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RELIGIOSIDADES NA AMÉRICA LATINA AULA 3 Prof. Jefferson Zeferino 2 CONVERSA INICIAL Nesta aula, vamos falar sobre os cristianismos latino-americanos. Queremos explicar a formação dos cristianismos em nosso continente, suas principais características e vertentes. Vamos explorar as peculiaridades do catolicismo e do protestantismo histórico e pentecostal. Apresentaremos novas expressões do cristianismo na América Latina, como neopentecostalismo, comunidades emergentes e novas religiões. Ainda, trataremos de tradições autóctones, como a teologia da libertação e a teologia da missão integral. TEMA 1 – FORMAÇÃO DOS CRISTIANISMOS LATINO-AMERICANOS A religião cristã chega ao “Novo Mundo” junto com os invasores europeus, a partir de 1492. Inicialmente, pela ação missionária, os católicos ibéricos buscaram converter os nativos e cuidar espiritualmente dos colonizadores, construindo igrejas e catedrais. Depois, pelas atividades dos herdeiros da reforma, anglo-saxões e germânicos que acompanharam os fluxos migratórios e organizaram comunidades protestantes, vinculadas sobretudo a grupos nacionais. Não obstante, é possível verificar, ainda, o aparecimento de um cristianismo popular, que vai se mesclando às diversas culturas e produzindo um jeito latino-americano de ser cristão. 3 Legenda: Jesus Cristo de los Andes, estátua na fronteira entre Argentina e Chile, na Cordilheira dos Andes. Créditos: Diego Grandi/Shutterstock. 1.1 Cristianismo A fé em Jesus Cristo não se origina nas monarquias europeias que expandiram seus domínios no século XVI. As primeiras comunidades cristãs surgem na região do crescente fértil, entre os povos semitas, no interior do império romano, no período chamado helenístico (séc. I-VI d.C.). Conforme a tradição, Jesus de Nazaré, filho de Maria, era hebreu, do povo de Israel. Foi um mestre (rabí) que reuniu discípulos ao seu redor. Por conta de suas palavras e ações, entrou em conflito com as autoridades políticas e religiosas de seu tempo. Por volta do ano 30, foi morto por crucifixão – uma das penas mais cruéis da época –, condenado como “rei dos judeus”. A fé cristã também narra a sua ressurreição. Assim, a memória das palavras, da morte e da ressurreição de Jesus de Nazaré animam a organização de comunidades pela região do oriente médio. Segundo Dussel (1985, p. 167), eram sobretudo gente pobre, escravos e de pouco prestígio social, que se reuniam nas casas para celebrações. Mantendo oposição ao Império e às sinagogas, os primeiros cristãos foram perseguidos e mortos. Esta época é conhecida como “Igreja dos mártires”, pois muitos morreram por negar o culto aos deuses romanos, ou por professar a fé na ressurreição de Jesus, por exemplo. Os cristãos acreditam que Jesus é o messias esperado por Israel. Filho do Criador de tudo que existe, é a segunda pessoa da Trindade, junto com o Pai e o Espírito Santo. Ele é homem e Deus, único mediador e reconciliador da humanidade. Os cristãos creem ainda que a Salvação é operada pela ação gratuita da divindade, mediante a fé do ser humano. As comunidades cristãs se espalharam por todo o Império Romano, do norte da África à região eslava. Assim, a partir do século IV, lideranças políticas, reis e imperadores se converteram ao cristianismo. O mais conhecido foi Constantino. Assim, conforme Dussel (1985, p.175), o Estado usou a Igreja para justificar a dominação e o controle do povo, enquanto a Igreja usou os aparatos estatais para as suas atividades pastorais. Essa união marca um período chamado de “Cristandade”, ao longo do qual se desenvolve a identificação do 4 cristianismo com as culturas europeias: armênia, bizantina, latino-germana, russa, polonesa. Na mesma época da invasão do Novo Mundo, na passagem do século XV para o XVI, entre os cristãos ocidentais acontece o que ficou conhecido como Reforma Protestante. Como explicam Andrade e Rüppel Junior (2021, p. 119), a Reforma foi um movimento no interior da Igreja ocidental que buscou renovar as suas crenças e doutrinas a partir da Bíblia. O movimento deu origem a novas expressões eclesiásticas do cristianismo, como luteranos, anabatistas, calvinistas e anglicanos. 1.2 Cristianismo latino-americano O cristianismo que chega no Novo Mundo, através dos católicos, é marcado por um viés bélico. A cruz, sinal de Salvação para os cristãos, chega na América com a espada, trazida por espanhóis e portugueses. Assim, como explica Dussel (1992, p. 9-11), a religião cristã abençoou e justificou a dominação, nas figuras da Igreja e do Estado. Evangelização e civilização são duas expressões de um mesmo processo violento: impor fé e cultura a pessoas consideradas selvagens. Conforme explica Rüppell Junior (2020, p. 47), o papa Alexandre VI, através da bula Inter cætera, de 1493, concedeu ao Rei espanhol direitos de colonização e evangelização dos territórios a leste, enquanto Portugal ficava com a parte a oeste de Cabo Verde. A Igreja católica se organizou hierarquicamente na américa espanhola, a partir do Caribe, pela criação de dioceses e paróquias e pela construção de templos, com presença de clero secular e ordens religiosas, de franciscanos, mercedários, carmelitas e jesuítas (Rodríguez, 1992, p. 70). Na América portuguesa, a primeira etapa de evangelização foi levada a cabo por clérigos para atender às necessidades dos colonos. Somente com a chega dos jesuítas, em 1549, começa uma nova etapa, com intensa atividade missionária junto aos povos originários, mas não sem atritos com autoridades políticas e religiosas. Como observa Rodríguez (1992, p. 83): “à diferença do avanço das estruturas eclesiásticas das colônias espanholas, no Brasil o desenvolvimento da Igreja institucional foi lento” – considerando que, até 1675, havia apenas um bispo, da Bahia. Os protestantes, na mesma época, tentam estabelecer comunidades no Novo Mundo. Ao norte, os tripulantes ingleses do navio Mayflower tiveram 5 sucesso na empreitada de descobrir um novo lugar para viver em uma sociedade cristã, liderados por puritanos calvinistas (Rüppell Junior, 2020, p. 47). No Brasil, conforme Torquato (2017, p. 17), os protestantes não tinham autorização para entrar no território, de modo que a sua presença acompanha as invasões francesas (1555-1567), no Rio de Janeiro, e holandesas (primeiro em 1624- 1625, depois em 1630-1654), no Pernambuco. As igrejas fundadas desapareceram com a expulsão dos invasores. Apenas com a abertura dos portos lusitanos para estrangeiros, no século XIX, outros cristãos passaram a viajar para o país (franceses, ingleses, estadunidenses, alemães e outros), de confissão diferente da católica (portugueses), acompanhando comerciantes e migrantes. No início do século XX, a partir da ação de missionários europeus que antes tinham passado pelos EUA, igrejas pentecostais começaram a se estabelecer no Brasil. Assim, se por um lado o cristianismo latino-americano ficou marcado por uma hegemonia católica e por uma disputa institucional e política entre católicos e protestantes, por outro, a mensagem cristã foi recebida como libertação por povos nativos, negros escravizados e colonos pobres. Conforme Armando Lampe (1992, p. 324), na Jamaica, “os escravos aproveitaram especialmente da Igreja batista nativa para organizar a resistência ativa contra a escravidão”; na Guiana, “contra as intenções do missionário J. Smith, os escravos aproveitaram-se de sua mensagem cristã, que frisava a igualdade entre as pessoas, para iniciar a rebelião contra a escravatura”. TEMA 2 – CATOLICISMO LATINO-AMERICANO Como vimos, o evangelho chega junto com a espada. Espanhóis e portugueses, a partir de 1492, impuseram aos povos ameríndios a sua cultura e, como consequência, a fé em Jesus Cristo. Assim, para entender o cristianismo latino-americano,é necessário estudar as suas origens, isto é, o cristianismo ibérico. Vejamos qual catolicismo chegou ao Novo Mundo e como se estabeleceu e se desenvolveu, em especial no Brasil. 6 Legenda – Catedral de Santiago de Compostela, Espanha. Segundo a tradição, ali está o sepulcro de Tiago Maior, apóstolo de Jesus. Créditos: Pabkov/Adobestock. 2.1 Catolicismo Ibérico O cristianismo chega à Península Ibérica, território mais ao ocidente do ocidente – finis terrae, como define Dussel (1985, p. 185) –, através de sua tradição latina. Já no século II, comunidades cristã se encontravam estabelecidas na província chamada Hispania, que se consolidará como cristandade com a expansão visigótica (590-700). Não obstante, por sua posição geográfica, de passagem entre a Europa e a África, a península será por muito tempo um espaço de fronteira e uma zona de conflito. Os povos árabes e berberes, de religião mulçumana, dominaram o território por um longo período, proibindo o latim e quase apagando a presença cristã na região. Porém, a partir das Asturias, no norte, foi promovido o que ficou conhecido como reconquista. No séculos VIII ao XV, a cristandade foi se reorganizando e retomando antigos reinos, até alcançar o seu esplendor no século XVI. Como observa Dussel (1985, p. 194), é curioso que, ainda no ano de 1492, em que Cristóvão Colombo chegou ao Novo Mundo, os espanhóis tomaram Granada, o último reino árabe na península, de modo que “a conquista 7 da América [...] é a continuação natural da reconquista espanhola”. Por isso, Torquato (2017, p. 16) afirma que “o catolicismo que ali se desenvolveu foi caracterizado pelo viés da reconquista e plasmado pelo ideário cruzadístico iniciado pelo Papa Urbano durante o Concílio de Clermont, em 1095.” 2.2 Catolicismo latino-americano Conforme Rodríguez (1992), dois projetos de evangelização foram postos em marcha no Novo Mundo. Ainda que a evangelização da América acontecesse sob o signo da violência e opressão, foram feitas tentativas de reconhecimento da alteridade e da convicção de que a Salvação não deve ser imposta. Assim, o catolicismo que aqui se desenvolveu foi marcado, por um lado, pela proximidade com os poderes políticos, resquício do Padroado Régio, e por uma pretensão de uma cristandade colonial, submetendo tudo e todos à fé cristã católica; e por outro, pela construção de comunidades de pessoas livres, como queria Frei Bartolomeu de las Casas (citado por Rodríguez, 1992, p. 85): “Cristo concedeu aos apóstolos somente a licença e a autoridade de pregar o evangelho aos que voluntariamente o quisessem ouvir, mas não a de forçar ou inferir algum incômodo ou desagrado aos que não o quisessem escutar”. Segundo Rüppell Junior (2020, p. 47): Os missionários de ordens religiosas como a dos franciscanos, dominicanos e jesuítas acompanhavam os exploradores na colonização da América, desde o Haiti até Lima, da Venezuela até o Paraguai. Vindo a se preocupar bastante como a dignidade dos nativos, conforme revela o conflito com os bandeirantes na região de São Paulo, no Brasil (Grego, 2008, p. 56). Rodríguez (1992) relata que as primeiras dioceses e paróquias surgem no Caribe, já em 1511, expandindo-se tanto para dentro das ilhas como em direção ao continente. A construção de igrejas e conventos no Novo Mundo, segundo o regime do padroado, ficou sob responsabilidade de autoridades civis. O mesmo aconteceu com a criação de paroquias e a nomeação de bispos. Pelo padroado, a Igreja a autorizava que um senhor, o patrono, organizasse a vida eclesiástica em determinadas terras. Dessa forma, o administrador ficava responsável pela construção e manutenção das igrejas, bem como pelo sustento do culto e dos clérigos. Assim, a atividade da hierarquia católica não se restringiu apenas ao culto, mas contribuiu, sobretudo, com a educação. Por muito tempo, a igreja foi a 8 principal responsável pela educação, saúde e assistência social nas colônias, e posteriormente nos Estados nacionais da América Latina. Conforme Torquato (2017, p. 17), a Igreja católica, no Brasil, através dos jesuítas, catequizou os índios e educou a elite colonial, conseguindo manter a sua hegemonia no “poder e no imaginários daqueles que formavam a opinião pública brasileira”, de modo a afastar o perigo protestante. Conforme Eduardo Hoornaert (1992, p. 306), a evangelização no Brasil foi “de cima para baixo e de fora para dentro”. Os índios foram benevolamente reduzidos ao mundo europeu em “missões” e “aldeias”. Os negros escravizados, encerrados nos engenhos de cana de açúcar, foram submetidos às violências e devoções dos senhores. Mas esse processo não se desenvolveu sem resistências e rebeldias, pois houve a produção de um cristianismo mestiço “de muita reza pouco padre, muito santo pouco sacramento, muita festa pouca penitência, muita promessa pouca missa” (Hoornaert, 1992, p. 306). TEMA 3 – PROTESTANTISMO LATINO-AMERICANO A América Latina está marcada culturalmente pela devoção popular católica. A empresa colonial foi bastante eficaz no enraizamento do cristianismo católico no continente. Porém, isso não impediu que o cisma do ocidente chegasse ao Novo Mundo, e que assim comunidades calvinistas, luteranas, anglicanas, batistas, metodistas etc. anunciassem o Evangelho, frutificando suas experiências autóctones. Vejamos como se formou e se desenvolveu o protestantismo por aqui. 9 Legenda – João Maurício de Nassau, cristão reformado holandês do século XVII, governou por 24 anos a colônia neerlandesa do Recife, que chegou a ter cerca de 22 igrejas e congregações protestantes. Crédito: Morphart_creation/Shutterstock. 3.1 Origens do protestantismo latino-americano Como explica Jean-Pierre Bastian (1992, p. 468), a reforma protestante é contemporânea à expansão colonial de Espanha e Portugal. Assim o protestantismo na América começa com as invasões ao Novo Mundo. Do ponto de vista religioso, as colônias marcaram a expansão da fé cristã sem a corrupção protestante; do ponto de vista político, caracterizaram-se pela disputa por controle das rotas marítimas comerciais. Assim, “o protestantismo foi considerado como uma heresia que ameaçava a integridade ideológica e política de uma unidade sociopolítica complexa erigida no modelo da cristandade”. Tratava-se de uma ameaça a ser combatida, tanto em terra como nos mares. A primeira tentativa de fixação aconteceu em 1555, quando Nicolas Durand de Villegaignon, liderando uma frota francesa, invadiu a Baía de Guanabara e estabeleceu a França Antártica em uma ilha. Segundo Torquato (2017, p. 31), esse empreendimento foi econômico, pois a França tinha interesse no pau-brasil, mas também religioso. A experiência durou 5 anos, tendo recebido o apoio de João Calvino. Desse modo, luteranos, calvinistas, católicos e tamoios tiveram uma convivência relativamente pacífica. Porém, os portugueses expulsaram completamente os franceses em 1567. 10 Os holandeses tentaram se estabelecer, no século seguinte, no nordeste brasileiro. Primeiro, sem sucesso, em 1624-25. Após cinco anos, segundo Torquato (2017, p. 36), liderados por João Maurício de Nassau, retornam com 64 navios e 3,8 mil homens, e logo mais 6 mil. Estabeleceram uma zona de liberdade e tolerância religiosa entre reformados, católicos, judeus e tapuias, ampliando o tráfico negreiro e a mão de obra escrava nos engenhos de cana-de- açúcar. Segundo Bastian (1992, p. 470), os holandeses chegaram a ter 22 igrejas e congregações protestantes, com cerca de 50 pastores ao logo dos 24 anos em que dominaram as regiões de Olinda e Recife, no Pernambuco. No Caribe, também se desenvolveram colônias protestantes, conduzidas por ingleses, holandeses e dinamarqueses, baseadas no trabalho escravo e no cultivo de cana-de-açúcar. Somente no século XIX, sob a hegemonia do ImpérioBritânico, e movidas por questões comerciais, as nações recém independentes aceitaram a tolerância religiosa (Bastian, 1992, p. 476), permitindo a construção de templos e cemitérios protestantes e autorizando cultos públicos para a comunidade estrangeira residente. O protestantismo nasce no continente, como explica Bastian (1992, p. 483), articulando um anticatolicismo autoritário com o liberalismo radical de valores democráticos e seculares, com contribuições na política republicana e na educação de ricos e pobres. 3.2 Consolidação e expansão protestante O protestantismo é um fenômeno religioso de princípios bastante diversos. A partir da Reforma no século XVI, diversos movimentos reformadores aconteceram no interior das Igrejas, dando origem a novas denominações. Não obstante a sua expressão minoritária na população latino-americana, no século XX os protestantes já estavam organizados em diversas denominações em todo continente: Essa minoria religiosa tinha-se organizado pouco a pouco e, sob a influência dos modelos missionários, era regida por estruturas de assembleiam de sínodo de conferência ou de convenção, segundo as tradições presbiterianas, congregacionistas, luteranas, metodistas ou batistas, entre outras. Essas estruturas organizacionais davam forma às sociedades protestantes e eram lugares privilegiados para inculcar práticas e valores democráticos. Ao mesmo tempo, esforços unitários se desenvolveram e reuniram as diversas sociedades anualmente em nível nacional, o que não tardou a se transformar, por movimentos similar em nível continental, quando o primeiro congresso das 11 sociedades protestantes na América Latina, celebrado no cidade do Panamá, em fevereiro de 1916. (Bastian, 1992, p. 492) De grande importância para o protestantismo foi a ação missionária norte- americana, sobretudo de pentecostais. Estes, ao contrário de outras denominações, conhecidas como evangélicos tradicionais, que ficaram muito restritas a suas comunidades nacionais, ganharam capilaridade entre os camponeses e trabalhadores, com a criação de igrejas como as Assembleias de Deus e a Congregação Cristã do Brasil. Torquato (2017, p. 61-62) observa que o protestantismo se desenvolveu em oposição ao catolicismo. O protestante era o oposto do católico; no caso pentecostal, era caracterizado por longos cabelos e roupas simples, abandando eventos esportivos e sempre com rigor disciplinar. Se, por um lado, a ascese evangélica formava um cidadão com valores morais exemplares para a sociedade, por outro tornava a comunidade religiosa um gueto. Afinal, após a conversão, o fiel não mantinha mais seus antigos laços sociais e afetivos. Torquato (2017, p. 62) destaca, ainda, que o crescimento das Igrejas protestantes também foi resultado da expansão urbana, pois elas eram o principal local de socialização das pessoas recém-chegadas às cidades. Pouco a pouco, os protestantes ampliaram a sua atuação no Brasil, não apenas pela prestação de serviços educativos e de saúde, mas também através de intensa atividade proselitista, marcada, entre outros aspectos, por grandes cultos de cura, entendidos como momentos de intervenção miraculosa e divina. TEMA 4 – NOVAS EXPRESSÕES DO CRISTIANISMO NA AMÉRICA LATINA O cristianismo como fenômeno religioso acompanhou o desenvolvimento das culturas. Ainda que se possa perceber uma fixação doutrinal que atravessa os séculos, o que é expresso textualmente no chamado Credo Apostólico, ao longo dos tempos surgiram novas manifestações religiosas no interior do próprio cristianismo. A partir disso, podemos perceber fenômenos como o neopentecostalismo, a renovação carismática e as novas religiões que também se manifestaram na América Latina. 12 Legenda – As novas expressões do cristianismo na América Latina ficaram marcadas pelo espetáculo midiático, pela pregação fundamentalista e pela ideologia neoliberal. Créditos: Paul Shuang/Shutterstock. 4.1 Neopentecostalismo Como observa Senia Pilco (1995, p. 37-38), o movimento pentecostal, é marcado pela espontaneidade litúrgica e pela insistência na ação do Espírito Santo, com o cultivo explícito de dons carismáticos, glossolalia (oração em línguas), curas e milagres, além de um forte compromisso comunitário. No decorrer do século XX, ele se espalhou a partir dos EUA por toda a América Latina. Com o crescimento urbano, a expansão do capitalismo transnacional e o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa (primeiro o rádio e a televisão, depois a internet), emergiu um novo movimento cristão. Assim, vemos surgir as chamadas “igrejas eletrônicas”, com líderes “televangelizadores”, que oferecem um espetáculo midiático, com pregação bíblica fundamentalista e ideologicamente alinhada ao neoliberalismo de Ronald Regan, nos EUA. Adilson José Francisco (2014, p. 11-12) compreende o neopentecostalismo como continuação do pentecostalismo clássico, na medida em que enfatiza a ação do Espírito Santo nas curas, milagres e interpretações bíblica. Não obstante, há também uma inovação no ethos evangélico. Os neopentecostais surgem em contextos eminentemente urbanos e interculturais, 13 de modo que há uma diferenciação importante com o pentecostais clássicos, nos seguintes aspectos: liberalização de hábitos da vida cotidiana, como formas de vestir; defesa da “teologia da prosperidade”; acentuada ênfase na atuação do diabo como explicação dos males; combate às religiões mediúnicas e ao catolicismo; extensa prática de rituais de cura e exorcismos; ostensiva atuação midiática e político-partidária, estruturada, em geral, com base no modelo de gestão empresarial adotado pela Igreja Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça, Renascer em Cristo, Mundial do Poder de Deus, Ministério Sal da Terra, e uma miríade de denominações evangélicas de origem mais recente. (Francisco, 2014, p. 12) Torquato (2017, p. 134-135) sublinha que o neopentecostalismo segue a lógica capitalista meritocrática, ao se voltar para a prosperidade e para um Deus que realiza tudo o que o fiel deseja. Basta pedir, investir, se dedicar e receber. Os problemas são vistos como falta de fé ou ação diabólica. Por conta disso, passa a ser travada uma batalha espiritual para a libertação individual e da cidade. Assim, os meios de comunicação e a política partidária também se tornam campos de ação para cantores, obreiros, pastores e bispos neopentecostais, compreendidos como apostolado que se presta a salvaguardar e impulsionar valores cristãos contra as investidas do Diabo, além de beneficiarem as próprias denominações. 4.2 Renovação carismática e novas religiões O pentecostalismo também desencadeou, no interior das Igrejas históricas, incluindo a Igreja Católica, movimentos de renovação, que não significam necessariamente uma ruptura com as denominações. Conforme Pilco (1995, p. 38-39), os movimentos de renovação carismática derivam, entre protestantes e católicos, da vivência e da reflexão sobre os diferentes dons de cada crente, bem como de suas compreensões sobre a ação de Cristo e do Espírito na Igreja. Tomando o pentecostalismo clássico como premissa fundamental, tais movimentos expressam o desejo de libertação da Igreja. Não obstante, Rosa (2016, p. 42) observa que o movimento pentecostal não se resume a uma confissão cristã, mas é expressão da pentecostalidade própria da fé cristã. Portanto, é um movimento transconfessional, pois “nenhuma denominação pentecostal ou movimento carismático pode deter a plenitude da experiência do Espírito”. Ensaia-se uma reaproximação entre cristãos católicos e protestantes. 14 Outros movimentos religiosos surgem entre os cristãos, tendo o texto bíblico como inspiração. Porém, muitos não consideram tais movimentos como cristãos, por conta de desvios doutrinário, como uma fé não trinitária, ou a crença em outrostextos como revelação divina, para além da Bíblia. Segundo Pilco (1995, p. 40): “Os movimentos religiosas contemporâneos possuem características especificas e comuns, com o fato da ter sido fundadas por um indivíduo que se autodefine “o novo profeta” eleito pela divindade para entregar aos homens as últimas revelações de Deus”. TEMA 5 – CRISTIANISMO DE LIBERTAÇÃO NA AMÉRICA LATINA E MISSÃO INTEGRAL Para finalizar esta aula, vamos estudar uma expressão do cristianismo que surge a partir da década de 1960, no meio popular, rural e urbano, entre trabalhadores e camponeses. Trata-se de uma pesagem peculiar. O cristianismo latino-americano de reflexo das vivências cristãs e das teologias estrangeiras, seja entre protestantes ou católicos, passa a ser fonte de uma experiência, a qual, baseada na fé bíblica, assume os desafios e os problemas da vida concreta, sobretudo no engajamento em prol da superação de situações de pobreza e dependência. Legenda – O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), no Brasil, tem suas origens no cristianismo da libertação, expresso pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). 15 Créditos: Joa Souza/Shutterstock. 5.1 Teologia da libertação Michel Löwy (2016, p. 74-75) define como cristianismo da libertação um movimento social que reuniu clérigos, leigos (em sua maioria) e organizações populares a partir da década de 60. A ideia desse movimento se diferencia da noção de “Igrejas dos Pobres”, pois é uma experiência para além das estruturas eclesiásticas, bem como da própria “Teologia da Libertação”, pois não pode ser reduzida à produção textual de importantes estudiosos latino-americanos. Assim, o cristianismo da libertação é tanto reflexo de uma práxis, como a reflexão sobre essa práxis. O sentido aqui não é propriamente político ou sociológico, mas religioso e espiritual, expressando-se pela “opção preferencial pelos pobres”, com a percepção de que são sujeitos da história, e não objeto da caridade cristã. Entre os católicos, tal opção é assumida explicitamente pela hierarquia continental, reunida na Conferência Episcopal Latino-Americana (Celam), nas Assembleias de Medellín (1968) e Puebla (1979), e reafirmada em Aparecida (2007), pelo Papa Bento XVI, como implicação da fé cristológica da Igreja (Bingemer, 2017, p. 43-47). Porém, teóricos da libertação da América Latina foram objetos investigados e silenciados pelo Vaticano nos últimos 50 anos. Como observa Löwy (2016, p. 84), este movimento não foi operado desde as sacristias, mas resultado de convergências internas e externas à Igreja, a partir da periferia para o centro, combinando a fé cristã do povo com o crescimento da classe trabalhadora urbana, o desenvolvimento dependente das nações latino-americanas e a consequente pauperização da população, somada à intensificação das lutas sociais, cujo clímax é a Revolução Cubana, de 1959. A organização das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), espalhadas por todo o continente, foi central. Segundo Bingemer (2017, p. 33), a comunidade de base é uma organização simples e horizontal, liderada comumente por mulheres, tendo como base a leitura da bíblica, sempre confrontada com a realidade, a fim de produzir transformações em favor dos pobres. Tais comunidades são a base para diversos movimentos sociais na América Latina, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), no Brasil, os sandinistas, na Nicarágua, e os zapatistas, no México. 16 Do ponto de vista teórico, diversas contribuições reflexivas de católicos e protestantes marcaram a teologia da libertação, como Gustavo Gutierrez, Leonardo e Clodovis Boff e Ruben Alves, e podem ser assim caracterizadas, conforme Löwy (2016, p. 77): 1. combate a idolatria da morte; 2. libertação histórica como antecipação do Reino de Deus; 3. crítica à teologia dualista de origem platônica; 4. nova hermenêutica bíblica, centrada na experiência do Êxodo; 5. crítica moral e social ao capitalismo como pecado estrutural; 6. mediação analítica com o marxismo; 7. opção pelo pobres e solidariedade com as lutas de libertação; e 8. comunidades inseridas entre os pobres. 5.2 Teologia da missão integral A missão integral, como o próprio nome sugere, diz respeito à integralidade da missão da Igreja. É a expressão de um protestantismo histórico engajado com todos os seres humanos e com o ser humano todo. Como explica Cícero Bezerra (2017, p. 14), o conceito de integralidade compreende que a pregação do evangelho não se limita ao culto, à adoração e ao louvor a Deus, mas abrange a totalidade humana, comprometendo-se com demandas espirituais, sociais e emocionais, além de outras necessidades humanas. Trata- se de um proposta de teólogos latino-americanos – conforme Rodrigues (2009, p. 18), de uma teologia holística, feita “de baixo”, contextualizada, enraizada no Movimento Evangélico, unindo a evangelização com a responsabilidade social. Valdir Steuernagel (1992, p. 7-8) enfatiza, ao apresentar a obra do teólogo equatoriano René Padilla, Missão Integral, que “a evangelização não pode acontecer de forma alienada da realidade”. Essa reflexão de Padilla foi apresentada em 1974, no 1º Congresso Internacional sobre Evangelização Mundial (Lausanne), cujo tema era “Para que o Mundo ouça a Sua voz”. A Missão Integral, portanto, é um movimento que faz parte da senilidade da igreja com o anúncio do Evangelho. Nesse sentido, compreende-se a preocupação de Padilla (1992, p. 149-150): O desafio que a igreja encara no campo do desenvolvimento hoje é fundamentalmente o desafio de um desenvolvimento humano, no contexto da justiça. Fazem falta modelos de missão plenamente adaptados a uma situação marcada por uma distância abismal entre ricos e pobres. Os modelos de missão baseados na riqueza do Ocidente solidarizam-se com esta situação de injustiça e condenam as igrejas do mundo pobre a uma permanente dependência. No final das contas, portanto, são contraproducentes para a missão. 17 Rodrigues (2009, p. 60) aponta, ainda, que a missão integral nasce como ruptura com a prática missional estadunidense de “ganhar almas” no continente, sendo fruto da necessidade de teólogos e pastores latino-americano de uma interpretação da salvação comprometida com a transformação da realidade, a partir de uma leitura distinta do mundo anglo-saxão do Congresso de Lausanne (1974). Tal conflito impediu a popularização da missão integral, que ficou restrita aos círculos teológicos. NA PRÁTICA O atual Presidente da República Federativa do Brasil, Jair Messias Bolsonaro (sem partido), foi eleito, em 2018, fazendo uso de diversas referências religiosas, como seu lema de campanha e o nome da coligação eleitoral: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Tendo conhecido um pouco sobre o cristianismo na América Latina, leia o texto a seguir e tente estabelecer relações entre os grupos religiosos que formam o cristianismo latino-americano com os citados no texto. PY, F. Nunca se viu um governo tão abençoado: fundamentos teológicos do bolsonarismo. Instituto Humanitas Unisinos, 17 out. 2020. <http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/603763-nunca-se-viu-um-governo-tao- abencoado-fundamentos-teologicos-do-bolsonarismo-artigo-de-fabio-py>. Acesso em: 6 set. 2021. FINALIZANDO Nesta aula, estudamos os seguintes temas: • A fé em Jesus de Nazaré chegou na América Latina no século XVI, sendo formada historicamente pelo catolicismo ibérico e pelo protestantismo anglo-saxão, bem como por expressões autóctones como a mensagem de libertação. • O catolicismo chegou junto com a espada dos colonizadores portugueses e espanhóis. Foi uma experiência violenta marcada por um espírito cruzadístico. Porém, houve tentativas de anúncio pacífico com respeito à alteridade dos povos originários. • O protestantismo chega à América Latina oficialmente no século XIX. Antes,foram desenvolvidas tentativas fracassadas, sobretudo com as 18 comunidades migrantes. Diversas sociedades protestantes se organizam no continente, e assim diversas denominações contribuíram para a política e a educação da região. Destaque para as missões norte- americanas e pentecostais, que produziram igrejas autóctones. • Novas expressões religiosas surgem ao longo do século XX, marcadas pelo espetáculo midiático, pela pregação fundamentalista e pela ideologia neoliberal. Neopentecostais e carismáticos são expressões da pentecostaliade da fé cristã. • O cristianismo latino-americano é fonte de experiências eclesiais e teológicas de compromisso político e social, vinculando fé e vida. O cristianismo da libertação e a missão integral da Igreja são expressões de um engajamento, a partir da fé bíblica, em busca da superação de situações de pobreza e dependência que marcam historicamente o continente. 19 REFERÊNCIAS ANDRADE, M.; RÜPPEL JUNIOR, I. O Cristianismo e a civilização ocidental: influências e movimentos históricos. Curitiba: InterSaberes, 2021. BASTIAN, J-P. O protestantismo na América Latina. In: DUSSEL, E. (Org.) História liberationis: 500 anos de história da Igreja na América Latina. São Paulo: Edições Paulinas,1992. BEZERRA, C. Missão integral da Igreja. Curitiba: InterSaberes, 2017. BINGEMER, M. C. Teologia latino-americana: raízes e ramos. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC, 2017. DUSSEL, E. Historia General de la Iglesia em América Latina I/1: introducción general. Salamanca: Cehila Ediciones Sígame, 1985. DUSSEL, E. Introdução geral. In: DUSSEL, E. (Org.) História liberationis: 500 anos de história da Igreja na América Latina. 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