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RELIGIOSIDADES NA AMÉRICA LATINA AULA 1 Prof. Jefferson Zeferino 2 CONVERSA INICIAL Nesta aula, vamos falar sobre a identidade e diversidade cultural, étnica e religiosa dos povos latino-americanos. Para isso, exploraremos conceitos importantes para a compreensão do fenômeno religioso, como espaço sagrado, organizações religiosas, textos sagrados, mitos e símbolos, ritos, festas, vida e morte. Também trataremos de aspectos histórico-culturais relevantes na formação religiosa da América Latina, identificando suas matrizes religiosas. Assim, você terá ferramentas para entender a pluralidade cultural e religiosa característica do continente. TEMA 1 – SAGRADO E PROFANO Antes de abordarmos propriamente nossos temas, é necessário fazer algumas considerações sobre o que venha a ser sagrado, bem como o seu comumente antônimo, profano. Atenção: a oposição entre sagrado e profano não possui relação qualitativa de tipo moral. Apenas denotam a diferença de significado de um objeto, pessoa, lugar etc. a depender de seu contexto e função. Não podemos, em hipótese alguma, afirmar que objetos, lugares, pessoas etc. são maus por serem profanos, ou bons por serem sagrados. Tão somente descrevemos que algumas coisas são sagradas pois estão inseridas em um contexto religioso e possuem uma função sacra, enquanto outras não. Figura 1 – Templo do sol na cidade inca de Machu Pichu, Peru Créditos: avlk/Adobestock. 3 1.1 Espaço sagrado A distinção entre sagrado e profano pode gerar muitos conflitos graves. Quando não compreendemos o fenômeno religioso enquanto tal, em sua diversidade e multiplicidade, assumimos posições de superioridade epistêmica. Assim, corremos o risco de contribuir com análises de tipo dogmatista e fechada, criando confusões e desrespeito, podendo chegar até a casos de intolerância e violência. É importante entendermos que, quando falamos de sagrado, estamos descrevendo um objeto, uma pessoa, lugar etc. que fazem parte de uma realidade religiosa, uma outra modalidade de experiência; bem como falamos de uma dimensão própria do ser humano, que se manifesta de diversos modos. O ser humano é ser religioso, ou seja, a partir de uma experiência primordial com o mistério que não pode ser racionalmente explicado, o ser humano produz religião, da qual o sagrado é sua expressão simbólica; experimenta e dá sentido ao mundo de uma forma que obedece a uma lógica própria, cujo valor é em si e se apresenta como categoria da consciência humana anterior a qualquer experiência empírica (Otto, 2007); bem como estabelece doutrinas, códigos, normas, preceitos e ritos e mantém relacionamentos com os ser/es divino/s. Essa dimensão sagrada, por mais difícil de ser explicada, como diz Mircea Eliade (1992), é possível de ser conhecida porque ela se manifesta (hierofania). Assim, percebemos que as hierofanias operam não apenas um sentimento de maravilhamento e espanto nos indivíduos, mas sobretudo alteram o espaço. A pedra, em contexto religioso, não é apenas pedra, é algo mais que a diferencia das outras. Uma pedra pode ser sagrada, sendo venerada e adorada não por ser pedra, mas por manifestar o sagrado, sendo absolutamente diferente das outras e mediando a relação entre a realidade visível e a invisível. De igual modo, a manifestação do sagrado coloca um limite territorial, uma descontinuidade do espaço. Como afirma Eliade (1992, p. 20), “todo espaço sagrado implica uma hierofania, uma irrupção do sagrado que tem como resultado destacar um território do meio cósmico que o envolve e o torna qualitativamente diferente.”. O mundo, a partir dessa irrupção, se divide entre aquilo que é sagrado, portanto, o espaço separado, daquilo que não é e, portanto, está fora desse 4 espaço, aquilo que é profano. Como a própria etimologia grega sugere, pro + fanus, o que está fora do templo. Nessa diferenciação, o espaço sagrado ganha uma centralidade em relação ao profano. O espaço sagrado é o centro do mundo, a partir de onde se abre a passagem de ligação “entre céu e terra”, se comunica e se relaciona através das mediações sacras, e se expande o mundo (Eliade, 1992, p. 24). É interessante notar como os templos, os santuários, as cidades santas, remetem a uma narrativa de criação do Cosmos (ordem) ou feito mítico, de tal modo que o mundo organizado seja a manifestação do sagrado e/ou produto de sua ação criadora (cosmogonia), a qual os humanos reproduzem, seja em seus edifícios e/ou rituais. Gil Filho (2012, p. 101-102) descreve, sumariamente, que no judaísmo, o sagrado se relaciona ao culto a YHWH e sua presença na Lei; no islamismo, aos locais consagrados pela presença divina e manifestações através do seu profeta; no cristianismo católico, em seu ato sacramental pela reunião e memória de seu mito fundador. É comum nas religiões ameríndias e afro-brasileiras, mais do que nas religiões semitas, a concepção da natureza (astros, rios, mares, florestas, montanhas etc.) como espaço sagrado, isto é, a natureza possui uma dimensão religiosa, manifesta o divino, media a comunicação entre o visível e o invisível e é uma grande harmonia criada pelos deuses da qual o ser humano forma parte. Essa concepção, como observa Farias (2017, p. 158), implica a proteção desses bens em detrimento de sua devastação. De todo modo não há, naturalmente, uma relação de rivalidade entre sagrado e profano, como se assumiu a partir da modernidade. Entre sagrado e profano, o conflito se coloca quando os limites (tabus) são ultrapassados, ou quando o caos coloca em risco a ordem. Como conclui Eliade (1992, p. 14), “o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no Mundo, duas situações existenciais assumidas pelo [ser humano] ao longo da sua história”, que separa e divide aquilo que está consagrado ao culto daquilo que está fora. 1.2 Organizações religiosas É, portanto, pela irrupção do sagrado que o ser humano constrói altares para os seus deuses, consagra objetos, pessoas e espaços para o culto, mantendo um relacionamento e se comunicando com o que denomina de divino. A partir disso, não ocorre tão somente a passagem do caos ao cosmos, mas se 5 produz religião. O ser humano organiza o seu mundo de tal forma que estabelece organizações religiosas, podendo ser, a depender das culturas, mais elementares ou mais complexas, com seus mitos, ritos, símbolos, festas e textos, doutrinas, ensinamentos, códigos, preceitos e normas. Em nosso mundo multicultural, há uma ampla gama de organizações religiosas. Cada tempo histórico e lugar geográfico em que uma comunidade humana se organizou produziu uma organização religiosa, podemos citar, por exemplo, o Hinduísmo, Jainismo, Sikhismo, Taoísmo, Confucionismo, Xintoísmo, Zoroastrismo, Judaísmo, Cristianismo, Islamismo, Fé Bahá’í, Candomblé, Umbanda, Quimbanda e Ameríndia, sem contar aquelas que já não existem. Importante destacar que cada uma dessas organizações tem uma estrutura própria, podendo conter denominações institucionalizadas. Como é o caso do cristianismo, em que há Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR), Igrejas Ortodoxas Orientais, Igrejas Protestantes, Reformadas, Pentecostais e Neopentecostais, cada uma com uma estrutura ministerial e litúrgica diferente. Não nos cabe descrever todas as formas de organização religiosa, apenas queremos apresentar alguns elementos que demonstram sua diversidade. Quando falamos de organização religiosa, nos referimos, sobretudo, à estrutura institucional que se organiza a partir daquela experiência primordial e fundante como manifestação do sagrado, a qual descrevemos acima. As organizações religiosas possuem lideranças espirituais, agentes mediadores da ação ritual, que podem também exercer funções políticas e administrativas da comunidade local ou mesmo emcontexto global e formam um grupo à parte, constituindo um clero, uma casta sacerdotal. Porém, sua forma, graduação, limites e controles são bastante variados, podendo haver ministérios independentes, grupos autônomos, uma maior ou menor colegialidade ou centralização do poder ministerial. Apesar de majoritariamente serem homens a exercerem a liderança, apontando para uma estrutura patriarcal, há organizações em que se privilegia institucionalmente esse ofício às mulheres, como é o caso do candomblé testemunhado por Sueli Carneiro e Cristiane Cury (2014, p. 121) ao investigar O poder feminino no culto aos orixás: 6 O candomblé se constitui originalmente no Brasil numa comunidade eminentemente feminina, embora o elemento masculino não estivesse totalmente excluído. Suas fundadoras tornaram-se figuras legendárias que continuam vivas e atuantes na memória cultural das comunidades de candomblé. Esse é o caso, por exemplo, de Iyá Nasso, uma das fundadoras da primeira roça de candomblé (nas primeiras décadas do século XIX, em Salvador; de Mãe Aninha, fundadora da mais tradicional roça de candomblé do país, o Ilê Axé Opô Afonjá, também em Salvador; e de Mãe Senhora, uma das mais ilustres e veneráveis iyalorixás (mães-de-santo) do Brasil. A liderança dessas mulheres negras representa um fenômeno inusitado no seio de uma sociedade evidentemente patriarcal e preconceituosa como a brasileira. As organizações religiosas podem possuir um corpo doutrinal, que fundamente não apenas como serão exercidos os ministérios e funções internos à comunidade, mas também o que é permitido e proibido, ensinado e transmitido entre os membros. Essas prescrições eventualmente são tomadas, ou de modo literal ou segundo a interpretação de seus mitos fundadores. TEMA 2 – LINGUAGEM RELIGIOSA Anteriormente, falamos que a religião é a expressão simbólica do sagrado, pois a experiência primordial não pode ser completamente explicada, mas sim, narrada e vivenciada. Também afirmamos que as organizações religiosas se formam ao redor das hierofanias baseadas em suas narrativas míticas. Expressão simbólica e narrativa mítica antecedem a razão discursiva. Tanto o símbolo quanto o mito são elementos a serem considerados com seriedade se buscamos compreender o fenômeno religioso. Figura 2 – Calendário Asteca. Escultura em pedra com sol e hieroglifos Créditos: Amelia/Adobestock. 7 2.1 Símbolos O símbolo, como sugere a etimologia grega syn+bolon, significa a união de duas coisas, e conforme o costume grego, não está inserido no contexto religioso. O símbolo era uma peça de cerâmica dividida em dois ao se celebrar um contrato. Para legitimar uma posterior reclamação, bastava unir as partes e comprovar a amizade selada (Rossi; Perondi, 2020, p. 104) Assim, o símbolo, como entendemos atualmente, não se refere apenas à união de duas coisas complementares, mas no plano da linguagem e dos sentidos, as coisas comunicam algo além do aparente, isto é, possuem uma função simbólica. Em nosso mundo, há diversos símbolos. René Girard (cf. Rossi; Perondi, 2020, p. 101) classifica os símbolos entre aqueles que usamos nas ciências exatas; nos emblemas convencionais; nos valores e na religião. Apesar dessa presença diversa dos símbolos, no estudo das religiões, eles são compreendidos como linguagem originária e fundantes da experiência religiosa. O símbolo é produto especificamente humano, que comunica o mais profundo da sua experiência; estabelecem a mediação entre o mundo natural e o mundo religioso, o visível e o invisível; e ao mesmo tempo em que aparece, também esconde. Os símbolos possuem cinco características: 1) polissemia: a função simbólica das coisas é plural; 2) relacional: pelo símbolo o ser humano se relaciona com o cosmo, outros indivíduos e o sagrado; 3) permanente: o valor simbólico das coisas permanece o mesmo ao logo dos séculos; 4) universal: o mesmo símbolo com o mesmo valor pode surgir em diversas culturas; e 5) pré- hermenêutico: a significação do símbolo é inserida pelo produtor e posteriormente é captada pela interpretação (Rossi; Perondi 2020, p. 108). Cabe retomar o exemplo da pedra sagrada. É uma pedra específica que comunica algo para além do aparente e natural. Trata-se de um sentido simbólico compartilhado pelos membros de uma cultura, e está vinculado às hierofanias e seus mitos. 2.2 Mitos Os mitos são narrativas, discursos que explicam a origem das coisas. Porém, não podemos confundir os mitos com uma explicação cientifica, tampouco carente de racionalidade. Os mitos não são discursos falsos ou pré- científicos. 8 Para uma melhor compreensão, os mitos, primeiro, devem ser analisados com um texto, literatura, ou melhor, como uma comunicação. Os mitos possuem emissor e receptor, bem como surgem a partir de uma realidade sócio-histórica e estão passíveis a múltiplas interpretações. Segundo, precisamos considerar que os mitos narram acontecimentos originários, geralmente protagonizados pelos deuses, explicando o sentido das coisas e instaurando como elas são, tocando o profundo da existência humana, a partir da vida concreta, e expressam uma verdade existencial (cf. Rossi; Perondi, 2020). Portanto, o estudo do mito como fenômeno religioso deve evitar duas posturas: 1) negar a realidade que o mito expressa; 2) fixar-se na literalidade da narrativa. Conforme resume Schlögl (citado por Rossi; Perondi, 2020, p. 78): Os mitos são histórias sagradas. Seu texto é construído para tornar dizível o indizível; portanto, utiliza-se de metáforas e dos símbolos, a fim de exprimir suas ideias que, mais do que simples palavras, são compostos que mobilizam uma ampla gama de energias emocionais direcionada aos indivíduos para os quais o mito se apresenta. TEMA 3 – TEXTOS SAGRADOS Entre os diversos modos de manifestação do sagrado, os textos estão presentes em muitas religiões. Eles guardam a sabedoria da comunidade religiosa, reunindo doutrinas, leis para o convívio e normas para o culto. Assim, garantem a continuidade da fé, colaboram na transmissão do saber e representam o legado espiritual e filosófico da comunidade (Farias, 2017, p. 166). A sacralidade dos textos, que fundamentam teologias, códigos, normas, preceitos, mandamentos, ritos e celebrações religiosas e expressam o núcleo central da fé se verifica na ação divina. As narrativas são consideradas reveladas e inspiradas pelos deuses e narram as relações divinas, bem como experiências dos grupos e/ou indivíduos com o sagrado. Os seres humanos são responsáveis pela conservação, transmissão, interpretação e sistematização dos textos sagrados. Além disso, como indica Farias (2017, p. 167), os textos sagrados constituem rico elemento de análise do fenômeno religioso. Segundo Gil Filho (2012, p. 33), é possível acessar a sacralidade das construções epistêmicas das religiões manifestadas nos textos (livros sagrados, oralidades sagradas e mitos). 9 Figura 3 – Vedas: escritura sagrada do Hinduísmo em sânscrito Créditos: liubomirt/Adobestock. 3.1 Texto oral Quando falamos de texto, não nos limitamos unicamente à sua forma escrita. Os textos sagrados, narrativa oral, escrita, ou pictórica, relatam uma experiência religiosa. Os textos orais são formas primordiais da narrativa religiosa. De modo que as religiões organizadas com um corpo de textos escritos sagrados têm suas tradições (mitos, símbolos, ritos, iniciação) consolidadas pela fala e pela palavra, tanto no nível linguístico como prático, os quais produzem leituras e releituras, em um processo de sistematização, até chegar ao cânon. Não obstante, não se trata de um processo evolutivo universal, e ainda em nossos tempos, há religiões que mantêm seus textos sagrados na oralidade (Croatto, 2002, p. 397-400). Ao contrário de uma missa católica que tem um lugar, tanto no templo comono rito, dedicado para a leitura de um livro sagrado, entre religiões orais, a transmissão de sua tradição acontece através da palavra dita. Como é o caso dos Mbyá-Guarani, que vivem na região leste do território paraguaio, cujo principal dispositivo de resistência é a palavra. Não a palavra escrita, mas a densidade da palavra em toda sua riqueza poético-religiosa conserva a 10 identidade tribal, nomeia as coisas segundo seu ser divino e se expressa, como explica o antropólogo Pierre Clastres (1979, p. 155-164), na convicção religiosa e na promessa dos deuses dita pelos “senhores das palavras” – caciques- xamãs-profetas – de que os Guarani, recusando o Um como essência universal, habitarão a Ywy mara-ey, a Terra sem Mal. Os Guarani cultivam o gosto pela palavra, que é sua salvação, e como descreve Clastres (1979, p. 160-164), ao amanhecer o pai se coloca em prece em busca das “ñe’e porä tenonde, as belas palavras originais, linguagem divina em que se abriga a salvação dos homens”, para que os deuses reconhecendo seus esforços falem a Palavra que abre o caminho para Ywy mara-ey. 3.2 Texto escrito Os textos sagrados mais conhecidos e acessíveis são aqueles que passaram por uma sistematização e se expressam de forma escrita. Diversas religiões possuem um conjunto de textos sagrados, como descreve Farias (2017, p. 166): Para o hinduísmo, são denominados de Vedas ou Escrituras Védicas; o cristianismo tem na Bíblia o seu livro sagrado; o conjunto dos escritos sagrados do judaísmo é chamado de Tanach; o Corão é o livro sagrado da religião islâmica; para o budismo, temos o Sutra de Lótus e o Pali Tripitaka; e o Kitáb-I-Aqdas da Fé Bahá’í, entre outros. Cada texto sagrado possui uma história de formação, compreendendo um período amplo desde a manifestação religiosa, inspiração sagrada, mediação, transmissão oral, produção escrita até sua sistematização canônica. As histórias sagradas contadas e recontadas, lidas e relidas nos espaços sagrados em diversos tempos e contextos, sofrem influências das culturas em que circulam, até chegar à sua versão final e aceita pelas comunidades que participam da organização religiosa. A passagem da oralidade para a escrita não significa a superioridade de uma organização religiosa em relação a outra. Como aponta Croatto (2002, p. 499), o texto escrito é comum em tradições religiosas que se expandiram no espaço e no tempo. “A escritura constitui um meio privilegiado para a comunicação e transmissão das crenças”, (Croatto, 2002, p. 416) apresentadas de forma fixa que devem ser preservadas, com valor em si mesma e referência de autoridade, bem como preservam a oralidade, porém podem sofrer censuras ou acréscimos no processo de sistematização. 11 TEMA 4 – RITOS, FESTAS, VIDA E MORTE Todas as religiões, comunidades, sociedades e grupos humanos possuem ritos e festas. Cerimônias com formas fixas, repetitivas e prescritas em textos escritos ou preservadas pela tradição oral. Eles podem ter um caráter sagrado ou profano, oferecendo sentido e identidade aos indivíduos e marcando o ritmo da vida social. Figura 4 – Festa do Bumba meu Boi em São Luís do Maranhão, nordeste brasileiro. Créditos: Ericatarina/Adobestock. 4.1 Ritos e festas Quando o sagrado, isto é, quando um rito é vivido no interior de uma comunidade de fé, ele opera a fragmentação do espaço e do tempo e está intimamente em relação com seus mitos. A comunidade, por meio de suas práticas rituais, é inserida no espaço e no tempo sagrado, os quais obedecem a uma lógica própria. Objetivamente, os ritos são um conjunto de ações – gestos e palavras – normatizadas com um determinado fim. São celebrações, cerimônias, cultos, orações, gestos, devocionais (Rossi; Perondi, 2020). 12 O rito faz o que os mitos narram. Através da repetição de gestos, palavras e às vezes músicas, como explicam Rossi e Perondi (2020, p. 16), citando Mircea Eliade, a comunidade abole o tempo cronológico se voltando para um tempo imemorial, o tempo de seus mitos. O rito é uma ação simbólica que imita a ação cosmogônica dos deuses, fazendo da comunidade o centro do universo, que reorganiza o caos, articula e dá identidade ao grupo, e estabelece uma relação com a transcendência. Faria (2015, p. 162), citando Santidrián, apresenta três categorias de ritos: “a) Ritos de comportamento: tabu, de purificação, de passagem; b) Ritos mágicos: feitiços, encantamentos que põem em ação forças mágicas; c) Ritos religiosos: oferendas, sacrifícios, preces.”. Há ritos comuns a todas as culturas que marcam o ritmo da vida social e a situação existencial dos indivíduos no grupo, por exemplo, nascimento, matrimônio, sazonais, iniciação e morte. As festas são fortes expressões da cultura humana. Suas origens costumam ser sagradas, estando relacionadas aos ciclos temporais, ao culto a uma divindade, ou a um espaço sagrado. As festas rompem com a rotina e reorganizam o corpo social, muitas vezes através da transgressão e rebeldia vividas ritualmente. Porém, nem todas as festas são religiosas, ou perderam seu sentido sagrado, pois é próprio dessas manifestações certa fluidez. Movimentos históricos influenciam essas expressões, transformando e renovando a memória das tradições, bem como mantendo vivo o risco de que várias línguas, sabedorias, ritos, festas, religiões e culturas desapareçam em dado momento. 4.2 Vida e morte O nascimento e falecimento são comuns a todos os seres vivos. O ser humano como produtor de símbolos busca dar sentido a essas experiências. O nascer e o morrer são um dilema da existência. Assim, esse ciclo é vivido religiosamente, e todas as culturas possuem ritos de passagem, que compreendem momentos fortes da existência. Não obstante sua diversidade, os ritos de passagem obedecem a uma lógica universal: alteram o estado das pessoas, após um tempo de “morte”, criam um ser novo, conhecedor e submetido às regras e saberes do grupo (Rossi, 2020, p. 28). A morte, para o ser humano religioso, não necessariamente é entendida como fim, mas como passagem definitiva, em que 13 O término da viagem é um mundo subterrâneo ou celeste mais ou menos inverso ao dos vivos, onde às vezes o status social é o mesmo que o daqui (África, Peru antigo, China) e onde às vezes o falecido é, ao contrário, julgado e sentenciado segundo seus méritos (hinduísmo, budismo, religiões abraâmicas). (Tolra; Warnier, citados por Rossi; Perondi, 2020, p. 29) TEMA 5 – FORMAÇÃO RELIGIOSA DA AMÉRICA LATINA Pensar a formação religiosa da América Latina é pensar a história dos povos que habitaram e habitam a maior parte do continente americano. América Latina é um território complexo, compreende mais de 20 mil km², desde o golfo do México, no Hemisfério Norte até a Patagônia, no Hemisfério Sul, cujas primeiras ocupações humanas datam de cerca de 12 mil anos atrás (Pivetta, 2012). De modo que não podemos reduzir a análise do fenômeno religioso a conceitos genéricos e anônimos que reduzem contribuições importantes, com o risco de mantermos o silêncio violento, bem como a caricatura sob o véu ideológico da branquitude, como alertara Lélia Gonzalez (1988, p. 70) Figura 5 – Mulheres Quechua sobre um antigo muro inca em Chinchero, Cusco, Peru Créditos: SL-Photography/Adobestock. 5.1 Pluralismo e diversidade na América Latina O território da América Latina é historicamente habitado por uma multiplicidade de povos. Os habitantes da Abya Yala (Terra Madura), como os povos originários chamam o território (Porto-Gonçalves, 2015), são muitos e diversos e se estendem por todos o continente, como poetiza Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra (1980): Povos dos Andes, das Selvas, dos Pampas, do Mar, do 14 Colorado, de Tenochtilan, de Machu Pichi, da Patagônia, do Amazonas, dos Sete Povos do Rio Grande. São Apache, Azteca, Aymara, Araucano,Maia, Inca, Tupi, Tucano, Yanomani, Aymore, Irantxe, Karaja, Terena, Xavante, Kaingang, Guarani e outros mais, cada qual com uma expressão religiosa própria. O empreendimento colonial promovido pelos povos europeus, sobretudo ibéricos, a partir do século XVI, mas também anglo-saxões e franceses, impôs outra cultura, bem como foi responsável pela escravização e tráfico de milhões de pessoas da África (Hall, 2017). É importante notar que África não é um país, mas um continente vasto com variedades e complexidades próprias. A América Latina recebeu, até o final do século XIX, homens e mulheres, como apresenta Hall (2017), de diversas etnias africanas e variadas regiões, as mais proeminentes são povos da Costa do Benin no Haiti, os Bantu em Cuba e Nagô no Brasil. O racismo científico da passagem do século XIX para o XX pôs em marcha um processo de branqueamento dos povos latino-americanos. O Estado brasileiro é um ótimo exemplo, não obstante nações como a argentina terem sido mais efetivas neste empreendimento eurocêntrico. Negros, índios e mestiços foram identificados como a causa dos problemas para o desenvolvimento das jovens nações do continente. Foi preciso, portanto, apagar as contribuições desses povos e trazer trabalhadores europeus e japoneses, fugidos das guerras e dos ciclos de fome, para construir uma América Latina branca e promissora. 5.2 Matrizes religiosas A América Latina é este lugar complexo de encontro de culturas. Não um encontro pacífico. Colonialismo e racismo marcam nossa formação enquanto povo e estruturam nossas nações. Apenas nas últimas décadas voltamos o olhar para nossas culturas sem a visão romântica de convivência pacífica e harmoniosa, que produziu uma cultura mestiça, para compreender que a despeito de toda tentativa de destruir a cultura dos africanos e seus descendentes, bem como as dos povos ameríndios, elas sobrevivem. Ao lado do cristianismo, sobretudo o católico, mas também protestante e pentecostal, as religiões ameríndias e afro-diaspóricas são as principais matrizes religiosas da América Latina. Porém, uma análise mais específica deve atentar para os contextos sócio-históricos de cada região do continente; bem como, para um olhar mais atual, deve-se considerar a cada vez maior proeminência dos 15 pentecostalismos e a presença de grupos religiosos minoritários. Posteriormente, você terá a oportunidade de aprofundar alguns desses aspectos. NA PRÁTICA A partir do que aprendemos, procure identificar como a negação da sacralidade de determinadas experiências religiosas produz intolerância e violência, desconsiderando a identidade e diversidade cultural, étnica e religiosa dos povos latino-americanos. A colonização e escravização dos povos ameríndios e africanos foi justificada por organizações religiosas, não reconhecendo sua condição humana. Ainda hoje é possível identificar esse racismo religioso: quando, em um combate espiritual do bem contra o mal, espaços sagrados e membros de religiões afro-diaspóricas são destruídos e violentados quando, em nome do progresso e desenvolvimento, espaços sagrados para as religiões ameríndias são devastados; quando, em soberbo racionalismo, reduzimos mitos, símbolos, ritos, festas etc. a folclore. Estas e outras situações podemos encontrar em diversos espaços sociais. Daí a importância de um entendimento aberto do fenômeno religioso considerando a identidade e diversidade dos povos. FINALIZANDO Nesta aula, aprendemos: • Sagrado e profano são duas modalidades do ser no mundo. Distinção que se estabelece pela manifestação do sagrado (hierofania), organizando tempos e espaços e instituições variadas com mitos, ritos, símbolos e festas próprias. • A linguagem religiosa é simbólica e mítica. O símbolo comunica algo mais do que o aparente e remete ao sagrado. O mito narra acontecimentos originários revelando uma verdade existencial. • Os textos sagrados garantem a continuidade da experiência sagrada, colaborando na transmissão e representando seu legado. São revelados e inspirados pelos deuses e expressam o núcleo da fé. Podendo ser textos escritos ou orais. 16 • Todas as religiões possuem ritos e festas vinculados aos seus mitos. São expressões religiosas que marcam a vida dos indivíduos e o ritmo social, oferecendo identidade e experiências com o sagrado. • A América Latina é um território complexo e diverso, com povos plurais. A formação continental está marcada pelo colonialismo e racismo, com três principais matrizes culturais: cristianismo, povos originários ameríndios e povos afro-diaspóricos. 17 REFERÊNCIAS CARNEIRO, S.; CURY, C. O poder feminino no culto aos orixás. In: NASCIMENTO, E. L. (Org.). Guerreiras de natureza: mulher negra, religiosidade e ambiente. São Paulo: Selo Negro, 2014, p. 118-142. CASALDÁLIGA, P. et al. 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