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Natalia Quintino Dias Anemia falciforme (AF) A anemia falciforme é uma doença genética e hereditária causada por anormalidade de hemoglobina dos glóbulos vermelhos. Eles perdem a forma de disco, ficando enrijecidos e deformados, tomando a forma de foice - daí vem o nome da doença. A AF é a doença hematológica hereditária mais comum no mundo, caracterizando-se pelo acometimento da cadeia beta da Hb, originando uma Hb anormal denominada S (HbS). Genética O padrão de herança é autossômico e codominante. Em consequência de uma mutação estrutural, haverá alteração qualitativa na Hb. A alteração molecular primária é representada pela substituição de 1 único aminoácido do gene da cadeia betaglobina, tendo como consequência a formação da HbS. Com a elevação desta, a HbS desoxigenada fica insolúvel e forma fibras polimerizadas, resultando em alteração da morfologia da hemácia – hemácia “em foice” –. Após a reoxigenação, o polímero se desfaz, e a célula volta ao normal. Porém, a polimerização e a despolimerização frequentes acabam provocando lesões progressivas na membrana, que inicialmente são reversíveis. Contudo, após vários processos de falcização, as hemácias tornam-se definitivamente lesadas. As células com formato alterado – de foice – são rígidas e, com menor capacidade de deformabilidade, passam a circular com mais dificuldade pelos pequenos capilares. Quando associadas a leucócitos em número aumentado e moléculas de adesão, são responsáveis pela lentificação do fluxo, oclusão vascular e lesão de tecidos, que representam os fenômenos principais dessa doença. A formação das células falcizadas também é responsável pela hemólise crônica, pois, pelas alterações estruturais severas, ocorre a retirada da circulação dessas células pelo sistema macrofágico, com subsequente destruição. A taxa de falcização é influenciada por vários fatores, o mais importante deles a concentração de HbS intraeritrocitária. Adesões frequentes de eritrócitos e leucócitos ao endotélio levam à disfunção endotelial, com aumento da geração de trombina e ativação plaquetária, fatores que também contribuem para os fenômenos vaso- oclusivos. Todo ser humano possui duas cópias (alelos) do gene da β-globina. Somente aqueles que são homozigotos para o gene β S (isto é, os dois alelos são do tipo β S) desenvolvem a "doença" anemia falciforme. Indivíduos que herdam apenas uma cópia do β S em associação a outro alelo qualquer possuem o que se chama de "variante falcêmica". Existem diversas variantes falcêmicas possíveis, na dependência do segundo alelo presente. Essa codominância entre diferentes alelos do gene β faz surgirem fenótipos clínicos distintos, de gravidade e prognóstico variáveis. O gene da HbS pode combinar-se com outras anormalidades hereditárias das Hbs, como hemoglobina C (HbC), hemoglobina D (HbD), betatalassemia, entre outras, gerando combinações também sintomáticas. Natalia Quintino Dias Quadro clínico Varia de paciente assintomático durante toda a vida a pacientes que necessitam de internação hospitalar frequente desde a infância. Em geral, quanto maior a quantidade de HbS, mais grave a doença. A doença inicia-se normalmente após o sexto mês de vida, quando os níveis de HbF caem e as hemácias perdem a proteção dessa Hb. Inicia-se quadro de anemia hemolítica crônica, com icterícia e esplenomegalia (nos primeiros anos de vida). A esplenomegalia pode persistir por toda a vida entre os pacientes com doenças mistas, porém, em indivíduos SS, a ocorrência frequente de infartos esplênicos por obstrução dos capilares leva à chamada autoesplenectomia – ou asplenia funcional –, em que o baço se transforma em órgão residual cicatricial, com pouca ou nenhuma função. Isso provoca a redução da capacidade de opsonização e o aumento da suscetibilidade a infecções por germes capsulados, como pneumococo – Streptococcus pneumoniae –, Haemophilus e Salmonella sp. - Retardos de crescimento e de desenvolvimento e atraso da puberdade são bastante observados entre os falciformes, mas a patogênese é pouco conhecida. - Nos 2 primeiros anos, um quadro clínico considerado característico é a chamada “síndrome mão-pé” ou dactilite, em que ocorrem edema, calor e rubor dos dedos das mãos e dos pés por infarto ósseo, com dor intensa, que deve ser Natalia Quintino Dias abordada de forma semelhante às das crises álgicas dos adultos. - Crise álgica ou vaso-oclusiva (manifestação mais característica): ocorre as micro-obstruções vasculares, principalmente no interior dos vasos sanguíneos ósseos, levando a quadros isquêmicos difusos, com intensa dor e, eventualmente, febre baixa. As crises álgicas costumam ser deflagradas por quadros infecciosos, desidratação, exercício excessivo, mudanças bruscas na temperatura, hipóxia, estresse emocional, menstruação e ingestão de bebida alcoólica, mas muitas vezes não se encontra o motivo. Diante de um paciente com crise dolorosa, contudo, é sempre obrigatória a investigação de foco infeccioso. Esses episódios podem durar de horas a semanas e afetam, teoricamente, qualquer região do corpo, todavia parecem predominar em ossos e articulações. A dor é muito intensa, geralmente incapacitante, algumas vezes necessitando de hospitalização para analgesia parenteral. Crises repetidas com necessidade de internação - mais de 3/ano – têm correlação com pior sobrevida, sugerindo que esses episódios sejam responsáveis por lesões crônicas em órgãos-alvo. - As úlceras perimaleolares ocorrem pelas micro- obstruções vasculares e podem cronificar-se, pois, o déficit de perfusão local é mantido. Quase sempre se desenvolvem nos tornozelos, acima dos maléolos laterais e mediais; mais raramente, surgem na região pré-tibial e no dorso do pé. O início pode ser espontâneo ou subsequente a trauma, por vezes leve, como a picada de um inseto. A vaso-oclusão pode alcançar tecidos mais “nobres” e levar a acidentes vasculares cerebrais, infartos pulmonares e priapismo. O acidente vascular cerebral acomete mais as crianças e tende a ser recorrente, sendo necessárias medidas de profilaxia; não é comum em adultos. Infartos pulmonares subagudos e crônicos resultam em hipertensão pulmonar e cor pulmonale, sendo, muitas vezes, causas de óbito. - As complicações renais mais comuns são secundárias a microinfartos renais, com hematúria dolorosa por infarto papilar; proteinúria e hipertensão – que podem ser tratadas pelo uso de inibidores da enzima conversora de angiotensina; necrose papilar; isquemia parenquimatosa que culmina em glomeruloesclerose segmentar e focal, e insuficiência renal crônica; diabetes insipidus nefrogênico; e alto risco para carcinoma medular renal. Também pode acontecer a chamada retinopatia proliferativa, similar à do diabetes mellitus, podendo levar à cegueira, além de oclusão da artéria retiniana, descolamento de retina e hemorragia, como complicações retinianas. - Como complicação óssea, pode ocorrer a osteonecrose – necrose óssea isquêmica ou necrose asséptica – da cabeça do fêmur ou do úmero, além do favorecimento de osteomielite pela falha de perfusão óssea. Os agentes etiológicos mais frequentes da osteomielite na AF são Salmonella e Staphylococcus aureus. A hiperproliferação da medula óssea e os microinfartos ósseos podem levar a alterações crônicas, sendo a mais conhecida as vértebras “em boca de peixe”, em que elas apresentam aumento do espaço medular e adelgaçamento do córtex, com osteoporose. Também são citados o infarto da medula óssea – com reticulocitopenia e, ou pancitopenia – e a embolia gordurosa secundária ao infarto ósseo. Natalia Quintino Dias - As complicações cardíacas, típicas da doença falciforme, são usualmentederivadas da circulação hiperdinâmica. Raramente, porém, ocorre crise vaso-oclusiva coronariana, ocasionando isquemia miocárdica. Hipertensão pulmonar e insuficiência cardíaca congestiva são, ainda, eventos possíveis. - As complicações hepatobiliares são representadas pela formação de cálculos biliares. A hemólise crônica leva ao excesso de bilirrubina indireta, que tem como complicação comum colecistopatia calculosa por cálculos de bilirrubinato de cálcio. Alterações hepáticas podem, ainda, ser derivadas de vaso-oclusão naquele órgão, sobrecarga de ferro e infecções, sendo estas duas últimas, determinadas por politransfusões. Síndromes dolorosas agudas Síndrome torácica aguda Colecistite Síndrome mão-pé Crises álgicas Priapismo (ereção involuntária e persistente) Síndrome do quadrante superior direito Sequestro esplênico Síndromes dolorosas crônicas Artrite Artropatia Necrose asséptica avascular Úlcera nos membros Colapso do corpo vertebral Outras crises Crise hemolítica: Exacerbação da hemólise, com reticulocitose, diante de quadros infecciosos – em especial por Mycoplasma –, crises álgicas, medicamentos e, raramente, associação da AF à deficiência de G6PD ou à esferocitose hereditária. Crises hiperemolíticas: quadros hemolíticos graves e súbitos, deflagrados por transfusão de sangue ou anemia hemolítica autoimune. A Hb pós- transfusão é inferior à Hb pré-transfusão. Mesmo que a bolsa de sangue transfundida tenha sido compatível com antígenos negativos, desencadeia- se um processo de hemólise severa, intravascular, com hemoglobinúria, alteração da função renal, queda da Hb e reticulocitopenia (talvez por destruição também dos reticulócitos). Nessa situação, deve-se evitar transfusão, manter hidratação vigorosa e usar corticoide ou imunoglobulina. Crises aplásicas: Na AF, há redução importante na sobrevida dos eritrócitos – média de 17 dias –, e qualquer supressão temporária na eritropoese pode resultar em anemia grave. Na crise aplásica, ocorre diminuição intensa e transitória da proliferação medular, com consequente queda importante nos níveis de Hb. Geralmente, é precedida por episódios infecciosos, e 70% dos casos decorrem de infecção pelo parvovírus B19, sendo os demais por outros agentes infecciosos, como Salmonella, Streptococcus ou vírus Epstein- Barr. A deficiência de folato também deve ser lembrada como possível fator causal, recebendo, então, a denominação de crise megaloblástica. Os pacientes podem apresentar fadiga, dispneia, febre, infecção respiratória alta e sintomas gastrintestinais. Há reticulocitopenia marcante (< 1%). A maioria dos quadros regride de forma espontânea, porém a transfusão de glóbulos vermelhos deve ser considerada em pacientes sintomáticos. Síndrome torácica aguda (STA): caracteriza-se por febre, dor torácica, hipoxemia e opacidade radiológica pulmonar nova. Queda no valor da Hb e na contagem de plaquetas pode preceder a alteração radiológica. É a 2ª causa mais frequente de hospitalização e principal complicação em anestesias e cirurgias. A etiologia é multifatorial e pode incluir infecção, embolia gordurosa, hiper- hidratação, hipoxemia, microatelectasias. Em crianças, a manifestação clínica é mais branda, e geralmente o fator desencadeante é uma infecção; em adultos jovens, predominam eventos trombóticos pulmonares que resultam em hipoxemia. As anormalidades radiográficas podem acentuar-se, como infiltrado localizado, lobar ou difuso, unilateral ou bilateral e, ou derrame pleural. A tomografia computadorizada de alta resolução tem sido sugerida como bom método para detecção de microêmbolos. O tratamento consiste em manter o paciente euvolêmico, oxigenoterapia sempre que paO2 = 70 a 80 mmHg ou SatO2 < 92%, Natalia Quintino Dias controle da dor, terapêutica transfusional para deixar a HbS menor que 30%, fisioterapia respiratória para evitar atelectasia, e antibioticoterapia empírica – macrolídeos e, ou quinolonas – para cobertura de Streptococcus pneumoniae, Mycoplasma pneumoniae e Chlamydophila pneumoniae. Para a prevenção da STA, pacientes com AF devem receber vacinas antipneumocócica e anti- influenza. - Crises de sequestração ou sequestro esplênico: No sequestro esplênico, há retenção de eritrócitos no baço levando à hipovolemia. No exame laboratorial, podem-se ter níveis de Hb de 2-3 g/dL, reticulocitose intensa e, geralmente, diminuição de leucócitos e, ou plaquetas e esplenomegalia. Há associação ao parvovírus B19. Observam-se sintomas de hipovolemia, como taquicardia, palidez, taquipneia ou até hipotensão e choque; percebe-se, também, aumento do volume abdominal com esplenomegalia e dor no hipocôndrio esquerdo. O não atendimento imediato e eficaz pode, muitas vezes, levar a óbito em poucas horas. É mais frequente dos 3 meses aos 5 anos de idade. O tratamento inicial consiste na correção da hipovolemia, com reposição de cristaloides e transfusão de glóbulos vermelhos (realizada com cuidado). - Priapismo: ereção involuntária com duração > 4h, sustentada e dolorosa, em virtude da vaso-oclusão que obstrui a drenagem venosa do pênis. A média de idade é de 12 anos. Quando reconhecer o quadro iniciar ingesta hídrica vigorosa e analgesia via oral, urinar com frequência – a bexiga cheia pode ser um fator desencadeante – e procurar atendimento médico de urgência (pois pode causar disfunção erétil). Outros fatores desencadeantes são infecção, desidratação, ingestão de drogas – álcool, cocaína, maconha, psicotrópicos – e traumatismo. Tratamento: analgesia vigorosa + hidratação parenteral. A não regressão imediata indica aspiração do corpo cavernoso e irrigação com solução salina, com ou sem alfa-adrenérgico – adrenalina, fenilefrina –, a fim de prevenir a disfunção erétil. Para os casos que não respondem à irrigação, a cirurgia para colocação de shunt entre os corpos cavernoso e esponjoso deve ser considerada. - Avaliação do paciente com crise álgica no pronto- socorro: sempre está indicado fazer uma avaliação clínica minuciosa, hidratação e analgesia, e, dependendo da avaliação clínica e laboratorial, indica-se transfusão sanguínea, antibioticoterapia e oxigenoterapia. Toda criança com doença falciforme que apresenta febre acima de 38,5 °C deve ser tratada, tendo em vista a possibilidade de septicemia. Recomendam- se a internação e hemoculturas e culturas de nasofaringe – procurando colonização por S. pneumoniae e possivelmente identificando cepas resistentes –. Imediatamente, deve ser iniciada antibioticoterapia empírica utilizando-se, por exemplo, de ampicilina ou amoxicilina, pode-se utilizar ceftriaxona, e quando necessário, vancomicina. A criança deve receber a vacina contra Haemophilus e contra o vírus da Hepatite B (risco elevado dessa infecção devido às frequentes hemotransfusões). O uso de penicilina oral 125 mg, 2x/d, até os 3 anos, e 250 mg, 2x/d, para maiores de 3 anos, de forma profilática, visa, principalmente, evitar os casos de sepse por pneumococo. Diagnóstico Quadro clínico + exame físico + exames complementares Exames laboratoriais Os sinais de anemia hemolítica crônica são evidentes, com níveis de Hb em torno de 7, podendo ser mais baixos, principalmente nas exacerbações hemolíticas e na associação ao gene talassêmico, e reticulócitos entre 3 e 15%. As alterações morfológicas do sangue periférico são características, com a presença de hemácias “em foice”, reticulocitose, eritroblastos circulantes e, quando ocorrer autoesplenectomia, presença de corpúsculos de Howell-Jolly. As hemácias são normocíticas e normocrômicas, exceto quando há alfa ou betatalassemia associada, em que são encontradas microcitose e hipocromia. Natalia Quintino Dias Os leucócitos geralmente estão elevados(12mil- 15mil). Pode ocorrer trombocitose – nos asplênicos -. As bilirrubinas estão elevadas, com evidente predomínio da indireta, e pode haver elevações crônicas e não severas das enzimas hepatocelulares. Elevações da fosfatase alcalina, da gamaglutamiltranspeptidase (gama-GT) e da bilirrubina direta podem ser evidências de colestase por cálculos de bilirrubinato de cálcio. A confirmação diagnóstica é feita pela eletroforese de Hb, também chamada de cromatografia líquida de alta eficiência. Nesse exame, a Hb fetal está em torno de 5 a 15%, e níveis de HbS entre 85 e 98% nos indivíduos SS. A associação de outras hemoglobinopatias pode reduzir os níveis de HbS, porém a HbA estará ausente – exceto na S- alfatalassemia, em que a HbA pode chegar a 70 ou 75%, porém sem oferecer proteção alguma contra a falcização –. Exames, como o teste de solubilidade da Hb e o teste de falcização, são excelentes provas para triagem, porém estão positivos nos heterozigotos – traço falciforme –, que são assintomáticos, não sendo importantes para o diagnóstico. Para o seguimento clínico dos pacientes com AF, devem ser realizados exames periódicos em que se avaliem não só a Hb, mas também o índice de hemólise – DHL, BTF Bilirrubina Total e Frações (BTF) –, a resposta medular – reticulócitos – e, anualmente, verifiquem-se os efeitos sobre órgãos e sistemas – avaliações cardiológica, oftalmológica, neurológica, entre outras –. Tratamento O tratamento da AF é apenas de suporte, e o paciente deve fazer acompanhamento periódico com o especialista para profilaxia e diagnóstico de complicações. Além disso, os pacientes são mantidos constantemente em uso de ácido fólico para evitar a falência medular por esgotamento dos estoques da substância. Exames recomendados periodicamente, além dos de sangue, são: • Ultrassonografia de abdome, com o objetivo de encontrar cálculo biliar, para proceder à colecistectomia eletiva; • Ultrassonografia com Doppler transcraniano a partir dos 2 até os 16 anos, para detecção do risco de acidente vascular cerebral e inclusão no programa de transfusão crônica para profilaxia primária, quando necessário - o fluxo aumentado na artéria cerebral média ou na carótida interna – acima de 170 a 200 ms – é interpretado como alto risco de evento isquêmico; • Exame oftalmológico; • Ecocardiograma após os 15 anos, para avaliação da pressão da artéria pulmonar e função cardíaca; • Densitometria óssea e monitorização do nível sérico de cálcio e vitamina D após os 12 anos; • Demais exames, conforme os sintomas. As transfusões de concentrados de hemácias podem ser terapêuticas ou profiláticas. As transfusões terapêuticas devem ser utilizadas apenas quando a sintomatologia do quadro anêmico é severa, em crises aplásicas ou de sequestração, fase aguda do acidente vascular cerebral, STA e falência aguda de múltiplos órgãos. Não são indicações de transfusão: anemia crônica, crise dolorosa e infecções leves ou moderadas. Complicação de múltiplas transfusões: sobrecarga de ferro. Deve-se quantificar a ferritina a cada 3 a 4 meses e iniciar tratamento de quelação do ferro com desferroxamina ou deferasirox com níveis de ferritina acima de 1.000 ng/mL, principalmente naqueles submetidos a esquema crônico de transfusão – profilaxia de acidente vascular cerebral –. Outras complicações das múltiplas transfusões são a aloimunização e a transmissão de infecção. A hidroxiureia eleva a síntese de HbF, diminui o número de granulócitos e reticulócitos, aumenta o nível de óxido nítrico e diminui a aderência da hemácia à parede vascular. Deve ser indicada em: • pacientes com mais de três crises/ ano, com necessidade de internação; • antecedente de STA; • anemia sintomática frequente; • e história de outros eventos vaso-oclusivos severos como acidente vascular encefálico e priapismo recorrente. O transplante de células-tronco hematopoéticas é considerado uma alternativa nos casos mais Natalia Quintino Dias graves, refratários aos tratamentos tradicionais, já autorizado pelo Sistema Único de Saúde para essa patologia. • Vacinação contra pneumococo, Haemophilus B, hepatite B e influenza; • Profilaxia infecciosa com penicilina oral até os 5 anos; • Ácido fólico; Prognóstico e sobrevida A sobrevida global do paciente com AF é reduzida, mas tem melhorado com acompanhamento médico e diagnóstico precoce das complicações. O teste do pezinho é um exame de triagem, realizado na primeira semana de vida – 3º ao 7º dia –, para rastreamento de algumas doenças congênitas, entre elas as hemoglobinopatias. Se alterado, devem ser realizados exames confirmatórios – eletroforese de Hb, no caso da AF –. As principais causas de óbito, em ordem decrescente de frequência, são: infecção, principalmente na infância, com STA e falência de múltiplos órgãos; acidente vascular cerebral; sequestro esplênico; tromboembolismo; insuficiência renal; hipertensão pulmonar. Alguns fatores estão associados à alta morbidade e menor sobrevida, como dactilite antes de completar 1 ano de vida, leucocitose na ausência de infecção e Hb menor que 7 g/dL. Situações especiais Acidente Vascular Cerebral Isquêmico (AVCI) A tomografia computadorizada de crânio sem contraste deve ser realizada para descartar quadros hemorrágicos ou não isquêmicos nos pacientes sintomáticos. A ressonância é o melhor exame para a avaliação das lesões isquêmicas, que são mais comuns entre crianças de 2 a 9 anos; os quadros hemorrágicos são mais frequentes em indivíduos entre 20 e 29 anos. Isso porque, com os microinfartos de repetição na infância, há a formação de pequenos aneurismas de circulação colateral peri-infarto – aneurismas de moyamoya –, os quais, na vida adulta, podem se romper, levando ao AVC hemorrágico. Na criança, o tratamento na fase aguda consiste em hidratação e transfusão, além de antiagregação. Na prevenção secundária, utiliza-se o programa de transfusão crônica em razão do alto risco de recidiva. O adulto deve ser avaliado para receber ativador tissular do plasminogênio recombinante (rt-PA) na fase aguda do AVCI; se não for possível, pode ser utilizado ácido acetilsalicílico – 325 mg –. A transfusão de sangue visa reduzir a concentração de HbS para menos de 30%, com benefício no programa de profilaxia do AVC. A transfusão crônica pode ser feita por transfusão simples ou eritrocitaférese – procedimento que consiste na troca automatizada do volume hemático, suficiente para deixar a HbS no valor desejado –. Falência de múltiplos órgãos A falência de múltiplos órgãos aguda é vista, com mais frequência, durante crises álgicas graves nos pacientes HbSS. A fisiopatologia não é completamente entendida, mas sabe-se que suporte transfusional com eritrocitaférese pode reverter o quadro. Anestesia e cirurgia O risco de morbimortalidade é maior do que o da população em geral, por presença de anemia, propensão à falcização na microcirculação, lesões de órgãos-alvo, risco de hipóxia e efeitos da asplenia – risco aumentado de infecção. Orientações no pré-operatório: • Correção da anemia – manter Hb entre 8 e 10/dL; • Se possível, transfusão de concentrado de hemácias fenotipadas para evitar a aloimunização; • Manutenção de oxigenação e hidratação; • Seleção de procedimentos menos invasivos e extensos; • Fisioterapia respiratória no pós-operatório. Gravidez A gravidez em mulheres com AF traz uma série de riscos, tanto para a mãe quanto para o bebê. Esses riscos não são impeditivos de gravidez desejada, salvo em situações especiais. A incidência de aborto espontâneo é elevada. É necessário pesquisar a presença de aloanticorpos durante o pré-natal, independentemente da história transfusional. O acompanhamento da paciente aloimunizadadeve ser meticuloso, e a amniocentese para pesquisar o desenvolvimento fetal e a concentração de bilirrubina é Natalia Quintino Dias recomendada, para investigação de doença hemolítica do recém-nascido. Também é sugerida a administração de imunoglobulina anti-Rh, em casos selecionados. O retardo do crescimento intrauterino é frequente, assim como a prematuridade. Toxemia gravídica, STA, infecções do trato urinário e tromboflebite também são complicações comuns. As perdas sanguíneas devem ser repostas de acordo com a rotina obstétrica habitual, com oxigênio e hidratação de manutenção. No período pós-parto, deve-se manter hidratação adequada, e é possível diminuir o risco de tromboembolismo com uso de meias elásticas e deambulação precoce. A prevenção de atelectasia é importante e, em caso de febre, deve-se diagnosticar a causa e tratá-la agressivamente. O recém-nascido deve ser submetido a testes para identificação de hemoglobinopatia, assim como de outras desordens genéticas. É sempre importante que seja realizado o aconselhamento genético para mulheres que pretendem engravidar. Traço falciforme Os pacientes com genótipo heterozigoto apresentam uma condição hereditária benigna, não uma doença: não apresentam manifestação hematológica – valores de Hb, Volume Corpuscular Médio (VCM) –, Hemoglobina Corpuscular Média (HCM) e reticulócitos normais –, crises vaso- oclusivas, riscos gestacional, cirúrgico ou anestésico adicionais em relação à população normal e têm expectativa de vida normal. Apesar de ser condição benigna, algumas complicações raras podem acontecer. Algumas complicações raras são: • Renais: a medula renal pode sofrer infartos microscópicos, o que leva à incapacidade de concentrar a urina – hipostenúria –; em infartos da papila renal, episódios de hematúria macroscópica; risco aumentado de carcinoma medular renal; • Trombose: há risco de infarto esplênico em grandes altitudes; • Pacientes com traço falciforme submetidos a exercícios extenuantes e prolongados – militares: há risco 30 vezes maior de morte súbita, provavelmente em razão de rabdomiólise, infarto do miocárdio e arritmia. Pela benignidade do quadro, não se indicam rotineiramente os mesmos cuidados de vacinação ou reposição prolongada de ácido fólico aplicados a indivíduos com AF. É importante o aconselhamento genético, informando que se ambos os pais tiverem traço falciforme, haverá 25% de chance de seus filhos apresentarem a AF propriamente dita.
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