@import url(https://fonts.googleapis.com/css?family=Source+Sans+Pro:300,400,600,700&display=swap); 4 PEDAGOGIA DAS COMPETÊNCIAS: LIBERTADORA OU ADAPTACIONISTA.Como vimos anteriormente, qualquer processo educativo com suas diretrizes e leis fundamentais reflete o projeto de sociedade que uma nação possui. Muitas vezes, há um discurso muito bem estruturado e \u2018maquiado\u2019 e que, caso o leitor não esteja atento às entrelinhas, pode ser facilmente ludibriado com ideias aparentemente libertadoras e democráticas, mas na verdade extremamente \u2018aprisionantes\u2019. O conceito de competência, por ser polissêmico, é um claro exemplo nesta direção. Muitas modificações nas leis que regulamentam a educação formal no Brasil vêm ocorrendo e muitas propõem como eixo estruturante a ideia de formar profissionais, alunos, competentes. Mas vejamos com mais cuidado o que isso significa.Inegáveis são as mudanças que estão ocorrendo no mundo do trabalho, e importante é pensarmos de que maneira os trabalhadores devem responder a essas modificações. Nesse contexto, o conceito de competência ganha força como um caminho para desenvolvimento de uma \u201cnova\u201d pedagogia. Entretanto, o que muitos se perguntam é se a utilização do termo competência por educadores, gerências de pessoal nas empresas e no mundo do trabalho serve a um processo de transformação da realidade socioeconômica mundial, ou serve a um processo adaptativo ao capitalismo em tempos globalizados. Estaria vinculado a critérios de qualificação estabelecidos pela lógica, por vezes perversa, do sistema capitalista ou estaria, de fato, inaugurando uma reflexão sobre as práticas pedagógicas e seu papel no desenvolvimento de forças produtivas mais conscientes e autônomas?A noção de competência é, de fato, uma noção forte e deve ser recuperada, mas numa perspectiva que rompa (...) os critérios que a estão orientando na atualidade: o fatalismo da disputa competitiva (...). Do mundo do trabalho vem o \u201cmodelo de competência\u201d com todas as contradições que ele suscita. Vem também a constatação de que ser competente representa, também, saber transgredir (MACHADO in: MARKERT, 2002, p. 205).O termo competência vem ocupando espaço na reestruturação de práticas pedagógicas e pode ser entendido como eixo estruturante das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), mas sua compreensão está longe de ser consensual e aí pode residir a sua força, como também sua fragilidade. Força, pois tem levado a inúmeras discussões, debates e reflexões o que já indica o potencial intrínseco que o termo traz no sentido da construção coletiva do conhecimento. No entanto, a falta de consenso pode levar à incorporação utilitária de seu significado por parte das instituições educacionais, governamentais e empresariais e a um consequente esvaziamento de seu sentido transformador.Por sua polissemia, a noção de competência é compreendida de diferentes maneiras pelas diversas correntes e tendências que jogam sobre ela inúmeras interpretações. Sem pretender esgotar este estudo, faz-se necessário apontar algumas das correntes que buscam explicar o significado do termo e os determinantes políticos e econômicos que se encontram presentes \u2013 de maneira, por vezes, velada - na sua compreensão.(...) esta polissemia se origina das diferentes visões teóricas que estão ancoradas em matrizes epistemológicas diversas e que expressam interesses, expectativas e aspirações dos diferentes sujeitos coletivos, que possuem propostas e estratégias sociais diferenciadas e buscam a hegemonia de seu projeto político (DELUIZ, 2001, p. 23).Deluiz (2001) reconhece quatro matrizes teórico-metodológicas referentes ao termo competência, a saber:a) matriz condutivista, que tem como objeto de análise o posto de trabalho e a tarefa para definir o currículo de formação, sendo os conteúdos da análise transpostos linearmente para o currículo ficando os processos de aprendizagem submetidos aos comportamentos e desempenhos observáveis na ação;b) matriz funcionalista, na qual o currículo é constituído com base em funções e tarefas especificadas nas normas de competência e a aprendizagem se restringe às atividades e não aos seus fundamentos científico-tecnológicos; relaciona-se como produto (o trabalhador) esperado pela empresa em termos de desempenho de tarefas específicas;c) matriz construtivista, que atribui importância não só às competências voltadas para o mercado, mas direcionadas aos objetivos e potencialidades do trabalhador; considera a construção do conhecimento como algo individual e subjetivo, de desenvolvimento de estruturas cognitivas sem, no entanto, considerar o papel do contexto social para além da esfera do trabalho na aprendizagem dos sujeitos;d) matriz crítico-emancipatória, a qual considera a noção de competência como multidimensional, envolvendo aspectos que vão desde o individual ao sociocultural, situacional e processual, não podendo ser concebida como mero desempenho; é uma construção balizada por parâmetros socioculturais e históricos.Utilizamos neste estudo, a noção de competência que traz em sua essência uma concepção dialética, uma vez que, por um lado, pode ser compreendida como uma adaptação às novas configurações do mundo globalizado do trabalho, mas por outro, como um dos caminhos capazes de transgredir e transformar as relações estabelecidas por este mundo. Entendemos que essa concepção se aproxima da matriz crítico-emancipatória sobre a qual se refere Deluiz.Dialeticamente, segundo Markert (2002), a formação do homem integral pode beneficiar-se do progresso do capitalismo; porém, esse só poderá ser superado pela associação de homens autoconscientes. Da mesma forma, os homens serão autoconscientes na medida em que as condições de sua produção apresentar-se como uma barreira à sua força produtiva, obrigando-os a administrar conflitos, a exercitar a reflexão e, em consequência, ampliar a consciência de si próprio e do mundo que os cerca.Logo, para o autor, o sistema capitalista, sob este aspecto, constitui-se em contexto que pode promover o desenvolvimento de homens integralmente competentes, considerando que a indústria moderna guarda em sua base um potencial revolucionário, por estar em constante transformação obriga os trabalhadores a terem mobilidade, a serem flexíveis, a desenvolverem novos potenciais ao ocuparem novas funções, enfim, produz dinamismo. No entanto, a utilização que se faz desse dinamismo - meio de produção/força produtiva - serve aos interesses lucrativos daqueles que detêm o capital e que concentram a renda.Voltemos ao nosso questionamento inicial a respeito do uso que se faz do conceito de competência. Markert (2000) afirma que podemos encontrar no termo competência um conceito pedagógico universal que reflete o novo patamar dos conceitos de produção, baseado na visão dialética do desenvolvimento das forças produtivas.Nesse sentido, a qualificação depende não só de condições objetivas, mas de disposições subjetivas que servem de base para a construção da profissionalidade dos trabalhadores, na luta pelo seu reconhecimento e efetivação de seu poder. Para isso, tanto os aspectos cognitivos como os comportamentais, as posturas e os valores fazem-se valer (Machado apud Markert, 2000, p. 22).O trabalhador moderno não representa somente força de trabalho e conhecimento técnico específico para sua função; há um papel político e social a ser desempenhado: \u201co ponto crucial das novas competências deverá manifestar-se na capacidade e disposição do trabalhador para assumir a gestão autônoma e coletiva do processo de produção e de vida\u201d (MARKERT, 2000).O autor coloca a competência técnica (trabalho) e a competência comunicativa, direcionadas às relações humanas como categorias centrais do conceito integral de competência. Dessa forma, ter conhecimento técnico e saber interagir com o grupo de trabalho constitui-se em requisitos indispensáveis para um bom desempenho profissional, e para garantir autonomia e poder de decisão aos trabalhadores no contexto produtivo, ou seja, na sua experiência concreta de trabalho. Para Negt (apud Markert, 2000), a experiência é a categoria central para a educação e a aprendizagem dos homens que, embora construída pelo homem em sua particularidade, é um momento coletivo, mediado pela linguagem em relação direta com a realidade social; a noção de experiência tem sempre um componente geral que extrapola os sentimentos particulares.Markert acredita que é com base na aprendizagem orientada pelas/para experiências que se conseguirá desenvolver competências-chave com o objetivo de superar o processo de dissolução e segmentação social, determinado, em muito, pela maneira fragmentada de olhar e pensar o mundo. Para que se estruture um currículo baseado em competência - o que aponta também para uma aprendizagem orientada para e pela experiência - importa que os docentes reflitam sobre suas práticas pedagógicas e suas formas de interlocução com os sujeitos da aprendizagem, estabelecendo uma relação dialógica com seu público.A aprendizagem orientada para experiência representa uma tentativa de resgate da capacidade de pensar e compreender integralmente o contexto social, sendo um projeto não só pedagógico como também político. Ser competente, portanto, não é tão somente saber sobre algo, mas ser capaz de atuar sobre este algo, transformá-lo quando necessário, flexibilizá-lo, integrá-lo a outros saberes, ao utras interlocuções sempre em busca de um saber e um fazer situados, teoricamente sustentados e socialmente úteis.As categorias norteadoras de um conceito de competência deveriam evitar que os conceitos pedagógicos aplicados se tornem uma nova moda pedagógica, ou ajustem somente as capacidades laborais e interações intersubjetivas dos homens à nova ideologia do \u201ccapital progressista\u201d, mas ao contrário, contribuam para um entendimento de \u201cpolitecnia\u201d, de formação integral do homem (...) (MARKERT, 2002, p. 206).Ramos (2002) chama a atenção para as armadilhas que podem levar a uma compreensão equivocada de competência e do valor da experiência na construção das competências. Ao fazer uma crítica às Diretrizes e Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Profissional de Nível Técnico, a autora ressalta a existência de alguma confusão no que se refere à discriminação dos conceitos de habilidade, capacidade, atividade e competência. Competência, nesse caso, é compreendida como um mecanismo acionador de procedimentos e esquemas mentais, com estrutura e funcionamento dinâmicos, caracterizados pela inteligência prática e pela inteligência formalizadora: a inteligência prática configurada com base nas ações, enquanto a inteligência formalizadora entendida como o processo por meio do qual se desenvolve o pensamento abstrato. A autora por fim conclui que, nos documentos oficiais, a competência é descrita como ações específicas constituidoras das atividades profissionais, nas quais procedimentos e esquemas mentais são reunidos em uma única instância: a inteligência prática.Adiante, veremos que os aspectos cognitivos devem estar sempre em relação ao mundo que cerca o sujeito. São necessárias, principalmente, a inteligência, a percepção e a memória, mas não somente. Entendemos que competência tem a ver com esquemas mentais sim, mas que seu conceito fica incompleto se reduzido a isso. Assim, como a integralidade no cuidado, a competência só poderá ser \u201cavaliada\u201d na prática, circunscrita a um contexto sociopolítico, econômico e cultural.A armadilha sobre a qual fala Ramos (2002) é exatamente de retornarmos para uma concepção condutivista do conceito de competência, uma vez que é dessa concepção que mais se aproximam os documentos oficiais. Na tentativa de objetivar a aprendizagem e a prática profissional, Ramos entende que as competências foram reduzidas às habilidades requeridas para a natureza do trabalho.Ramos (2002, p. 413) nos alerta que \u201c(...) a concepção (neo) pragmática do conhecimento pode vir a legitimar construções curriculares centradas na prática, que subordinam os conceitos aos limites de sua instrumentalidade ou das formulações espontâneas\u201d. O que observamos na fala anterior, entretanto, é menos essa subordinação, e mais a tendência em transformar a prática em algo burocrático e não em cenários de aprendizagem nos quais a teoria possa ser concretizada, discutida, reformulada de modo que essa díade - teoria/prática - seja garantida.De fato, não podemos conceber que as práticas pedagógicas estruturem-se exclusivamente com base na experiência do estudante, mas não há como discordar de que a aprendizagem que se constrói na inter-relação do conhecimento científico com a sua instrumentalização tem muito mais potência e possibilita uma compreensão integral do objeto do conhecimento. Mesmo que tenhamos um processo de ensino crítico, reflexivo e inovador, na maioria das vezes só fará sentido político e social para o estudante se romper os muros escolares; não com base em uma prática adaptativa, que aprisione, mas que seja transgressora, que liberte. Comisso, não queremos dizer que as ações (a experiência) devam ter preeminência sobre os conceitos (conhecimento teórico), mas que seja possível construir a inteligência formalizadora e a inteligência prática em conjunto, integradamente, buscando reduzir uma possível hierarquia de uma sobre a outra.A competência não se limita ao conhecer, mas vai além porque envolve o agir numa situação determinada. O agir competente, portanto, inclui decidir e agir em situações imprevistas, mobilizar conhecimentos, informações e hábitos, para aplicá-los com capacidade de julgamento, em situações reais e concretas, individualmente e com sua equipe de trabalho (RAMOS, 2001,p. 31).Portanto, a noção de competência discutida aqui é defendida como uma possibilidade de libertação, mas não de adaptação ao sistema capitalista que exacerba a desigualdade entre as classes pode significar uma nova perspectiva no âmbito educacional e, mais especificamente nas escolas onde o psicólogo escolar, presumidamente trabalha.Pensar a educação sob o viés da competência amplia a visão de todos os envolvidos no processo pedagógico. Ao ir além do simples saber sobre um objeto, passam a serem valorizadas as atitudes daquele que aprende, mas também daquele que ensina. Essa talvez seja a maior dificuldade que os educadores, mesmo que concordes com esse referencial enfrentam. Como funcionar segundo uma lógica muito diferente da qual eles foram educados e, posteriormente, formados? Desenvolver estudantes competentes requer que os educadores sejam igualmente competentes, de acordo com a perspectiva aqui adotada.Para que isso aconteça é necessário que se faça uma reflexão a respeito do real objetivo das práticas pedagógicas. Se esse for ao encontro de cumprir um currículo recheado de disciplinas obrigatórias e, por vezes desinteressantes é fundamental uma ruptura de paradigma para que seja possível pensar as práticas pedagógicas com o intuito de desenvolver seres humanos, investigando suas virtudes e possibilidades e potencializando-as em busca de um melhor saber - e \u2013 fazer.Insiste-se, pois, que a própria prática docente seja questionada e a formação exigida para ocupar esse lugar, reavaliada. Sem isso, não adiantará a boa vontade de alguns de um lado e os documentos oficiais do outro. E, pelo que tem nos mostrado a realidade escolar, parece estarmos distantes de repensar ou reinventaras práticas pedagógicas e a sua finalidade. Nesse contexto complexo, vale acrescentar, que o psicólogo escolar precisa estar muito atento a respeito do que sua prática está a serviço.No próximo módulo ficará claro como por detrás das abordagens psicológicas esconde-se uma visão de mundo e de sujeito circunscrito ao contexto sociopolítico e econômico de uma dada sociedade. Os conhecimentos produzidos são produzidos em um dado momento histórico e, mesmo que, aparentemente neutros politicamente, não podemos ser ingênuos a ponto de não levarmos em conta as condições sobre as quais um conhecimento é produzido. Será possível perceber, por exemplo, que a abordagem inatista-maturacionista tem um olhar sobre o sujeito diferente da abordagem comportamentalista que também se diferencia das ideias de Piaget sobre o sujeito \u2013mesmo que sua intenção primeira, como veremos, fosse buscar como se origina o conhecimento - que também é nitidamente distinta do sujeito compreendido por Vygotsky.Experimente, pois, fazer esse exercício. Tente responder, na medida em que vá construindo sua compreensão a respeito das abordagens apresentadas no módulo seguinte, qual compreensão de sujeito e de mundo está por trás daquele posicionamento teórico. Talvez o leitor surpreenda-se com aquilo que está nas nossas vistas, mas nunca prestamos a atenção.