Prévia do material em texto
Catalogação na publicação: Poliana Sanchez de Araujo – CRB 10/2094 F722l Forli, Cristina Arena. Literaturas africanas em língua portuguesa / Cristina Arena Forli, Gustavo Henrique Rückert ; revisão técnica: Gabriela Semensato Ferreira. – Porto Alegre : SAGAH, 2017. 132 p. : il. ; 22,5 cm. ISBN 978-85-9502-106-8 1. Literatura africana – Língua portuguesa. 2. Qualidade ambiental. I. Rückert, Gustavo Henrique. II. Título. CDU 821.134.3(6) Revisão técnica: Gabriela Semensato Ferreira Mestra em Letras com ênfase em Literatura Comparada (UFRGS) Graduada em Licenciatura em Letras (UFRGS) Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_Iniciais_Impressa.indd 2 03/07/2017 14:41:17 Comparação entre literatura brasileira e africana Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados. n Reconhecer a importância da intertextualidade na constituição dos textos literários. n Identi� car as relações intertextuais entre obras literárias africanas e brasileiras. n Avaliar os sistemas literários enquanto laços comunitários transnacionais. Introdução Você sabia que autores brasileiros como Jorge Amado, Guimarães Rosa e Manuel Bandeira foram indispensáveis para o desenvolvimento das literaturas africanas em língua portuguesa? Embora ainda não tenham o devido reconhecimento em nosso país, essas literaturas têm muito mais a ver conosco do que imaginamos. Neste texto, você vai estudar um pouco mais sobre as relações entre a literatura brasileira e as literaturas africanas. Diálogos para além do Atlântico Você já parou para pensar como é feito um texto literário? Os românticos defenderam que é a partir da expressão da subjetividade de seu autor. O texto seria, assim, produto de uma individualidade. No entanto, a literatura compa- rada nos mostrou que, diferentemente da perspectiva romântica, um texto é sempre formado por várias vozes. Para a teórica Julia Kristeva (1974, p. 74), U N I D A D E 3 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 91 29/06/2017 18:15:52 “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.”. Concluímos assim que a criação de uma obra literária se faz sempre pela utilização de outras obras literárias como referência, seja para a manutenção ou para a ruptura de características. O diálogo explícito ou implícito de uma obra literária com outras, formando uma comunidade textual, foi definido por Kristeva (1974) com o conceito de “intertextuali- dade”. Tania Franco Carvalhal (2001, p. 54), por sua vez, explicou que sempre que isso ocorre, “[...] a repetição sacode a poeira do texto anterior, atualiza-o, renova-o (e por que não dizê-lo?) o re-inventa.”. Nesse sentido, você já se perguntou que textos foram utilizados como referência para a constituição das literaturas africanas? Devido ao fato de essas literaturas configurarem importantes passos rumo à independência (não só política, como cultural) desses países, colonizados por Portugal, a literatura portuguesa deixou de ser seu grande norte referencial. Ao elencar suas leituras fundamentais, então, os escritores africanos de língua portuguesa passaram a observar o Brasil como possibilidade de diálogo mais que possível, indispensável. Em meados do século XX, a literatura brasileira já havia passado pela ruptura conceitual proposta pelos modernistas de 1922, pela perspectiva marxista do romance de 30 e pela solução linguística que Guimarães Rosa apresentou ao problema da distância entre a linguagem literária e a linguagem cotidiana do país. Os escritores afri- canos perceberam então que os diálogos entre África e Brasil, que remontam ao tráfico escravista do período colonial, renderiam no seu presente importantes frutos para a independência cultural de países como Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Nas próximas seções iremos abordar alguns pontos decisivos desse diálogo literário transatlântico. O romance de 30 – uma perspectiva crítica da sociedade A partir do fi nal da década de 1920, iniciou no Brasil um dos mais importantes movimentos de regionalização da literatura: o neorrealismo, ou romance de 30, Literaturas africanas em língua portuguesa92 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 92 29/06/2017 18:15:52 como fi cou mais conhecido no país. Escritores como Jorge Amado, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Erico Verissimo procuraram evidenciar as condições de trabalho no interior do país. Para isso, optaram frequentemente por narrativas lineares, narradores em terceira pessoa e linguagem objetiva. A partir dessa estrutura, puderam evidenciar as relações entre a propriedade privada das terras e a exploração da mão de obra dos trabalhadores. É importante mencionar que a sociologia brasileira produzia à época algumas de suas mais basilares obras, como Casa grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Hollanda. Em consonância com esses estudos, os romances de 30 acabavam por defender uma tese sobre a estruturação social do país, pautada na exploração da mão de obra daqueles que não detêm a propriedade de terras. A descoberta de uma literatura que possibilitava a observação da estru- tura social em um país também colonizado por Portugal e que passou pela experiência traumática da escravidão foi fundamental para a consolidação das literaturas africanas em língua portuguesa. O escritor africano que mais dialogou com a perspectiva do romance de 30 brasileiro foi o angolano Castro Soromenho. Em 1949, ele publicou o romance Terra morta, que aborda a deca- dência de brancos, mulatos e negros na vila do Camaxilo. A partir da presente exploração do algodão, retoma as explorações do diamante, da borracha e do marfim – condenando o capitalismo predatório do sistema colonial como o causador da morte da terra. À aplicação do neorrealismo às questões africanas de Soromenho, segui- ram vários outros escritores. Em Cabo Verde, por exemplo, a contribuição do romance de 30 brasileiro foi decisiva para o movimento Claridade (1936), encabeçado por Osvaldo Alcântara, Jorge Barbosa e Manuel Lopes. Esse mo- vimento foi um divisor de águas na literatura do arquipélago, pois iniciou um processo de denúncia à precariedade das condições de vida na então colônia portuguesa. À ruptura do movimento de 1933, segue a Certeza (1944). É no desenvolvimento desse segundo movimento que se destacam os nomes de Manuel Ferreira e Orlanda Amarílis. Ferreira é autor de Hora di bai (1962), romance que inova em relação à linguagem neorrealista alimentando-se da cultura migrante local e da musicalidade da morna, como é conhecido o gênero musical popular do país. No entanto, em relação à denúncia da exploração social ocorrida no período colonial, sua obra revela profundo diálogo com nomes como Jorge Amado e Graciliano Ramos. Amarílis, em obras como Cais-do-Sodré té Salamansa (1974), denuncia a realidade social, com especial enfoque na condição da mulher, também pela perspectiva neorrealista. 93Comparação entre literatura brasileira e africana Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 93 29/06/2017 18:15:52 Em Angola e Moçambique, Luandino Vieira e Luís Bernardo Honwana revelam também a importância do romance de 30 para suas obras. Luandino, apesar de adotar uma perspectiva linguística bastante distinta da estética neorrealista, denuncia em obras como A vida verdadeira de Domingos Xavier (1961) e Luuanda (1963) a violência do sistema colonial na periferia de Angola. Honwana, por sua vez, com linguagem muito mais sintética que os neorre- alistas, revela o quanto o racismo e a violência estão arraigados à estrutura social moçambicana. Apesar das diferenças linguísticas, a representação da sociedade colonial na produção desses autores deve muito à proposta dos escritores brasileiros.Por isso, o romance de 30 brasileiro foi fundamental à consolidação das literaturas africanas em língua portuguesa, sendo relevante não apenas aos autores mencionados, mas às gerações que os seguem. Em nomes como Jorge Amado, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Erico Verissimo, os africanos encontraram o grande contributo para a leitura e a representação de sua realidade social, emprestando uma visão mais crítica aos textos literários. No caso do escritor baiano, sobretudo, encontraram uma referência de valores inestimáveis, visto que, além do alcance social de sua obra, havia maior interesse pelos aspectos da cultura afrodescendente e uma maior proximidade da linguagem popular em comparação aos demais neorrealistas. Guimarães Rosa e a solução para a problemática da linguagem narrativa Um dos principais problemas da literatura regionalista brasileira do século XIX consistia no abismo linguístico entre os narradores e os homens re- presentados na condição de personagens. Aqueles, com linguagem cientifi - cista e ponto de vista predominantemente urbano, acabavam reproduzindo preconceitos para descrever estes. Um dos primeiros escritores a resolver esse problema é Simões Lopes Neto, que cria Blau Nunes, uma espécie de contador de causos do interior do Rio Grande do Sul para assumir a condição de narrador de seus contos. Assim, a literatura aproximava-se da linguagem e da visão de mundo do homem interiorano. Já em meados do século XX, João Guimarães Rosa consolida a postura iniciada por Lopes Neto. Em seus contos e romances, Guimarães Rosa recorre a narradores que remontam sertanejos do norte de Minas Gerais. Se os regionalistas de outrora haviam descrito com preconceitos os sujeitos dos sertões do país, Literaturas africanas em língua portuguesa94 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 94 29/06/2017 18:15:53 Rosa levava à excelência uma literatura que ia em sentido oposto: revelava poeticidade na narrativa oral desses sujeitos e densidade fi losófi ca na sua representação de mundo. Nas literaturas africanas, uma das discussões centrais sempre foi a ques- tão linguística. Escrever em português significaria escrever na língua do colonizador. No entanto, as línguas locais chegam a dezenas em cada um dos países – muitas delas sem registros gráficos. Dessa forma, essas línguas mostravam-se insuficientes para literatura, considerando o número de leitores que teriam acesso às obras. Apropriar-se da língua portuguesa foi, então, tarefa fundamental na literatura e na política desses países. No campo político, essa apropriação possibilitou a criação de uma unidade entre os diferentes povos que habitavam os futuros países. No campo literário, a partir da leitura de obras como Sagarana (1946), Grande sertão: veredas (1956) e Primeiras estórias (1962), de Guimarães Rosa, os escritores africanos perceberam que era possível utilizar a língua portuguesa como expressão da cultura popular local em suas narrativas. O escritor decisivo para o diálogo entre o sertanejo do norte de Minas e a África foi o angolano José Luandino Vieira. A partir da experiência de Rosa, Vieira percebeu a viabilidade da voz de sujeitos populares ser explorada literariamente. Assim, buscou no português hibridizado com o quimbundo, linguagem comum à oralidade de muitos musseques (bairros periféricos) da capital Luanda, o estilo de seus narradores. Obras como sua novela A vida verdadeira de Domingos Xavier (1961), seu romance Nós, os do Makulusu (1974) e, especialmente, sua coletânea de contos Luuanda (1963) – este último o primeiro livro africano premiado em Portugal – foram fundamentais à ques- tão linguística nas literaturas africanas em língua portuguesa, tornando-se referência indispensável à sua geração e às seguintes. Na esteira do diálogo entre Luandino Vieira e Guimarães Rosa está um dos autores africanos mais reconhecidos da atualidade: o moçambicano Mia Couto. Nas suas obras, prevalece o poder da fabulação que uma narrativa pode oferecer. Para obter essa força do contar histórias, Couto também recorre aos narradores orais populares de Moçambique, recriando seus universos linguísticos entre o português e as línguas locais, mas, assim como Guimarães Rosa, também utilizando bastante de neologismos. É autor, entre outros, de Vozes anoitecidas (1986), Terra sonâmbula (1992) – considerado um dos doze livros mais importantes do continente africano no século XX –, Estórias abensonhadas (1994) e O outro pé da sereia (2006) – obras aclamadas pela crítica e comumente elogiadas no que diz respeito ao aspecto linguístico. 95Comparação entre literatura brasileira e africana Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 95 29/06/2017 18:15:53 Observe o seguinte trecho da entrevista de Mia Couto concedida a Paulo Hebmüller (2016): Entrevistador: Quando o senhor começou a achar que era hora de transpor essas vozes para a escrita? Mia Couto: Essa África onde eu vivo é uma sociedade que escuta. As pessoas escutam os outros e, na conversa, há uma distribuição de tempos: o tempo da fala e o tempo da escuta, como se por turnos as pessoas soubessem o que têm de fazer. Acho que houve um momento em que eu, já jornalista, fui tentado a escrever as histórias que escutava. Essas histórias estavam tão vivas, tinham tanta força, que pediam que fossem transportadas dessa oralidade para a escrita. Mas aí percebi que a própria escrita tinha de mudar. Aquela que eu sabia e reconhecia não acomodava essa riqueza, essa coloração e, sobretudo, a música, a prosódia. Comecei à procura de uma escrita que fosse plástica e permitisse essa inundação da oralidade. Fiz um primeiro livro (Vozes Anoitecidas, 1987) já muito influenciado por um angolano chamado Luandino Vieira, que abriu portas à oralidade da sua cidade, Luanda, e li uma entrevista em que ele fazia referência à influência de João Guimarães Rosa em seu trabalho. Então, fui à procura de Guimarães Rosa. Nos meus livros seguintes, como Estórias Abensonhadas (1994), já tive esse encontro, que realmente foi importante porque havia ali uma legitimação: é possível fazer isso, é possível deixar entrar essas vozes. Pasárgada no imaginário cabo-verdiano Se a literatura brasileira foi referência fundamental às literaturas africanas em língua portuguesa, no caso específi co da literatura cabo-verdiana foi ainda maior. Por questões históricas, como a grande pluralidade étnica, sobretudo a partir da diáspora negra, a cultura de Cabo Verde apresenta traços muito evidentes de semelhanças culturais com o Brasil, como na religiosidade ou na musicalidade, por exemplo. Dessa forma, a literatura brasileira foi muito lida nas ilhas que compõem o arquipélago. Como você já viu anteriormente, o romance de 30, sobretudo de nordestinos como Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz, uma vez que também retra- tavam do drama da seca, foram imprescindíveis aos movimentos literários cabo-verdianos no século XX. No entanto, um poeta modernista brasileiro fi cou marcado na cultura local de forma bastante singular: Manuel Bandeira. O recifense Manuel Bandeira é um dos principais poetas da história brasi- leira. Como poucos, conseguiu unir cultura popular à tradição lírica, criando uma voz poética de rara sensibilidade e beleza. É essa percepção da estética possível, a partir da oralidade popular, que encantou seu público africano. Um poema em específico, “Vou-me embora pra Pasárgada”, acabou compondo a Literaturas africanas em língua portuguesa96 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 96 29/06/2017 18:15:53 concepção cabo-verdiana dos espaços estrangeiros e locais. O poema, publicado na coletânea Libertinagem (1930), cria a ideia de um lugar idílico, Pasárgada, onde seria possível a realização de tudo aquilo que não seria no plano real. Há, dessa forma, uma erotização das possibilidades mencionadas pelo eu-lírico nesse plano imaginário.Observe (BANDEIRA, 2007, p. 146-147): Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconsequente Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d’água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático 97Comparação entre literatura brasileira e africana Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 97 29/06/2017 18:15:53 Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar — Lá sou amigo do rei — Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada. O movimento Claridade (1936) foi fundamental na denúncia das condições de miséria pelas quais passavam os cabo-verdianos. Uma das formas de ressaltar essa questão era enfatizar a expectativa por condições melhores fora do país. Nesse contexto, Osvaldo Alcântara se apropriou do lugar ficcional criado por Bandeira para ressignificá-lo no imaginário local. Pasárgada, então, passava a significar qualquer terra estrangeira onde pudessem residir os sonhos de melhores con- dições de vida, com emprego, moradia, alimentação, água etc. Observe a seguir o poema “Itinerário de Pasárgada” (ALCÂNTARA apud ANDRADE, 1975, p. 32): Saudade fina de Pasárgada... Em Pasárgada eu saberia Onde é que Deus tinha depositado O meu destino... E na altura em que tudo morre... (cavalinhos de Nosso Senhor correm no céu; a vizinha acalenta o sono do filho rezingão; Tói Mulato foge a bordo de um vapor; O comerciante tirou a menina de casa; Os mocinhos de minha rua cantam Indo eu, indo eu, A caminho de Vizeu...) Na hora em que tudo morre, Essa saudade fina de Pasárgada É um veneno gostoso dentro do meu coração. Literaturas africanas em língua portuguesa98 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 98 29/06/2017 18:15:53 É interessante perceber que o cotidiano cabo-verdiano é descrito com uma interpolação do verso “E na hora em que tudo morre”. Se Cabo Verde se caracteriza a partir do “tudo morre”, por oposição as terras estrangeiras (Pasárgada) são a promessa de vida. O movimento Certeza (1944) seguiu a perspectiva de denúncia das condições locais dos claridosos. No entanto, adotou uma perspectiva fundamentalmente oposta: o antievasionismo. Assim, a despeito da miséria, das condições climáticas e do descaso colonial, adotava a postura de ficar nas ilhas para construir a nação cabo-verdiana. Ovídio Martins, nesse sentido, respondeu ao poema de Osvaldo Alcântara, mantendo o mesmo significado para Pasárgada, no entanto adotando uma perspectiva completamente oposta em relação a ele. Observe o poema “Antievasão” (MARTINS apud ANDRADE, 1975, p. 48): Pedirei Suplicarei Chorarei Não vou para Pasárgada Atirar-me-ei ao chão E prenderei nas mãos convulsas Ervas e pedras de sangue Não vou para Pasárgada Gritarei Berrarei Matarei Não vou para Pasárgada. Ressalta-se que a vontade de permanecer em Cabo Verde (não ir para Pasárgada) é tão grande que a gradação de ações expressas nos versos chega ao extremo: “matarei”. Os versos “[...] atirar-me-ei ao chão/ E prenderei nas mãos convulsas/ Ervas e pedras de sangue [...]” revelam que esse permanecer nas ilhas está ligado a assumir uma identidade cabo-verdiana, amalgamando o ser e o espaço geográfico em que vive. A apropriação do lugar criado por Manuel Bandeira ressalta, portanto, a decisiva contribuição do autor para as discussões literárias, sociais e políticas 99Comparação entre literatura brasileira e africana Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 99 29/06/2017 18:15:53 do local. A ideia de Pasárgada ficou tão arraigada à cultura local que os escri- tores ligados aos movimentos Claridade e Certeza também são comumente mencionados como pasargadistas e antipasagardistas. Conclusão: um sistema literário transnacional e descolonizante Como você pôde perceber, a literatura brasileira foi fundamental à consoli- dação das literaturas africanas de língua portuguesa. De maneira especial, o modernismo brasileiro, nas suas mais variadas manifestações, ofereceu intertexto necessário para que essas literaturas afi rmassem o compromisso com as culturas locais. Vale lembrar que o modernismo foi o grande movi- mento de ruptura da literatura nacional com os laços lusitanos, tão comuns às estéticas anteriores. Por isso, a voz e o cotidiano das camadas populares do país passaram a integrar, de diferentes formas, nossa estética literária. É possível entender, dessa forma, que as relações intertextuais que foram aqui abordadas confi guram alguns elementos de um grande sistema literário transnacional. Esse sistema buscou, por meio da solidariedade entre dife- rentes países da comunidade lusófona, criar elementos que possibilitassem sua descolonização cultural. É importante mencionar, no entanto, que esse diálogo ainda ocorre so- bretudo em mão única. Se os africanos tomaram a literatura brasileira como referência indispensável para pensar os seus países, o movimento contrário ainda é muito pouco explorado no Brasil. Apesar dos destacados esforços de alguns escritores, pesquisadores e movimentos sociais, a literatura produzida em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe ainda é muito pouco conhecida no país. Nesse sentido, a atividade dos atuais e futuros docentes de literatura é fundamental para reverter esse quadro. Afinal, conhecer nossas origens para além do Atlântico é primordial para conhecermo-nos. Literaturas africanas em língua portuguesa100 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 100 29/06/2017 18:15:53 1. Assinale a alternativa que corresponde à contribuição do romance de 30 brasileiro para a consolidação das literaturas africanas em língua portuguesa. a) O romance de 30 resolve o problema do abismo linguístico entre o narrador e os personagens representados, possibilitando às literaturas africanas a inserção da oralidade de sujeitos populares à narrativa literária. b) Ao evidenciar as relações entre a propriedade privada das terras e a exploração da mão de obra dos trabalhadores, o romance de 30 ofereceu às literaturas africanas a possibilidade de uma visão mais crítica da sociedade. c) Em virtude de seu rebuscamento formal, com inversões cronológicas, fragmentação e linguagem hermética, o romance de 30 possibilitou a renovação estética das características formais dos romances africanos. d) O romance de 30, por meio da representação crítica dos grandes líderes estatistas, acabou por emprestar às literaturas africanas novas possibilidades de representação dos dilemas coloniais. e) O romance de 30 emprestou novos significados às concepções cabo-verdianas dos espaços estrangeiros e locais. 2. Observe o seguinte trecho, retirado de uma entrevista concedida por Guimarães Rosa a Günter Lorenz (1973): “Nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue narrar estórias; já no berço recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas [...]. Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava todo o que podia e comecei a transformar em lenda o ambiente que me rodeava, porque este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda.” (ROSA apud LORENZ, 1973, p. 315). Qual dos seguintes trechosde obras literárias africanas mais se assemelha à concepção criativa explicada por Guimarães Rosa? a) “Estes casos passaram no musseque Sambizanga, nesta nossa terra de Luanda.” “Minha estória. Se é bonita, se é feia, vocês é que sabem. Eu só juro não falei mentira e estes casos passaram na nossa terra de Luanda.” (VIEIRA, 2008, p. 152). b) “‘Portanto, só os ciclos eram eternos.’ (Na prova oral de Aptidão à Faculdade de Letras, em Lisboa, o examinador fez uma pergunta ao futuro escritor. Este respondeu hesitantemente, iniciando com um portanto. De onde é o senhor, perguntou o professor, ao que o escritor respondeu de Angola. Logo vi que não sabia falar português, então desconhece que a palavra portanto só se utiliza como 101Comparação entre literatura brasileira e africana Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 101 29/06/2017 18:15:53 conclusão dum raciocínio?” (PEPETELA, 1992, p. 11). c) “Os angolanos, além de gostarem de makas, de farrar até de manhã, de chegar tarde aos seus compromissos e de usar e abusar do humor, inclusive contra eles mesmos, também sempre foram pós-modernos avant la lettre. Iconoclastas, não levam nada demasiado a sério, chegando ao ponto de abandalhar – este termo pode ser pouco literário, mas, enfim, o que fazer, se o próprio escritor é angolano?” (MELO, 2006, p. 33). d) “Titina acordou e estava a gozar a sabura da cama. Virou-se para a parede. As maçanetas tremeram e Titina enroscou-se melhor sobre si mesma. Branca, a camita de ferro, tanto à cabeceira como nos pés era rematada com um rendilhado – pareciam as lérias da titia, tendo ao centro, também em ferro, um desgracioso ramo de folhas pendentes em leque, pintado a esmalte verde.” (AMARÍLIS, 1991, p. 99). e) “– Faustino só tirava o dedo do botão quando o elevador aparecia. – Como é? Porco no elevador? – Porco não. Leitão, camarada Faustino. – Dá no mesmo em matéria de interpretação de leis. – Quais leis? – O problema é o que a gente combinou na assembleia de moradores e o camarada estava presente. Votação por unanimidade. Aqui no elevador só pessoas. E coisas só no monta-cargas.” (RUI, 1991, p. 7). 3. Entre as alternativas a seguir, assinale a que apresenta uma afirmação correta sobre a apropriação da imagem de Pasárgada nas literaturas africanas em língua portuguesa: a) Ovídio Martins ressignifica Pasárgada como um lugar idílico, onde seria possível a realização do que não aconteceria no plano real. b) Pasárgada, para Osvaldo Alcântara, passa a ter um sentido que sugere a erotização das possibilidades no plano imaginário. c) Para Martins, ao contrário de Alcântara, Pasárgada passa a significar qualquer terra estrangeira em que os cabo- verdianos pudessem ter melhores condições de vida. d) Alcântara se vale da imagem de Pasárgada como a terra da promessa de vida para criticar a visão evasionista de Martins. e) Martins mantém a imagem de Pasárgada criada por Alcântara, no entanto inverte a postura de seu eu-lírico, enfatizando uma visão evasionista. 4. Assinale o conjunto de obras que estabelece relações mais evidentes entre suas propostas estéticas. a) Cacau (1933), Jorge Amado. Terra morta (1949), Castro Soromenho. Grande sertão: veredas (1956), Guimarães Rosa. b) Sagarana (1946), Guimarães Rosa. Luuanda (1963), Luandino Vieira. Terra morta (1949), Castro Soromenho. Literaturas africanas em língua portuguesa102 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 102 29/06/2017 18:15:54 c) “Vou-me embora pra Pasárgada” (Libertinagem) (1930), Manuel Bandeira. Sagrada Esperança (1974), Agostinho Neto. Gritarei, Berrarei, Matarei – Não vou para Pasárgada (1973), Ovídio Martins. d) Terras do Sem-Fim (1943), Jorge Amado. O quinze (1930), Rachel de Queiroz. Terra morta (1949), Castro Soromenho. e) Vidas secas (1948), Graciliano Ramos. Primeiras estórias (1962), Guimarães Rosa. Estórias abensonhadas (1994), Mia Couto. 5. Sobre as relações de intertextualidade envolvendo a literatura brasileira e as literaturas africanas em língua portuguesa, é correto afirmar que: a) as literaturas africanas de língua portuguesa consolidam-se ao romper os laços intertextuais com as literaturas portuguesa e brasileira. b) as literaturas africanas em língua portuguesa têm sido, desde o século XIX, uma das principais referências para as obras literárias brasileiras. c) para romper com a literatura do colonizador, as literaturas africanas optam por copiar a literatura brasileira, pois essa já havia realizado tal ruptura com o modernismo. d) as relações estabelecidas entre a literatura brasileira e as literaturas africanas no século XX contribuem decisivamente para a luta contra a colonização, seja em sua manifestação política ou cultural. e) a grande contribuição da literatura brasileira às literaturas africanas diz respeito à linguagem, com especial destaque ao trabalho de Guimarães Rosa, já que as temáticas de nosso país pouco contribuíram para esse diálogo. 103Comparação entre literatura brasileira e africana Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 103 29/06/2017 18:15:54 AMARÍLIS, O. Cais-do-Sodré té Salamansa. Lisboa: ALAC, 1991. ANDRADE, M. P. Antologia temática da poesia africana I: na noite grávida de punhais. Lisboa: Sá da Costa, 1975. v. 1. BANDEIRA, M. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. CARVALHAL, T. F. Literatura comparada. São Paulo: Ática, 2001. HEBMÜLLER, P. Mia Couto: a tribo dos contadores de histórias. Porto Alegre: Fronteiras do Pensamento, 2016. Disponível em: <http://www.fronteiras.com/entrevistas/mia- -couto-a-tribo-de-contadores-de-historias>. Acesso em: 06 jun. 2017. KRISTEVA, J. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974. LORENZ, G. João Guimarães Rosa. In: LORENZ, G. Diálogo com a América Latina: pa- norama de uma literatura do futuro. São Paulo: E.P.U., 1973. p. 315-355. MELO, J. O dia em que o Pato Donald comeu pela primeira vez a Margarida. Lisboa: Caminho, 2006. PEPETELA. A geração da utopia. Lisboa: Dom Quixote, 1992. RUI, M. Quem me dera ser onda. Lisboa: Cotovia, 1991. VIEIRA, J. L. Luuanda. Lisboa: Caminho, 2008. Leituras recomendadas ABDALA JUNIOR, B. Literatura, história e política: literaturas de língua portuguesa no século XX. Cotia: Ateliê Editorial, 2007. FERREIRA, M. Literaturas africanas de expressão portuguesa. São Paulo: Ática, 1987. (Fundamentos). Literaturas africanas em língua portuguesa104 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 104 29/06/2017 18:15:54 http://www.fronteiras.com/entrevistas/mia- Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra. Conteúdo: Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06