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RELIGIOSIDADES NA AMÉRICA LATINA AULA 4 Prof. Jefferson Zeferino 2 CONVERSA INICIAL Nesta aula, vamos falar sobre as religiões de matrizes africanas na América Latina. Apresentaremos os fatores histórico, culturais, sociais e étnicos formadores das religiões, evidenciando suas principais vertentes e características. Com um olhar especial para o Brasil, destacaremos as peculiaridades das religiosidades africanas, bem como sua influência na cultura popular. TEMA 1 – POVOS AFRICANOS NO NOVO MUNDO Antes de abordarmos propriamente nossos temas, precisamos considerar a realidade sócio-histórica da chegada e presença do negro na América Latina, que pode ser narrada em termos de sequestro e aniquilamento, tendo como base o escravismo e colonialismo. Segundo Décio Freitas (citado por Moura, 1993, p. 7), estima-se que cerca de 9 milhões de pessoas negras foram comercializadas e traficadas de África para o Novo Mundo, sendo que, pelo menos, 40% foram importadas para o Brasil, enquanto 6% desembarcaram nos Estados Unidos, 18% na América espanhola, 17% no Caribe inglês e 17% no Caribe francês. Conforme Arthur Ramos (citado por Bastide, 1971, p. 67), ao longo de quatro séculos, chegaram ao Brasil homens, mulheres e crianças de diversas civilizações africanas, como ioruba, Jeje, Mina, Malês e Bantos da região de Angola e Moçambique; bem como, segundo Hall (2017, p. 64-65), muitas foram as etnias espalhadas por toda a América. 3 Figura 1 – Monumento a Zumbi, no Rio de Janeiro, principal de liderança de Palmares, a maior e mais longeva expressão da insurgência e organização contra o poder colonial Créditos: Bruno Martins Imagens/Shutterstock. Segundo Abdias Nascimento (2019, p. 36), por toda América Latina, há uma “falsa imagem de uma escravidão humanizada, benemérita, com certa ‘liberdade’, justificada em uma suposta harmonia social produto da mistura biológica e cultural dos povos indígenas, europeus e africano”. Clóvis Moura (1993, p. 9-10) nos explica que o modo de produção escravista, imposto pelas metrópoles nas colônias, ao mesmo tempo em que estratificou a sociedade entre senhores e escravos, cristalizou o racismo. Assim, as pessoas africanas, por serem negras – diferente das europeias – eram inferiores, e por conseguinte, poderiam ser submetidas à violência do trabalho escravo. E, concretamente, isso significa que o negro escravo vivia como se fosse animal. Não tinha nenhum direito, e pelas Ordenações do Reino podia ser vendido, trocado, castigado, mutilado ou mesmo morto sem que ninguém ou nenhuma instituição pudesse intervir em seu favor. Era uma propriedade privada, como qualquer outro semovente, como o porco ou o cavalo. (Moura, 1992, p. 15-16) 4 Rodrigues Alves (citado por Nascimento, 2019, p. 110) aponta que a transformação do negro como objeto de exploração é produto do processo de esquecimento – de seus lares, de sua terra, de seus deuses, de sua cultura – promovido pelos brancos. Conforme observa Césaire (2020, p. 10-11), a colonização, seja na América ou em África, não significou o contato benéfico de diferentes civilizações, mas um empreendimento desumano, um gesto “do apetite e da força, com a sombra maléfica, por trás, de uma civilização que, em um momento de sua história, se vê obrigado internamente a estender à escala mundial a concorrência de suas economias antagônicas” (Césaire, 2020, p. 10). Conforme Nascimento (2019, p. 72-73), os africanos escravizados foram centrais em todas as etapas da produção colonial e, por conseguinte, para o desenvolvimento econômico das nações, bem como o enriquecimento da Europa. Assim, o negro foi o único, por cerca de quatro séculos, quem realmente trabalhou e produziu um mundo para o outro – o branco – e, por isso, como explica Clóvis Moura (1992, p. 12), diferentemente de outras regiões no Novo Mundo, que restringiu a presença do negro em determinadas localidades, no Brasil, o negro povoou todo o território: o certo é que o negro (quer escravo, quer livre) foi o grande povoador do nosso território, empregando o seu trabalho desde as charqueadas do Rio Grande do Sul aos ervais do Paraná, engenhos e plantações do Nordeste, pecuária na Paraíba, atividades extrativistas na Região Amazônica e na mineração de Goiás e Minas Gerais. O negro não apenas povoou, mas ocupou os espaços sociais e econômicos que, através do seu trabalho, dinamizaram o Brasil. Não obstante a coisificação e o apagamento do negro pela violência escravista colonial, houve movimentos de resistência ao sistema, bem como espaços de liberdade, onde o negro pôde de alguma forma preservar e reconstruir suas tradições. Clóvis Moura (1993, p. 11) relata que por toda a América proliferaram ajuntamentos de negros rebeldes, sendo Palmares a maior e mais longeva expressão da insurgência e organização contra a ordem; e o Haiti, no final do século XVIII, por sua vez, tornou-se a experiência de sublevação mais exitosa que assustou o mundo branco, e, consequentemente, recrudesceu a violência contra africanos e seus descendentes. TEMA 2 – HISTÓRIA DAS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA NO BRASIL A escravidão, conforme Roger Bastide (1971, p.82-83), destruiu as estruturas sociais africanas, mas valores foram conservados, produzindo, 5 sobretudo, nos centros urbanos, que congregavam maior número de população negra, novos quadros sociais e instituições originais que preservaram as estruturas das religiões africanas até nossos dias. Segundo Reginaldo Prandi (1999), a história das religiões de origem africana no Brasil pode ser dividida em três momento: sincretismo, branqueamento e africanização. Figura 2 – Festa de Iemanjá em Salvador, Bahia Créditos: Erica Catarina Pontes/Shutterstock. 2.1 Sincretismo A primeira fase da história das religiões de matriz africana se expressa pelo sincretismo ou a mestiçagem cultural. Segundo Wilson Barbosa (2008, p. 8), três contextos culturais forneciam ambientes para o desenvolvimento das crenças e religiões no período de 1780-1850: um contexto indígena, um contexto europeu, e contexto afro-indígena. Como observa Sérgio Figueiredo Ferreri (1999, p. 113-114), o sincretismo não implica um caráter negativo do fenômeno religioso, pois todas as religiões são sincréticas, isto é, “constitui uma síntese integradora englobando conteúdos de diversas origens” (Ferreri, 1999, p. 114). No caso das experiências religiosas dos africanos escravizados nas Américas, significou uma estratégia de 6 sobrevivência e adaptação no mundo do branco. Como explica Reginaldo Prandi (1999, p. 96): Se a religião negra, ainda que em sua reconstrução fragmentada, era capaz de dotar o negro de uma identidade negra, africana, de origem, que recuperava ritualmente a família, a tribo e a cidade perdidas para sempre na diáspora, era por meio do catolicismo, contudo, que ele podia encontrar e se mover no mundo real do dia-a-dia, na sociedade do branco dominador, que era o responsável pela garantia da existência do negro, ainda que em condições de provação e sofrimento, e que controlava sua vida completamente. Se nas fazendas, o senhor permitiu aos escravizados festejarem a seu modo, com danças e tambores, os dias sagrados do cristianismo (Bastide, 1971, p. 72), nas cidades, a Igreja autorizou negros escravizados e livres se reunirem em confrarias (Bastide, 1971, p. 79). Ambas as concessões possibilitaram a sobrevivência dos cultos africanos, de modo que, como afirma Bastide (1971, p. 98), a escravidão ao mesmo tempo em que separou as famílias de suas origens e sociedades, uniu pessoas de povos diversos seja na senzala, na Casa-grande, no quilombo, ou nos centros urbanos. 2.2 Branqueamento A partir do final do século XIX, com forte influência francesa do espiritismo de AllanKardec, conforme Barbosa (2008, p. 11), que chega ao Brasil por meio do corpo de oficiais do Exército e da Marinha, as religiões de matriz africana sofrem um processo de embranquecimento, e esta é a segunda fase da história. Segundo Sidnei Nogueira, a umbanda, de origem bantu, foi cooptada por uma classe média branca, “teorizada por uma série de publicações religiosas que tentam afastá-la da África e aproximá-la de qualquer origem que a embranqueça” (Nogueira, 2020, p. 50). Conforme Prandi (1999, p. 99), Tratava-se de “limpar” a religião nascente de seus elementos mais comprometidos com a tradição iniciática secreta e sacrificial, tomando por modelo o kardecismo, que expressava ideais e valores da nova sociedade capitalista e republicana, ali na sua capital. Os passos decisivos foram a adoção da língua vernácula, a simplificação da iniciação, a eliminação quase total do sacrifício de sangue. Manteve- se o rito cantado e dançado dos candomblés, bem como um panteão simplificado de orixás, havia muitos anos já sincretizados com santos católicos, reproduzindo-se um calendário litúrgico que segue a Igreja Católica. Entretanto, o centro do culto no seu dia a dia estará ocupado pelos guias, caboclos, pretos-velho e mesmo os “maléficos” e interesseiros exus masculinos e femininos, as pombas-giras, já cultuados em antigos candomblés baianos e fluminenses. 7 Esse processo de branqueamento religioso pode ser compreendido, em um plano mais amplo de política de Estado e racismo científico, que, após a abolição do regime escravista, ganhou circulação em 1889 na República, entre intelectuais e aristocracia. Assim, ao longo de século XX, o imaginário racista vai falar em “baixo espiritismo”, como eram desqualificadas moral e religiosamente a umbanda e o candomblé, conforme Sidnei Nogueira (2020, p. 50-51), por meio do sacrifício ritual de animais e perseguição como religiões selvagens, bárbaras e sanguinárias. 2.3 Africanização A terceira fase pode ser entendida como um retorno à África. Segundo Prandi (1999, p. 100-103), na segunda metade do século XX, a umbanda já se espalhava por todo o país, nos países vizinhos e em Portugal. Mesmo buscando se apresentar como religião branca, sofria grande preconceito pela origem social de suas lideranças, e muitas começaram a se iniciar no candomblé, buscando um culto mais tradicional dos orixás, que fora preservado na Bahia e outros pontos do país, multiplicando o número de terreiros, bem como transformando o candomblé em religião universal, acessível a todas as pessoas. Começava o que chamei de processo de africanização do candomblé, em que o retorno deliberado à tradição significa o reaprendizado da língua, dos ritos e mitos que foram deturpados e perdidos na adversidade da diáspora; voltar à África não para ser africano nem ser negro, mas para recuperar um patrimônio cuja presença no Brasil é agora motivo de orgulho, sabedoria e reconhecimento público, e assim ser detentor de uma cultura que já é ao mesmo tempo negra e brasileira, porque o Brasil já se reconhece no orixá. (Prandi, 1999, p. 105) Esse movimento interno das religiões de matriz africana, como explica Silva (1999, p. 156), significa um culto aos orixás mais puro, sem os elementos cristãos-católicos. A partir da II Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura, em 1983, em Salvador, Menininha do Gantois, Stella de Oxóssi, Tetê de Iansã, Olga de Alaketo e Nicinha do Bogum Axé, respeitadas Ialorixás da Bahia, assinaram documento que rompia com o sincretismo entre orixás e santos católicos, que não se tratava de folclore, seita, animismo ou primitivismo e afirmava o candomblé como religião de origem africana (Consorte, 1999, p. 72). Conforme Prandi (1999, p. 108), já não era preciso ser católico para ser brasileiro, pois o catolicismo bem como o sincretismo não fazia mais sentido. 8 Assim, o candomblé deixa de ser uma religião subalterna e se vê em pé de igualdade com o catolicismo. TEMA 3 – RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA NA AMÉRICA LATINA Hall (2017, p. 286-285) nos alerta que os processos de formação cultural nas Américas não podem ser generalizados por todo território, visto que o tráfico transatlântico de escravizados durou cerca de quatro séculos, bem como os valores e crenças dos povos não foram mantidos em conserva. Assim, a experiência brasileira não é a mesma da haitiana, tampouco da cubana. Olhemos para essas duas últimas, a fim de conhecer os povos e as religiões de origem africana nesses países. Figura 3 – Duas mulheres da santeria caminham pelas ruas de Havana, capital de Cuba Créditos: Danilo Marocchi/Shutterstock. 3.1 Cuba Conforme Cunha (2011, p. 40), a religiosidade afro-cubana está fundamentada sobre os diferentes modos de fazer a religião. Fuentes e Schwegler (2005, p. 27) explicam que em Cuba há quatro religiões de origem 9 africana, a saber, Santeria ou Regla de Ocha (de origem iorubá); Regla Arará (de origem adj a-fon); a Sociedade Secreta Abakua (de origem efik-ibibio); e a Regla de Palo Monte ou Regla Conga (de origem bantu). Hall (2017, p. 290) observa que, para além da forte presença ioruba na conhecida santeria, a difusão conguesa do palo maiombe tem grande influência em Cuba: “Influências religiosas do Golfo de Biafra refletem-se nas crenças e práticas religiosas afro- cubanas, surgido da introdução significativa de karabalís em Cuba no século XIX” (Hall, 2017, p. 290). A mais popular religião afro-cubana, a Santeria, conforme Murrell (2010, p. 96), é uma religião do axé, do culto dos orixás iorubanos, que harmoniza a comunicação entre as forças divinas e os humanos. A Santeria ou Regla Ocha “emprega espaço sagrado e significação simbólica, bem como acredita nos poderes sobrenaturais, a potência dos rituais, meditação espiritual, adivinhação, cura à base de ervas e ação humana como veículos de integridade espiritual, psicológica e física” (Murell, 2010, p. 96). O Palo Monte ou Regla Conga também é muito presente na cultura cubana. Segundo Fuentes e Schwegler (2005, p. 28-30), a religião tem raízes no credo bantu, no culto aos antepassados e a nganga, com componentes religiosos iorubá (panteão das divindades) e católicos (sacramentos e iconografia). Como afirma Cunha (2011, p. 51), com base na etnografia de rituais fúnebres dos paleros, há vários modos de se trabalhar a religião e que muitos destes modos são intercambiados entre as diversas práticas religiosas cubanas, outros tantos são solicitados (e ensinados) pelos “muertos” do “cordón espiritual” da pessoa. Neste caso, são mortos que trabalham para mortos, ou, de um outro ponto de vista, são os equivalentes, como sempre o foram. Saiba mais Como explica Cunha (2011, p. 42), nganga ou prenda é um “receptáculo com o qual trabalha o “palero”, que contém além de um espírito da natureza (nkisi) também o espírito de um “morto”, que acompanha o religioso em sua trajectória religiosa e que está materalizado através de seu crânio ou partes de ossos de seu corpo, levados do cemitério, em cerimônias especiais para a confecção da prenda”. 3.2 Haiti 10 A principal religião de matriz africana no Haiti é o Vodu. Segundo David Geggus (citado por Hall, 2017, p. 290), sua extensão, profundidade, enraizamento e resistência na ilha se explica pelos africanos trazidos – no século XVIII foram cerca de 40% – do Golfo do Benin. Trata-se de um território marcado pela identidade ioruba. Hall (2017, p. 199) nos conta que, a partir do colapso do Império Oió, o número de iorubás nas Américas foi crescente A religião vodu foi importante para a luta dos escravizados. Conforme Silva (2019, p. 12), foi Dutty Boukman, um homem negro escravizado, quem, em agosto de 1791, em uma reunião religiosa, “falou sobre deus e vingança, enfatizou a necessidade de serem livres e respeitarem as tradições”. Assim, nos meses seguintes,diversas rebeliões aconteceram pela ilha, queimando plantações e assassinando homens brancos. Iniciava-se a Revolução de São Domingos, que, entre derrotas e vitórias, sob a liderança de jacobinos negros, radicalizariam os ideais de 1789 – égalité, liberté et fraternité e conquistariam a independência em 1804, assumindo o nome de Haiti. Não obstante, conforme Chueire (2021, p. 96-97) tanto o crioulo haitiano quanto o vudu, principais contribuições dos africanos para a cultura haitiana, foram oficialmente reconhecidos, apenas, em 1987, e, em 2003, como religião oficial do país. Assim, no imaginário do senso comum, o racismo religioso se expressa pela redução do vudu às reproduções da indústria cultural dos EUA, considerando mera superstição ou mesmo causa dos males sociais do país. As práticas vudus são próprias dos iorubas, baseadas no culto aos antepassados na regulação dos vínculos da comunidade. No Haiti, houve a integração com elementos da religiosidade – santos e festas – católica, atenção à saúde física, com curas e cuidados preventivos, bem como uma visão integral da natureza (seres humanos, deuses e espíritos). Conforme Handerson (2010, p. 123-133), o vudu é uma religião com clero, espaço sagrado e rituais organizados, que extrapolam seus conceitos espirituais e sentidos religiosos, ordenando o modo de vida haitiana, com sentido ético, que não podem ser reduzidos à visão superficial e preconceituosa sobre bonecos e zumbis. TEMA 4 – RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS Como vimos, o Brasil recebeu o maior contingente de africanos escravizados nas Américas – cerca de 40%, conforme Lúcia Chueire (2021, p. 121) –, em sua maioria de origem banto e nagô (ioruba). Também, como a mão 11 de obra escrava foi utilizada em todos os ciclos econômicos, a população negra está presente de norte a sul do território brasileiro. Assim, no país, verifica-se uma diversidade de religiões cuja origem é africana que marcam a cultura brasileira. Segundo Reginaldo Prandi (2013, p. 11), Pode-se dizer que as religiões afro-brasileiras têm alcance relativamente modesto em termos de seus números de fiéis, mas o que delas extravasa para compor, refundir, temperar e contaminar a cultura brasileira fez delas grandes expressões religiosas, que, em adição ao catolicismo tradicional, ainda respondem por nossa identidade nacional. Figura 4 – Imagem de pretos-velhos, e outros artefatos religiosos em um Ilê (casa) de umbanda, no Rio de Janeiro Créditos: Márcio Coelho/Shutterstock. 4.1 Bahia e Rio de Janeiro Conforme Lucia Chueire (2021, p. 124), o candomblé se origina na Bahia, por volta de 1830, quando três mulheres negras passaram a dirigir cultos e rituais, organizando-se em nações: “Angola, Jeje, Nagô, Ketu e Caboclo são as cinco nações candomblés no Brasil” (Chueire, 2021, p. 125). Segundo Ligiéro (2011, p. 135), isso implica uma grande variedade nos ritos e cerimônias. Se, por um lado, cada terreiro tem suas entidades, rituais e linguagens, o candomblé é a religião quem mais preservou o culto aos orixás, com adaptações ao contexto 12 brasileiro. De modo que podemos entendê-la como descreve Daniela Calvo (2019, p. 268-269), com base no espaço sagrado do terreiro: O terreiro de candomblé é o principal espaço de reterritorialização da memória dos afrodescendentes, onde são transmitidos e mantidos vivos valores, conhecimentos, práticas e formas de viver, que afetam também a vida fora do terreiro; onde, através do rito, é estabelecida uma conexão com o passado e a África-mãe, invocando os ancestrais a comerem e dançarem juntos aos humanos e, através do mito, são lembradas antigas gestas e comunicados ensinamentos de vida Costuma-se descrever a umbanda como uma religião genuinamente brasileira, que reúne as três matrizes culturais do Brasil (indígenas, africanos e europeus) e que tem sua origem na década de 1930, no Rio de Janeiro. Porém, como explica Barbosa (2008, p. 8), já em 1853 se falava de “`Nbandla bantu como ramo independente das religiões ou ‘cultos’ afro-brasileiros”, com práticas de consulta, curas, adivinhações e transe, acompanhada de cantos e danças. Será nas primeiras décadas do século XX que a umbanda será reformada, convergindo com o kardecismo e passando por um processo de desafricanização, formando diversas associações na região Sudeste, com acesso a entidades do universo afro-indígena, trabalhando com pretos-velhos, pretas-velhas e caboclos. Entretanto, um segmento da Umbanda, chamado genericamente de “Povo da Rua”, estabelece uma forte conexão com seu passado remoto por meio de um ritual repleto de elementos africanos em seus aspectos performáticos: música, dança, canto, caracterização das entidades com figurinos, decoração do ambiente, ingestão de bebida alcoólica, consumo de tabaco e ocorrência de transe. (Ligiéro, 2011, p. 135) 4.2 Pernambuco e Maranhão No Pernambuco, Roberto Motta (1999, p. 21-24) nos explica que o xangô seria o equivalente do candomblé na Bahia. Uma religião de culto aos Orixás por meio das obrigações (sacrifício de animais), como troca entre os humanos e os orixás, com muito canto, dança e experiências de transe. Porém, esta não é a única expressão religiosa de origem africana. O catimbó (ou jurema) trabalha com espíritos curadores, cultuando mestres, caboclos, ciganos e pombagiras com cantos, dança, possessão e o uso ritual de tabaco e da jurema, bebida produzida a partir da árvore de mesmo nome (Motta, 1999, p. 18-20). Além disso, Motta (1999, p. 32) descreve a presença da umbanda, mais próxima do 13 kardecismo, bem como um xangô umbanizado como produto do crescimento demográfico na capital pernambucana. O Tambor de Mina, no Maranhão, ou, simplesmente, Mina, como explica Mundicarmo Ferretti (2006, p. 90-92), é a religião afro-brasileira hegemônica, tendo adeptos no Pará e em outras regiões do país, levada por migrantes maranhenses. Tambor de Mina é uma religião de culto aos voduns, entidades espirituais de forças da natureza e antepassados. Na capital, São Luís, existem apenas dois terreiros fundados por africanos: a Casa das Minas, de tradição Jeje, onde “só se entra em transe com vodum e se canta a noite toda em língua fon” (Ferretti, 2006, p. 92); e a Casa de Nagô, que, como indica a nação, se cultuam também os orixás. Porém, “a maioria dos terreiros de Mina, além de não terem uma ascendência africana, recebem principalmente entidades caboclas e cantam mais em português do que em língua africana, tal como ocorria no de Maximiana” (Ferretti, 2006, p. 92). 4.3 Rio Grande do Sul e países vizinhos Um olhar especial precisa ser dado ao Sul do Brasil e países vizinhos como Argentina e Uruguai. Se, de um lado, o forte processo de embranquecimento fez dessa região conhecida pela imigração europeia na passagem do século XIX para o XX, surpreende atestar que, em 2000, o Rio Grande do Sul concentrava 23% do total de membros das religiões afro- brasileiras do Brasil (Oro, 2008, p. 11). Segundo Ari Pedro Oro (2008, p. 13), no Rio Grande do Sul, o batuque é a religião que tem uma expressão mais africana, “pois a linguagem litúrgica é iorubana, os símbolos utilizados são os da tradição africana, as entidades veneradas são os orixás e há uma identificação às ‘nações’ africanas”, a saber, Oió, tido como o batuque mais antigo do estado; Jeje; Ijexá, Cabinda e Nagô. Há também no estado, a umbanda, cujos rituais, cantos e rezas são em português, e se cultuam caboclos, preto-velhos, ibejis e as falanges africanas. Oro (2008, p. 17) observa o crescimento da Linha Cruzada, que reúne a maioria de seguidores no estado e representa cerca de 80% dos terreiros, mas tem uma origem mais recente. Nos terreiros cruzados se cultuam exus e pombagiras, divididos em entidades do cruzeiro, do cemitério, da praia e da mata. Alejandro Frigerio e Eva Lamborghini (2011, p. 21) atestamque “as regiões afro-brasileiras (umbanda, batuque, quimbanda) se converteram em 14 uma opção atrativa para os setores médio-baixos e sobretudo populares na Grande Buenos Aires”. Ainda, essa presença aconteceu sobretudo pela ação de líderes religiosos do Sul do Brasil, bem como dos praticantes do candomblé uruguaio, contribuindo para um resgate étnico e ação política dos afro- argentinos. TEMA 5 – COMBATE À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA O poder colonial conseguiu se impor, primeiro, por meio de um racismo de base teológica e, logo, biológico, mas sempre bélico, destruindo outros modos de ser e estar no mundo e impondo um novo sistema de valores, como diz Franz Fanon (2019, p. 66) “afirmado, pelo peso de canhões e de sabres”. Se a religião foi o principal meio para operar “a recomposição dos seres alterados pela violência colonial” (Nogueira, 2020, p. 30), o espaço sagrado dessa população “foi visto como foco de perigo social e racial, criando-se, por isso, inúmeros estereótipos justificatórios contra o seu funcionamento” (Moura, 2019, p. 68). Figura 5 – Terreiro de Candomblé realiza celebração no dia 21 de janeiro, Dia do Combate à Intolerância Religiosa, diante do busto de Mãe Gilda de Ogum, no Parque do Abaeté, em Salvador Créditos: Joa Souza/Shutterstock. 15 Conforme Lucia Chueire (2021, p. 77-78), no processo de escravização, a religiosidade dos povos africanos também foi atacada e extirpada. Era comum o batismo cristão compulsório dos povos escravizados e colonizados. Assim, nesse projeto de dominação militar e econômica, a colonialidade do poder, tendo como principal aliado o discurso do cristianismo hegemônico, se “hierarquiza, classifica, oculta, segrega, silencia e apaga tudo que for do outro ou tudo que oferecer perigo à manutenção de um status quo” (Nogueira, 2020, p. 28). De modo que, quando essa hierarquia tem como fundamento a raça e manifesta uma discriminação sistêmica, “por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam”, chamamos isso de racismo (Almeida, 2019, p. 22). Nascimento (2019, p. 35) nos explica que as expressões culturais africanas que sobreviveram não deixaram de ser perseguidas no Brasil republicano e laico, sofrendo “toda sorte de restrições, ofensas, perseguições e importunações”. Talvez, seja por isso que uma das principais fontes de pesquisa para a história das religiões afro-brasileiras, conforme João José Reis (citado por Nogueira, 2020, p. 50), sejam os registros policiais e as notícias de jornal. Como nos conta Wilson Barbosa (2008, p. 8), as reuniões de pretos para praticar a religião, no século XIX, “quando descobertas ou denunciadas, eram dissolvidas a pata de cavalo ou a golpe de bastões policiais, sendo seus praticantes recolhidos presos, quando não logravam fugir”. Desde muito tempo, a expressão religiosa africana é discriminada, e até a década de 40 do século passado, lideranças e praticantes da umbanda, candomblé e outras tradições foram perseguidos, penalmente processados por prática ilegal da medicina, curandeirismo e magia negra e moralmente desqualificados por bruxaria, prostituição, como afirmam os documentos históricos (Nogueira, 2020, p. 50). E, mais recentemente, não são poucas as notícias que pessoas e espaços religiosos que foram atacados com discursos de ódio ou violência física. O mais famoso talvez seja de Mãe Gilda de Oxum, que faleceu depois de sua família e seu terreiro serem atacados por cristãos, motivados por uma publicação do jornal da Igreja Universal do Reino de Deus, que trazia a foto de Mãe Gilda “sob o título: “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes” (Rego, 2008). 16 Trata-se de uma expressão do racismo que estrutura nossa sociedade e atinge o fenômeno religioso, que, como explica Sidnei Nogueira (2020), não pode ser entendido apenas como a intolerância religiosa, que historicamente se verifica na perseguição aos cristãos sob o Império Romano, na Inquisição contra hereges, nas Cruzadas contra muçulmanos e nas guerras entre católicos e protestantes. O racismo religioso condena a origem, a existência, a relação entre uma crença e uma origem preta. O racismo não incide somente sobre pretos e pretas praticantes dessas religiões, mas sobre as origens da religião, sobre as práticas, sobre as crenças e sobre os rituais. Trata- se da alteridade condenada à não existência. Uma vez fora dos padrões hegemônicos, um conjunto de práticas culturais, valores civilizatórios e crenças não pode existir; ou pode, desde que a ideia de oposição semântica a uma cultura eleita como padrão, regular e normal seja reiteradamente fortalecida (Nogueira,2020, p. 47) Assim, a perseguição jurídica, a vinculação a forças maléficas ou o rebaixamento teórico das religiões de matriz africana são múltiplas expressões de um mesmo fenômeno social: o racismo religioso. NA PRÁTICA Com base no que aprendemos das religiões de matriz africana na América Latina, faça uma pesquisa sobre a presença das populações africanas em Curitiba. Saiba mais 1. Acesse o link a seguir e assista ao vídeo Afrocuritibanos: AFROCURITIBANOS. Prefeitura de Curitiba, 14 jun. 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=kU_BfKOL_LY>. Acesso em: 13 set. 2021. 2. LINHA PRETA CURITIBA. Disponível em: <https://linhapretacuritiba.wixsite.com/linha-preta>. Acesso em: 13 set. 2021. Após assistir ao vídeo e conhecer a página citada acima, destaque os elementos das religiões de matriz africana na cidade. FINALIZANDO Nesta aula, aprendemos o seguinte: 17 1. A religiosidade de origem africana é, historicamente, marcada pelo escravismo e colonialismo que buscou rebaixá-la, ao passo que foi o principal elemento de coesão social, rebeldia e sobrevivência para os africanos escravizados. 2. A história das religiões de origem africana poder ser organizada em três fases: sincretismo, branqueamento e africanização. 3. Na América Latina, em geral, há outras experiências de religiões de origem africana, como a santeria e o Palo Monte, em Cuba; e o vudu, no Haiti. 4. No Brasil, a população negra escravizada esteve presente em todo território nacional, contribuindo para a identidade nacional. As religiões afro-brasileiras são diversas e estão presentes de norte a sul – as mais conhecidas são candomblé, umbanda, xangô, catimbó, Tambor de Mina, batuque e Linha Cruzada. 5. As expressões culturais africanas, como a religião, que sobreviveram à violência colonial, não deixaram de sofrer com a perseguição jurídica, a vinculação a forças maléficas ou o rebaixamento teórico. Trata-se de racismo religioso, como é o caso de Mãe Gilda de Oxum, que faleceu, em 2000, depois que seu terreiro foi atacado sob a acusação de “macumbeiros charlatões”. 18 REFERÊNCIAS ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. BARBOSA, W. N. Da `Nbandla à Umbanda: transformações na cultura afro- brasileira. Sankofa, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 7-19, 2008. BASTIDE, R. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Edusp, 1971. CALVO, D. 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