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Rodrigo Lobo Canalli Controle de constitucionalidade da legislação local AULA 3 Controle difuso: o recurso extraordinário Sumário 1. Introdução ...........................................................................................3 2. Recurso extraordinário – considerações gerais ....................................3 3. Recurso extraordinário contra decisão que julga válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição Federal (artigo 102, III, “c”, da CF) ...............................................................................................10 4. Recurso extraordinário contra decisão em controle abstrato estadual .11 5. Recurso extraordinário contra decisão que julga válida lei local contestada em face de lei federal (artigo 102, III, “d”, da CF) ..................14 6. Considerações finais ............................................................................15 7. Para aprofundar ..................................................................................16 Glossário .................................................................................................17 Controle difuso: o recurso extraordinário Controle de constitucionalidade da legislação local AULA 3 3 1. Introdução Bem-vindos, caros alunos, à terceira rodada dos nossos estudos sobre as especificidades da jurisdição constitucional relativas à tutela da produção normativa feita pelos Estados, pelos Municípios e pelo Distrito Federal. Na aula anterior, delineamos o quadro geral da estrutura normativa em que se efetiva, no contexto da federação, a tutela constitucional das normas locais (estaduais, distritais e municipais), em face tanto das constituições estaduais quanto da Constituição Federal. Feito isso, é hora de nos dedicarmos ao estudo de algumas das hipóteses em que a discussão sobre a constitucionalidade de uma norma local chega ao Supremo Tribunal Federal (STF). Faremos isso a partir de agora, começando pelo chamado controle de constitucionalidade difuso ou incidental. O objetivo desta aula é, portanto, explicar as particularidades do recurso extraordinário quando nele estiver sendo discutida a constitucionalidade de uma norma local. O controle difuso, ou incidental, tem lugar em processos subjetivos. Estamos nos referindo àqueles litígios cuja primeira finalidade é alcançar uma decisão correta acerca dos direitos e interesses que contrapõem as partes envolvidas – autor e réu –, e não obter uma declaração sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de leis. A questão constitucional, quando eventualmente surge na discussão, é secundária, mas deve ser resolvida para que se alcance uma decisão em conformidade com o direito. 2. Recurso extraordinário – considerações gerais Quando, no âmbito de um processo subjetivo, surge um questionamento acerca da constitucionalidade de lei local, a parte insatisfeita com a decisão sobre essa questão pode provocar a manifestação do STF a respeito dela, mediante a interposição de recurso extraordinário. Vejam bem: o foco de nossas lentes agora será o recurso extraordinário interposto com base nas previsões do artigo 102, III, “c” ou “d”, da Constituição Federal, cuja redação é a seguinte: Controle difuso: o recurso extraordinário Controle de constitucionalidade da legislação local AULA 3 4 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...) III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: (...) c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. Como o próprio nome sugere, o recurso extraordinário não é um recurso comum. É, sim, um mecanismo excepcional, destinado a assegurar que o STF tenha a última palavra sobre a adequação da legislação à Constituição Federal. Dado esse caráter peculiar, é necessário que a petição de recurso extraordinário satisfaça uma série de requisitos formais para que esteja em condições de ter o mérito examinado pelo Supremo. Alguns desses requisitos estão expressos na Constituição da República e na legislação processual. É o caso da necessidade de demonstrar a repercussão geral da questão constitucional discutida, instituto previsto no artigo 102, § 3º, da CF. Delinear as especificidades e o funcionamento da repercussão geral nos levaria a um desvio desnecessário do escopo e dos objetivos deste curso. Todavia, há um aspecto da repercussão geral diretamente relacionado ao tema do nosso curso que não pode ser negligenciado: como conciliar o conceito de repercussão geral, tal qual previsto nos artigos 102, § 3º, da CF e 1.035, § 1º, do CPC, com a discussão sobre a constitucionalidade de legislação local? Em outras palavras, um recurso extraordinário que questione a interpretação dada a lei ou ato de governo local pode apresentar repercussão geral? Na sua visão, como se opera essa equação? Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...) § 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. Art. 1.035. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário quando a questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos termos deste artigo. § 1º Para efeito de repercussão geral, será considerada a existência ou não de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo. Controle difuso: o recurso extraordinário Controle de constitucionalidade da legislação local AULA 3 5 No exame da admissibilidade do recurso extraordinário, o STF afere também a satisfação de requisitos que, embora não explicitados na legislação processual, configuram inferências inevitáveis da própria natureza e finalidade dessa espécie de recurso. Para otimizar o trabalho de análise da admissibilidade dos recursos, esses requisitos foram sistematizados na forma de enunciados que integram a Súmula do STF. A compreensão das súmulas que enunciam as condições de admissibilidade de recursos extraordinários é imprescindível para se proceder à análise adequada e ao encaminhamento correto das decisões nas quais se discute a constitucionalidade de legislação local. Por sua relevância e pela frequência com que são utilizadas, vamos destacar três delas, as Súmulas 279, 280 e 282. Súmula 279 “Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário.” Tendo em vista, de um lado, as estritas hipóteses de cabimento do recurso extraordinário, dispostas no artigo 102, III, da Constituição Federal, e, de outro, o princípio do juiz natural (artigo 5º, LIII e LXI, da CF), fica fora da alçada do STF, na análise desse recurso, o reexame das provas produzidas para reconstruir o quadro fático do processo. Assim, ao avaliar, em recurso extraordinário, a ocorrência de afronta à Constituição na decisão recorrida, o Supremo parte dos fatos tal como delineados nas instâncias ordinárias, limitando- se a revisar a correta aplicação do direito sobre eles. Cabe, aqui, uma observação. Quando a pretensão, no recurso extraordinário, for uma qualificação jurídica diversa daquela dada pelo tribunal de origem, à luz dos preceitos da Constituição que o recorrente alega terem sido inobservados, sem que se pretenda Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...) III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida. Art. 5 Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; (...) LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaSumula/anexo/Enunciados_Sumulas_STF_1_a_736_Completo.pdf Controle difuso: o recurso extraordinário Controle de constitucionalidade da legislação local AULA 3 6 alterar o quadro fático, o recurso pode até esbarrar em outro óbice, mas não é caso de aplicação da Súmula 279. Arrisco afirmar que a Súmula 279 é o verbete de súmula mais incorretamente aplicado no STF para impedir o seguimento de recursos extraordinários e agravos em recurso extraordinário. Para ilustrar situações de aplicação devida e indevida da Súmula 279, imaginemos o seguinte caso hipotético (nossa intenção é apenas expor condições de recorribilidade, sem juízo algum acerca da correção das teses jurídicas contrapostas): uma atriz famosa demanda um paparazzo em juízo, dele requerendo indenização, por violação da sua intimidade, em virtude da publicação, em jornal de grande circulação, de fotografias por ele secretamente capturadas nas quais ela aparece em momento íntimo. A questão tem inegável matiz constitucional, uma vez que, como sabemos, o artigo 5º, X, da Constituição da República protege a intimidade e a vida privada, assegurando o direito de indenização em caso de violação desses direitos. Digamos que a ação tenha sido julgada inicialmente improcedente e o Tribunal de Justiça, em apelação, tenha confirmado a sentença, entendendo que, pelo fato de as fotos terem sido capturadas em uma praia pública, não houve violação da intimidade. Notem que podemos decompor essa decisão em duas partes: o quadro fático e a qualificação jurídica desse quadro. Inconformada, a autora da ação interpõe recurso extraordinário para o STF, afirmando que a decisão recorrida viola o artigo 5º, X, da Constituição da República (direito à intimidade). Quadro fático As fotografias foram capturadas em espaço público. Qualificação jurídica A captura não autorizada da imagem em local público não viola o direito à intimidade. Art. 5º (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; Controle difuso: o recurso extraordinário Controle de constitucionalidade da legislação local AULA 3 7 Se o recurso se baseia na alegação de que as fotos não foram capturadas em uma praia pública, e sim dentro de uma propriedade privada, é caso típico de aplicação da Súmula 279 para negar-lhe seguimento. Afinal, a premissa de que as fotografias foram capturadas em espaço público, assentada pelo Tribunal de origem, não pode ser alterada em exame de recurso extraordinário. Por outro lado, se a alegação do recurso é no sentido de que a proteção constitucional à intimidade (artigo 5º, X, da CF) assegura o direito de não ter fotografias suas publicadas sem autorização, mesmo se capturadas em ambiente público, não há pretensão de reexame de prova. Trata-se de questão estritamente jurídica: saber a extensão do direito assegurado pelo preceito constitucional e apontado pela recorrente. Nesse caso, invocar a Súmula 279 para negar seguimento ao recurso extraordinário seria tecnicamente incorreto. O quadro a seguir pode auxiliar vocês na devida compreensão e aplicação da Súmula 279. Pretensão do RE Discutir a existência, a validade ou os efeitos de norma aplicável ao caso Discutir a adequação de uma dada norma à situação concreta (escolha da norma regente do caso) Discutir a correta aplicação do direito processual (mesmo o direito probatório) Discutir se os fatos alegados foram comprovados ou devidamente interpretados (apuração da realidade histórica) Natureza Questão de direito Não Não Não Sim Questão de direito Questão de direito Questão de fato Óbice da Súmula 279? Controle difuso: o recurso extraordinário Controle de constitucionalidade da legislação local AULA 3 8 Súmula 280 “Por ofensa a direito local não cabe recurso extraordinário.” O verbete da Súmula 280 veda, em recurso extraordinário, a invocação de direito local como parâmetro de aferição do acerto ou desacerto da decisão recorrida. Como já vimos, somente o direito federal, e notadamente o direito constitucional federal, pode ser invocado em recurso extraordinário como parâmetro de controle da decisão recorrida. Não cabe, pois, interpor recurso extraordinário sob a alegação de que a decisão recorrida teria violado lei municipal, lei estadual ou mesmo Constituição estadual, por se tratar de pretensão que extrapola o âmbito de tutela normativa confiado ao STF. Isso é diferente de questionar, como objeto do recurso extraordinário, a constitucionalidade do direito local em face da Constituição da República. Em 5 de março de 2015, o Plenário do Supremo, ao apreciar o mérito do RE 586.224/SP, deu-lhe provimento para declarar a inconstitucionalidade de lei municipal que proibia a utilização da queimada da palha de cana-de-açúcar como técnica de manejo dessa lavoura. Nesse caso, o direito local era o objeto do recurso extraordinário. O parâmetro de controle – o que se alegou ter sido violado na decisão recorrida –, contudo, foi a Constituição da República. Assim, o exame do mérito do recurso extraordinário pelo Tribunal não contrariou o enunciado contido na Súmula 280. Vale ressaltar: leis que proibiam a queimada da palha de cana-de-açúcar, como a que foi declarada inconstitucional pelo STF no julgamento do RE 586.224, haviam sido editadas por outros municípios. Elas foram igualmente desafiadas judicialmente, mas, nos primeiros casos em que a questão chegou ao STF, mediante recursos extraordinários, a aplicação inadequada da Súmula 280 à hipótese impediu que ela fosse desde logo apreciada. http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2616565 Controle difuso: o recurso extraordinário Controle de constitucionalidade da legislação local AULA 3 9 Súmula 282 “É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada.” A Súmula 282 prevê que questão constitucional veiculada no recurso extraordinário e tratada como parâmetro de controle deve ter sido abordada na decisão recorrida. Em outras palavras, não se pode, em recurso extraordinário, inovar com a apresentação de questão constitucional que nem sequer fora, até então, objeto do processo. Numa variação do exemplo do paparazzo ao qual recorremos para discutir a Súmula 279, vamos supor que ele e a atriz fotografada tivessem celebrado um contrato para permitir a publicação das imagens em uma revista. Digamos que a discussão processual, nesse contexto, gire em torno apenas de uma divergência na interpretação do contrato, cuja redação teria ficado ambígua: a atriz, entendendo, de forma diversa da outra parte, que autorizara a publicação da sua imagem exclusivamente na edição impressa, pleiteia indenização pelas fotografias publicadas também no site da revista. Nota-se que a discussão processual, nessa nova hipótese, limita-se à ocorrência ou não de descumprimento do contrato, e nenhuma questão constitucional foi suscitada. Vamos supor, então, que a decisão tenha sido desfavorável à pretensão da atriz. Inconformada, ela interpõe recurso extraordinário e, para fundamentá-lo, alega que a decisão recorrida violou o artigo 5º, X, da CF, que protege o direito à intimidade – questão até então, repita-se, ausente no processo. Ocorre que, se a decisão recorrida nada afirmou sobre o direito à intimidade, não faz sentidodiscutir se ela violou ou não esse direito constitucional. O que se vê, nesse cenário, é um caso clássico de ausência de prequestionamento da questão constitucional suscitada, circunstância em que a aplicação da Súmula 282 se impõe para inviabilizar a admissibilidade do recurso extraordinário. Art. 5º (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; Controle difuso: o recurso extraordinário Controle de constitucionalidade da legislação local AULA 3 10 3. Recurso extraordinário contra decisão que julga válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição Federal (artigo 102, III, “c”, da CF) Segundo o artigo 102, III, “c”, da Constituição da República, compete ao STF julgar o recurso extraordinário interposto contra decisão que “julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição”. Direito local – “lei ou ato de governo local”, nos termos do artigo 102, III, “c”, da CF – é todo direito que, produzido por ente federativo diverso da União, tem vigência espacial circunscrita ao território de um Estado, um Município ou o Distrito Federal. Paula Sarno Braga (2015, p. 282) define o direito local como aquele constituído pelos “enunciados normativos válidos para o território de apenas um Estado-membro (ou Município, como no Brasil), (...) aprovados pela legislatura local eleita pelos cidadãos dessa unidade parcial federada”. As espécies normativas locais – estaduais, municipais ou distritais – que podem ser objeto da tutela concreta de constitucionalidade pela via do recurso extraordinário são as mesmas sujeitas a essa modalidade de controle no âmbito do direito federal. Assim, qualquer espécie normativa dotada de generalidade e abstração, e cuja validade tenha sido reconhecida em decisão judicial, está sujeita à jurisdição constitucional desempenhada pelo STF em face da Constituição Federal. Ao se referir a “lei ou ato de governo local”, o artigo 102, III, “c”, da CF abrange as constituições estaduais propriamente ditas, as emendas a essas constituições, as leis orgânicas municipais, as leis complementares estaduais ou municipais, as leis ordinárias estaduais e municipais, as leis delegadas estaduais e municipais, as medidas provisórias, os decretos e as resoluções. PAULA SARNO BRAGA Professora Adjunta de Direito Processual Civil (graduação e pós-graduação) da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – UFBA e da Faculdade Baiana de Direito. Professora e Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Processual Civil (da Faculdade Baiana de Direito). Mestre e Doutora pela UFBA. Advogada e Consultora Jurídica. Controle difuso: o recurso extraordinário Controle de constitucionalidade da legislação local AULA 3 11 Cabe esclarecer que alínea “c” do inciso III do artigo 102 da CF se limita a autorizar o recurso extraordinário contra decisão que afirme a validade do direito local em face da Constituição Federal e, portanto, não ampara a interposição de recurso extraordinário contra decisão que o julgue inválido. Todavia, uma decisão neste sentido pode, eventualmente, ensejar o cabimento do recurso extraordinário com base na alínea “a” do inciso III do artigo 102 da CF, caso seu conteúdo traduza uma violação direta à Constituição Federal. Como já afirmamos, quando se trata de controle difuso, o direito local pode ser objeto do controle de constitucionalidade, nas instâncias ordinárias, tanto em relação à Constituição estadual quanto em face da Constituição Federal. Para fins de admissibilidade de recurso extraordinário, a ser apreciado pelo STF, no entanto, somente a Constituição Federal pode ser invocada como parâmetro de controle, e a questão constitucional deve ter sido apreciada na decisão recorrida. 4. Recurso extraordinário contra decisão em controle abstrato estadual Algumas particularidades cercam o cabimento do recurso extraordinário interposto de decisão de Tribunal de Justiça proferida no julgamento de representação de inconstitucionalidade em que se efetua, em caráter abstrato, o controle da constitucionalidade de lei local em face da Constituição estadual. Cabe, então, o questionamento: se o parâmetro de controle, no procedimento de fiscalização abstrata da legislação local realizado pelo Tribunal de Justiça, é a Constituição estadual, admite-se recurso extraordinário para o STF? Na aula anterior, abordamos a competência dos tribunais de justiça para apreciar, em caráter abstrato, a constitucionalidade das leis estaduais e municipais em face da Constituição estadual. Ressaltamos então que parte substancial do conteúdo das constituições estaduais reproduz, obrigatoriamente, normas da Constituição Federal. Nesse contexto, uma lei municipal incompatível com Constituição estadual que, por sua vez, repete norma da Constituição Federal estaria violando a Constituição estadual ou a federal? A competência para apreciar a constitucionalidade dessa lei seria do Tribunal de Justiça ou do STF? Controle difuso: o recurso extraordinário Controle de constitucionalidade da legislação local AULA 3 12 Ainda que as normas constitucionais estadual e federal tenham o mesmo conteúdo, o parâmetro para o julgamento pelo Tribunal de Justiça – em controle concentrado – é a Constituição estadual, ao passo que, no julgamento pelo STF, em recurso extraordinário, o parâmetro é a Constituição Federal. O recurso extraordinário contra decisão em controle abstrato estatual não tem como objetivo revisar a interpretação do Tribunal de Justiça sobre a Constituição estadual, e sim questionar a compatibilidade daquela decisão com a Constituição Federal. Ainda que ambos os textos sejam iguais, juridicamente são normas distintas. Embora a jurisprudência tenha oscilado no passado, esse entendimento foi pacificado no julgamento da Rcl 383/SP: Reclamação com fundamento na preservação da competência do Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade proposta perante Tribunal de Justiça na qual se impugna Lei municipal sob a alegação de ofensa a dispositivos constitucionais estaduais que reproduzem dispositivos constitucionais federais de observância obrigatória pelos Estados. Eficácia jurídica desses dispositivos constitucionais estaduais. Jurisdição constitucional dos Estados-membros. – Admissão da propositura da ação direta de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça local, com possibilidade de recurso extraordinário se a interpretação da norma constitucional estadual, que reproduz a norma constitucional federal de observância obrigatória pelos Estados, contrariar o sentido e o alcance desta. Reclamação conhecida, mas julgada improcedente. (Rcl 383/SP, Relator o Ministro Moreira Alves, Tribunal Pleno, DJ de 21.5.1993.) Na hipótese de recurso extraordinário contra acórdão de Tribunal de Justiça prolatado em controle abstrato de constitucionalidade de norma local em face da Constituição estadual, há precedentes do STF no sentido de seu cabimento quando o parâmetro de controle norteador da decisão recorrida corresponde a norma de repetição obrigatória da Constituição Federal. Foi nesse sentido a decisão da Primeira Turma do STF no julgamento do AI 694.299 (Relator o Ministro Dias Toffoli, julgamento em 13.8.2013): Agravo regimental no agravo de instrumento. Representação de inconstitucionalidade de lei municipal em face de Constituição estadual. Ausência de normas de reprodução obrigatória. Incidência da Súmula nº 280/ STF. Precedentes. 1. Para que seja admissível recurso extraordinário de ação direta de inconstitucionalidade processada no âmbito do Tribunal local, é imprescindível que o parâmetro de controle normativo local corresponda à norma de repetição obrigatória da Constituição Federal. 2. Inadmissível, em recurso extraordinário, a análise da legislação local. Incidênciada Súmula nº 280 do Supremo Tribunal Federal. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1532402 http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2580659 Controle difuso: o recurso extraordinário Controle de constitucionalidade da legislação local AULA 3 13 Há, entretanto, precedentes do STF no sentido de que o cabimento do recurso extraordinário contra decisões proferidas em ação direta de inconstitucionalidade estadual presume apenas o prequestionamento da questão constitucional federal suscitada no recurso extraordinário, e não necessariamente equivalência formal deste quanto ao parâmetro de controle observado pelo Tribunal de Justiça no tocante à Constituição estadual. É o que se depreende do acórdão proferido, também pela Primeira Turma, no julgamento do RE 702.617 (Relator o Ministro Luiz Fux, DJe de 21.8.2012): AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE ESTADUAL. SERVIÇO PÚBLICO. POLÍCIA MILITAR. ATRIBUIÇÃO PARA LAVRAR TERMO CIRCUNSTANCIADO. LEI 9.099/95. ATIVIDADE DE POLÍCIA JUDICIÁRIA. ACÓRDÃO RECORRIDO EM HARMONIA COM O ENTENDIMENTO DO SUPREMO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. O Tribunal de origem não se pronunciou sobre o artigo 125, § 2º, da Constituição Federal, e os embargos de declaração interpostos não mencionaram a referida norma, evidenciando a ausência do necessário prequestionamento da matéria constitucional, a inviabilizar o conhecimento do extraordinário. 2. A Súmula 282/ STF: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”. 3. O controle de constitucionalidade da Lei nº 3.514/10 foi realizado pelo Colegiado a quo tendo como parâmetro as normas dos artigos 115 e 116 da Constituição do Estado do Amazonas, que, por sua vez, repetem as regras estabelecidas no artigo 144 da Constituição Federal, razão por que não há se falar em ilegalidade, mas, sim, em inconstitucionalidade. 4. Agravo Regimental a que se nega provimento. Finalmente, em 1º de fevereiro de 2017, ao apreciar o RE 650.898/RS, sob o regime da repercussão geral, o Plenário do STF, novamente às voltas com a questão, aprovou a seguinte tese: Tribunais de Justiça podem exercer controle abstrato de constitucionalidade de leis municipais utilizando como parâmetro normas da Constituição Federal, desde que se trate de normas de reprodução obrigatória pelos Estados. Posteriormente, esse entendimento foi confirmado no julgamento da ADI 5646/SE, julgada em 07.02.2019 (Relator Ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, DJe 08.5.2019). Da sua ementa, destacamos o seguinte trecho, que é elucidativo: “(...) 1. É constitucional o exercício pelos Tribunais de Justiça do controle abstrato de constitucionalidade de leis municipais em face da Constituição da República, quando se tratar de normas de reprodução obrigatória pelos Estados-membros. 2. As normas constitucionais de reprodução obrigatória, por possuírem validade nacional, integram a ordem jurídica dos Estados- http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4276997 http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4115555 http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749756890 Controle difuso: o recurso extraordinário Controle de constitucionalidade da legislação local AULA 3 14 membros ainda quando omissas em suas Constituições estaduais, inexistindo qualquer discricionariedade em sua incorporação pelo ordenamento local. 3. A pluralidade política e a forma de estado federalista conduzem à pluralização dos intérpretes da Constituição, desconstituindo qualquer vertente monopolista desta atribuição. 4. A pluralidade dos intérpretes da Constituição no Poder Judiciário deve respeitar as normas constitucionais de competência, pelo que descabe aos Tribunais de Justiça o exercício irrestrito do exame de constitucionalidade de lei ou de ato normativo municipal em face da Constituição da República.” A peculiaridade desse julgamento foi estender o exercício do controle de constitucionalidade, pelos Tribunais de Justiça, tendo como parâmetro norma de reprodução obrigatória da Constituição Federal pelos Estados, mesmo quando a Constituição estadual, formalmente, não reproduz essa norma no seu texto. Entendeu- se que, se a norma é considerada de reprodução obrigatória pelos Estados federados, ela integra necessariamente a sua estrutura normativa, independentemente de ter sido incorporada textualmente à Constituição do Estado. 5. Recurso extraordinário contra decisão que julga válida lei local contestada em face de lei federal (artigo 102, III, “d”, da CF) A hipótese do artigo 102, III, “d”, da Constituição da República, segundo o qual compete ao STF julgar o recurso extraordinário interposto de decisão que “julgar válida lei local contestada em face de lei federal”, tem contornos distintos do que vimos até agora. Numa primeira leitura, esse dispositivo parece atribuir ao Supremo competência para exercer um suposto controle de legalidade da legislação local, com legislação federal como parâmetro. Como ficaria, diante disso, o que afirmamos mais cedo neste curso sobre a inexistência de hierarquia normativa entre leis municipais, estaduais e federais? O fato é que essa hipótese de cabimento de recurso extraordinário tutela não a lei federal, mas o sistema constitucional de distribuição de competências, cuja guarda compete ao STF. A lei local não será inválida por contrariar o conteúdo da lei federal, e sim por invadir a competência legislativa de outro ente federado, a União. O que está em jogo, nessa hipótese, é a observância pelos entes integrantes da federação dos limites da sua competência legislativa, tal como definidos na Constituição Federal. Controle difuso: o recurso extraordinário Controle de constitucionalidade da legislação local AULA 3 15 É por isso que o STF exige que o enquadramento do recurso extraordinário na hipótese de cabimento inscrita no art. 102, III, ‘d’ exige a demonstração, pelo recorrente, de que a Corte de origem, ao julgar válida lei local contestada em face de lei federal, ofendeu o sistema de repartição de competências legislativas estatuído na Constituição (AI 774.514 AgR, Relator o Ministro Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJe de 1º.10.2010). O ponto também é explicado pelo ministro Gilmar Mendes (2001, p. 248): Registre-se que a única hipótese de cabimento do recurso extraordinário em que a violação à Constituição não é explícita ocorre quando a decisão recorrida julga válida lei local contestada em face de lei federal. Entretanto, como é a Constituição Federal que disciplina a competência legislativa dos entes federativos, o cabimento do extraordinário se justifica pela não observância das regras constitucionais. Vale ressaltar, ainda, que a interposição de recursos extraordinários com base nessa previsão do artigo 102, III, “d”, da CF é bem menos frequente do que as demais hipóteses de cabimento. 6. Considerações finais Nossa terceira aula fica por aqui. Espero ter esclarecido os principais aspectos pertinentes ao exame de recursos extraordinários nos quais tenha sido suscitado questionamento sobre a constitucionalidade de leis e atos normativos estaduais, municipais e distritais. Na próxima aula, passando ao controle concentrado de constitucionalidade, estudaremos a ação direta de inconstitucionalidade ajuizada no STF para impugnar a constitucionalidade de legislação estadual. Até mais! http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=3793165 Controle difuso: o recurso extraordinário Controle de constitucionalidade da legislação local AULA 3 16 7. Para aprofundar Indico as seguintes obras a quem quiser se aprofundar sobre os temas tratados nesta aula: BRAGA, Paula Sarno. Norma de processo e norma de procedimento. Salvador: JusPodivm, 2015. BRASIL. Supremo Tribunal Federal.A Constituição e o Supremo. 6. ed. Brasília: STF, 2018. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013. MENDES, Gilmar. O controle de constitucionalidade do direito estadual e municipal na Constituição Federal de 1988. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Estudos em homenagem ao ministro Adhemar Ferreira Maciel. São Paulo: Saraiva, 2001. Controle difuso: o recurso extraordinário Controle de constitucionalidade da legislação local AULA 3 17 Glossário Incidental – em direito processual, ocorrência de caráter secundário que, embora não configure o objetivo do processo, precisa ser solucionada para que este seja alcançado. Recurso extraordinário – no direito brasileiro, é a modalidade de recurso que leva ao exame do Supremo Tribunal Federal qualquer caso do qual não caiba mais recurso para outro órgão do Poder Judiciário, desde que contenha questão constitucional relevante a ser resolvida.