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Anemia falciforme

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 Natalia Quintino Dias 
 
Anemia falciforme (AF) 
A anemia falciforme é uma doença genética e 
hereditária causada por anormalidade de 
hemoglobina dos glóbulos vermelhos. Eles perdem 
a forma de disco, ficando enrijecidos e 
deformados, tomando a forma de foice - daí vem o 
nome da doença. 
A AF é a doença hematológica hereditária mais 
comum no mundo, caracterizando-se pelo 
acometimento da cadeia beta da Hb, originando 
uma Hb anormal denominada S (HbS). 
Genética 
O padrão de herança é autossômico e 
codominante. Em consequência de uma mutação 
estrutural, haverá alteração qualitativa na Hb. A 
alteração molecular primária é representada pela 
substituição de 1 único aminoácido do gene da 
cadeia betaglobina, tendo como consequência a 
formação da HbS. Com a elevação desta, a HbS 
desoxigenada fica insolúvel e forma fibras 
polimerizadas, resultando em alteração da 
morfologia da hemácia – hemácia “em foice” –. 
Após a reoxigenação, o polímero se desfaz, e a 
célula volta ao normal. Porém, a polimerização e a 
despolimerização frequentes acabam provocando 
lesões progressivas na membrana, que 
inicialmente são reversíveis. Contudo, após vários 
processos de falcização, as hemácias tornam-se 
definitivamente lesadas. 
As células com formato alterado – de foice – são 
rígidas e, com menor capacidade de 
deformabilidade, passam a circular com mais 
dificuldade pelos pequenos capilares. Quando 
associadas a leucócitos em número aumentado e 
moléculas de adesão, são responsáveis pela 
lentificação do fluxo, oclusão vascular e lesão de 
tecidos, que representam os fenômenos principais 
dessa doença. A formação das células falcizadas 
também é responsável pela hemólise crônica, pois, 
pelas alterações estruturais severas, ocorre a 
retirada da circulação dessas células pelo sistema 
macrofágico, com subsequente destruição. 
A taxa de falcização é influenciada por vários 
fatores, o mais importante deles a concentração de 
HbS intraeritrocitária. Adesões frequentes de 
eritrócitos e leucócitos ao endotélio levam à 
disfunção endotelial, com aumento da geração de 
trombina e ativação plaquetária, fatores que 
também contribuem para os fenômenos vaso-
oclusivos. 
Todo ser humano possui duas cópias (alelos) do 
gene da β-globina. Somente aqueles que são 
homozigotos para o gene β S (isto é, os dois alelos 
são do tipo β S) desenvolvem a "doença" anemia 
falciforme. Indivíduos que herdam apenas uma 
cópia do β S em associação a outro alelo qualquer 
possuem o que se chama de "variante falcêmica". 
Existem diversas variantes falcêmicas possíveis, na 
dependência do segundo alelo presente. Essa 
codominância entre diferentes alelos do gene β faz 
surgirem fenótipos clínicos distintos, de gravidade 
e prognóstico variáveis. 
O gene da HbS pode combinar-se com outras 
anormalidades hereditárias das Hbs, como 
hemoglobina C (HbC), hemoglobina D (HbD), 
betatalassemia, entre outras, gerando 
combinações também sintomáticas. 
 
 
 
 
 
 
 Natalia Quintino Dias 
 
Quadro clínico 
Varia de paciente assintomático durante toda a 
vida a pacientes que necessitam de internação 
hospitalar frequente desde a infância. 
Em geral, quanto maior a quantidade de HbS, mais 
grave a doença. 
A doença inicia-se normalmente após o sexto mês 
de vida, quando os níveis de HbF caem e as 
hemácias perdem a proteção dessa Hb. Inicia-se 
quadro de anemia hemolítica crônica, com icterícia 
e esplenomegalia (nos primeiros anos de vida). 
A esplenomegalia pode persistir por toda a vida 
entre os pacientes com doenças mistas, porém, em 
indivíduos SS, a ocorrência frequente de infartos 
esplênicos por obstrução dos capilares leva à 
chamada autoesplenectomia – ou asplenia 
funcional –, em que o baço se transforma em órgão 
residual cicatricial, com pouca ou nenhuma função. 
Isso provoca a redução da capacidade de 
opsonização e o aumento da suscetibilidade a 
infecções por germes capsulados, como 
pneumococo – Streptococcus pneumoniae –, 
Haemophilus e Salmonella sp. 
- Retardos de crescimento e de desenvolvimento e 
atraso da puberdade são bastante observados 
entre os falciformes, mas a patogênese é pouco 
conhecida. 
- Nos 2 primeiros anos, um quadro clínico 
considerado característico é a chamada “síndrome 
mão-pé” ou dactilite, em que ocorrem edema, 
calor e rubor dos dedos das mãos e dos pés por 
infarto ósseo, com dor intensa, que deve ser 
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abordada de forma semelhante às das crises 
álgicas dos adultos. 
 
- Crise álgica ou vaso-oclusiva (manifestação mais 
característica): ocorre as micro-obstruções 
vasculares, principalmente no interior dos vasos 
sanguíneos ósseos, levando a quadros isquêmicos 
difusos, com intensa dor e, eventualmente, febre 
baixa. 
As crises álgicas costumam ser deflagradas por 
quadros infecciosos, desidratação, exercício 
excessivo, mudanças bruscas na temperatura, 
hipóxia, estresse emocional, menstruação e 
ingestão de bebida alcoólica, mas muitas vezes não 
se encontra o motivo. Diante de um paciente com 
crise dolorosa, contudo, é sempre obrigatória a 
investigação de foco infeccioso. 
Esses episódios podem durar de horas a semanas e 
afetam, teoricamente, qualquer região do corpo, 
todavia parecem predominar em ossos e 
articulações. A dor é muito intensa, geralmente 
incapacitante, algumas vezes necessitando de 
hospitalização para analgesia parenteral. 
Crises repetidas com necessidade de internação - 
mais de 3/ano – têm correlação com pior 
sobrevida, sugerindo que esses episódios sejam 
responsáveis por lesões crônicas em órgãos-alvo. 
- As úlceras perimaleolares ocorrem pelas micro-
obstruções vasculares e podem cronificar-se, pois, 
o déficit de perfusão local é mantido. Quase 
sempre se desenvolvem nos tornozelos, acima dos 
maléolos laterais e mediais; mais raramente, 
surgem na região pré-tibial e no dorso do pé. O 
início pode ser espontâneo ou subsequente a 
trauma, por vezes leve, como a picada de um 
inseto. 
 
A vaso-oclusão pode alcançar tecidos mais 
“nobres” e levar a acidentes vasculares cerebrais, 
infartos pulmonares e priapismo. O acidente 
vascular cerebral acomete mais as crianças e tende 
a ser recorrente, sendo necessárias medidas de 
profilaxia; não é comum em adultos. Infartos 
pulmonares subagudos e crônicos resultam em 
hipertensão pulmonar e cor pulmonale, sendo, 
muitas vezes, causas de óbito. 
- As complicações renais mais comuns são 
secundárias a microinfartos renais, com hematúria 
dolorosa por infarto papilar; proteinúria e 
hipertensão – que podem ser tratadas pelo uso de 
inibidores da enzima conversora de angiotensina; 
necrose papilar; isquemia parenquimatosa que 
culmina em glomeruloesclerose segmentar e focal, 
e insuficiência renal crônica; diabetes insipidus 
nefrogênico; e alto risco para carcinoma medular 
renal. Também pode acontecer a chamada 
retinopatia proliferativa, similar à do diabetes 
mellitus, podendo levar à cegueira, além de 
oclusão da artéria retiniana, descolamento de 
retina e hemorragia, como complicações 
retinianas. 
- Como complicação óssea, pode ocorrer a 
osteonecrose – necrose óssea isquêmica ou 
necrose asséptica – da cabeça do fêmur ou do 
úmero, além do favorecimento de osteomielite 
pela falha de perfusão óssea. Os agentes 
etiológicos mais frequentes da osteomielite na AF 
são Salmonella e Staphylococcus aureus. 
A hiperproliferação da medula óssea e os 
microinfartos ósseos podem levar a alterações 
crônicas, sendo a mais conhecida as vértebras “em 
boca de peixe”, em que elas apresentam aumento 
do espaço medular e adelgaçamento do córtex, 
com osteoporose. Também são citados o infarto da 
medula óssea – com reticulocitopenia e, ou 
pancitopenia – e a embolia gordurosa secundária 
ao infarto ósseo. 
 
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- As complicações cardíacas, típicas da doença 
falciforme, são usualmentederivadas da circulação 
hiperdinâmica. Raramente, porém, ocorre crise 
vaso-oclusiva coronariana, ocasionando isquemia 
miocárdica. Hipertensão pulmonar e insuficiência 
cardíaca congestiva são, ainda, eventos possíveis. 
- As complicações hepatobiliares são 
representadas pela formação de cálculos biliares. A 
hemólise crônica leva ao excesso de bilirrubina 
indireta, que tem como complicação comum 
colecistopatia calculosa por cálculos de 
bilirrubinato de cálcio. Alterações hepáticas 
podem, ainda, ser derivadas de vaso-oclusão 
naquele órgão, sobrecarga de ferro e infecções, 
sendo estas duas últimas, determinadas por 
politransfusões. 
Síndromes dolorosas agudas 
Síndrome torácica aguda 
Colecistite 
Síndrome mão-pé 
Crises álgicas 
Priapismo (ereção involuntária e persistente) 
Síndrome do quadrante superior direito 
Sequestro esplênico 
Síndromes dolorosas crônicas 
Artrite 
Artropatia 
Necrose asséptica avascular 
Úlcera nos membros 
Colapso do corpo vertebral 
Outras crises 
Crise hemolítica: Exacerbação da hemólise, com 
reticulocitose, diante de quadros infecciosos – em 
especial por Mycoplasma –, crises álgicas, 
medicamentos e, raramente, associação da AF à 
deficiência de G6PD ou à esferocitose hereditária. 
Crises hiperemolíticas: quadros hemolíticos graves 
e súbitos, deflagrados por transfusão de sangue ou 
anemia hemolítica autoimune. A Hb pós-
transfusão é inferior à Hb pré-transfusão. Mesmo 
que a bolsa de sangue transfundida tenha sido 
compatível com antígenos negativos, desencadeia-
se um processo de hemólise severa, intravascular, 
com hemoglobinúria, alteração da função renal, 
queda da Hb e reticulocitopenia (talvez por 
destruição também dos reticulócitos). Nessa 
situação, deve-se evitar transfusão, manter 
hidratação vigorosa e usar corticoide ou 
imunoglobulina. 
Crises aplásicas: Na AF, há redução importante na 
sobrevida dos eritrócitos – média de 17 dias –, e 
qualquer supressão temporária na eritropoese 
pode resultar em anemia grave. Na crise aplásica, 
ocorre diminuição intensa e transitória da 
proliferação medular, com consequente queda 
importante nos níveis de Hb. Geralmente, é 
precedida por episódios infecciosos, e 70% dos 
casos decorrem de infecção pelo parvovírus B19, 
sendo os demais por outros agentes infecciosos, 
como Salmonella, Streptococcus ou vírus Epstein-
Barr. A deficiência de folato também deve ser 
lembrada como possível fator causal, recebendo, 
então, a denominação de crise megaloblástica. Os 
pacientes podem apresentar fadiga, dispneia, 
febre, infecção respiratória alta e sintomas 
gastrintestinais. Há reticulocitopenia marcante (< 
1%). A maioria dos quadros regride de forma 
espontânea, porém a transfusão de glóbulos 
vermelhos deve ser considerada em pacientes 
sintomáticos. 
Síndrome torácica aguda (STA): caracteriza-se por 
febre, dor torácica, hipoxemia e opacidade 
radiológica pulmonar nova. Queda no valor da Hb 
e na contagem de plaquetas pode preceder a 
alteração radiológica. É a 2ª causa mais frequente 
de hospitalização e principal complicação em 
anestesias e cirurgias. A etiologia é multifatorial e 
pode incluir infecção, embolia gordurosa, hiper-
hidratação, hipoxemia, microatelectasias. Em 
crianças, a manifestação clínica é mais branda, e 
geralmente o fator desencadeante é uma infecção; 
em adultos jovens, predominam eventos 
trombóticos pulmonares que resultam em 
hipoxemia. As anormalidades radiográficas podem 
acentuar-se, como infiltrado localizado, lobar ou 
difuso, unilateral ou bilateral e, ou derrame pleural. 
A tomografia computadorizada de alta resolução 
tem sido sugerida como bom método para 
detecção de microêmbolos. O tratamento consiste 
em manter o paciente euvolêmico, oxigenoterapia 
sempre que paO2 = 70 a 80 mmHg ou SatO2 < 92%, 
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controle da dor, terapêutica transfusional para 
deixar a HbS menor que 30%, fisioterapia 
respiratória para evitar atelectasia, e 
antibioticoterapia empírica – macrolídeos e, ou 
quinolonas – para cobertura de Streptococcus 
pneumoniae, Mycoplasma pneumoniae e 
Chlamydophila pneumoniae. 
Para a prevenção da STA, pacientes com AF devem 
receber vacinas antipneumocócica e anti-
influenza. 
- Crises de sequestração ou sequestro esplênico: 
No sequestro esplênico, há retenção de eritrócitos 
no baço levando à hipovolemia. No exame 
laboratorial, podem-se ter níveis de Hb de 2-3 g/dL, 
reticulocitose intensa e, geralmente, diminuição de 
leucócitos e, ou plaquetas e esplenomegalia. Há 
associação ao parvovírus B19. Observam-se 
sintomas de hipovolemia, como taquicardia, 
palidez, taquipneia ou até hipotensão e choque; 
percebe-se, também, aumento do volume 
abdominal com esplenomegalia e dor no 
hipocôndrio esquerdo. O não atendimento 
imediato e eficaz pode, muitas vezes, levar a óbito 
em poucas horas. 
É mais frequente dos 3 meses aos 5 anos de idade. 
O tratamento inicial consiste na correção da 
hipovolemia, com reposição de cristaloides e 
transfusão de glóbulos vermelhos (realizada com 
cuidado). 
- Priapismo: ereção involuntária com duração > 4h, 
sustentada e dolorosa, em virtude da vaso-oclusão 
que obstrui a drenagem venosa do pênis. 
A média de idade é de 12 anos. Quando reconhecer 
o quadro iniciar ingesta hídrica vigorosa e analgesia 
via oral, urinar com frequência – a bexiga cheia 
pode ser um fator desencadeante – e procurar 
atendimento médico de urgência (pois pode causar 
disfunção erétil). Outros fatores desencadeantes 
são infecção, desidratação, ingestão de drogas – 
álcool, cocaína, maconha, psicotrópicos – e 
traumatismo. 
Tratamento: analgesia vigorosa + hidratação 
parenteral. A não regressão imediata indica 
aspiração do corpo cavernoso e irrigação com 
solução salina, com ou sem alfa-adrenérgico – 
adrenalina, fenilefrina –, a fim de prevenir a 
disfunção erétil. Para os casos que não respondem 
à irrigação, a cirurgia para colocação de shunt entre 
os corpos cavernoso e esponjoso deve ser 
considerada. 
- Avaliação do paciente com crise álgica no pronto-
socorro: sempre está indicado fazer uma avaliação 
clínica minuciosa, hidratação e analgesia, e, 
dependendo da avaliação clínica e laboratorial, 
indica-se transfusão sanguínea, antibioticoterapia 
e oxigenoterapia. 
Toda criança com doença falciforme que apresenta 
febre acima de 38,5 °C deve ser tratada, tendo em 
vista a possibilidade de septicemia. Recomendam-
se a internação e hemoculturas e culturas de 
nasofaringe – procurando colonização por S. 
pneumoniae e possivelmente identificando cepas 
resistentes –. Imediatamente, deve ser iniciada 
antibioticoterapia empírica utilizando-se, por 
exemplo, de ampicilina ou amoxicilina, pode-se 
utilizar ceftriaxona, e quando necessário, 
vancomicina. 
A criança deve receber a vacina contra 
Haemophilus e contra o vírus da Hepatite B (risco 
elevado dessa infecção devido às frequentes 
hemotransfusões). 
O uso de penicilina oral 125 mg, 2x/d, até os 3 anos, 
e 250 mg, 2x/d, para maiores de 3 anos, de forma 
profilática, visa, principalmente, evitar os casos de 
sepse por pneumococo. 
Diagnóstico 
Quadro clínico + exame físico + exames 
complementares 
Exames laboratoriais 
Os sinais de anemia hemolítica crônica são 
evidentes, com níveis de Hb em torno de 7, 
podendo ser mais baixos, principalmente nas 
exacerbações hemolíticas e na associação ao gene 
talassêmico, e reticulócitos entre 3 e 15%. 
As alterações morfológicas do sangue periférico 
são características, com a presença de hemácias 
“em foice”, reticulocitose, eritroblastos circulantes 
e, quando ocorrer autoesplenectomia, presença de 
corpúsculos de Howell-Jolly. As hemácias são 
normocíticas e normocrômicas, exceto quando há 
alfa ou betatalassemia associada, em que são 
encontradas microcitose e hipocromia. 
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Os leucócitos geralmente estão elevados(12mil-
15mil). Pode ocorrer trombocitose – nos 
asplênicos -. 
As bilirrubinas estão elevadas, com evidente 
predomínio da indireta, e pode haver elevações 
crônicas e não severas das enzimas 
hepatocelulares. Elevações da fosfatase alcalina, 
da gamaglutamiltranspeptidase (gama-GT) e da 
bilirrubina direta podem ser evidências de 
colestase por cálculos de bilirrubinato de cálcio. 
A confirmação diagnóstica é feita pela eletroforese 
de Hb, também chamada de cromatografia líquida 
de alta eficiência. Nesse exame, a Hb fetal está em 
torno de 5 a 15%, e níveis de HbS entre 85 e 98% 
nos indivíduos SS. A associação de outras 
hemoglobinopatias pode reduzir os níveis de HbS, 
porém a HbA estará ausente – exceto na S-
alfatalassemia, em que a HbA pode chegar a 70 ou 
75%, porém sem oferecer proteção alguma contra 
a falcização –. 
Exames, como o teste de solubilidade da Hb e o 
teste de falcização, são excelentes provas para 
triagem, porém estão positivos nos heterozigotos 
– traço falciforme –, que são assintomáticos, não 
sendo importantes para o diagnóstico. 
Para o seguimento clínico dos pacientes com AF, 
devem ser realizados exames periódicos em que se 
avaliem não só a Hb, mas também o índice de 
hemólise – DHL, BTF Bilirrubina Total e Frações 
(BTF) –, a resposta medular – reticulócitos – e, 
anualmente, verifiquem-se os efeitos sobre órgãos 
e sistemas – avaliações cardiológica, oftalmológica, 
neurológica, entre outras –. 
Tratamento 
O tratamento da AF é apenas de suporte, e o 
paciente deve fazer acompanhamento periódico 
com o especialista para profilaxia e diagnóstico de 
complicações. Além disso, os pacientes são 
mantidos constantemente em uso de ácido fólico 
para evitar a falência medular por esgotamento 
dos estoques da substância. 
Exames recomendados periodicamente, além dos 
de sangue, são: 
• Ultrassonografia de abdome, com o objetivo de 
encontrar cálculo biliar, para proceder à 
colecistectomia eletiva; 
• Ultrassonografia com Doppler transcraniano a 
partir dos 2 até os 16 anos, para detecção do risco 
de acidente vascular cerebral e inclusão no 
programa de transfusão crônica para profilaxia 
primária, quando necessário - o fluxo aumentado 
na artéria cerebral média ou na carótida interna – 
acima de 170 a 200 ms – é interpretado como alto 
risco de evento isquêmico; 
• Exame oftalmológico; 
• Ecocardiograma após os 15 anos, para avaliação 
da pressão da artéria pulmonar e função cardíaca; 
• Densitometria óssea e monitorização do nível 
sérico de cálcio e vitamina D após os 12 anos; 
• Demais exames, conforme os sintomas. 
As transfusões de concentrados de hemácias 
podem ser terapêuticas ou profiláticas. 
As transfusões terapêuticas devem ser utilizadas 
apenas quando a sintomatologia do quadro 
anêmico é severa, em crises aplásicas ou de 
sequestração, fase aguda do acidente vascular 
cerebral, STA e falência aguda de múltiplos órgãos. 
Não são indicações de transfusão: anemia crônica, 
crise dolorosa e infecções leves ou moderadas. 
Complicação de múltiplas transfusões: sobrecarga 
de ferro. Deve-se quantificar a ferritina a cada 3 a 
4 meses e iniciar tratamento de quelação do ferro 
com desferroxamina ou deferasirox com níveis de 
ferritina acima de 1.000 ng/mL, principalmente 
naqueles submetidos a esquema crônico de 
transfusão – profilaxia de acidente vascular 
cerebral –. Outras complicações das múltiplas 
transfusões são a aloimunização e a transmissão de 
infecção. 
A hidroxiureia eleva a síntese de HbF, diminui o 
número de granulócitos e reticulócitos, aumenta o 
nível de óxido nítrico e diminui a aderência da 
hemácia à parede vascular. Deve ser indicada em: 
• pacientes com mais de três crises/ ano, com 
necessidade de internação; 
• antecedente de STA; 
• anemia sintomática frequente; 
• e história de outros eventos vaso-oclusivos 
severos como acidente vascular encefálico e 
priapismo recorrente. 
O transplante de células-tronco hematopoéticas é 
considerado uma alternativa nos casos mais 
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graves, refratários aos tratamentos tradicionais, já 
autorizado pelo Sistema Único de Saúde para essa 
patologia. 
• Vacinação contra pneumococo, Haemophilus B, 
hepatite B e influenza; 
• Profilaxia infecciosa com penicilina oral até os 5 
anos; 
• Ácido fólico; 
Prognóstico e sobrevida 
A sobrevida global do paciente com AF é reduzida, 
mas tem melhorado com acompanhamento 
médico e diagnóstico precoce das complicações. 
O teste do pezinho é um exame de triagem, 
realizado na primeira semana de vida – 3º ao 7º dia 
–, para rastreamento de algumas doenças 
congênitas, entre elas as hemoglobinopatias. Se 
alterado, devem ser realizados exames 
confirmatórios – eletroforese de Hb, no caso da AF 
–. 
As principais causas de óbito, em ordem 
decrescente de frequência, são: infecção, 
principalmente na infância, com STA e falência de 
múltiplos órgãos; acidente vascular cerebral; 
sequestro esplênico; tromboembolismo; 
insuficiência renal; hipertensão pulmonar. 
Alguns fatores estão associados à alta morbidade e 
menor sobrevida, como dactilite antes de 
completar 1 ano de vida, leucocitose na ausência 
de infecção e Hb menor que 7 g/dL. 
Situações especiais 
Acidente Vascular Cerebral Isquêmico (AVCI) 
A tomografia computadorizada de crânio sem 
contraste deve ser realizada para descartar 
quadros hemorrágicos ou não isquêmicos nos 
pacientes sintomáticos. 
A ressonância é o melhor exame para a avaliação 
das lesões isquêmicas, que são mais comuns entre 
crianças de 2 a 9 anos; os quadros hemorrágicos 
são mais frequentes em indivíduos entre 20 e 29 
anos. Isso porque, com os microinfartos de 
repetição na infância, há a formação de pequenos 
aneurismas de circulação colateral peri-infarto – 
aneurismas de moyamoya –, os quais, na vida 
adulta, podem se romper, levando ao AVC 
hemorrágico. Na criança, o tratamento na fase 
aguda consiste em hidratação e transfusão, além 
de antiagregação. Na prevenção secundária, 
utiliza-se o programa de transfusão crônica em 
razão do alto risco de recidiva. O adulto deve ser 
avaliado para receber ativador tissular do 
plasminogênio recombinante (rt-PA) na fase aguda 
do AVCI; se não for possível, pode ser utilizado 
ácido acetilsalicílico – 325 mg –. 
A transfusão de sangue visa reduzir a concentração 
de HbS para menos de 30%, com benefício no 
programa de profilaxia do AVC. A transfusão 
crônica pode ser feita por transfusão simples ou 
eritrocitaférese – procedimento que consiste na 
troca automatizada do volume hemático, 
suficiente para deixar a HbS no valor desejado –. 
Falência de múltiplos órgãos 
A falência de múltiplos órgãos aguda é vista, com 
mais frequência, durante crises álgicas graves nos 
pacientes HbSS. A fisiopatologia não é 
completamente entendida, mas sabe-se que 
suporte transfusional com eritrocitaférese pode 
reverter o quadro. 
Anestesia e cirurgia 
O risco de morbimortalidade é maior do que o da 
população em geral, por presença de anemia, 
propensão à falcização na microcirculação, lesões 
de órgãos-alvo, risco de hipóxia e efeitos da 
asplenia – risco aumentado de infecção. 
Orientações no pré-operatório: 
• Correção da anemia – manter Hb entre 8 e 10/dL; 
• Se possível, transfusão de concentrado de 
hemácias fenotipadas para evitar a aloimunização; 
• Manutenção de oxigenação e hidratação; 
• Seleção de procedimentos menos invasivos e 
extensos; 
• Fisioterapia respiratória no pós-operatório. 
Gravidez 
A gravidez em mulheres com AF traz uma série de 
riscos, tanto para a mãe quanto para o bebê. Esses 
riscos não são impeditivos de gravidez desejada, 
salvo em situações especiais. A incidência de 
aborto espontâneo é elevada. 
É necessário pesquisar a presença de aloanticorpos 
durante o pré-natal, independentemente da 
história transfusional. O acompanhamento da 
paciente aloimunizadadeve ser meticuloso, e a 
amniocentese para pesquisar o desenvolvimento 
fetal e a concentração de bilirrubina é 
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recomendada, para investigação de doença 
hemolítica do recém-nascido. Também é sugerida 
a administração de imunoglobulina anti-Rh, em 
casos selecionados. 
O retardo do crescimento intrauterino é frequente, 
assim como a prematuridade. Toxemia gravídica, 
STA, infecções do trato urinário e tromboflebite 
também são complicações comuns. 
As perdas sanguíneas devem ser repostas de 
acordo com a rotina obstétrica habitual, com 
oxigênio e hidratação de manutenção. 
No período pós-parto, deve-se manter hidratação 
adequada, e é possível diminuir o risco de 
tromboembolismo com uso de meias elásticas e 
deambulação precoce. A prevenção de atelectasia 
é importante e, em caso de febre, deve-se 
diagnosticar a causa e tratá-la agressivamente. O 
recém-nascido deve ser submetido a testes para 
identificação de hemoglobinopatia, assim como de 
outras desordens genéticas. 
É sempre importante que seja realizado o 
aconselhamento genético para mulheres que 
pretendem engravidar. 
Traço falciforme 
Os pacientes com genótipo heterozigoto 
apresentam uma condição hereditária benigna, 
não uma doença: não apresentam manifestação 
hematológica – valores de Hb, Volume Corpuscular 
Médio (VCM) –, Hemoglobina Corpuscular Média 
(HCM) e reticulócitos normais –, crises vaso-
oclusivas, riscos gestacional, cirúrgico ou 
anestésico adicionais em relação à população 
normal e têm expectativa de vida normal. Apesar 
de ser condição benigna, algumas complicações 
raras podem acontecer. Algumas complicações 
raras são: 
• Renais: a medula renal pode sofrer infartos 
microscópicos, o que leva à incapacidade de 
concentrar a urina – hipostenúria –; em infartos da 
papila renal, episódios de hematúria macroscópica; 
risco aumentado de carcinoma medular renal; 
• Trombose: há risco de infarto esplênico em 
grandes altitudes; 
• Pacientes com traço falciforme submetidos a 
exercícios extenuantes e prolongados – militares: 
há risco 30 vezes maior de morte súbita, 
provavelmente em razão de rabdomiólise, infarto 
do miocárdio e arritmia. 
Pela benignidade do quadro, não se indicam 
rotineiramente os mesmos cuidados de vacinação 
ou reposição prolongada de ácido fólico aplicados 
a indivíduos com AF. 
É importante o aconselhamento genético, 
informando que se ambos os pais tiverem traço 
falciforme, haverá 25% de chance de seus filhos 
apresentarem a AF propriamente dita.

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