada no princípio da reserva legal, previsto no o art. 5°, inciso XXXIX, da Constituição Federal, que preceitua que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. O presente princípio estabelece que somente a lei poderá criar crimes e cominar as suas respectivas penas. É daí que surge a conhecida expressão “nullum crimen nulla poena sine praevia lege”, o que significa dizer que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. VOCÊ SABIA? O marco histórico mais antigo do princípio da reserva legal é a Constituição de João sem Terra, de 1215, que, no seu art. 39, estabelecia que nenhum homem livre poderia ser submetido à pena sem antecedente lei em vigor naquela terra (FRAGOSO, 2003). No Direito brasileiro, tanto os crimes quanto as contravenções penais são instituídos por leis ordinárias, que podem ser propostas pelo presidente da República, deputados, senadores, Supremo Tribunal Federal (STF), tribunais superiores, procurador-geral da República e pelos cidadãos, desde que preenchidos os requisitos legais (art. 59 e 61 da Constituição Federal). O fundamento jurídico do princípio da reserva legal é a taxatividade, certeza ou determinação (MASSON, 2019). Nesse sentido, o referido princípio exige do legislador que ele seja claro quanto ao conteúdo do tipo penal e da sanção penal a ser aplicada, ou seja, os crimes e as penas Direito Penal 16 devem estar previstos de forma taxativa no ordenamento, da forma mais precisa possível; e do juiz exige-se que suas decisões estejam vinculadas ao mandamento legal. NOTA: Quanto à nomenclatura desse princípio, boa parte da doutrina defende que são corretos os termos “reserva legal” ou “estrita legalidade”, pois assim limitam a criação de normas penais tão somente às leis ordinárias, que é a regra geral; e às leis complementares de forma excecional. O termo “princípio da legalidade” permite que qualquer diploma entre os elencados no art. 59º da Constituição possa criar normas em matéria penal e não apenas a lei, o que seria incorreto. É o que elucida Greco (2012, p. 104). Princípio da Anterioridade da Lei Penal Do princípio da reserva legal, ao instituir que o crime e a pena devam estar definidos em lei anterior ao fato que se pretende punir, advém um outro princípio, você sabe qual? É o princípio da anterioridade da lei penal, pois o referido princípio determina que a lei produz seus efeitos somente a partir da data em que entra em vigor, sendo, inclusive, proibida a aplicação da lei penal aos fatos praticados durante o período de vacatio legis. É esse o princípio que deriva a irretroatividade de lei penal, prevista no art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal, que determina que não se aplica a lei penal a comportamentos pretéritos, salvo para beneficiar o réu. Direito Penal 17 EXPLICANDO MELHOR: Vacatio legis é uma expressão latina que significa “vacância da lei” e corresponde ao período entre a data de publicação de uma nova lei e o início de sua vigência, que, por sua vez, corresponde ao tempo que uma lei dura ou produz os seus efeitos. Geralmente, o tempo de duração de uma lei inicia com a sua publicação, se assim for posto expressamente, ou após decorrido o prazo da vacatio legis, e tem seu fim imposto quando determinada lei é revogada ou extinta. Princípio da Individualização da Pena Nosso senso comum de justiça nos impele a afirmar que cada sujeito deve receber aquilo que lhe cabe, ou seja, cada sujeito deve receber a pena que merece. Mas o que isso significa em matéria penal? Significa que, transpondo o princípio da justiça, segundo o qual se deve distribuir a cada indivíduo aquilo que lhe cabe, conforme as circunstâncias do seu comportamento. A Constituição Federal estabeleceu no seu art. 5º, inciso XLVI, que no que toca a lei penal, sua aplicação deve ter em conta não a norma penal em abstrato, mas sim os aspectos objetivos e subjetivos do crime, ou seja, deve-se observar o que o sujeito realmente fez, a sua conduta propriamente dita, como matar alguém; e a vontade ou a real intenção do agente, como se ele quis, de fato, matar alguém ou se foi um acidente. Entendeu? Se você não entendeu muito bem, não há com o que se preocupar, voltaremos a tratar dessa questão quando formos estudar o dolo e a culpa. Essa questão será melhortratada quando formos estudar a teoria do crime no item 3 dessa Unidade. Por hora, é preciso que você tenha em mente que o princípio da individualização da sanção penal exige do legislador que ele estabeleça sanções adequada a cada tipo de conduta criminosa, indicando seu limite mínimo e máximo, e as circunstâncias nas quais o agente terá sua pena aumentada ou diminuída; do juiz, que ele, ao aplicar a lei penal, prolatando uma sentença, determine a pena mais Direito Penal 18 adequada, observando as características pessoais de cada réu, bem como as circunstâncias do crime. NOTA: Vejamos o inteiro teor do art. 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal que prevê o princípio da individualização das penas e nos apresenta os tipos de sanções aplicáveis pelas leis penais: “A lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos” (BRASIL. 1988, p. 13). Princípios da Intervenção Mínima, da Subsidiariedade e da Fragmentariedade Os três princípios que estudaremos agora são distintos, porém com a mesma razão. O princípio da intervenção mínima (também chamado de princípio da necessidade) tem como premissa a natureza drástica da intervenção penal exercida pelo Estado, pois este aplica ao cidadão as mais agressivas formas de punição previstas no ordenamento jurídico. Nesse sentido, o referido princípio estabelece que o Direito Penal deve ser aplicado de forma excepcional, ou seja, a criminalização de um fato somente será legítima se constituir meio indispensável para a proteção de determinado bem ou interesse jurídico relevante para a sociedade, que não pode ser tutelado por outro ramo do direito (MASSON, 2019). É o princípio que fundamenta a corrente do Direito Penal mínimo e dele decorrem o princípio da subsidiariedade e da fragmentariedade, que veremos a seguir. O princípio da subsidiariedade institui que o Direito Penal deve atuar como um executor de reserva, como elucida Masson (2019, p. 47). Nesse sentido, as leis penais serão necessárias somente quando outros ramos do Direito ou os demais meios estatais de controle social restarem insuficientes ou impotentes. Portanto, o princípio da subsidiariedade Direito Penal 19 assume a premissa de que o Direito Penal deve ser o último recurso do Estado, ou seja, a ultima ratio. NOTA: Interpretando a norma penal em conformidade com os princípios da reserva legal e do princípio da intervenção mínima, podemos afirmar que ela deve ser escrita, estrita, prévia e necessária. E, por fim, temos o princípio da fragmentariedade, que estabelece que nem todos os ilícitos são infrações penais. A infrações penais são somente aqueles atos que atentem contra valores fundamentais para a manutenção e o progresso da sociedade. Portanto, segundo o referido princípio, o Direito em tela é a última etapa de proteção do bem jurídico, portanto deve incidir sobre um reduzido número de condutas humanas, ou seja, os tipos penais devem proteger bens jurídicos que nenhum outro ramo do Direito se mostre capaz de proteger (ASSUMPÇÃO, 2019, p. 28). Princípio da Insignificância ou da Criminalidade de Bagatela O referido princípio estabelece que, uma vez que o Direito Penal é a mais violenta e agressiva forma de atuação do Estado, ele não deve ser aplicado quando determinada conduta, apesar de ser típica, não for capaz de lesar ou de colocar em perigo o bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora. Nesse sentido, o princípio da insignificância tem como finalidade a interpretação da lei penal de forma restritiva, ou seja, assume-se aqui o tipo penal como amplo e abrangente, de modo que o postulado da criminalidade de bagatela limita a sua aplicação prática. Portanto, apesar do crime de furto está previsto no art. 155 do Código Penal, é evidente que o Direito Penal não irá mover o aparato estatal para prender quem subtrair para si ou para outrem uma caneta de um colega. Não há que falar em crime nesse tipo de situação. Assim sendo, quanto à sua natureza jurídica, podemos afirmar que o princípio da insignificância Direito Penal 20 é causa de exclusão da tipicidade, como veremos ao estudar a teoria do crime na terceira seção da presente Unidade. IMPORTANTE: A insignificância deve ser valorada de acordo com cada caso concreto, observando os posicionamentos do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF), bem como deve conter de forma cumulativa o requisito da mínima ofensividade da conduta e da ausência de periculosidade social (ASSUMPÇÃO, 2019). Princípio da Adequação Social O princípio da adequação social estabelece que, apesar de o agente ter realizado um ato tido como conduta criminosa, o Direito Penal não deve considerá-lo como um criminoso se tal comportamento não afrontar o sentimento social de justiça. Dito de outra maneira, se determinada conduta, apesar de ser tipificada como crime pelo Direito Penal, não pode ser tida como tal, se essa conduta for socialmente aceita, como o caso dos camelôs e a venda de produtos “piratas”, dos trotes acadêmicos ou o caso da circuncisão realizada pelos judeus. A adequação social também é causa de exclusão da tipicidade. Princípio Ne bis in idem Imaginemos a seguinte situação: um agente confere inúmeros golpes de faca contra uma pessoa, em um mesmo contexto, com intenção de matá-la; e, após a décima facada, a vítima foi a óbito. Nessa situação o réu será acusado dez vezes pelo crime de lesão corporal e uma vez por homicídio? Será acusado conjuntamente pelo crime de lesão corporal e homicídio ou será acusado somente pelo crime de homicídio? Segundo o princípio do ne bis in idem, o réu seria acusado somente do crime de homicídio. Sabe por quê? Porque o referido princípio institui de forma absoluta que é vedada a dupla punição pelo mesmo fato. Direito Penal 21 Nesse sentido, é vedado que uma pessoa seja processada, julgada e condenada mais de uma vez pela mesma conduta, ou que, o mesmo fato seja enquadrado em mais de um tipo penal incriminador. No exemplo, as circunstâncias do crime, como as dez facadas, podem agravar a pena do agente, mas ele não pode ser punido duas vezes pelo mesmo fato. Princípio da Intranscendência da Pena ou da Personalidade Previsto no art. 5º, inciso XLV, da Constituição Federal, o referido princípio, institui que somente o agente pode ser responsabilizado pelo fato criminoso cometido. Dito de outra forma, ninguém pode ser responsabilizado por fato cometido por terceira pessoa e a pena não pode passar da pessoa do condenado. Nesse sentido, o STF reconhece que “o postulado da intranscendência impede que sanções e restrições de ordem jurídica superem a dimensão estritamente pessoal do infrator” (STF, 2006, p. 6). Princípio da limitação das penas ou da humanidade O princípio da humanidade das penas, decorre do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal) e apregoa que será inconstitucional o tipo penal ou a cominação de pena que viole a integridade física ou moral de alguém. A título ilustrativo, podemos citar a decisão do STF de fevereiro de 2006, que declarou inconstitucional o regime integralmente fechado para o cumprimento de pena privativa de liberdade nos crimes hediondos e equiparados (STF, 2009). Princípio da Presunção de Inocência ou Presunção de Não Culpabilidade O princípio da presunção de inocência talvez seja o mais conhecido no âmbito de senso comum. Você provavelmente já deve ter ouvido a Direito Penal 22 expressão: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Esse é o teor do art. 5º, inciso LVII da nossa Constituição. O que talvez você não saiba é que a origem desse princípio remete ao artigo 9° da Declaração dosDireitos do Homem e do Cidadão, do século XVIII; e, posteriormente, ao art. 11 da Declaração Universal de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), como resposta aos horrores cometidos pelo regime fascista na Segunda Guerra Mundial. Autores como Lopes Júnior (2011, p. 177) defendem que esse princípio é o reitor do processo penal, de modo que, embora recaia sobre alguém a acusação de prática criminosa, ele deve ser tratado como inocente até que transite em julgado sentença penal que o condene, ou seja, até que restem esgotadas as possibilidades de recurso da referida decisão. Várias são as questões que giram em torno dos institutos processuais penais quando confrontados com esse princípio, a mais recente delas, por exemplo, gira em tono da possibilidade de o réu ser preso após decisão judicial em segunda instância. Em decisão proferida no dia 7 de novembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal reverteu seu próprio entendimento, sedimentado em 2016, de que deveria ser autorizada a prisão dos réus condenados em segunda instância. O principal motivo que fundou tal reversão foi justamente a observância do princípio da presunção de inocência, prevalecendo no STF que ninguém poderá dar início ao cumprimento de sua pena até o julgamento de todos os recursos cabíveis, incluindo, quando cabíveis, nos tribunais superiores. SAIBA MAIS: Para entender melhor a decisão do STF que reverteu seu próprio posicionamento acerca da prisão após condenação em segunda instância, leia o artigo Princípio constitucional da presunção de inocência e a prisão em segunda instância: o STF e a estabilidade jurídica no país. Clique aqui para acessar. Direito Penal https://www.unigran.br/dourados/revista_juridica/ed_atual/artigos/artigo12.pdf 23 RESUMINDO: E então? Tudo bem até aqui? Compreendeu bem os princípios constitucionais penais e a função de cada um deles? O mais importante até aqui é que você tenha em mente que o Direito Penal é o conjunto de regras e princípios destinados a combater o crime e as contravenções penais, mediante a imposição de sanção penal; e suas principais finalidades são: resguardar os bens jurídicos fundamentais para a sociedade, controle social e proteção do cidadão face a eventuais excessos e arbitrariedades cometidas pelo Estado no exercício do seu direito de punir. Entre os vários princípios que orbitam em torno da seara penal, temos os princípios constitucionais penais que são normas constitucionais com alto grau de abstração que estruturam a forma como o nosso ordenamento jurídico deve prever e aplicar as normas de direito penal. Entre os vários princípios apontados pela doutrina destacam-se o princípio da reserva legal, anterioridade da lei penal, individualização da pena, princípios da intervenção mínima, da subsidiariedade e da fragmentariedade, da insignificância ou da criminalidade de bagatela, adequação social, ne bis in idem, intranscendência da pena ou da personalidade, limitação das penas ou da humanidade e o princípio da presunção de inocência ou presunção de não culpabilidade. Dito isso, passaremos agora ao estudo da lei penal propriamente dita, posto que a partir do momento que uma norma jurídica é considerada norma penal ela será sujeita a um regime próprio. Animado? Vamos dar continuidade aos nossos estudos analisando agora a chamada Teoria da Lei Penal. Direito Penal 24 Teoria da Lei Penal OBJETIVO: Neste capítulo, iremos nos ater ao estudo da lei penal, abrangendo a sua classificação, os critérios de interpretação, o concurso aparente entre elas e os princípios penais que devem ser analisados para a solução de conflitos relativos à sua aplicação. O estudo da teoria da lei penal é imprescindível para que se interprete, integre e aplique a lei penal da melhor maneira possível nos casos concretos. Motivado para começar a entender todo o universo que gira em torno da aplicação de uma lei penal? Vamos juntos! Como vimos anteriormente, a lei penal é uma espécie de norma jurídica penal. A norma penal é o conjunto de regras e princípios que estabelecem condutas proibidas, advindas de um sentido de justiça, contendo um segmento social; já a lei penal ela é a regra escrita, elaborada pelo legislador, com o objetivo de positivar aquelas condutas, específicas, tidas como nocivas à sociedade (SALIM; AZEVEDO, 2019). Dito de outra forma, é a partir da lei que a norma se manifesta e torna-se obrigatória. Figura 2 – A lei penal deve ser entendida como a forma escrita pela qual a norma penal é revelada aos cidadãos, uma vez que é uma fonte de direito de aplicação imediata Fonte: Freepik Direito Penal https://br.freepik.com/fotos-premium/cima-de-prisioneiro-maos-com-algemas-em-laranja-macacao-em-prisao_4594531.htm 25 Antes de estudar a lei penal propriamente dita, devemos trabalhar as fontes do Direito Penal, entendidas como tudo aquilo que impulsiona o surgimento da norma jurídica, ou seja, tudo aquilo que se relaciona com a própria gênese da lei (SALIM; AZEVEDO, 2019). A doutrina em muito diverge acerca da classificação das fontes de Direito Penal. Uma grande parte dela distingue as fontes do Direito Penal em materiais e formais. As fontes materiais são aquelas relacionadas à produção da norma penal, observando as competências dos órgãos encarregados por sua elaboração. Segundo o art. 22, inciso I, da Constituição Federal, compete somente à União legislar sobre o Direito Penal. Assim sendo, somente a vontade do povo, representado pelos deputados, juntamente com a vontade dos Estados, representados pelos seus senadores, e com a sanção do presidente da República é que se pode inovar em matéria penal. Portanto, o único órgão que pode criar leis penais no Brasil é a União. NOTA: Entretanto, a doutrina salienta que, conforme o parágrafo único do mesmo artigo, a lei complementar pode autorizar os Estados a legislar em matéria penal sobre questões específicas de cada Estado. Embora ainda não tenhamos nenhum exemplo dessa prática (SALIM; AZEVEDO, 2019). As fontes formais, por seu turno, são aquelas que exteriorizam o Direito Penal, é a forma pela qual uma norma penal é revelada aos cidadãos. A doutrina majoritária as divide em fonte formal, imediata e mediata. A imediata é aquela de aplicação direta, aquela que recorremos para saber se determinada conduta é proibida ou não pelo Direito Penal. Portanto, a única fonte formal imediata que temos no Direito brasileiro é a lei, pois somente a lei ordinária, via de regra, é que pode criar crimes e cominar penas (SALIM; AZEVEDO, 2019). Direito Penal 26 NOTA: A possibilidade de lei complementar exercer a mesma função não é pacífica na doutrina, apesar de termos o art. 10 da Lei Complementar n° 105, de 10 de janeiro de 2001, que institui o crime de quebra de sigilo fora das hipóteses autorizadas na mesma lei. As fontes formais mediatas são aquelas que não exercem a função de criar crimes; tampouco criam ou revogam leis, pois para isso há todo um processo legislativo. As fontes formais imediatas são os costumes; princípios gerais de direito; o ato administrativo, quando complementa uma norma penal em branco; os tratados e as convenções internacionais; a equidade; a doutrina e a jurisprudência. Sua função é a de integrar a norma penal e auxiliar o intérprete na sua aplicação. Isso posto, passaremos ao estudo da lei penal propriamente dita. REFLITA: Você sabe me dizer se toda lei penal cria crime e comina sua respectiva sanção? Pois bem, a reposta correta é não. Há leis penais que exercem outra função dentro do Direito Penal, como as leis penais que estabelecem os casos em que, apesar de o fato ser criminoso, não será aplicada a sanção ao seu autor, como a lei que determina a inimputabilidade do sujeito quando este for doente mental (art. 26, caput, do Código Penal). Entendeu? Muito bem! Vamos agora ver todos os tipos de leis penais, conforme aclassificação majoritária da doutrina: a. Leis penais incriminadoras: são aquelas que criam crimes e impõem sanções, como as contidas na parte especial do Código Penal. b. Leis penais não incriminadoras: são aquelas que não criam crimes e não cominam penas. As leis não incriminadoras podem ser: Direito Penal 27 b.1) leis penais permissivas: autorizam a prática de determinadas condutas tidas como criminosas, como agir em legítima defesa ou estado de necessidade (art. 23 do Código Penal). b.2) leis penais exculpantes: estabelecem a não culpabilidade do agente ou a inimputabilidade de determinadas condutas típicas e ilícitas, como o art. 26º do Código Penal, que determina que é isento de pena o menor de idade. b.3) leis penais interpretativas: explicam ou esclarecem o conteúdo de outras leis, como a lei que determina o conceito de funcionário público (art. 327 do Código Penal). b.4) leis penais complementares ou de aplicação: delimitam o âmbito de incidência de outra lei penal ou estabelece os princípios e orientações para sua aplicação, como os artigos 2º ao 12º do Código Penal, que devem ser orientados pelo princípio da reserva legal. c. leis penais de ampliação, extensão ou de aplicação: complementam a descrição legal dos elementos de um crime, ou seja, complementam a tipicidade do fato criminoso, como a lei que descreve quando um crime será tentado (art. 14, inciso II, do Código Penal). Quanto à completude dos elementos de uma norma penal, ela pode ser das seguintes formas: d. Lei penal completa: prevê todos os elementos do fato criminoso, como o tipo penal do homicídio (art. 121 do Código Penal). e. Lei penal incompleta: aquelas que necessitam de outra norma, ato normativo ou da interpretação do juiz, para completar a descrição dos elementos do fato criminoso, como a Lei de Drogas (Lei n° 11.343, de 23 de agosto de 2006), que vale-se do preceito administrativo (Portaria SVS-MS n° 344, de 12 de maio de 1998) para definir o que é droga. Essa espécie de lei penal é também conhecida como lei penal em branco ou tipo penal aberto, pois apesar de prever crimes e suas respectivas sanções, utilizam proibições genéricas, devendo estas serem completadas por outra norma, ato administrativo ou pelo magistrado. Direito Penal 28 Até aqui ficou claro o que é lei penal e quais são as suas espécies? Ótimo! Agora vamos dedicar uma parte da nossa Unidade para analisar as formas de interpretação da lei penal. Interpretação da lei penal REFLITA: Em que consiste o ato de interpretar? A interpretação é necessariamente feita por um sujeito que, ao empregar determinado modo de análise de algo, chega a algum resultado. Nesse sentido, temos que a interpretação da lei penal consiste em uma atividade mental, cujo objetivo é buscar o conteúdo e o significado contido na lei, tendo em vista a resolução do caso concreto. NOTA: A interpretação não pode ser confundida com hermenêutica. Esta trata do ramo da ciência jurídica responsável por formular e sistematizar princípios que substituirão a interpretação, já o ato de interpretar é uma atividade prática que objetiva a determinação do sentido e do alcance dos enunciados trazidos pelo preceito normativo; seu objetivo é o de aflorar a vontade da lei (CUNHA JÚNIOR, 2008). A hermenêutica, portanto, é a ciência que disciplina a interpretação da lei, já a atividade prática de interpretação desta é intitulada de exegese (MASSON, 2008). De uma maneira geral, a doutrina divide e classifica os métodos de interpretação da lei penal em três diretrizes: conforme o sujeito (autêntica, judicial e doutrinária); os meios de interpretação (gramatical ou teleológica) e o resultado obtido (declarativa, extensiva e teleológica). Quanto ao sujeito, a classificação cuida do sujeito ou do órgão que realiza a interpretação. Nesse sentido, a interpretação autêntica Direito Penal 29 ou legislativa é aquela fornecida pelo próprio legislador ao editar uma lei com o objetivo de estabelecer o alcance e o significado de outra lei, portanto, tem força cogente. A doutrinária ou científica é aquela posta pelos doutrinadores, os comentadores do texto legal, sem qualquer força vinculante ou obrigatória. A interpretação judicial ou jurisprudencial é aquela executada pelo Poder Judiciário na decisão do caso concreto, sua reiteração constitui a jurisprudência e sua força obrigatória será estabelecida quando fizer coisa julgada material, constituir súmula vinculante ou nas hipóteses do art. 927 do Código de Processo Civil. Em relação ao meio, a classificação da interpretação cuida do meio que serve o intérprete para descobrir o significado da lei penal. A interpretação gramatical, literal ou sintática busca o significado da lei a partir da acepção literal das palavras contidas nela. A interpretação lógica ou teleológica observa a lei além da singela leitura do texto legal, ou seja, sua leitura considera o contexto histórico da norma, o sistema jurídico que se insere, o tratamento do assunto em outros países e outros elementos extrajurídicos, quando o significado de determinados institutos está fora do âmbito do Direito. A classificação quanto ao resultado obtido, por sua vez, diz respeito à conclusão extraída pelo intérprete, podendo ser: declaratória, declarativa ou estrita, quando resulta da sintonia entre o texto da lei e sua vontade; e extensiva, quando destinada a corrigir uma disposição legal excessivamente estreita, objetivando ampliar o texto da lei para moldá-lo à sua real vontade. IMPORTANTE: Analogia não se confunde com interpretação da lei. Na analogia não há sequer lei para ser interpretada, pois ela cuida das situações em que não há lei que trate de um caso concreto. Isso posto, agora, iremos tratar da analogia no Direito Penal. Direito Penal 30 Analogia Como dito anteriormente, ante uma situação na qual não haja lei penal que suficientemente preveja determinado caso, o aplicador do direito deverá resolvê-la por analogia. Esta consiste em um processo de integração do ordenamento jurídico que aplica ao caso concreto, não previsto em lei, uma outra lei reguladora de caso semelhante. Ante o princípio da reserva legal, a analogia só pode ser utilizada em relação às leis não incriminadoras, e funda-se no preceito de que os casos similares devem ser tratados da mesma maneira. As espécies de analogia são: analogia legal, quando se aplica ao caso omisso uma lei que trata de caso semelhante; analogia jurídica, quando se aplica ao caso omisso um princípio geral do direito; in malam partem, aquela que aplica-se ao caso omisso uma lei que preveja caso semelhante que seja maléfica para o réu; e a analogia in bonam partem, que aplica ao caso omisso uma lei que preveja caso semelhante e seja benéfica para o réu. Também, por respeito ao princípio da reserva legal, o Direito Penal não admite a analogia in malam partem, como estabelece o Supremo Tribunal Federal (STF, 2006). Lei penal no tempo, no espaço e em relação às pessoas Depois de cumprir todas as fases do processo legislativo previsto na Constituição Federal, a lei penal ingressa no ordenamento jurídico e, assim como as demais leis, ao entrar em vigor, qual é o seu alcance? Quais são as pessoas que ela atinge e por quanto tempo ela vigorará? Todas essas questões suscitadas estão relacionadas às limitações da lei, impostas pela própria legislação penal e por seus princípios. Estudaremos cada uma delas na presente seção. Quanto ao tempo de vigor de uma lei penal, por observância do que se convencionou chamar de princípio da continuidade de lei, uma vez em vigor, a lei penal irá vigorar até ser revogada por outro ato normativo de igual natureza (MASSON, 2019). Essa é uma regra geral do Direito, Direito Penal 31 mas no Direito Penal há exceções: as leis temporárias e excepcionais são autorrevogáveis, portanto, não precisam ser revogadaspor outra lei. A atividade legislativa, como decorrência da soberania popular, é irrenunciável, desse modo, nem os costumes, por mais consagrados que sejam em uma sociedade, nem uma decisão judicial, ainda que promulgada pelo Supremo Tribunal Federal, tem o poder de revogar uma lei. A revogação da lei por outra pode ser absoluta ou total, conhecida por ab-rogação, ou pode ser parcial, conhecida por derrogação. Em relação ao tempo de vigor de uma lei penal, temos que tecer as seguintes considerações: • Retroatividade da lei mais benéfica: se uma lei posterior for mais benéfica ao agente, em comparação àquela que estava em vigor no momento do ilícito criminal, a lei mais benéfica será retroativa e deverá ser aplicada ao caso, mesmo que editada posteriormente ao crime ou contravenção penal. • Ultratividade da lei mais benéfica: se o ilícito penal for cometido durante a vigência de uma lei, posteriormente revogada por outra que venha a ser mais prejudicial ao agente, deverá subsistir, nesse caso, os efeitos da lei anterior, mais favorável, pois a lei penal mais grave não deverá retroagir. Quanto ao campo de validade de uma lei penal, o Código Penal o limita observando dois vetores: a territorialidade e a extraterritorialidade (previstos, respectivamente, nos art. 5 e 7 do referido diploma). A territorialidade é a regra. Excepcionalmente são admitidos outros princípios para o caso da extraterritorialidade, que são: personalidade, domicílio, defesa da justiça universal e representação. O princípio da territorialidade institui que, sem prejuízo do estipulado em convenções e tratados internacionais, a lei penal brasileira deverá ser aplicada em todo território nacional, território nacional por extensão e nos casos de crimes praticados a bordo de aeronaves ou embarcações estrangeiras de propriedade privada, na forma da lei. Direito Penal 32 A extraterritorialidade da lei penal brasileira; observando o princípio da personalidade, autoriza a submissão à lei brasileira dos crimes praticados no estrangeiro por autor brasileiro ou contra vítima brasileira; observando o princípio do domicílio, institui que o autor do crime deve ser julgado pela lei do país em que for domiciliado, independentemente da sua nacionalidade; observando o princípio da defesa da justiça universal, estabelece que qualquer Estado da comunidade internacional pode punir os autores de determinados crimes, em conformidade com as convenções e tratados internacionais, pouco importando a nacionalidade do agente; e, por fim, observando o princípio da representação, aplica a lei penal brasileira aos crimes cometidos em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados. Quanto às pessoas ou em relação a elas, ao instituir, no art. 5º do Código Penal, que aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional, o Direito Penal brasileiro mitiga o princípio da territorialidade com a possibilidade de tais diplomas internacionais criarem imunidades diplomáticas e de chefes de governos estrangeiros. Ao mesmo tempo, o referido princípio também é mitigado pelas regras constitucionais que instituem as imunidades parlamenteares. Conflito aparente de leis penais Para finalizarmos o estudo da lei penal, trataremos de responder a seguinte pergunta: como proceder, quando em tese, a um único fato criminoso se revela possível a aplicação de mais de uma lei penal apta a ser aplicada ao caso? Quando estamos diante de um conflito de preceitos penais, situação em que um único fato punível se enquadra sob a aplicação de mais de uma lei, estamos, na verdade, diante de um conflito aparente de leis penais, pois este desaparecerá com a correta utilização dos princípios adequados. Uma vez que, em se tratando de uma única conduta, afigura- se injusto e desproporcional a incidência de mais de uma sanção penal, Direito Penal 33 razão pela qual dever-se-á escolher o dispositivo penal que melhor se adequa ao fato criminoso. A doutrina indica, no geral, os seguintes princípios para sanar eventuais conflitos aparente de leis penais: especialidade (lei especial prevalece sobre a lei geral); subsidiariedade (lei primária prevalece sobre lei subsidiária); consumação (o fato mais amplo e grave consome ou absorve os demais fatos menos amplos e graves); e alternatividade (a aplicação de uma norma a um fato exclui a aplicabilidade de outra que também o prevê como delito). RESUMINDO: E então? Gostou do que vimos até aqui? Vamos agora entender melhor os conceitos que envolvem a tipicidade, ilicitude e culpabilidade de um fato criminoso. Para tanto, precisamos ter em mente o que foi trabalhado até agora em relação à lei penal, principalmente no que toca a sua classificação, a forma como elas são sobrepostas no nosso ordenamento jurídico, bem como os limites que lhe são impostos em relação ao tempo, espaço e às pessoas. Também é importante compreender que a interpretação de uma norma deve sempre buscar o seu conteúdo e o significado, visando à resolução do caso concreto, independentemente de qual diretriz essa interpretação parta; bem como que em um conflito aparente de leis penais, deve ser aplicado os princípio da especialidade; subsidiariedade; consumação e alternatividade, posto que em se tratando de uma única conduta afigura-se injusto e desproporcional a incidência de mais de uma sanção penal, razão pela qual dever-se-á escolher o dispositivo penal que melhor se adequa ao fato criminoso. Direito Penal 34 Teoria do Crime OBJETIVO: Até o presente momento, vimos que o Direito Penal é o conjunto de regras e princípios que lhe são próprios; destinados a combater o crime e as contravenções penais, mediante a imposição de sanção penal. Mas o que é um crime e o que é uma contravenção penal? Como identificar perante o caso concreto se ali ocorreu um fato criminoso ou não? É disso que iremos tratar agora. Ao término desse Capítulo você será capaz de entender que para definir se um fato é criminosos ou não ele deverá preencher três requisitos: tipicidade ilicitude e culpabilidade, requisitos esses trabalhados pela teoria do crime, objeto de nosso estudo no presente Capítulo. Isso será fundamental para que você, enquanto operador do Direito, possa identificar de forma técnica a constituição de uma conduta criminosa. E então? Motivado para desenvolver essa competência? Então vamos lá! Figura 3 – Para que um juiz possa condenar um sujeito pela prática de um crime, deve ser provada a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade da sua conduta Fonte: Freepik Direito Penal 35 Como dito anteriormente, a corrente majoritária na doutrina brasileira estabelece que o fato criminoso é aquele que tem tipicidade, ilicitude a culpabilidade. Porém, devemos salientar que o conceito de crime não se resume a tais elementos. A doutrina especializada elucida que o crime pode ser conceituado considerando três aspectos: material, legal, formal ou analítico. Vejamos cada um deles: Como elucida Masson (2019, p. 160), de acordo com o critério material ou substancial, crime é toda ação ou omissão humana que lesa ou expõe a perigo de lesão bens jurídicos penalmente tutelados. Esse critério tem em conta a relevância do mal produzido por determinadas condutas, e funciona como vetor do legislador para que a ele seja incumbido a tipificação exclusiva das condutas que causarem danos ou que coloquem em perigo bens jurídicos penalmente relevantes. Segundo o critério da legalidade, crime é aquela conduta posta pelo legislador como tal. Nesse sentido, institui o art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-Lei n° 3.914, de 9 de dezembro de 1941) que crime é aquela infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, isolada, alternativaou cumulativamente com a pena de multa; e contravenção e infração penal é aquela conduta que a lei comina isolada, alternativa ou cumulativamente pena de prisão simples ou de multa. O critério formal ou analítico, ou ainda, dogmático, tem em conta os elementos que compõem a estrutura do crime e a corrente majoritária adota a posição tripartida do conceito de crime, segundo a qual crime é todo fato típico, ilícito e culpável. Ante o exposto, passaremos agora à análise de cada um desses elementos fundamentais do crime, uma vez que sua função consiste na facilitação da averiguação da presença ou ausência de um delito no caso concreto. No entanto, antes disso, é importante ter em mente que a tipicidade, ilicitude e culpabilidade convertem uma ação ou omissão em um crime e que cada um desses elementos, como foram apresentados, é um antecedente lógico da apreciação do elemento seguinte. A culpabilidade, enquanto responsabilidade pessoal por um fato antijurídico, pressupõe a antijuridicidade do fato; da mesma forma, a antijuridicidade pressupõe a sua concretização em tipos penais (GRECO, 2012, p. 135). Direito Penal 36 Fato típico O fato típico é o praticado por pessoa natural, ou também o praticado por pessoa jurídica, em relação aos crimes ambientais previstos na Lei n° 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; que se enquadra perfeitamente aos elementos descritos pelo tipo penal. Nesse sentido, será atípico o fato decorrente de uma conduta sem previsão em nenhum tipo penal. A doutrina aponta, majoritariamente, quatro elementos do fato típico: conduta, resultado naturalístico, relação de causalidade ou nexo causal e tipicidade. IMPORTANTE: No tipo penal que acomoda uma conduta e um resultado naturalístico (uma modificação do mundo exterior decorrente do comportamento do agente), exigindo a produção do resultado para que o crime seja consumado, pode-se afirmar que os quatro elementos da tipicidade do fato estarão presentes quando o crime for consumado. Já nos crimes tentados, suprime-se o resultado naturalístico e o nexo causal. No tipo penal que acomoda o crime formal, no qual o resultado naturalístico não é necessário para a consumação do crime; e no tipo penal que acomoda o crime de mera conduta, no qual não há resultado naturalístico, suprimem-se o resultado naturalístico e o nexo causal (MASSON, 2019). Nesse sentido, podemos afirmar que não há crime sem conduta. A delimitação do conceito de conduta, por sua vez, é uma das maiores discussões do Direito Penal, atualmente. Portanto, tratemos aqui apenas da teoria majoritária, qual seja, a teoria finalista. Segundo tal teoria, conduta é toda ação ou omissão humana, consciente e voluntária, dirigida a uma finalidade específica, a fim de que se produza um resultado tipificado ou previsto em lei como crime ou contravenção penal. A ação deve ser entendida como todo movimento corporal exterior, ou seja, um fazer algo. A omissão, por seu turno, constitui a conduta de não fazer aquilo que podia e deveria ter feito em termos jurídico; desse Direito Penal 37 modo, pode desdobrar-se tanto na situação do indivíduo que nada fez devendo ter feito algo, ou na situação do indivíduo que fez algo diferente daquilo que o dever jurídico lhe impunha. No âmbito da conduta, sob uma ótica finalista do Direito Penal, analisa-se também se determinada conduta é dolosa ou culposa. IMPORTANTE: O dolo consiste na vontade e na consciência de realizar os elementos do tipo penal e a culpa, por sua vez, consiste na conduta voluntária, desprendida pelo agente que deixa de observar o dever de cuidado, por imprudência, negligência ou imperícia, produzindo um resultado naturalístico criminoso, objetivamente previsível ou que com a devida atenção poderia ser evitado. O dolo pode ser direito (a vontade do agente é voltada para um resultado específico); indireto (a vontade do agente não é dirigida a um resultado específico); alternativo (o agente deseja de forma indistinta um ou outro resultado); eventual (embora o agente não queira o resultado, ele assume o risco de produzi-lo). Há também o preterdolo, situação na qual a conduta dolosa acarreta a produção de um resultado mais grave do que o desejado pelo agente. A culpa pode ser inconsciente (o agente não prevê o resultado objetivamente previsível); consciente (o agente prevê o resultado objetivamente previsível, mas realiza a conduta acreditando que ele não será produzido); própria (quando o agente não quer o resultado e não assume o risco de produzi-lo); imprópria (aquela em que, o sujeito, após prever o resultado e desejar sua produção, realiza a conduta por erro inescusável quanto à ilicitude do fato); e indireta ou mediata (quando o agente produz o resultado indiretamente a título de culpa). O resultado é a consequência da conduta do agente. Em Direito Penal temos duas espécies de resultado: resultado jurídico ou normativo, que é a lesão ou exposição a perigo de lesão do bem jurídico penalmente tutelado; e o resultado naturalístico ou material, que é a modificação Direito Penal 38 do mundo exterior em decorrência de um ato de vontade do agente criminoso. Nesse sentido: Há crime sem resultado? Resposta: Depende. Como vimos anteriormente, não há que se falar em crime sem resultado jurídico, pois será crime somente aquela conduta que lesiona ou expõe a perigo de lesão um bem jurídico penalmente tutelado. Em contrapartida, podemos afirmar que há crime sem resultado naturalístico, pois nosso Código Penal prevê a possibilidade de ocorrência dos crimes tentados, ainda que material, e crimes de mera conduta, nos quais o resultado naturalístico não será produzido; e prevê ainda a modalidade de crime formal, no quais, ainda que seja possível a ocorrência de resultado naturalístico, este é dispensável para que o crime seja consumado. A relação de causalidade ou o nexo causal é o elemento do tipo que impõe uma ligação entre a conduta e o resultado. Nesse sentido, o art. 13 do Código Penal estabelece que o resultado, de que se depende a existência do crime, somente será imputável a quem lhe deu causa. Insta destacar que prevalece na doutrina brasileira o entendimento de que o resultado ligado à conduta do agente deve ser entendido como resultado naturalístico, ou seja, o estudo da relação de causalidade alcança apenas os crimes materiais. Tal constatação funda-se no fato de que nos crimes de mera atividade o resultado naturalístico pode acontecer ou não, portanto, o nexo de causalidade é dispensável, uma vez que o crime se consuma com a simples prática da conduta. Por fim, como afirmado anteriormente, não há crime sem tipicidade. A tipicidade penal consiste na presença simultânea da tipicidade formal e da tipicidade material. A tipicidade formal é a operação pela qual é analisado se o fato praticado pelo agente tem correspondência em uma conduta prevista como crime ou contravenção penal. A tipicidade material ou substancial analisa a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico penalmente tutelado em razão da conduta praticada pelo agente, pois nem toda conduta que se encaixa perfeitamente na tipicidade formal do dispositivo penal acarreta dano ou perigo ao bem jurídico de forma relevante. Direito Penal 39 Fato ilícito O fato será ilícito quando praticado contra alguém e contra o ordenamento jurídico, capaz de lesionar ou expor a perigo bem jurídico penalmente tutelado. Insta salientar que a ilicitude, no Direito Penal brasileiro, é meramente objetiva, ou seja, as características pessoais do agente, como a sua capacidade de discernimento, em nada afetam a ilicitude. EXPLICANDO MELHOR: Os inimputáveis por qualquer que seja a causa de sua ausência de culpabilidade, praticam condutas ilícitas, muito embora as penas não possam lhe ser imputadas por ausência de culpabilidade. A ilicitude se mantém independentemente da culpabilidadedo agente. Dito isso, em que consiste a culpabilidade de uma pessoa e qual a sua implicação na teoria do crime? Responderemos a presente questão na seção a seguir. Fato culpável Desde que se adote um conceito tripartido de crime, a culpabilidade é o elemento do crime que incide sobre a formação e exteriorização da vontade do responsável pela prática de um fato típico e ilícito, exercendo um juízo de censura e reprovabilidade, com o propósito de aferir a necessidade de imposição da lei penal. Em um Estado Democrático de Direito deve imperar um direito penal do fato, ou seja, deve-se punir os fatos praticados pelos agentes, e não o agente do fato, ou seja, deve desconsiderar a particular forma de ser do agente, deve punir o fato e não rotular as pessoas (MASSON, 2019, p. 376). Nesse sentido, a culpabilidade recai sobre o autor para analisar se ele deve suportar ou não uma pena em razão do fato cometido. Nos moldes da concepção finalista, a culpabilidade é composta pela imputabilidade; potencial consciência sobre a ilicitude do fato; e da exigibilidade de conduta diversa. Veremos cada um desses elementos da culpabilidade no Capítulo 4, para que não fujamos do tema proposto no presente Capítulo. Direito Penal 40 Etapas da realização do crime As etapas de realização do crime ou iter criminis, ou ainda, “caminhos do crime” corresponde aos passos percorridos pelo agente para a prática de um fato previsto em lei como infração penal. Assim sendo, as etapas da realização do crime são assim dispostas: A primeira fase é chamada de fase interna e consiste na cogitação, primeira etapa da realização do crime, na qual o agente forma a ideia de enveredar pela empreitada criminosa. É chamada de interna porque repousa no íntimo do agente, ou seja, na sua mente. A segunda fase é chamada da fase externa e consiste, respectivamente, na etapa da preparação, execução e consumação do crime. Na preparação, o agente realiza os atos indispensáveis à prática da infração penal. Na execução, o agente dá início à agressão ao bem jurídico. A execução, por seu turno, é a etapa na qual consuma-se o fato criminoso, ou seja, momento em que são reunidos todos os elementos da definição legal do crime. O crime exaurido ou crime esgotado é o delito em que, após a sua consumação, subsistem efeitos lesivos derivados da conduta criminosa. A título ilustrativo podemos citar o crime de extorsão mediante sequestro, pois se consuma com a privação da liberdade destinada à troca por vantagem indevida. O exaurimento não integra as etapas do crime, mas sim influi na dosimetria da pena. IMPORTANTE: É importante saber as fases de um crime para identificar a sua punibilidade, uma vez que a lei penal determina que o crime será punível apenas quando iniciada sua execução, ou seja, a cogitação e os atos preparatório não são puníveis. A delimitação das etapas de um crime é de fundamental importância, ainda, para que possamos verificar se determinado crime chegou a ser consumado ou não passou de mera tentativa. Direito Penal 41 Nesse sentido, em que consiste o crime tentado? Quais são os seus elementos? Vejamos! O art. 14, inciso II, do Código Penal, conceitua a tentativa como o início da execução de um crime que não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente, o que culmina na tipicidade não finalizada, ou seja, o crime não é concluído por forças estranhas à vontade e ao propósito do agente. Ante o exposto, é possível afirmar que os elementos para que um crime seja tido como tentado são: a) início da execução do crime; b) ausência de consumação por circunstâncias alheias à vontade do agente; c) deve existir o dolo da consumação pelo agente. A punibilidade da tentativa, por sua vez, é instituída pelo parágrafo único do art. 14 do Código Penal, segundo o qual a pena da tentativa deve ser correspondente à pena do crime que seria consumado, diminuída de um a dois terços. NOTA: Atualmente, prevalece no Direito Penal brasileiro o entendimento de que é cabível a tentativa nos crimes cometidos com dolo eventual, por equiparação ao art. 18º, inciso I, do Código Penal, no que tange o seu tratamento ao dolo direto (STJ, 2012). Até aqui vimos que para que um fato seja considerado como crime exige-se que ele tenha correspondência a uma conduta prevista em lei como tal ou como contração penal. Entretanto, como proceder nos casos em que duas ou mais pessoas colaboram reciprocamente para a prática de um mesmo crime? E nos casos em que uma só pessoa pratica dois ou mais crimes, por meio de uma só conduta? Pois bem, as situações descritas são tratadas pela doutrina como situações de concurso de pessoas e concurso de crimes, respectivamente. A solução dada pelo Direito Penal a esses casos será estudada na próxima seção. E aí? Vamos juntos? Direito Penal 42 Concurso de crimes e concurso de pessoas O concurso de crimes é doutrinariamente dividido em concurso material, concurso formal e crime continuado. O concurso material de crime está previsto no art. 69 do Código Penal e ocorre quando o agente, ao realizar mais de uma conduta, seja ela uma ação ou omissão, realiza a prática de dois ou mais crimes, sejam eles idênticos (concurso material homogêneo) ou não (concurso material heterogêneo). Na presença da referida modalidade de concurso, o agente deverá ser acusado pela prática de todos os crimes cometidos, somando as suas respectivas penas. EXEMPLO: o agente A pega um revólver e mata B. Em seguida, aponta a arma para C e o rouba. No presente caso, estamos diante de um concurso de crime heterogêneo. O concurso formal de crimes, por sua vez, ocorre quando através de uma só conduta (ação ou omissão) o agente pratica dois ou mais crimes idênticos (concurso formal homogêneo) ou não (concurso formal heterogêneo). A presente modalidade de concurso está prevista no art. 70 do Código Penal e, nesse caso, será aplicada a pena do crime mais grave, aumentada de um sexto até a metade; se as penas forem as mesmas, deverá ser aplicada somente uma das penas, aumentada de um sexto até a metade. As penas serão aplicadas de forma cumulativa se a conduta for dolosa e os crimes praticados ocorrerem por desígnios distintos e autônomos. EXEMPLO: o agente A, ao desrespeitar o sinal vermelho da sinalização de trânsito, atropela e mata duas pessoas. Nesse caso, estamos diante de um concurso formal homogêneo, devendo o agente ser acusado de homicídios culposos. O crime continuado está previsto no art. 71 do Código Penal e ocorre quando o agente, por meio de uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, nas mesmas condições de tempo, lugar, maneira e outras semelhantes, de modo que os crimes subsequentes são continuações do primeiro crime. Nesse caso, cumpridos os requisitos do caput do referido artigo, os fatos serão tidos como um só crime e ao agente deverá ser aplicada a pena de um só crime se todos eles forem Direito Penal 43 idênticos; ou a pena mais grave, se os crimes forem distintos. Em ambos os casos, a pena aplicada será aumentada de um sexto a dois terços. EXEMPLO: o agente A que comete 15 furtos, agindo sempre da mesma maneira e de forma sucessiva, deverá ser punido pela prática do crime como se fosse um só, tendo sua pena aumentada. O concurso de pessoas, por sua vez, ocorre quando duas ou mais pessoas concorrem para a prática de uma mesma infração penal. Essa colaboração recíproca para a prática de um ou mais crimes pode ocorrer, tanto nos casos em que são vários os autores quanto no caso de autoria e participação. Segundo o art. 29 do Código Penal, aquele que, de qualquer modo, concorrer para a prática de um crime, incide nas penas a este cominadas, na medida da sua culpabilidade. A doutrina destaca que para que se constate o concurso de pessoas é preciso verificar a presença de quatro requisitos: pluralidade de agentes;relevância causal da conduta de cada agente para que o crime seja realizado; liame subjetivo ou vínculo psicológico unindo os agentes; e identidade da infração penal, ou seja, os agentes devem objetivar, com suas condutas, o cometimento da mesma infração penal. Direito Penal 44 RESUMINDO: Tudo bem até aqui? Ao longo de tudo que foi exposto, esperamos que você tenha compreendido que, majoritariamente, no Direito Penal brasileiro, tem se adotado a teoria tripartida do crime, segundo a qual será tida como infração o fato resultado de uma conduta que for típica, ilícita e culpável. É importante lembrar que a doutrina distingue a realização do crime em etapas sequenciais, sendo elas a cogitação, preparação, execução e preparação, e que tal distinção é imprescindível para que se possa verificar a punibilidade de um fato, uma vez que a lei penal determina que o crime será punível apenas quando iniciada sua execução, ou seja, a cogitação e atos preparatórios não são puníveis. E, por fim, vale lembrar que o concurso de crimes é doutrinariamente dividido em concurso material, concurso formal e crime continuado; e o concurso de pessoas verifica-se na presença dos seguintes requisitos: pluralidade de agentes, relevância causal, liame subjetivo e identidade da infração penal. Direito Penal 45 Causas de Exclusão da Tipicidade, Ilicitude e da Culpabilidade OBJETIVO: Será crime o fato típico ilícito e culpável. Entretanto, o Direito Penal regula situações em que um fato típico será lícito e situações em que um fato típico e ilícito não será punível porque o agente que o cometeu não é imputável. Ao final desse Capítulo, você será capacidade de identificar cada uma dessas situações, pois passaremos agora ao estudo das excludentes de tipicidade, ilicitude e culpabilidade dos fatos típicos. O elemento tipicidade é indispensável para que o fato seja tido como crime, pois se o fato praticado pelo agente não tem correspondência em uma conduta prevista como crime ou contravenção penal, ou se o fato praticado não culmina em lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico penalmente tutelado, não há que se falar em crime, o crime nunca existiu. Como vimos anteriormente, a tipicidade do fato depende da conduta voluntária e consciente do agente; bem como que tal conduta venha a lesionar ou expor a perigo de lesão a um bem jurídico penalmente tutelado. Portanto, haverá excludente de tipicidade quando ausente qualquer um desses elementos típicos. Nesse sentido, a doutrina defende que haverá exclusão da tipicidade de um fato quando: a) haver coação física irresistível; b) incidência do princípio da insignificância; c) incidência do princípio da adequação social; d) incidência da teoria da tipicidade conglobante, segundo a qual não basta apenas a tipicidade legal (contrariedade do fato à lei penal), também é necessário que determinada conduta viole todo o sistema normativo, ou seja, que ela seja antinormativa. Direito Penal 46 NOTA: Quanto à teoria conglobante, Zaffaroni e Pierangeli (2007, p. 395) elucidam que o Estado cairia em contradição se considerasse típica uma conduta que é, por ele, tida como tolerada. Nesse sentido, o que é permitido por uma norma, não pode ser proibida por outra. Por outro lado, o Direito Penal antevê que embora o agente tenha praticado uma conduta típica, há situações em que ele não será punido por ausência de ilicitude na sua conduta ou pelo fato de o agente ser penalmente inimputável. Vejamos a seguinte situação: um senhor idoso que mora sozinho em uma propriedade rural, ao perceber que está prestes a ser assaltado, recebe o invasor com um tiro de revólver e o mata. Esse senhor será preso por crime de homicídio? A princípio, a resposta seria negativa, pois constatado que o senhor, apesar de ser perfeitamente imputável penalmente, agiu em legítima defesa, sua conduta apesar de ser típica será ilícita, portanto, não houve crime. É sobre essas questões que nos debruçaremos agora. Ao excluir a ilicitude de um fato típico, determinada conduta, apesar de típica, é tida como lícita. O Código Penal brasileiro, no seu art. 23, determina três causas expressas de exclusão da ilicitude, quais sejam: estado de necessidade, legítima defesa e estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Desse modo, há ação que pela peculiar posição na qual se encontra o agente ao praticá-la, apresenta- se perante o Direito como lícitas e essa peculiar posição em que os agentes atuam impende que elas sejam tidas como antijurídicas. Essas excepcionais situações de licitude são também chamadas de exclusão da antijuricidade, justificativas ou descriminantes (BRUNO, 1984). Direito Penal 47 IMPORTANTE: Greco (2012) salienta que além dos elementos objetivos de exclusão da ilicitude (aqueles definidos no art. 26 do Código Penal), também deve ser identificado na conduta do agente o elemento subjetivo de antijuridicidade, qual seja, o animus ou a vontade do agente ao realizar sua conduta, pois o agente dever saber ou pelo menos acreditar que atua em estado de necessidade, legítima defesa ou em estrito cumprimento de um dever legal ou no exercício regular de direito. A título ilustrativo temos a seguinte situação: A dirige à casa de B para matá-lo. A, ao encontrar B dentro do seu carro na porta da sua casa, dispara vários tiros em direção ao carro e o mata. Entretanto, B estava dentro do carro com uma arma apontada para C com a intenção de matá- lo para acertar umas dívidas, portanto, A mata B, salvando a vida de C sem saber. Nesse caso, A será indiciado pelo homicídio de B, pois sua intenção sempre foi a de matar B e não de salvar a vida de C. Quanto aos elementos objetivos, o Código Penal trouxe os conceitos de estado de necessidade e legítima defesa, no caso do cumprimento do dever legal e do exercício regular do Direito, suas definições ficaram a cargo da doutrina e da jurisprudência. Iniciaremos o estudo desses elementos trazendo o conceito de estado de necessidade. Segundo o art. 24 do Código Penal: “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se” (BRASIL, 2017, p. 17). Cabe destacar que não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo (art. 24, parágrafo 1º). No estado de necessidade a doutrina afirma que a regra é que ambos os bens jurídicos em conflito devam estar amparados pelo ordenamento jurídico, pois é daí que se extrai a justificativa da licitude da conduta, ou seja, é o conflito de bens jurídicos tutelados que levará, em virtude da situação que se encontravam, à prevalência de um sobre Direito Penal 48 o outro (GRECO, 2012). Nesse sentido, se A mata B por acreditar que B irá matar C, prevalecerá o bem jurídico, vida de C sobre o bem jurídico, vida de B. Quanto aos bens jurídicos tutelados, o Código Penal brasileiro adota a teoria unitária, na qual todo estado de necessidade será causa de exclusão da ilicitude, pouco importando se o bem jurídico protegido pelo agente é de valor superior, igual ou inferior àquele que está sofrendo a ofensa. A legítima defesa é assim definida pelo art. 25 do Código Penal: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem” (BRASIL, 2017, p. 17). O parágrafo único do mesmo artigo prevê que, tendo em conta os requisitos acima descritos, “considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes”(BRASIL, 2017, p. 17). O Estado legitima que, em determinadas situações e de forma limitada, seus cidadãos possam agir em sua própria defesa,vez que não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo para protegê-los. Figura 4 – A legítima defesa ocorre sempre em reação a uma injusta agressão da vítima e desde que ocorra com proporcionalidade no uso dos meios empregados para reagir ao dano ou ao perigo de dano sofrido Fonte: Freepik Direito Penal 49 IMPORTANTE: Feitas essas considerações, a doutrina tem entendido que qualquer bem jurídico tutelado pelo ordenamento jurídico pode ser protegido pelo instituto da legítima defesa, desde que presente seus requisitos: a) meios necessários; b) moderação no uso dos meios; c) atualidade e iminência da agressão; d) defesa de direito próprio ou alheio; e) injusta agressão; bem como que para ser passível de legítima defesa o bem jurídico tutelado deve estar posto em perigo em uma situação na qual seja impossível socorrer-se do Estado (MASSON, 2019). No estrito cumprimento de um dever legal compreende os deveres de intervenção do funcionário na esfera privada para assegurar o cumprimento da lei (de natureza penal ou não) ou de ordens de superiores da administração pública, que podem determinar a realização justificada de tipos legais; desde que o cumprimento desse dever se dê nos termos impostos pela lei (SANTOS, 2000). Portanto, destacamos que a excludente em análise pressupõe no executor um funcionário público, agente público, o particular que exerça função pública e o particular que atua em cumprimento de um dever imposto por lei (MASSON, 2020). NOTA: Com o advento da Lei n° 13.964, de 24 de dezembro de 2019, a Lei do Pacote Anticrime, exclui-se a ilicitude do caso previsto no art. 10-C da presente lei: “não comete crime o policial que oculta a sua identidade para, por meio da internet, colher indícios de autoria e materialidade dos crimes previstos no art. 1º desta Lei” (BRASIL, 2019, p. 7). O exercício regular de direito autoriza a prática de ato, reputado pela ordem jurídica como exercício de um direito, sendo a palavra direito, nesse caso, empregada de forma ampla. Nesse sentido, se um civil, que presencia um assalto, efetua a prisão em flagrante do autor, não pode a ele Direito Penal 50 ser imputado o crime de constrangimento ilegal em razão da permissão contida no art. 301 do Código de Processo Penal. Nesse sentido, prevalece na doutrina o entendimento de que o direito, que autoriza a exclusão da ilicitude de uma conduta, deve estar previsto na lei (MASSON, 2019). Insta salientar que o excesso é punível em todos os casos vistos de exclusão da ilicitude. Uma vez que, para a excludente, a lei penal impõe seus exatos limites, e aquele que os ultrapassar deverá ser punido. Seja a título de dolo ou de culpa, a excludente da ilicitude desaparece em face do agente que desrespeita os seus limites legalmente previstos, devendo suportar a punição pelas abusivas lesões provocadas ao bem jurídico penalmente tutelado. Quanto à culpabilidade, tem-se que seus elementos são a imputabilidade, potencial, consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Portanto, a culpabilidade tem o condão de diferenciar a conduta do homem normal, maior de idade, plenamente apto ao convívio social, dotado de conhecimento do caráter ilícito do fato livremente cometido; do comportamento realizado por portadores de doenças mentais ou desenvolvimento mental incompleto ou retardo, de pessoas que não têm plena capacidade de discernimento, ou de pessoas que não têm como agir de forma diversa. Desse modo, pode-se afirmar que a culpabilidade se funda no perfil subjetivo do agente. O maior ou menor grau de culpabilidade do agente constitui-se em circunstâncias judiciais destinadas à quantidade de penas concretamente aplicadas, como preceitua o art. 59 do Código Penal. O conceito de imputabilidade não foi trazido pelo nosso Código Penal, de modo que apenas temos previstos quais são os casos de inimputabilidade (artigos 26, 27 e 28 do referido diploma). Sobre a análise dos referidos artigos é, contudo, possível afirmar que imputabilidade consiste na capacidade mental, inerente ao ser humano de, no tempo da conduta penalmente defesa, entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento (MASSON, 2019). Assim sendo, a inimputabilidade depende da ausência de um desses elementos: elemento intelectivo (perfeita saúde mental do indivíduo) e volitivo (domínio da vontade). Direito Penal 51 NOTA: A culpabilidade é pressuposto de aplicação da lei penal. Sem a imputabilidade o agente deverá ser submetido normalmente à justiça penal, deverá ser processado e julgado pelo ilícito penal cometido, contudo não poderá ser condenado (MASSON, 2019). A menoridade (art. 27 do Código Penal) como causa de exclusão da culpabilidade é absoluta (art. 228 da Constituição Federal), ou seja, independe da inteligência, expertise e do desenvolvimento mental do menor de 18 anos. O menor emancipado civilmente continua inimputável penalmente, pois predomina o entendimento de que a capacidade civil não se confunde com a capacidade penal. Figura 5 – Algumas pessoas não são passiveis de sofrer a aplicação de uma sanção penal, como as crianças enquanto menores de idade Fonte: Freepik A inimputabilidade por doença mental (art. 26, caput, do Código Penal) deve ser interpretada no sentido amplo, englobando os problemas patológicos e os de origem toxicológica. O crucial é que seja detectável qualquer alteração mental ou psíquica que suprima no agente a sua capacidade de entender o caráter ilícito de um fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento, independentemente dessa alteração ser permanente ou transitória, como um delírio febril ou os decorrentes de grave pneumonia. Direito Penal 52 A inimputabilidade por desenvolvimento mental incompleto (art. 26, caput e art. 27 do Código Penal) abarca os menores de 18 anos e os indígenas. Os índios, entretanto, somente serão inimputáveis quando uma perícia demonstrar que ele é completamente incapaz de viver em sociedade, desconhecendo as regras que lhe são inerentes. A inimputabilidade por desenvolvimento mental retardado diz respeito ao indivíduo que não se mostra em sintonia com os demais indivíduos com a mesma idade cronológica, resultante de alguma condição que lhe seja peculiar. O desenvolvimento mental retardado é um condição de desenvolvimento interrompido ou incompleto da mente, portanto, se ao tempo da ação ou omissão, o agente for um sujeito acometido por tal desenvolvimento retardado da mente, e, por consequência, for incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se conforme esse entendimento, ele será tido como inimputável para o Direito Penal. Partindo do pressuposto de que sem imputabilidade (elemento da culpabilidade) ao agente não pode ser imposta um pena, o Direito Penal brasileiro prevê que, embora demonstrado em juízo o envolvimento de um inimputável em um fato típico e ilícito, ele deverá ser absolvido (pela chamada sentença de absolvição imprópria), contudo lhe será aplicada umas das medidas de segurança previstas no art. 386 do Código de Processo Penal. A justificativa para a aplicação dessas medidas, por sua vez, reside no fato de que o juízo de culpabilidade desses indivíduos é substituído pelo juízo de periculosidade (MASSON, 2019). NOTA: O Código Penal, no art. 28, incisos I e II, prevê que a paixão ou emoção e a embriagues, voluntária ou culposa, não excluem a imputabilidade penal. Isso posto, para finalizarmos o presente Capítulo, iremos repassar os elementos que compõem a infração penal por meio da seguinte figura: Direito Penal 53 Figura 6 – Elementos que compõem a infração penal Crime Fato típico • Conduta. • Resultado. • Nexo de causalidade. • Tipicidade. Antijurídico (Quando o agente não atua em): • estado de necessidade. • legítima defesa. • exercício regular de direito.
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