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Autor: Prof. Ricardo Felipe di Carlo Colaboradores: Prof. Vinícius Albuquerque Profa. Angélica Carlini Ditadura Militar e Nova República Professor conteudista: Ricardo Felipe di Carlo Natural de São Paulo, por aqui sempre viveu, apesar de já ter viajado por muitos lugares e se impressionado com a história e cultura brasileira. Nascido em 1985, de um pai italiano e de uma mãe brasileira, filha de italianos. Sua grande paixão, ao longo dos primeiros anos de estudo, foi conhecer nossa história. Era um curioso nato. Como historiador, acredita que ainda mantém a característica. Formado na Universidade de São Paulo (USP), em 2007, bacharel e licenciado em História. A seguir, foi para o mestrado, defendendo sua dissertação em 2011, no programa de História Econômica da mesma universidade. Em verdade, o mestrado prolongou sua pesquisa de iniciação científica. Em Exportar e Abastecer: População e Comércio em Santos, 1775-1836, trabalhou com a nossa economia colonial e seu quadro de crise. Nesse contexto, as medidas ilustradas promovidas por Pombal geram desenvolvimento da produção de açúcar na região paulista e Santos se torna seu porto. Ao mesmo tempo, as relações dos conflitos de fronteira no Sul, com os castelhanos, geraram listas de recenseamento muito completas e interessantes, que foram suas grandes fontes. Assim, analisou a população e economia de Santos para demonstrar a importância desse período para a formação de um desenvolvimento capaz de suprir as necessidades que se seguiriam com o café. E foi assim que Santos alcançou a elevação à cidade na década de 1930 do século XIX. Portanto, antes do café, o açúcar foi fundamental para a economia paulista. Durante um ano da iniciação científica, foi bolsista Fapesp. Depois, já no mestrado, foi bolsista da mesma instituição por mais dois anos. Após esse período, no início de 2011, foi contratado como professor do Colégio e Curso Pré-Vestibular do Objetivo. É esse seu endereço profissional até hoje. Ministra aula para o Ensino Médio e também para o famoso curso pré-vestibular. Também prepara aulas digitais e orienta os alunos para as Olimpíadas de História. Em 2013, surgiu o convite para escrever para a Universidade Paulista (Unip), o que tem sido uma grande honra e prazer em sua atividade profissional, já que propicia a oportunidade de dialogar com aqueles que são amantes da história e já perceberam, de algum modo, a satisfação enorme que ensinar propicia. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) D545d Di Carlo, Ricardo Felipe. Ditadura Militar e Nova República. / Ricardo Felipe Di Carlo Fernando Gorni Neto. – São Paulo: Editora Sol, 2020. 180 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Ditadura militar. 2. Nova República. 3. Redemocratização. I. Título. CDU 32 U507.97 – 20 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Gustavo Guiral Lucas Ricardi Sumário Ditadura Militar e Nova República APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 CONTEXTUALIZANDO OS ANOS 1950 E 1960 ...................................................................................... 11 2 GOVERNO JOÃO GOULART (1961-1964) ............................................................................................... 16 3 ACONTECIMENTOS E INTERPRETAÇÕES ACERCA DE 1964 ............................................................ 18 4 GOVERNO CASTELO BRANCO (1964-1967) .......................................................................................... 38 Unidade II 5 GOVERNO COSTA E SILVA (1967-1969) ................................................................................................. 62 6 GOVERNOS MÉDICI (1969-1974), GEISEL (1974-1979) E FIGUEIREDO (1979-1985) .......100 Unidade III 7 REDEMOCRATIZAÇÃO ..................................................................................................................................132 8 GOVERNOS DA NOVA REPÚBLICA ..........................................................................................................140 7 APRESENTAÇÃO Desenvolver um material específico de nossa história é tarefa, sem dúvida, bastante instigante. Aqui, tratamos de um momento extremamente importante da nossa história, repleto de paixões, discussões, utopias e, acima de tudo, autoritarismo por parte dos militares. Em um grande embate por transformações populistas ou pelo conservadorismo, que já se iniciava nos anos 1950, a década de 1960 foi carregada de problemas econômicos e de um crescente sentimento de necessidade de mudanças estruturais no país. Até que se impõe 1964, um ano com o qual ainda o Brasil não lida tranquila ou pacificamente. Passados mais de 50 anos do golpe civil-militar, permanecem sobre ele variadas interpretações e feridas cujo sangue não estancou. Desde então, os militares vingaram 21 anos no poder. Em alguns momentos, como no início, com Castelo Branco, alegavam viver a ordem democrática, embora o autoritarismo apenas crescesse. À rearticulação da oposição em 1968, com uma atividade cultural intensa e fervilhante, animada por sonhos de mudança, o regime militar respondeu com a ditadura escancarada. O grande poder dado ao presidente pelo AI-5 desmantelou toda e qualquer oposição. A abertura só se daria por iniciativa dos próprios militares, concretizando-se em 1985. As medidas econômicas da ditadura lograram um crescimento econômico muito significativo – um verdadeiro “milagre”, nas palavras da época. No entanto, as consequências já foram sentidas nos últimos governos militares. Se a década de 1970 foi a do milagre, a de 1980 foi a perdida. A partir de 1985, institui-se a Nova República, que, apesar de vários percalços, garante tanto a democracia de hoje quanto certa estabilização econômica, além de desenvolver programas sociais em prol dos menos favorecidos e de uma sociedade menos desigual. Entender como se estabeleceu um regime militar, suas justificativas, as discussões de 1964, os sonhos de 1968 e a formação de nossa democracia contemporânea são os assuntos centrais aqui, associados a diversas discussões econômicas. Muitos outros assuntos poderiam ser problematizados, mas este material é só um começo para que você, caro aluno, no futuro, possa ampliar as discussões e suas relações. Nosso esforço, neste sentido, é o de compreender as teias de relações cada vez mais complexas que se estabelecem ou se desestruturam ao longo das diferentes ideologias de um período de enorme agitação social e política no mundo ou mesmo de diversos modelos econômicos. Principiaremos trazendo à tona as diversas concepções em torno de 1964 e os primeirosanos do regime militar, assim como problematização historiográfica e documentos importantes que o acompanham. O discurso, nos primeiros atos do governo, veiculava que a revolução restabeleceria a ordem, a disciplina, a hierarquia, em uma declarada vitória da democracia, o que não se confirmará 8 com o passar do tempo. Por outro lado, o regime se valeu do autoritarismo para promover importantes medidas econômicas. O Programa de Ação Econômica do Governo (Paeg) procurou promover o controle do deficit público, da inflação por meio da compressão de salários, do maior incentivo à produtividade do trabalhador, da renegociação da dívida externa, da facilitação da entrada de capital estrangeiro, de uma ampla reorganização das finanças públicas. A seguir, ponderamos o progressivo crescimento do autoritarismo no governo Costa e Silva. Na política, a oposição rearticulou-se. Foram formados vários movimentos de contestação ao regime militar e sua opressão. Na economia, com o PED, tentou continuar com a política de controle da inflação, mas, ao mesmo tempo, lançou mão de uma expansão monetária para fortalecer as empresas privadas, a infraestrutura e a ampliação do mercado interno. A repressão, no entanto, era bastante evidente inspecionando a vida dos cidadãos e com forte controle de suas relações – tudo devidamente organizado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI). Os sonhos de 1968 ruíram com o AI-5, uma revolução dentro da revolução. Por fim, discutiremos o processo de redemocratização e as ações pendulares da abertura conduzida pelos militares. A Campanha das Diretas Já foi um grande sinal popular de luta pela redemocratização. Estava claro que o sistema autoritário e militar não duraria muito mais tempo. Contou com um amplo grupo de apoio e grandes manifestações. No entanto, não foi aprovada por 22 votos. A redemocratização se firmaria com Tancredo Neves, o primeiro civil em 21 anos, porém não se firmou, pois ele faleceu antes de assumir. Só com José Sarney, antigo político apoiador dos militares, a redemocratização foi instituída. As antigas leis da ditadura foram substituídas, em 1988, pela Constituição democrática de 1988. Esse governo conviveu com graves problemas econômicos, sobretudo a hiperinflação. Por isso, tentou implementar diversos planos baseados no congelamento de preços, sem êxito, contudo. Os anos 1990 começaram com o fatídico governo de Collor. Depois de seu impeachment, vagarosamente, foram estabilizando-se a economia e alguns programas sociais. Apresentaremos, também, uma breve perspectiva dos anos iniciais do século XXI, quando entramos no terceiro milênio repletos de desafios, superações e conscientes de que o estudo da história contemporânea da República brasileira é essencial para a formação de cidadãos e professores críticos, atuantes e responsáveis por uma formação de também cidadãos. INTRODUÇÃO Como se sabe, o Brasil é um país imenso. As realidades variadas são fruto de diversos processos históricos vividos. Algumas temáticas, em torno dessas construções, infligiram feridas que ainda sangram. Algumas raízes perpetuaram-se e permanecem impregnadas nas mentes e corações de boa parte dos brasileiros, transmitindo de geração a geração ora contornos de tristeza e amargura, ora esperança de que possa ser alcançado no futuro o que ainda não se consolidou. Ao historiador, cabe descortinar as teias que tramaram nosso presente. Ao educador, estimular nos alunos reflexões acerca daquilo que se viveu, vive-se e quer-se viver. Claro que não se trata de doutrinar o aluno para quaisquer convicções, longe disso, mas sim de lhe oferecer todas as ferramentas para 9 pensar a partir de si mesmo, capacitando-o a fazer conexões, críticas e defesas, para não se tornar massa de manobra ideológica de outrem. A ditadura militar é um período de enormes emoções e que escancara tensões até hoje bastante evidentes na política do país. De um lado, o conservadorismo. De outro, o esquerdismo. Os sonhos de reformas de base ou ações por segurança e ordem criados a partir da “revolução” de 1964. A atuação de diferentes elementos para a formação de um golpe civil-militar e suas relações com a Guerra Fria e, por extensão, com os Estados Unidos. Os sonhos de rearticulação da oposição em 1968 e a reação autoritária dos militares com o AI-5. No viés econômico, a aparente resolução de nossos problemas e o “milagre brasileiro”. O ufanismo do militarismo nos anos 1970 – “para frente, Brasil”. A abertura, como desejavam os militares, “lenta, gradual e segura”. A redemocratização e a Nova República são temáticas longas e repletas de idas e vindas, mas que, de qualquer forma, garantiram um sistema solidificado hoje. Essas são só algumas temáticas que você, caro aluno, verá por aqui. Procuramos, ao máximo, trazer elementos para fortalecer sua formação. O livro é dedicado a futuros historiadores e professores de História. Significa, assim, que traz a tona diversos documentos que são extremamente importantes para se produzir história. Trabalhar com documentos é o que forma o exercício de ser e saber do historiador. Ser capaz, como dizia o mestre Marc Bloch, de fazer sua crítica externa e interna (tanto de sua produção como de seu conteúdo) precisa sempre ser a base do ofício. Portanto, procure ao máximo aproveitar os textos cuidadosamente selecionados. Isso será uma fonte de pesquisa e de contato para o resto de sua vida. Ao mesmo tempo, o material traz também uma ampla análise historiográfica com as produções mais recentes acerca dos temas. Claro que isso não esgota todo o estudo. Muito mais poderia ser dito, mencionado ou criticado. Mas o percurso foi feito a partir da seleção de compreensão de 1964 e suas amplas análises, da formação da ditadura militar, dos sonhos de 1968 e a dura resposta dos militares, até a redemocratização e a formação da Nova República e os desafios do início do século XXI no Brasil. O pedido final a você, caro aluno, é de que, como um verdadeiro detetive do passado, examine tudo o que será visto. Atente para as imagens, os textos e suas construções. Reflita sobre o contexto histórico de cada um dos momentos estabelecidos. Fortaleça suas informações com as sugestões elencadas. Procure, ao máximo, investir em sua formação. Vale muito a pena aproveitar esse tempo de estudos. Que a leitura possa instigá-lo a ser um promotor de cidadãos capazes de pensar sobre o nosso país e também ser agentes de um desenvolvimento cada vez mais justo e igualitário. Boa jornada! 11 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA Unidade I 1 CONTEXTUALIZANDO OS ANOS 1950 E 1960 Passados mais de 50 anos do episódio marcante de 1964, ainda convivemos com uma história bastante viva, repleta de paixões e de defensores de interpretações bastante distintas. Isso torna a tarefa analítica mais complicada na medida em que pode estar associada à força de um dos lados e da destruição de outro, sem ter a devida preocupação com um balanço amplo e crítico. Na prática, vivemos em um país de interpretações rasas, com pouca preocupação em se libertar de seus fantasmas do passado e discutir suas raízes e imbricações no presente. Nosso país, desde o início da profissionalização do exército na Guerra do Paraguai (1864-70), teve sua história republicana bastante associada ao militarismo, pelo menos até 1985. Os militares foram o grupo central, junto aos cafeicultores, a articularem a oposição à Monarquia e garantir a proclamação da República em 15 de novembro de 1889. Os primeiros cinco anos do novo regime reservaram a Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto a função de garantir a modernização institucional e acabar com qualquer foco de oposição (inclusive, utilizando a força para isso). Com idas e vindas, as décadas passaram e a República foi se tornando mais democrática. O voto secreto (garantindo pela Constituição de 1934) e a inclusão do direito às mulheres (em 1932) foram momentos muito importantes, mas, nesse contexto, o Brasil vivia a Era Vargas,e Getúlio rapidamente transformava o sistema político de acordo com seus interesses populistas e sua vontade de permanecer no poder. Finalmente, em 1946, no contexto do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e o triunfo da democracia contra a ditadura nazifascista, parecia que o sistema fincaria raízes das quais brotariam belos frutos em nosso país. No entanto, logo se defrontou com o embate entre, de um lado, os apoiadores de Getúlio, com seu populismo, de base nacionalista e trabalhista, e, de outro lado, os liberais, que já traziam consigo boa parte dos militares do país. Vargas já não contava com apoio irrestrito, como em 1930. A essa altura, a oposição procurava atacar o presidente com todas as forças e a partir de várias investigações. Escândalos vieram à tona com descobertas de corrupção e financiamentos com subornos promovidos no Banco do Brasil. Esteja claro que o salário dos trabalhadores há muito se havia deteriorado em relação ao crescimento da inflação, mas ninguém da oposição agia de acordo com os valores para os populares. Ficava evidente que as forças internacionais estavam, junto a outros nacionais, tentando, ao máximo, acabar com o sonho do desenvolvimento econômico nacional e, sobretudo, retirando os valores dos populares, nos mais variados exemplos, como a Petrobras, o BNDE, a Lei de Remessas de Lucros, o projeto da Eletrobras ou ainda o aumento do salário mínimo. Imediatamente, foi o triunfo da perpetuação do populismo varguista na mente e nos corações dos trabalhadores do Brasil, em um tom repleto de emoção, com seu final trágico do suicídio do presidente “pai dos trabalhadores”, que imediatamente 12 Unidade I levou milhares e milhares do país ao choro. Cerca de um milhão de pessoas acompanharam o cortejo do corpo no Rio de Janeiro. Depois de sua partida, ainda foram atrás dos militares e de Carlos Lacerda (que se foi refugiar na embaixada americana e depois no cruzador da Marinha). A oposição estava imóvel e a democracia, garantida. Por enquanto. Por apenas mais 10 anos. Os militares, em 1954, foram, assim, derrotados. Toda a articulação em curso ficou estagnada. Nos anos seguintes, Juscelino Kubitschek conseguiu produzir certa estabilidade democrática e apaziguou os ânimos mais aflorados com o seu Plano de Metas e o crescimento econômico – ainda que o projeto tenha elevado diversos problemas que se tornaram evidentes depois, como a inflação, o deficit público e a dívida externa. Em 1960, Jânio Quadros venceu as eleições com uma enorme vantagem de votos: 48% contra 28% do segundo colocado. Era a vitória do candidato da “vassourinha”, daquele que prometia acabar com a corrupção, varrer a desordem e promover o bem público. Um discurso geral, bastante populista, e de rápida aceitação para grande parte do eleitorado do país, as sem propostas concretas de governabilidade. Figura 1 – Jânio Quadros: o candidato da vassoura nas eleições de 1960 Em seu governo, de qualquer forma, em pouco tempo, sua popularidade se esgotou. Logo sua excentricidade gerou medidas polêmicas (como a proibição do biquíni, da briga de galo e do lança-perfume). No entanto, em apenas sete meses de governo, conseguiu desagradar a esquerda e a direita. A esquerda não ficou nada satisfeita com seu plano anti-inflacionário caracterizado pelo corte de benefícios a produtos estratégicos, o que rapidamente resultou no aumento do custo de vida. A direita, por sua vez, não compreendeu sua política independente em meio ao auge da Guerra Fria. 13 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA O fim da Segunda Guerra Mundial foi marcado pelo estabelecimento de um novo conflito, conhecido como Guerra Fria, em um mundo bipolarizado. A Guerra Fria pode ser definida como um conflito político-ideológico caracterizado pelos Estados Unidos, defensores do capitalismo, e a URSS, promotora do socialismo, em busca da expansão de áreas de influência e domínio. A URSS saiu extremamente forte da Segunda Guerra como a grande responsável pela derrota do nazismo – e conseguiu, como marco simbólico, dominar Berlim antes dos aliados ocidentais –; já os americanos, sem dúvida, ganharam projeção enorme com a vitória na frente do Pacífico e o uso das armas nucleares. Para muitos historiadores, o marco fundamental do início da Guerra Fria foram justamente as bombas nucleares que, dentre outros motivos, seriam uma demonstração de força estadunidense aos soviéticos. Para outros, a evidência da disputa ideológica se deu em 1947, quando o presidente Harry Truman estabeleceu que os Estados Unidos apoiariam qualquer país contra o combate dos comunistas em seu território. De qualquer forma, a partir de então, o mundo foi marcado pelas relações que se estabeleceram ou que se destruíram em torno da defesa da democracia americana ou do sonho do estabelecimento de um regime socialista, nos moldes soviéticos. Claro que, posteriormente, a questão do comunismo adquiriu novos caminhos com o exemplo chinês (1949, de base camponesa) e, mais adiante, o cubano (1961, de base guerrilheira). Na prática, as manifestações do conflito aconteceram em outros palcos. Para lembrar os casos mais emblemáticos: Bloqueio de Berlim (1949), Guerra da Coreia (1950-53), Crise dos Mísseis (1962), Guerra do Vietnã (1962-75), Guerra do Afeganistão (1979-89). Figura 2 – Em 1961, os soviéticos decidiram criar o Muro de Berlim, símbolo máximo de um mundo bipolar As manifestações da força de um sistema ou outro eram demonstradas pela corrida espacial, para comprovar qual princípio era mais tecnológico, ou a corrida armamentista, para ratificar qual forma de governo era mais capaz de angariar força. Essa foi, inclusive, a grande questão que impediu o conflito direto entre as grandes potências mundiais, o que os estadunidenses chamaram de “mutually assured destruction”. 14 Unidade I O mundo entre 1945-1989 foi marcado por duas ideologias completamente conflitantes, mas que criaram sonhos, horizontes de euforia ou frustração dependendo do lugar e do tempo. Como demonstra Hobsbawm, a ideologia dos estadunidenses, nas palavras deles, era extremamente forte: “O inimigo é o próprio sistema comunista – implacável, insaciável, incessante em sua corrida para a dominação mundial [...] Não é uma luta por supremacia de armas apenas. É também uma luta pela supremacia entre duas ideologias conflitantes: a liberdade sob Deus versus a tirania brutal e ateia” (apud HOBSBAWM, 1995, p. 229). E toda essa ideologia levou à defesa, no Ocidente, da democracia e também ao anticomunismo: E o anticomunismo era genuína e visceralmente popular num país construído sobre o individualismo e a empresa privada, e onde a própria nação se definia em termos exclusivamente ideológicos (“americanismo”) que podiam na prática conceituar-se como o pólo oposto ao comunismo (HOBSBAWM, 1995, p. 232). Na América Latina, o anticomunismo havia crescido, e muito, após a Revolução Cubana, em 1961. Os Estados Unidos estavam bastante preocupados com a possibilidade da propagação do comunismo pelo continente. E, com o exemplo evidente que Cuba gerava, a ameaça era bastante real. Por fim, o apoio soviético era exatamente nesse sentido. A zona de influência do capitalismo no Ocidente estava fortemente afetada, segundo os maiores especialistas da CIA. Figura 3 – Fidel Castro (centro) em Sierra Maestra No interior de todas as tensões internacionais, Jânio Quadros tentou se aproveitar dos dois lados ao mesmo tempo e certamente calculou muito mal que tal ação seria possível. Sua política externa independente foi rapidamente taxada de comunista, não à toa. Foi assim que pediu o restabelecimento das relações diplomáticas com a URSS em um simples bilhetinho para seu ministro das Relações Exteriores, Afonso Arinos: “Excelência, solicito de V. Exa. as providências necessárias ao restabelecimento das relações diplomáticas entre o Brasil e a União Soviética. 27 julho 1961” (BONAVIDES; AMARAL, 2002, p. 222). 15 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA No entanto,para ele, o principal símbolo dessa política era “Che”, líder guerrilheiro que, com Fidel Castro, tomou o poder em Cuba, acabando com a ditadura de Fulgêncio Batista e, em um primeiro momento, estabelecendo um governo de base nacionalista e anti-imperialista na ilha. Porém, em 1961, após a tentativa fracassada dos anticastristas (o chamado Desembarque da Baía dos Porcos), ajudados e treinados pela CIA, de retomarem o poder, declarou a implantação do regime socialista apoiado pelos soviéticos. E foi assim que, no “quintal americano”, em pouco tempo, o socialismo chegou e, com ele, uma enorme tensão em torno de sua propagação no continente. Para Jânio, por sua vez, tudo continuava tranquilo em relação às relações com os EUA. Por isso, foi contra o pedido estadunidense de expulsão de Cuba da OEA (Organização dos Estados Americanos) e também pôde reatar relações com a URSS e com a China. Inclusive, a este país, decidiu mandar seu vice, Jango, e garantir acordos comerciais. Em 18 de agosto, sua cartada final na força dessa política independente: decidiu condecorar Ernesto “Che” Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul, a maior honraria do país. Figura 4 – Jânio e Che Guevara, o símbolo desastrado da política independente Na realidade, a política de Jânio foi muito infeliz. Um homem de longa carreira em cargos do Executivo e do Legislativo: Jânio era político de província. Conhecia mal as lideranças partidárias nacionais, e desdenhou da possibilidade de montar uma base parlamentar própria, embora seu governo não tivesse maioria no Congresso. Tampouco estava preocupado em negociar com o campo oposicionista; foi um mestre em exacerbar o atrito. Bateu de frente com o Congresso, com a imprensa, com o funcionalismo, com o vice-presidente da República. E acabou rompendo com a própria UDN, injuriada com os rumos da política externa – que, em tempos de Guerra Fria, o partido entendia como uma guinada do governo para a esquerda. Em alguns meses, Jânio Quadros conseguiu confundir o ambiente político nacional, subestimar seus aliados e se isolar na Presidência (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 431). 16 Unidade I 2 GOVERNO JOÃO GOULART (1961-1964) Aqui, articula-se um segundo momento de possível intervenção dos militares. Associados aos conservadores, procuraram, imediatamente após a renúncia de Jânio, em 25 de agosto de 1954, impedir a posse do vice João Goulart, o Jango. Argumentavam que o vice-presidente estava na China justamente por estar associado ao comunismo. Seu passado ligado ao trabalhismo de Getúlio (foi seu ministro do Trabalho no seu último mandato) referendava essa visão, segundo o grupo direitista. Jango foi apoiado pelo seu cunhado e governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. A sua “batalha pela legalidade” acabou frustrando, mais uma vez, o projeto conservador e militar: o Congresso agiu e estabeleceu uma medida moderada, ou seja, a implementação do Parlamentarismo. Figura 5 – A resolução do Parlamentarismo permitiu uma solução política para o impasse gerado pela renúncia de Jânio Quadros Com isso, já no processo de discussão final, Jango chegou a Porto Alegre no dia 1º de setembro. De qualquer forma, mesmo à revelia de Brizola, decidiu aceitar o acordo. Seria presidente, mas com poderes consideravelmente diminuídos. É possível que a aceitação de João Goulart do regime parlamentarista estivesse associada, diretamente, ao interesse em, aos poucos, promover manobras políticas a fim de recuperar a plenitude de seus poderes como presidente. Dentro de sua lógica, tentou demostrar-se capaz de evidenciar que não era comunista, ao mesmo tempo em que, por meio de um programa chamado Reformas de Base (naquele momento com propostas bastante abertas), contava com o apoio da esquerda. 17 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA Figura 6 – A figura de Jango foi bastante discutida, defendida ou criticada, ao longo de 1961-4 Há que se ter claro o seguinte: O recurso ao sistema parlamentarista como solução para a crise política foi produto de uma longa campanha de um pequeno grupo de entusiastas desse sistema. O grupo era encabeçado por Raul Pilla, incansável reformista constitucional. Havia muito tempo que Pilla atribuía os males do Brasil ao “corrupto” sistema presidencialista, que em sua opinião representava um desvio desastroso da tradição parlamentarista do Império. Mas a repentina aprovação do parlamentarismo pelo Congresso (um gabinete de ministros nomeado pelo presidente, mas à disposição da Câmara dos Deputados) foi pouco mais que a desesperada busca de uma solução conciliatória para a crise produzida pelo veto dos ministros militares à posse de Jango (SKIDMORE, 2010, p. 255). Tancredo Neves foi o primeiro-ministro estabelecido pelo Congresso. Dele, foi o discurso da declaração da introdução do sistema parlamentar. Sua defesa da manutenção da ordem e da democracia eram evidentes. Depois que renunciou ao cargo, em julho de 1962, vários outros assumiram, todos em geral por pouco tempo, a posição política. Uma das demonstrações da moderação de Jango nesse período foi a sua viagem para os Estados Unidos em abril de 1962. Ali, passou bastante tempo com o presidente Kennedy, a ponto de declarar-se abertamente contrário ao regime cubano de Fidel Castro. E mais: mostrava preocupação com as empresas estrangeiras no país para que tivesse certo tratamento respeitoso. Finalmente, em 3 de janeiro de 1963, com cerca de 80% do apoio do eleitorado, foi autorizado o retorno à democracia no país. Era evidente que o Brasil dos anos 1960 estava ancorado no radicalismo. No campo, o movimento das Ligas Camponesas estabelecia luta política no mundo agrário. De início, orientavam-se pela disputa jurídica, mas, já em 1962, alguns dissidentes passaram a preparar guerrilheiros para a luta. A Igreja 18 Unidade I Católica também tinha uma ala mais radical, de defesa da proximidade direta com os oprimidos. A UNE, por sua vez, era um espaço de defesa de mudanças no país. Greves cresciam frente a um cenário econômico de baixo crescimento e aumento da inflação. 120 100 80 60 40 20 0 C re sc im en to d o PI B Ta xa d e in fla çã o (% ) 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 PIB Inflação Figura 7 – As taxas de inflação e o crescimento do PIB E não era só no Brasil que os anos 1960 adquiriram um caráter extremo. A Guerra Fria atingiu o seu momento mais tenso com a Crise dos Mísseis, em 1962. Os estadunidenses estavam extremamente preocupados com o possível alastramento do exemplo cubano para outras áreas do continente, declarando que precisavam impedi-lo. Por isso, passariam a apoiar regimes militares de direita para garantir a defesa contra a “ameaça vermelha”. 3 ACONTECIMENTOS E INTERPRETAÇÕES ACERCA DE 1964 No meio de tudo isso, Jango estabeleceu seu programa de governo das Reformas de Base com uma retórica nacionalista e anti-imperialista. Claro que, assim, ganhou o apoio da esquerda. Seu programa, no entanto, em muito prolongava o populismo de Getúlio Vargas. As transformações estruturais propostas incluíam: reforma agrária, reforma bancária, aumento dos impostos dos ricos, reforma urbana, reforma universitária, diminuição dos gastos públicos, voto para analfabetos, entre outras. Um grande comício ocorreria no Rio de Janeiro para demonstrar todas essas mudanças ao povo. Como sintetiza Jorge Ferreira e Angela de Castro e Gomes: [...] o anúncio do comício, assumindo-se a ótica das esquerdas ou das direitas, propiciava interpretações de futuro inteiramente diferentes, embora igualmente radicais. Contudo, elas tinham um pouco de convergência: o evento seria um momento de definição para o governo Goulart. A situação política estava tão radicalizada que havia boatos sobre um atentado à sua vida. Afinal, em novembro de 1963, o presidente Kennedy morrera em um atentado (FERREIRA; GOMES, 2014, p. 250). 19 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA De qualquer forma, no dia 13 de março de 1964, foi apresentado o programa dereformas no Comício da Central do Brasil: Devo agradecer às organizações sindicais, promotoras desta grande manifestação, devo agradecer ao povo brasileiro por esta demonstração extraordinária a que assistimos emocionados, aqui nesta cidade do Rio de Janeiro. Quero agradecer, também, aos sindicatos que, em todos os estados, mobilizaram os seus associados, dirigindo minha saudação a todos os brasileiros, e não apenas aos que conseguiram adquirir instrução nas escolas. Dirijo-me também aos milhões de irmãos nossos que são ao Brasil mais do que recebem e que pagam em sofrimento, pagam em miséria, pagam em privações, o direito de serem brasileiros e o de trabalhar de sol a sol pela grandeza deste país. Presidente de oitenta milhões de brasileiros, quero que minhas palavras sejam bem entendidas por todos os nossos patrícios. Vou falar em linguagem franca, que pode ser rude, mas é sincera e sem subterfúgios. É também a linguagem da esperança, de quem quer inspirar confiança no futuro, mas de quem tem coragem de enfrentar sem fraquezas a dura realidade que vivemos. Aqui estão os meus amigos trabalhadores, pensando na campanha de terror ideológico e de sabotagem, cuidadosamente organizada para impedir ou perturbar a realização deste memorável encontro entre o povo e o seu presidente, na presença das lideranças populares mais representativas deste país, que se encontram também conosco, nesta festa cívica. Chegou-se a proclamar, trabalhadores brasileiros, que esta concentração seria um ato atentatório ao regime democrático, como se no Brasil a reação ainda fosse dona da democracia, ou proprietária das praças e das ruas. Desgraçada democracia a que tiver de ser defendida por esses democratas. Democracia para eles não é o regime da liberdade de reunião para o povo. O que eles querem é uma democracia de um povo emudecido, de um povo abafado nos seus anseios, de um povo abafado nas suas reivindicações. A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia do antipovo, a democracia da anti-reforma, a democracia do anti-sindicato, ou seja, aquela que melhor atenda aos seus interesses ou aos dos grupos que eles representam. A democracia que pretendem é a democracia dos privilégios, a democracia da intolerância e do ódio. A democracia que eles querem, trabalhadores, é para liquidar com a Petrobras, é a democracia dos monopólios, nacionais e internacionais, a democracia que pudesse lutar contra o povo, a democracia que levou o presidente Vargas ao extremo sacrifício. Ainda ontem, eu afirmava no Arsenal de Marinha, envolvido pelo calor dos trabalhadores de lá, que a democracia jamais poderia ser ameaçada pelo povo, quando o povo livremente vem para as praças – as praças que são do povo. Para as ruas – que são do povo. Democracia, trabalhadores, é o que o meu governo vem procurando realizar, como é do meu dever. Não só para interpretar os anseios populares, mas 20 Unidade I também para conquistá-los, pelo caminho do entendimento e da paz. Não há ameaça mais séria à democracia do que a democracia que desconhece os direitos do povo. Não há ameaça mais séria à democracia do que tentar estrangular a voz do povo, dos seus legítimos líderes populares, fazendo calar as suas reivindicações (BONAVIDES; AMARAL, 2002, p. 840-850). Figura 8 – O Comício da Central do Brasil, no dia 13 de março de 1964, chegou a ter entre 150 e 200 mil pessoas Como é possível perceber, o discurso inflamou a ideia de que a democracia só existe para melhorar a vida do povo e que todos os meios necessários deveriam ser utilizados para alcançar tais imperativos. Assim, o presidente assumia uma premissa bastante forte que abria margem para os militares argumentarem que havia perigo no país da quebra da manutenção da ordem, do respeito a hierarquia e também do controle do comunismo. Ali mesmo, assinou decretos de nacionalização de empresas estrangeiras e desapropriação de terras. Mais do que isso, passava a ameaçar modificar a Constituição para obter mais tempo no poder (com a autorização de uma reeleição). Lembrete O nacionalismo e o populismo de Jango estavam associados, diretamente, ao legado político de Getúlio Vargas, já bastante evidente na década de 1950. Não é à toa, portanto, que João Goulart é considerado seu herdeiro político. Há de se destacar que, em pouquíssimo tempo, as medidas de Jango foram compreendidas como uma ação comunista de grande perigo nacional. O governador Miguel Arraes, de Pernambuco, sintetizou muito bem o clima que encontrou no Rio de Janeiro nesse momento: “volto certo de que um golpe virá. De lá ou de cá, ainda não sei” (apud GASPARI, 2014a, p. 53). O empresariado temia o quanto estavam insuflados os ânimos dos movimentos sindicais e, ao mesmo tempo, o crescimento do movimento de esquerda: 21 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA Portanto, o empresariado proclamava, para todo o país, que não considerava mais tolerável a situação existente, vista como inadmissível pelo montante de greves, que acusavam ser estimuladas pelo próprio governo, agravadas pela proximidade do presidente com os grevistas. Esses manifestos evidenciam que, de uma postura de crítica e desconfiança em relação a Goulart, o setor empresarial (paulista, mineiro e carioca, com destaque) avançou para uma posição de rejeição e combate ao governo: queria “dar um basta” àquela situação (FERREIRA, GOMES, 2014, p. 252). E foi assim que se formou, menos de uma semana depois, no dia 19 de março, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que reuniu cerca de 500 mil pessoas em São Paulo. Figura 9 – Marcha da Família com Deus pela Liberdade em São Paulo A Marcha revelava o apoio da classe média conservadora a uma ação imediata dos militares. O temor de um governo comunista ateu levou milhares às ruas com gritos contra Jango, Brizola e o comunismo: Em São Paulo, deu-se a evidência de que a bandeira da legalidade havia mudado de mãos. No dia 19 de março, uma multidão saiu da praça da República e marchou compacta até a praça da Sé, carregando faixas, bandeiras e uma profusão de rosários – para salvar o Brasil de Jango, de Brizola e do comunismo, gritavam em coro. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi preparada pelo Ipes através da União Cívica Feminina, um dos muitos grupos de mulheres organizados pelo instituto em todo o país para fazer pressão política. Reuniu em torno de 500 mil pessoas e tinha dois propósitos: servir como resposta ao comício da Central do Brasil e lançar um eloquente apelo da sociedade à intervenção das Forças Armadas. Por conta da excessiva autoconfiança, nem Goulart nem a coalizão das esquerdas ligaram para o fato de meio milhão de pessoas saírem às ruas, na cidade mais importante do país, para protestar – “Isso não é povo”, desdenharam. Estavam enganados. A marcha que parou São Paulo era a comprovação de que se consolidara uma frente de oposição ao governo, com capacidade de mobilização e composição social heterogênea. Na origem dessa frente, em primeiro lugar estava a compartilhada aversão de setores da sociedade ao protagonismo crescente dos trabalhadores urbanos e rurais. Em segundo, o dinheiro curto e o futuro incerto acenderam o ativismo das classes médias urbanas, cientes de que um processo radical de distribuição de renda e de poder por certo afetaria suas tradicionais posições naquela sociedade brutalmente desigual (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 444-445). 22 Unidade I Os jornais da época estampavam as frases significativas da Marcha: Deputados patriotas, o povo está com vocês; Reformas só dentro da Constituição; A Constituição é intocável; A melhor reforma é o respeito à lei; Chega de palhaçada, queremos governo honesto; Trinta e dois mais trinta e dois, sessenta e quatro; Abaixo o traidor Brizola; Brizola: playboy de Copacabana; Cunhado é parente; Getúlio prendeu os comunistas, Jango premia traidores comunistas; Kremlin não compensa; Abaixo o entreguismo vermelho; Verde e amarelo, sem foice e nem martelo;Abaixo aos pelegos e os comunistas (FERREIRA; GOMES, 2014, p. 303). Com a certeza da adesão civil ao movimento, os militares já estavam bastante organizados e preparados para a intervenção que julgavam necessária. Nesse sentido, existiam dois grupos importantes: Um grupo de coronéis na Guanabara estava convencido de que generais muito dificilmente se arriscariam a conspirar contra o presidente. Eles mesmos deveriam se incumbir da tarefa. Seu líder era o coronel João Baptista Figueiredo. Contudo, ao contrário do que imaginavam, alguns generais que frequentavam a Escola Superior de Guerra os apoiavam. Entre eles estavam Golbery do Couto e Silva, Cordeiro de Farias e Ernesto Geisel. Era um grupo mais intelectualizado, chamado entre os próprios militares, de maneira pejorativa, de grupo da Sorbonne. Esses militares consideravam que somente um general de grande prestígio poderia assumir a liderança da conspiração. Isso porque existiam diversos outros grupos de conspiradores, mas eles atuavam de forma isolada, faltando exatamente um nome capaz de reuni-los e comandá-los. Segundo suas avaliações, o general Humberto de Alencar Castelo Branco, chefe do Estado-Maior do Exército, seria a pessoa certa (FERREIRA; GOMES, 2014, p. 254). Observação A Escola Superior de Guerra foi criada em 20 de agosto de 1949. A Lei nº 785 dizia: Art 1° – É criada a Escola Superior de Guerra, instituto de altos estudos, subordinado diretamente ao chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e destinado a desenvolver e consolidar os conhecimentos necessários para o exercício das funções de direção e para o planejamento da segurança nacional (BRASIL, 1949). Estava evidente a preocupação de que o alto oficialato do país fosse formado com modelos capazes de demonstrar a importância de se manter a “segurança nacional”. O termo, tão em voga ao longo da 23 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA Era Vargas, sobretudo após o movimento comunista de 1935, voltava à tona após a Segunda Guerra Mundial, com grande vigor, em torno do receito de que, em um mundo bipolar, e do qual o Brasil fazia parte da esfera de área de influência direta dos Estados Unidos, surgisse uma nova ação semelhante. Portanto, a partir do alto oficialato, é forjada a noção de que os militares precisavam garantir a defesa da pátria contra as ameaças de esquerda. Ao mesmo tempo, há que se lembrar, os militares já tinham uma ampla história na República brasileira de participação em momentos de necessidade de “salvação”. Figura 10 – A figura do general Humberto de Alencar Castelo Branco ganhou muita força ao longo dos primeiros meses do ano de 1964 Fica notório, nesse sentido, que a mobilização contra João Goulart era bastante significativa. Os setores mais elevados das forças armadas procuraram concentrar em si a ação na hora e no momento certo. Tudo era discutido e planejado com pressa, o projeto deveria ser executado em breve. Inclusive, pelo fato de que, dentro do próprio Exército, existiam outros grupos de forte envergadura: Outro grupo numeroso e ativo de militares conspiradores era formado por oficiais de baixa e média patente; homens mais ligados à tropa do que às escolas militares. Eles elegeram como sua liderança o chefe do Departamento de Produção e Obras, general Arthur da Costa e Silva. Os dois grupos atuavam no estado da Guanabara. Porém, havia grupos que conspiravam em outros estados. Em Minas Gerais, por exemplo, a liderança estava com o governador de estado Magalhães Pinto e com o general Luiz Carlos Guedes. Em São Paulo, os empresários constituíam uma base fundamental, e eram apoiados pelo governador Ademar de Barros (FERREIRA, GOMES, 2014, p. 255). 24 Unidade I Claro que, aos poucos, conforme a situação se agravava, de acordo com o ponto de vista desses militares, por mais que houvesse divergências, esses grupos passaram a dialogar e procurar, em conjunto, uma ação permanente. De qualquer forma, devemos ainda considerar o outro lado, ou seja, como pensava aqui a esquerda, além da participação estadunidense na deposição do governo Goulart. A esquerda acreditava, em boa medida, que seria capaz de defender o país contra qualquer intervenção. Como apresentava o Panfleto, do jornal da Frente de Mobilização Popular: “O risco de contrarrevolução é imenso, mas esse perigo desaparecerá rapidamente se o presidente, com a visão do apoio nacional e um programa novo e dinâmico, marchar para o governo popular e nacionalista e para um programa claro e coerente” (FERREIRA; GOMES, 2014, p. 257). Dessa maneira, tudo girava em torno das transformações reais do nacionalismo de reformas populares, que se esperava das Reformas de Base. Luís Carlos Prestes havia dito que era favorável a uma possível reeleição de Jango, além de defender que Brizola poderia ser o Fidel Castro do Brasil, ou seja, o grande condutor do fim da exploração capitalista internacional no país. É pertinente notar que o governo Jango não estava completamente sem apoio. Pesquisa do Ibope revelada pela historiografia mais recente apresentava discussões extremamente interessantes. Dentre elas, uma boa aprovação da necessidade de reforma agrária. Na pergunta, “na sua opinião, é ou não é necessária a realização de uma reforma agrária no Brasil?” As respostas foram: Quadro 1 – Questionamento sobre a necessidade ou não da reforma agrária no país Cidades Necessária(em %) Desnecessária (em %) Não sabem (em %) São Paulo 66 13 21 Rio de Janeiro 82 9 9 Belo Horizonte 67 16 17 Porto Alegre 70 17 17 Recife 70 7 23 Salvador 74 9 17 Fortaleza 68 13 19 Curitiba 61 11 28 Total 72 11 16 Fonte: Lavareda (apud FERREIRA; GOMES, 2014, p. 295). É notório, nesse sentido, que muito mais da metade da população, com grande segurança, sabia da necessidade de mudanças estruturantes no país, ainda que não estivesse associada a qualquer tipo de comunismo. Ao mesmo tempo, o Rio de Janeiro tem grande destaque como centro urbano de grande apoio às medidas do presidente Goulart. 25 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA Na mesma pesquisa, para referendar essa análise, havia a pergunta: “Destas três hipóteses, qual é, a seu ver, a mais indicada para ser adotada pelo governo do Brasil?” • Seguir a linha da chamada direita, cujos representantes seriam Carlos Lacerda e Ademar de Barros. • Seguir a linha de centro, representada por Magalhães Pinto e Juscelino Kubitschek. • Seguir a linha da chamada esquerda, cujos representantes seriam Leonel Brizola e Miguel Arraes. Na soma das cidades mencionadas acima, as oito capitais, o resultado foi, ainda segundo Lavareda citado por Ferreira e Gomes (2014, p. 296): • 23% favoráveis à direita; • 45% favoráveis ao centro; • 19% favoráveis à esquerda. Por fim, 59% da população havia dito ser favorável às reformas apresentadas no Comício da Central do Brasil. Portanto, estava claro que o presidente gozava de prestígio, assim como a necessidade do reformismo, mas sem apoio ao radicalismo. É interessante notar que a pesquisa não foi divulgada a sua época, talvez por falta de tempo, ou, podemos conjecturar, por não agradar aos contratantes – a Federação do Comércio do Estado de São Paulo. O que arrebanhou grande apoio conservador para a ação dos militares? Uma das explicações possíveis é a estabelecida pela crise do populismo. Rene Dreifuss analisa com propriedade essa problemática dos anos de 1960 estabelecendo sua interpretação: A interação entre os interesses contraditórios e as demandas simultâneas do capital transnacional e classes trabalhadoras subordinadas produziu o crítico cenário político do início da década de sessenta, levando à perda de coesão do bloco histórico populista. Sua crise se expressava em dois momentos inter-relacionados no encadeamento de grupos sociais dominantes, subalternos e subordinados. O primeiro momento consistia na incapacidade do bloco do poder governante de manter a correlação existente entre as classes dominantes e subordinadas dentro de condições de relativaestabilidade. Não sendo capaz de promover mudança social, isto é, de fixar limites socioeconômicos e realinhar parâmetros político-ideológicos, o bloco de poder governante permitia que uma crise político-institucional se desenvolvesse, o que afetava a economia brasileira. O segundo momento consistia na incapacidade do bloco populista governante de perpetuar sua 26 Unidade I posição hegemônica dentro de um conjunto de classes dominantes, isto é, os interesses oligárquico-industriais eram incapazes de derrotar ou controlar as tentativas das forças socioeconômicas multinacionais e associadas de levar a efeito uma rearticulação de poder. Essa situação equivalia a um impasse econômico-produtivo, marcado por uma crise de domínio político. Tal crise se tornou orgânica quando os efeitos de mudanças econômico-produtoras que ocorriam com intensidade crescente a partir de meados da década de cinquenta foram traduzidos para a política por duas forças socioeconômicas fundamentais, os interesses multinacional-associados e as classes trabalhadoras que passavam por um processo de intensa politização. Essas mudanças levaram a uma confrontação ideológica e política das classes, tornando-se a crise de forma populista de domínio em princípios da década de sessenta (DREIFUSS, 1981, p. 144). Percebe-se, nesse sentido proposto pelo autor, uma visão anti-Goulart razoavelmente homogênea e com caráter golpista – que seria um importante aspecto modernizador, inclusive, ligado ao capitalismo internacional. Portanto: A crise política deu origem a uma crítica sócio-histórica (ação político-ideológica e militar) bem como ao estudo do período, tendo como objeto de análise grupamentos sociais mais amplos do que meras figuras políticas de proa e personalidades públicas. A crise política levou também a compreensão das irredutíveis contradições estruturais do Estado capitalista em sua forma populista pela vanguarda civil e militar do bloco empresarial modernizante-conservador (DREIFUSS, 1981, p. 145). Dessa maneira, houve uma associação direta com o complexo Ipes/Ibad para associar o novo regime político ao capitalismo internacional, que já conquistara os interesses dessa elite brasileira: Essa elite, ligada organicamente ao bloco multinacional e associado, acabaria com as incoerências e indecisões do Estado populista, indicando claramente ao capitalismo brasileiro o caminho a seguir, a despeito da oposição da direita e da esquerda dentro de suas próprias fileiras. O empresário do IPES, Antônio Carlos do Amaral Osório, da American Chambers of Commerce sediada no Rio de Janeiro, resumiu a situação ao observar que, “Antes de 31 de março de 1964, as classes empresariais lutavam pela criação de condições indispensáveis ao desenvolvimento econômico, que havia até então dependido de um Estado preso a demagogia e vícios originários do passado.” “Somente uma Revolução poderia enfrentar a tarefa múltipla de modernizar o Estado brasileiro, que envolvia dimensões da mais variada natureza [...]” [era] “[...] necessário agir em campos de maior profundidade, na realidade aqueles da organização política, modificando aspectos das estruturas econômicas e sociais (DREIFUSS, 1981, p. 146). 27 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA Observação O Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) surgiu em 1959 e ganhou projeção com a revista Ação Democrática. Seu conteúdo era, basicamente, voltado ao ataque do comunismo tanto no plano internacional como nos elementos infiltrados no país. Foi capaz de financiar a campanha eleitoral de 1962 e chegou a tirar 200 mil exemplares, todos gratuitos (e com ótimo material gráfico). Rapidamente, houve a suspeita de que era financiado por grupos estrangeiros e até uma CPI chegou a ser instalada para proceder à investigação. No entanto, não se chegaram a resultados conclusivos. O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) foi criado em 1961 por um grupo de empresários do eixo Rio-São Paulo em torno do crescimento do temor acerca das medidas possíveis do governo Jango. Financiaram diversas produções artísticas, até filmes, além de conspirar contra o presidente. Dialogando com Dreifuss, Rodrigo Patto Sá Motta revisita essa interpretação e compreende o movimento da direita como heterogêneo e cuja união era dada pelo anticomunismo, que foi se configurando em 1964, em torno de uma tradição do Brasil: O comportamento de alguns segmentos conservadores em relação a Goulart não foi, todo o tempo, de oposição sistemática. Durante uma primeira fase do governo, e inclusive durante o início do período presidencialista, João Goulart contou com a simpatia de parcelas importantes do campo conservador. Antes da opção definitiva pelo golpe houve tentativas de afastar o Presidente dos aliados à esquerda, numa demonstração de que a solução golpista não era o principal horizonte. Foi somente no início de 1964 que a coalizão conservadora, majoritariamente, inclinou-se pela ruptura institucional. Até então a direita radical, mais especificamente, os anticomunistas extremados, encontravam-se numa posição isolada em relação à opinião conservadora. Deve ser lembrado que, para figuras expressivas da elite, o cenário ideal era manter a normalidade institucional, não o contrário. [...] O que provocou a unificação das elites contra Jango não foi a oposição intransigente a reformas. Em essência, a mobilização anti-Goulart surgiu do temor em relação às estratégias que o Presidente, supostamente, estaria disposto a usar para conseguir seus objetivos. Temia-se a aliança de Goulart com os comunistas e a possibilidade de que estes abrissem seu 28 Unidade I caminho ao poder pela via de apoio à política de reformas do Presidente. A insegurança ficava ainda maior à medida que surgiam boatos e indícios de uma estratégia continuísta ou golpista desenvolvida por Jango. Se Goulart criasse uma ditadura nacionalista e esquerdista com participação dos comunistas, especulava-se, o risco de uma progressão em direção ao comunismo era grande (“Esse caos, se acabar de se formar, vai ser plasmado por outras mãos, as mãos dos comunistas”) (MOTTA, 2002, p. 273-274). Portanto, nesse viés interpretativo, o anticomunismo foi fundamental e cresceu na medida em que as ações do presidente eram vistas como radicais e tendenciosas. Assim, conclui o autor: Nosso argumento, portanto, é que os líderes do Golpe de 1964 não estavam usando o anticomunismo como fachada para justificar suas ações. O temor expressado por eles durante a crise era efetivo. Tal interpretação não implica desconsiderar a existência de manipulações. As representações anticomunistas mantiveram a tradição de divulgar uma imagem deformada dos revolucionários, apresentados como seres violentos e imorais, em uma palavra, malignos. A estratégia era a mesma há décadas: passar para a sociedade uma impressão aterrorizante dos comunistas, no intuito de levantar contra eles a indignação popular (MOTTA, 2002, p. 276). Figura 11 – O temor da expansão comunista no Brasil foi um fator fundamental de união contra o governo de João Goulart Essa visão acerca do anticomunismo, importa salientar, ganha força com os dados do Ibope de março de 1964, pois foi necessário certo convencimento da população para garantir que a ação militar era impreterível e de extrema importância imediata, já que as reformas eram vistas, de modo geral, como importantes para o país. Portanto, o problema central do governo Jango era justamente a perspectiva de alterar a ordem constitucional e abrir caminho para uma ruptura inclusive maior que a própria ação do presidente, ou seja, uma revolução comunista. 29 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA Jorge Ferreira e Angela de Castro, amparados pelos relatores de historiadores comunistas de 1964, analisam a possibilidade de um golpe comunista em 1964: Mas haveria, de fato, um golpe das esquerdas em curso e liderado por Goulart? Alguns estudiosos respondem positivamente. É o caso do historiadorJacob Gorender, na época membro do Comitê Central do PCB. Para ele, desde novembro de 1963, Jango “passou a se entender com as forças de esquerda, com o PCB em particular, germinando também uma ideia golpista”. Segundo sua análise, havia golpismos: “não só da direita, mas também da esquerda”. Para Leandro Konder, outro historiador que viveu aqueles acontecimentos e também era ligado ao PCB, a conclusão é similar. Logo, afirma Konder, “dadas as circunstâncias (exiguidade dos prazos, inexistência de consenso), a proposta era, certamente, golpista” e, ainda seguindo sua reflexão, “a reação contra o golpismo do campo da esquerda resultou no golpe da direita” (FERREIRA; GOMES, 2014, p. 289). No entanto, apesar de respeitarem a memória dos historiadores, argumentam ser difícil que Goulart e Brizola fossem capaz de se unir em torno de um golpe de Estado, já que ambos tinham pretensões de candidatura à presidência. Jango, de qualquer forma, promovia ações voltadas ao seu poder e as suas reformas, a todo o custo. Assim: Ainda que Jango não estivesse “conspirando”, tal entendimento ganhava terreno e era tido como certo no Parlamento e para além dele. Mais cedo ou mais tarde, o presidente daria um golpe de Estado com as esquerdas, afirmavam muitos congressistas. Era isso que importava e, convenhamos, era absolutamente possível (FERREIRA; GOMES, 2014, p. 290). Dessa maneira, sob o viés interpretativo da importância do anticomunismo, faltava, de qualquer maneira, um estopim. E ele chegou em 25 de março de 1964. O ministro da Marinha, Sílvio Mota, decidiu prender quarenta marinheiros e cabos que organizaram a comemoração de aniversário da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB). Tinham um viés sindical importante, em busca de melhores condições para o trabalho e também de abrandar o excessivo controle sobre suas vidas. Os piores problemas eram a péssima alimentação nos navios e a proibição de casamento sem autorização prévia. Não foi à toa que convidaram João Cândido – o Almirante Negro, líder da grande revolta da Marinha (Revolta da Chibata, RJ, 1910) – como representante de honra. É pertinente destacar que o Exército e a Aeronáutica tinham esse tipo de associação desde a década de 1950. Chegaram até mesmo a convidar o presidente para a solenidade. No entanto, o ministro da Marinha decidiu proibir o evento e dar a voz de prisão, alegando que o movimento procurava subverter a hierarquia. Apesar disso, o grupo se reuniu no Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara com a presença de 4.500 pessoas. O líder mais proeminente era o jovem cabo Anselmo, que lançou seu discurso: 30 Unidade I Autoridades reacionárias, aliadas ao antipovo, escudadas nos regulamentos arcaicos e em decretos inconstitucionais, a qualificam [AMFNB] de entidade subversiva. Será subversivo manter cursos para marinheiros e fuzileiros? Será subversivo dar assistência médica e jurídica? Será subversivo visitar a Petrobras? Será subversivo convidar o presidente da República para dialogar com o povo fardado? Quem tenta subverter a ordem não são os marinheiros, os soldados, os fuzileiros, os sargentos e os oficiais nacionalistas, como também não são os operários, os camponeses e os estudantes. [...] Afirmamos à Nação que apoiamos a luta do presidente da República em favor das reformas de base. Aplaudimos com veemência a Mensagem Presidencial enviada ao Congresso de nossa Pátria. Clamamos aos deputados e senadores que ouçam o clamor do povo, exigindo as reformas de base. Ainda esperamos que o Congresso Nacional não fique alheio aos anseios populares. E com urgência reforme a Constituição de 1946, ultrapassada no tempo [...] O bem-estar social não pode estar condicionado aos interesses do Clube dos Contemplados (FERREIRA; GOMES, 2014, p. 318-319). O viés político do movimento, como se percebe, era mais do que evidente. O sonho da união das Forças Armadas com os movimentos operários era também contundente. Esses ideais eram próximos dos grupos de maior apoio ao governo de João Goulart, ou seja, a Frente de Mobilização Popular liderada por Brizola, do Partido Comunista e da Frente Popular. Destaque-se, por fim, que a expressão “antipovo” era típica desses grupos. A história controversa do cabo José Anselmo dos Santos Líder da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, fez esse forte discurso no aniversário da instituição, em diálogo aberto e evidente com os grupos de apoio ao governo Jango. No entanto, quando foi instalada a ditadura militar, aliou-se ao novo regime político, entregando companheiros, inclusive sua mulher, Soledad Viedma, que acabaram torturados e mortos. Como elucidam Jorge Ferreira e Angela Gomes: [...] essa atitude deu margem a interpretações de que, na solenidade de 25 de março, ele já fosse um “elemento infiltrado”, possivelmente financiado pela CIA. Um traidor, um provocador, cujo objetivo era causar uma grave crise militar na Marinha de Guerra e, assim, prejudicar o governo Jango, que já se encontrava em situação muito difícil. Uma acusação que se construiu após o golpe de 31 de março, após a instalação da ditadura civil-militar” (FERREIRA, GOMES, 2014, p. 319). 31 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA Saiba mais Nesse sentido, procure pesquisar a vida desse personagem e quais teriam sido suas razões para essa evidente mudança de lado ou mesmo possibilidade de infiltração. Uma das fontes sugeridas é o curta-metragem a seguir: JOÃO Cândido, um Almirante Negro. Dir. Emiliano Ribeiro. Brasil: Synapse Produções Ltda, 1987. 10 min. A reação não demorou. Novos mandatos de prisão foram feitos. Centenas de fuzileiros foram mandados para o local com o apoio de tanques para acabar, imediatamente, a todo custo, com o movimento. No entanto, a união dos marinheiros tinha mais força do que se esperava. Alguns promoveram atos de sabotagem para que embarcações não saíssem do porto e atrapalhassem seus companheiros. E, mais do que isso, 26 soldados jogaram suas armas e capacetes na rua, em frente ao local do motim, e decidiram aderir ao movimento. A ação foi comemorada pelos demais integrantes da AMFNB, que acompanhavam tudo pela janela e gritavam de alegria. O presidente foi chamado às pressas e agiu, na visão do alto oficialato, de maneira muito equivocada, como narram Lilia Schwarcz e Heloisa Starling: Na madrugada de 27 de março, Jango voltou para o Rio às pressas, nomeou novo ministro, assumiu as negociações e pôs tudo a perder: pela manhã, acertou a saída dos amotinados e mandou levá-los a um quartel do Exército. No mesmo dia, à tarde, liberou a marujada, declarando-os anistiados. O espetáculo dos marinheiros insubordinados marchando eufóricos pelas ruas do centro do Rio de Janeiro, em direção ao Ministério da Guerra, calou fundo nas Forças Armadas e deixou estarrecida a oficialidade. A interpretação era unânime: o que sucedera na Marinha fora quebra de disciplina, rompimento do princípio e hierarquia e desmoralização do comando. O episódio sacudiu os quartéis, e os integrantes do Ipes admitiram a possibilidade do golpe estar próximo (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 444-445). Os últimos dias do governo de João Goulart já pareciam certos. O acontecimento final foi posto na reunião de sargentos no Automóvel Clube. Nas palavras de Thomas Skidmore: Como se quisesse dar a seus inimigos uma justificativa final, o presidente concordou em falar numa reunião de sargentos no Automóvel Clube, segunda-feira à noite, 30 de março. Foi uma decisão quase suicida. Deixando de lado o texto que havia preparado, ele não quis dissociar-se dos ataques à disciplina militar. O tom de sua fala foi o de um belicoso discurso 32 Unidade I de despedida. Mesmo o general Assis Brasil, que até então insistira com o presidente para prosseguir, percebeu que Jango tinha ido longe demais (SKIDMORE, 2010, p. 345). Estava, assim, evidenciado que João Goulart não calculou a forte oposição dos militares que já se tinha claramente configurado.Ao mesmo tempo, o apoio que obteve dos grupos de esquerda aglutinou o anticomunismo como um elemento central para a falência de seu populismo. Assim, configurava-se uma relação estreita dos militares com setores conservadores. Por fim, restava ainda a composição direta e amarrada com os Estados Unidos. Além da relação direta com o Ipes/Ibad, os Estados Unidos, claramente, desde o governo de John Kennedy, desejavam impedir qualquer exemplo de Cuba no restante da América Latina. Figura 12 – Da esquerda para a direita: Fidel Castro, John Kennedy e Nikita Khrushchev Foi assim que já em 13 de março de 1961 o presidente estadunidense anunciou a Aliança para o Progresso para promover cooperação com a América Latina a fim de acelerar o crescimento econômico e social, além de frear o comunismo. Essa não era uma prática inédita. Muito pelo contrário. Foi exatamente assim, após Segunda Guerra Mundial, que o Plano Marshall foi instituído e desenvolvido na Europa Ocidental para a reconstrução rápida da economia capitalista e, consequentemente, impedir o “perigo vermelho”. Para a América, o projeto previa a injeção de US$ 10 bilhões de dólares nos próximos 10 anos. No entanto, o plano não durou muito tempo. No ano seguinte, o grande entusiasta dessa ideia, o presidente Kennedy, viria a ser assassinado, e o projeto foi formalmente extinto em 1969 pelo presidente Nixon. 33 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA Paralelamente a uma possível cooperação econômica, de qualquer forma, os estadunidenses formaram um “plano de contingência” com a finalidade de apoiar a derrubada do governo Goulart e garantir a defesa contra qualquer ameaça comunista. Assim, o presidente Lyndon Johnson autorizou a execução da operação Brother Sam, isto é, a chegada de navios estadunidenses para o litoral do Brasil repletos de munição para controle de multidão e combustível – abastecendo os insurgentes com o aparato necessário para reprimir qualquer manifestação contrária ao golpe militar: “[...] era uma esquadra composta pelo porta-aviões Forrestal, seis contratorpedeiros com 110 toneladas de munição, um porta-helicópteros, um posto de comando aerotransportado e quatro petroleiros que traziam 553 mil barris de combustível” (GASPARI, 2014a, p. 101). Ao mesmo tempo, as embarcações estadunidenses seriam de grande importância no litoral para intimidar o oficialato que, eventualmente, ainda pudesse ter qualquer dúvida acerca da necessidade evidente da ação militar e do apoio dos Estados Unidos. No entanto, há que se destacar, a empreitada estadunidense não foi necessária. Como atestam Jorge Ferreira e Angela Castro: A Operação Brother Sam não chegou a ser desencadeada, mas é bom precisar suas características. Considerando o poder político e militar norte-americano, elas têm a ver com o fato de que “o Brasil não era uma republiqueta qualquer, um quintal em que os norte-americanos pudessem passear à vontade”, como o historiador Boris Fausto chama a atenção. Em sua avaliação, “a liquidação da democracia resultou essencialmente de uma preparação interna, em que os militares tiveram papel relevante, mas não exclusivo, pois os civis também conspiraram”. O governo dos Estados Unidos deu seu total apoio; iria interferir se necessário fosse. Mas o golpe de Estado foi obra de brasileiros, civis e militares. Essa é uma interpretação fundada em análise de vasta documentação, que vem sendo sustentada por vários historiadores e que queremos enfatizar nessa narrativa (FERREIRA; GOMES, 2014, p. 342-343). Saiba mais As relações do Golpe de 1964 no Brasil com a Guerra Fria e os Estados Unidos são analisadas, com brilhantismo, no documentário repleto de documentos encontrados em Washington e que descortina o amplo processo de relações intervencionistas, sobretudo, após o exemplo comunista de Cuba: O DIA que durou 21 anos. Dir. Camilo Tavares. Brasil: Pequi Filmes, 2012. 77 min. E foi assim que se deu a ação. Em 31 de março de 1964, o general Olimpio Mourão Filho iniciou, em Juiz de Fora (MG), uma movimentação de tropas em direção ao Rio de Janeiro. A esperança de Goulart 34 Unidade I era a de que o general Kruel, de São Paulo, não aderisse ao movimento. Até então, o líder paulista não havia declarado participação a nenhum dos lados. Mas, nesse mesmo dia, surgiu sua decisão: Nessa mesma noite, as tropas, os tanques e carros blindados do II Exército estacionaram no Ibirapuera. O general Amaury Kruel finalmente tomara sua decisão e ela foi contra Goulart. Por volta das 22h, o governador Ademar de Barros falou pelas rádios. Em sua declaração, disse que os mineiros contariam com o apoio dos paulistas, civis e militares. No caso dos militares, São Paulo tinha à frente o poderoso II Exército. Depois de Ademar, o general Kruel também falou, declarando que seu objetivo era salvar a Pátria, “livrando-a do jugo vermelho”. Não se tratava de pôr fim ao regime democrático. Muito pelo contrário, o que se buscava era a legalidade e o restabelecimento da disciplina e hierarquia nas Forças Armadas. A notícia, para Goulart, foi uma derrota. Ela desestabilizou todos os seus planos. Telefonemas chegaram a ser trocados entre ele e Kruel. O general insistiu no mesmo argumento, anteriormente sustentado pelo general Bevilacqua. Ele não se negava a garantir a permanência do presidente no poder. Mas havia a exigência de que Jango se afastasse por completo dos comunistas e decretasse a ilegalidade do CGT, UNE e outras organizações de esquerda. Goulart argumentou que não poderia abandonar os amigos que o apoiavam e permaneciam a seu lado. Mais uma vez Jango fez uma escolha e, dessa feita, ela rompia com qualquer possibilidade de negociação (FERREIRA; GOMES, 2014, p. 349). Logo as tropas paulistas e mineiras partiram para o Rio de Janeiro. A ordem para que o oficialato defensor do presidente impedisse o golpe nunca chegou. Mesmo os que se posicionaram no caminho para um eventual confronto, em pouco tempo, foram convencidos a desistir. A presidência foi declarada vaga com o presidente ainda em território nacional. Diversos civis e também a imprensa celebravam o acontecimento, como demonstra o editorial do jornal Correio da Manhã: Até que ponto o presidente da República abusará da paciência da nação? Até que ponto pretende tomar para si, por meio de decretos-lei, a função do Poder Legislativo? Até que ponto contribuirá para preservar o clima de intranquilidade e insegurança que se verifica presentemente, na classe produtora? Até quando deseja levar ao desespero, por meio da inflação e do aumento do custo de vida, a classe média e a classe operária? Até que ponto quer desagregar as Forças Armadas por meio da indisciplina que se torna cada vez mais incontrolável? [...] 35 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA Basta de farsa. Basta de guerra psicológica que o próprio governo desencadeou com o objetivo de convulsionar o país e levar avante a sua política continuísta. Basta de demagogia, para que, realmente, se possam fazer as reformas de base. [...] Queremos o respeito à Constituição. Queremos as reformas de base votadas pelo Congresso. Queremos a intocabilidade das liberdades democráticas. Queremos a realização das eleições em 1965. Se o sr. João Goulart não tem capacidade para exercer a presidência da República e resolver os problemas da nação dentro da legalidade constitucional, não lhe resta outra saída senão entregar o Governo ao seu legítimo sucessor. [...] O Brasil já sofreu demasiado com o governo atual. Agora, basta! (BONAVIDES; AMARAL, 2002, p. 891-892). Há que se mencionar ainda o quanto mudou o cenário do país da metade da década de 1940 até 1964, do sonho democrático para a garantia da segurança nacional contra a eminência de um golpe de esquerda: No vocabulário da época, “redemocratização” tornou-se a principal palavra de ordem na política. E, logo em seguida e sucessivamente até 1964, as palavras e expressões seriam “mudança”, “combate às resistências à mudança”, “modernização”,“subdesenvolvimento”, “planejamento”. E, por fim, “reforma estrutural”, “pré-revolução” e “revolução”. Tais mudanças no vocabulário, num crescendo irrevogável, traduziam o que se passava nas batalhas pela implantação de um Estado moderno no país. Até que um poderoso sistema civil-militar impusesse, com o golpe de Estado de 1964, as suas palavras de ordem: “contrarrevolução preventiva” e “segurança e desenvolvimento” (LOPEZ; MOTA, 2015, p. 704). Contudo esse movimento de 1964 conseguiu uma amplitude muito maior do que as perspectivas anteriores de intervenção em 1954 e 1961. Como sintetizam Jorge Ferreira e Angela de Castro: O que ocorreu na virada do dia 31 de março para 1º de abril não foi uma repetição de levantes de minorias militares, aliadas a pequenos grupos civis de direita. Assim ocorreu na crise de agosto de 1954, que resultou no suicídio de Vargas; na crise da sucessão em 1955, com a tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitschek; nas revoltas de Aragarças e Jacareacanga, durante o governo JK. Em todos esses eventos, a minoria militar e civil golpista não conseguiu romper com 36 Unidade I a legalidade, porque não conseguiu ressonância dentro das Forças Armadas e dentro da sociedade. Em 1964 foi diferente. Houve um movimento do conjunto da oficialidade das três Forças Armadas que se sentiram ameaçadas pela quebra da disciplina e hierarquia na instituição. Tal movimento não foi apenas militar, pois teve apoio de amplos setores sociais, de empresários às classes médias; um apoio que vinha sendo construído havia anos, e se traduzia em recursos financeiros, materiais, além de manifestações de ruas. Diversas organizações da sociedade civil, como meios de comunicação, organizações femininas e setores da Igreja Católica também incentivaram e se colocaram ao lado desse movimento, sobretudo quando ele eclodiu. Tudo isso, sem falar em importantes instituições políticas, grupos parlamentares do Congresso e governos estaduais, como os da Guanabara, Minas Gerais e São Paulo (FERREIRA; GOMES, 2014, p. 351). No dia seguinte, o presidente deixa o Rio de Janeiro e vai para Brasília. Mais tarde, parte para o Rio Grande do Sul. Não resistiu à ação dos militares. João Goulart decidiu não reagir e nem dar ordem para qualquer movimento contrário. Contudo, é certo que havia um grupo, no seio militar, de apoio à legalidade. Ao mesmo tempo, é bastante plausível que, com a vinda de Minas Gerais e São Paulo para o Rio de Janeiro, o presidente soubesse, por um lado, já não sustentar mais tanta força política, e, por outro, que uma guerra civil resultaria absolutamente desastrosa sob todos os pontos de vista. Por fim, é possível também que o presidente soubesse da eminente chegada do apoio estadunidense e, portanto, ainda que as forças do país fossem de igualdade na luta, em breve, a balança penderia, e muito, para os oposicionistas. Foi exatamente isso que João Goulart disse em entrevista, quando de seu exílio no Uruguai, para Jorge Otero: Haveria mesmo derramamento de sangue. Mas esse sangue a ser derramado seria o de civis. Era mister evitá-lo. Porque, Jorge [Otero], já lhe disse: lobo [militar] não come lobo. Ameaçam, fazem pronunciamentos. No final, dá-se um jeito. Além disso, até que ponto poderíamos resistir? Onde obteríamos os recursos e o combustível imprescindíveis? Os entreguistas do Brasil já estavam garantidos ao receberem o apoio dos Estados Unidos. Só os civis seriam as grandes vítimas. E esse é um povo maravilhoso, independentemente de suas convicções políticas. Não, Jorge, eu não teria esse direito. Nem gostaria de arcar com essa enorme responsabilidade, que contraria meu foro íntimo (FERREIRA; GOMES, 2014 p. 372). Em suma, em 1964, o país viveu a derrocada de um governo populista no auge da crise do anticomunismo. Jango tinha ideias bastante semelhantes às de Getúlio, com seu nacionalismo. No entanto, nos anos 1960, com o aprofundamento das tensões da Guerra Fria, elas foram associadas diretamente ao comunismo. Portanto, a necessidade da “segurança nacional” mais uma vez ficou manifesta. 37 DITADURA MILITAR E NOVA REPÚBLICA É fundamental destacar que essa não era uma relação exclusiva do Brasil. A derrocada do populismo na América Latina estava relacionada ao avanço do imperialismo estadunidense e de suas multinacionais – em completa oposição à defesa do nacionalismo econômico populista. Ao mesmo tempo, crescia a suspeita da esquerdização das massas trabalhadoras. O medo de que o exemplo cubano se propagasse era enorme. Nesse mesmo sentido, a dependência do setor primário gerou uma economia que, ao longo da década de 1950, passou a perder, progressivamente, sua capacidade de importação. A carestia trazia consigo a inflação, o deficit orçamentário, o endividamento externo e o crescimento das tensões sociais no campo e na cidade. Delinearam-se dois caminhos possíveis. De um lado, a força dos conservadores. Membros das elites associados a liberais desejam perpetuar as relações socioeconômicas e contavam com o apoio e a ingerência dos Estados Unidos. Eram capitaneados pelos militares – defensores da “salvação nacional”. De outro lado, o sonho de reformas estruturantes mexia com as emoções da esquerda e do povo. Finalmente, políticos ambicionavam reconfigurar as enormes desigualdades sociais em mudanças reais para o progresso econômico como a reforma agrária, e, como vimos, a própria pesquisa do Ibope demonstrava que eram necessidades reais. Como interpretam Carlos Guilherme Mota e Adriana Lopez: A antiga questão do militarismo versus civilismo adquiriu nova dimensão, plena de implicações. Os antigos tenentes voltavam ao poder, agora generais, porém num contexto socioeconômico nacional e internacional marcado pelo capitalismo monopolista e associado, pelas multinacionais, pelas lutas de libertação colonial, pelo terceiro-mundismo desafiador e pelas lutas de classes em um país que, a despeito de suas vastas regiões ainda atrasadas e rústicas, entrava na era urbano-industrial (MOTA; LOPEZ, 2015, p. 778). Observação A perspectiva de que os militares podem salvar a nação nos momentos de problemas políticos, muitas vezes atrelados a relações socioeconômicas, mais uma vez foi vista no Brasil com as manifestações de 2013. Em alguns lugares do Brasil, parte da população saiu às ruas com faixas “queremos os militares novamente no poder”. É a rememoração evidente da relação de salvação nacional perpetuada por aqueles que, pelo serviço militar, entendem que são mais patrióticos que os civis, afinal, estão dispostos a morrer pelo Brasil a qualquer momento. O caminho traçado pela América Latina aqui perpetua sua relação histórica com o militarismo e o anticomunismo. Desde a formação do Exército profissional, a América Latina teve nos militares os perpetuadores da defesa dos recursos nacionais e os mantenedores da ordem interna – atestando, 38 Unidade I assim, a incapacidade de os políticos resolverem entre si seus dilemas e projetos. É aqui que o caminho da democracia se esvai. Um amplo movimento foi visto, com vários golpes em diferentes países: 1954 – Paraguai (Alfredo Stroessner); 1964 – Brasil (Castelo Branco); 1964 – Bolívia (René Barrientos) e 1969 (Candia); 1966 – Argentina (Juan Carlos Onganía); 1968 – Peru (Juan Velasco Alvarado); 1968 – Panamá (Omar Torrijos Herrera); 1972 – Equador (Guillermo Rodriguez Lara); 1973 – Chile (Augusto Pinochet). Figura 13 – Generais Ernesto Geisel e Augusto Pinochet – o militarismo na América Latina Um novo capítulo da história do Brasil foi estabelecido pelo militarismo, ainda que em nome da defesa da democracia, com um regime de enorme concentração de força e, aos poucos, com o fim dos direitos humanos. A quebra da hierarquia e da disciplina, além da defesa da Constituição, eram justificativas plenamente aceitas no abril de 1964. 4 GOVERNO CASTELO BRANCO (1964-1967) Jango foi aconselhado a rapidamente sair do Rio de Janeiro. Foi o que fez. Entendeu que
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