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RELIGIOSIDADES NA AMÉRICA LATINA AULA 6 Prof. Jefferson Zeferino 2 CONVERSA INICIAL Nesta aula, vamos aprender sobre noções contemporâneas do campo religioso. Se em outras ocasiões aprendemos sobre conceitos fundamentais para o estudo do fenômeno religioso, as matrizes da religiosidade latino- americana, bem como a presença e desenvolvimentos dos grupos religiosos, nesta aula queremos apresentar as expressões religiosas contemporâneas, as características do contexto pluralista contemporâneo, como trânsito religioso, dupla pertença, sincretismos, religiosidades populares, intolerância religiosa e diálogo inter-religioso. TEMA 1 – NOVAS EXPRESSÕES RELIGIOSAS A partir da segunda metade do século XX, na Europa e EUA, surge uma nova onda espiritual, segundo Libânio (1997, p. 7-9), produto da grande decepção política, econômica, cultural e religiosa com as promessas da modernidade. A chamada Nova Era (New Age), como ficou conhecida, não pode ser descrita como um movimento único e coeso, pelo contrário, trata-se de diversos movimentos religiosos alternativos às religiões hegemônicas, marcados, como descreve Libânio (1997, p. 12) por tendências ecléticas, gnósticas, terapêuticas e globais. Olhemos para esse complexo fenômeno religioso, a fim de compreender seu surgimento e desenvolvimento, bem como sua presença na América Latina. A partir do movimento contracultura dos anos 60 irá surgir no campo religioso ocidental uma porção de experiências místicas de tendências ecléticas, gnósticas, terapêuticas e globais, que ficaram conhecidas como religiões de Nova Era. Conforme Wouter Hanegraaff (citado por Guerriero et. al., 2016, p. 13), as origens da Nova Era têm relação com a expectativa milenarista e astrológica da chegada da Era de Aquário, e daí vem seu nome. Trata-se da superação da Era de Peixes, marcada pelo dualismo e materialismo. Se a nova sociedade não chega, diversas comunidades surgem, buscando ressignificar os valores tradicionais, sobretudo entre a juventude ocidental insatisfeita com os rumos do capitalismo, unindo a crítica à cultura ocidental com esoterismo, elementos da espiritualidade oriental e noções psicologizantes. Assim, a Nova Era está intimamente conectada ao movimento de contracultura dos anos 60 e 70. 3 De acordo com Duarte [...], esta rebelião se torna político-mística, “onde os jovens manifestam o desejo de mudar o mundo a partir de um movimento que vem de dentro para fora, onde era necessário mudar o cotidiano, valorizando a liberdade individual” [...]. Desta forma, os jovens ligados ao movimento contracultural, que ficaram conhecidos posteriormente como hippies, procuraram criar uma “sociedade alternativa”, na qual se estabelecessem os seus ideais libertários. (Cordovil; Castro, 2014, p. 118) Se incialmente os movimentos espirituais da Nova Era eram explicitamente anticapitalistas, difusos, sem instituições etc., com a globalização neoliberal se adquire aspectos de bem de consumo, ganhando espaço no mercado religioso, nos negócios e na indústria cultural. Heelas e Woodhead (citados por Guerriero, 2016, p. 15-16) adotam o termo Espiritualidades de Vida para explicar o desenvolvimento das práticas da Nova Era. Segundo os autores, de uma espiritualidade de contracultura passou-se para uma espiritualidade de seminários, adotando elementos da sociedade convencional, aliando o consumo e elementos mundanos ao despertar espiritual e conhecimento de si. Daí decorre a espiritualidade de prosperidade individual, onde “o dinheiro é uma expressão da dimensão espiritual, e a espiritualidade passa a ser aplicada ao sucesso de uma carreira profissional” (Heelas; Woodhead citados por Guerriero, 2016, p. 16). Finalmente, a última fase é das espiritualidades de bem-estar, em uma integração holística do Eu, natureza e os outros em busca de harmonia, cura, sabedoria. Cordovil e Castro (2014, p. 120) observam que a recusa da institucionalização se transforma posteriormente em adesão a organização das crenças, hierarquia, local de culto, multiplicando centros, templos, sedes, e, constituindo assim, uma religião, bem como uma busca de estabilidade pelo discurso exclusivista que exige a conversão total dos adeptos. Conforme Fabiano Birchal (2006, p. 100): O retorno à religiosidade, neste sentido, ocorre através da difusão destas práticas e conceitos esotéricos, ocultos e mágicos. Sociedades iniciáticas, ordens, confrarias e correntes espiritualistas passam a difundir um novo conhecimento religioso, que bebe de diversas fontes. Um retorno plural ao sagrado, à dimensão transcendental, num movimento individual que tem por objetivo mover o coletivo rumo a níveis mais elevados de consciência, ativando nos homens a ideia de que tudo e todos estão intimamente conectados. Ainda, segundo Guerriero et. al. (2016), as espiritualidades da Nova Era ultrapassam as dimensões puramente religiosas e se disseminam no meio cultural, influenciando tanto religiões tradicionais como a cultura secular, constituindo um novo ethos. De modo que eventos, workshop, feiras místicas e 4 até mesmo a internet são espaços de divulgação, promoção e encontro destas religiões, bem como a indústria do entretimento, com programas de televisão, telenovelas, publicidades, mercado editorial, cinema e celebridades que divulgam valores “como o poder da magia, a busca espiritual para além das instituições religiosas, a integração holística entre ser humano e universo e a perspectiva de evolução do ser humano a um estágio espiritual superior” (Guerriero et. al., 2016, p. 21). O Cipó amazônico, conhecido como Jagube, a partir do qual se produz a Ayahuasca – bebida sagrada consumida durante os rituais de Santo Daime, no Brasil. As religiosidades da Nova Era são também um retorno às práticas anteriores de civilizações que antecedem a presença cristã, como por exemplo, egípcias, gregas, nórdicas, celtas, indianas, japonesas, ameríndias etc. Conforme Guerriero et. al. (2016, p. 18): Ao mesmo tempo que os buscadores espirituais demonstravam interesse pelos segredos esotéricos e pelas terapias orientais (principalmente da Índia e do Tibete), paralelamente estabeleceram um encontro com a magia xamânica (inicialmente a dos índios norte- americanos, como os Lakota, e posteriormente da América do Sul). Dessas interações nasceram novos híbridos entre Nova Era e as culturas nativas ou tradicionais. Nesse sentido, a pesquisa de Daniela Cordovil e Dannyel Teles de Castro sobre a presença e expansão das Religiões de Nova Era em Belém do Pará pode contribuir para compreendemos a difusão destas religiosidades no nosso continente. Segundo as autoras (2014, p. 120-121), os elementos comuns destas religiões são 1) origem na contracultura; 2) saberes ancestrais e/ou de civilizações extintas; 3) integração com a natureza; e 4) ênfase no autoconhecimento. Não obstante, se pode classificá-las em a) bruxaria e neopaganismo: que reúne religiões como Wicca, Druidismo e Odinismo; b) religiões orientais, como Sokka Gakai, Seicho-no-ie, Hare Krishna, Igreja Messiânica e Ananda Marga; c) religiões ayahuasqueiras, como o Santo Daime; e d) grupos místicos e esotéricos, como Nova Acrópole, Rosacruz e Vale do Amanhecer. Algumas destas tem sua origem e desenvolvimento nos países do Norte, sobretudo os EUA, e chegaram por meio de eventos, workshop místicos ou pela internet, porém religiões como Santo Daime, Nova Acrópole e Vale do Amanhecer são religiões latino-americanas. Se as duas últimas são produto de 5 um processo de bricolagem de diferentes elementos de diversas culturas em busca do aperfeiçoamento humano, o Santo Daime ou as religiões ayahuasqueiras, como explica Amanda Vicentini (2021), a partir do xamanismo indígena e do catolicismo popular, se produz uma religião terapêutica quecombina a ayahuasca (bebida produzida a partir do cipó Jagube) e hinos em seus rituais, cujos efeitos direcionam o caminho, as tarefas, os comportamentos e os sentimentos que precisam conduzir a vida do indivíduo, produzindo curas de enfermidades, males e desequilíbrios. TEMA 2 – PLURALISMO RELIGIOSO Após nossos encontros, nos parece óbvio afirmar a diversidade de religiões, bem como a diversidade interna às comunidades. Se olharmos as grandes religiões, que congregam maior número de fiéis no mundo, tal diversidade é patente. Apenas entre os cristãos, por exemplo, há as igrejas ocidentais e orientais, os católicos, protestantes históricos, igrejas de missão, pentecostais, neopentecostais, ortodoxos. O mesmo acontece em grupos religiosos minoritários que cada vez mais ganham expressão com a internet. Figura 1 – Em contexto de pluralismo religioso, compreende-se que as religiões são não apenas genuinamente diferentes, mas também autenticamente preciosas Crédito: Vector_S/Adobe Stock. Diante desta diversidade, é comum se deparar com comparações valorativas, ou emissão de juízos que determinam se este ou aquele grupo é uma religião se obedecem aos critérios mínimos para participar do grupo das religiões. As observações de David Tracy sobre as dificuldades postas por 6 leituras simplistas reducionistas e totalizantes das religiões contribuem para pensarmos o fenômeno religioso no contexto de pluralismo, pois “a percepção das características das religiões particulares é que permite a criação de um quadro mais amplo daquilo que se pode compreender por religião” (Zefferino; Sinner, 2019, p. 684). Conforme José Maria Vigil (2015, p. 1765), este contexto de pluralismo ou paradigma pluralista é produto das conquistas modernidade, sobretudo das chamadas liberdades individuais e a superação dos conflitos religiosos europeus. Inicialmente, se passou de um paradigma exclusivista – somente minha religião é verdadeira – para um inclusivista – a verdade das outras religiões participa da verdade da minha. O exclusivismo quase sempre levou as religiões a atitudes imperialistas, coloniais, hegemônicas, agressivas... “em nome de Deus” e “para sua maior glória”. As cruzadas, as guerras santas, as conquistas para expandir a fé, a violência cruel contra os infiéis, para instaurar o Reino de (nosso) Deus na terra... somente são possíveis em religiões que se autocompreendem a si mesmas desde um modelo. O complexo de superioridade [...], a infravalorização das outras religiões, o fechamento no próprio modo de ver e crer, a recusa das contribuições das demais religiões, a incapacidade de dialogar inter- religiosamente... são atitudes derivadas caracteristicamente do inclusivismo. Entretanto, dependendo do contexto social, corre várias coisas: uma hemorragia constante e massiva de pessoas abandona as religiões que resistem a adotar formas religiosas de pensamento e de espiritualidade de acordo com a visão pluralista da sociedade atual civil, ou melhor, outras pessoas, sobretudo pessoas jovens de profunda religiosidade são atraídas a posições fundamentalistas e extremistas, dispostas a dar literalmente a vida na tarefa de implantar sobre os infiéis, a sangue e fogo, o projeto de uma sociedade religiosa exclusiva à maior glória de Deus. (Vigil, 2015, p. 1779) Em um contexto de pluralismo religioso se aceita que as pessoas são livres para aderir a um grupo religioso, que as religiões são livres em suas práticas religiosas, bem como que todas as religiões são iguais. Neste paradigma, como explica Faustino Teixeira (2005, p. 30), “as religiões são compreendidas não apenas como genuinamente diferentes, mas também autenticamente preciosas. Há que honrar esta alteridade em sua especificidade particular”. Desde modo, o campo religioso é mais complexo e mais rico, e o indivíduo tem diante de si muitas opções ou formas de expressar sua religiosidade, como literariamente expressou João Guimarães Rosa em seu clássico Grandes Sertões Veredas: Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e 7 aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca, mas é só muito provisório. Eu queria rezar – o tempo todo (Rosa, 2019, p. 19). As disposições da personagem de Guimarães Rosa podem ser descritas com sincréticas ou de múltipla pertença, noções que teremos a oportunidade de ver adiante. Não obstante, importa considerar que o contexto pluralista aponta para uma nova configuração da dimensão religiosa da existência marcada, conforme Roberlei Panasiewicz e Gilbraz Aragão (2015, p. 1858-1859) por uma lógica transreligiosa, favorecendo a “percepção de uma experiência comum, entre e para além das religiões. [...] um fiel pode reconhecer nas outras religiões caminhos de busca do sagrado pelo ser humano, que questiona e procura. ” TEMA 3 – TRÂNSITO RELIGIOSO A pluralidade não apenas constitui o contexto latino-americano, mas incide no fenômeno religioso. Ora, diante desta multiplicidade de religiosidade, aliada a lógica da sociedade de mercado e o individualismo, que se consolidou após a dissolução da URSS, a vitória do neoliberalismo, bem como a problematização dos paradigmas da modernidade, cresce o fenômeno denominado trânsito religioso: a migração de indivíduos de uma religião para outra. O mais simples exemplo de trânsito que identificamos é a mudança de pertença religiosa. Isso pode ser dar no exemplo de um cristão que se torna espírita, budista ou islâmico – e não tem sido raro esse fenômeno no Brasil –, ou de alguém que deixa a pertença religiosa da Umbanda para assumir a cristã, ou vice-versa, ou mesmo a passagem dentro do universo cristão de uma confissão católica para uma de natureza evangélica (Ribeiro, 2018, p. 110). O campo religioso, no século XXI, está marcado pela circulação de indivíduos entre religiões sem se vincular a qualquer delas, bem como a abertura para novas combinações sincréticas. Segundo Birchal (2006, p. 101), atendendo a nova demanda de consumo do ser humano cria-se “um supermercado religioso, no qual há ofertas de todos os gêneros, para os mais variados buscadores”. No mesmo sentido, Francisco (2011, p. 462), ao analisar o trânsito religioso no interior do Brasil, observa que “os novos contextos, a concorrência e diversidade na oferta, ao mesmo tempo 8 em que têm destacado a busca de filiação ao grupo, têm suscitado, por outro lado, formas de filiação cada vez mais individualizadas, mais transitórias”. Parece-nos que a conclusão da personagem de Guimarães Rosa é exemplar: “Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca, mas é só muito provisório”. Deste modo, podemos entender os movimentos no campo religioso, como o crescimento dos brasileiros que se declaram sem religião, pois, como explica Marcelo Camurça (2017, p. 58), não significaria adesão ao ateísmo, mas representam “no Brasil, o processo de “desfiliação religiosa” relacionado a uma (pós) modernidade religiosa (Camurça, 2006: 44- 45) já consagrada na frase de Gracie Davies: “believe but not belong” (“acreditar, mas não pertencer”). É entre os “sem religião” que se verifica “um trânsito entre as religiões estabelecidas sem se vincular a qualquer delas” e “forte disposição para o trânsito religioso e para novas combinações sincréticas” (Camurça, 2017, 63-64). Aliado a isso, as considerações de Claudio de Oliveira Ribeiro (2018, p. 113) sobre trânsito religioso demonstram que a recomposição de diferentes sistemas de crenças pode gerar processos de duplaou múltipla pertença: Desse modo, diferentes tipos podem ser caracterizados: o das pessoas que afirmam determinada pertença e admitem experimentar outras expressões religiosas, as pessoas que declaram uma religião, mas por algum motivo exercem outra, as pessoas que vivenciam de forma integrada mais de uma tradição religiosa, as pessoas que não aderem a uma religião específica, mas transitam por mais de uma, e aquelas que, mesmo mantendo a sua pertença religiosa, articulam elementos simbólico-rituais de outras religiões. Neste contexto, a própria a matriz cultural e religiosa brasileira – e, por extensão, a latino-americana – como vimos anteriormente e conforme Ribeiro (2018, p. 113), facilita os processos de dupla ou múltipla pertença religiosa, bem como, segundo Panasiewicz e Aragão (2015, p. 1861), forma um conjunto complexo de vivências espirituais, reunindo as crenças ameríndias, o catolicismo ibérico e as religiões africanas com outras denominações cristãs, religiões orientais, islamismo, judaísmo e novas expressões religiosas. TEMA 4 – SINCRETISMO E RELIGIOSIDADES POPULARES Os fenômenos religiosos contemporâneos que temos estudado também apontam para um fato tão antigo quanto as próprias religiões, aliás, poderíamos afirmar que é constitutivo de todas as expressões religiosas. Trata-se do 9 sincretismo, um dado presente no campo religioso, porém controverso, como observa Sanchez (2016, p. 69) ao analisar as contribuições de Afonso Maria Ligorio Soares sobre o sincretismo religioso. Figura 2 – Sincretismo: Aialorixá segura nas mãos um cesto com pipoca e a imagem de São Jorge em frente à Igreja. Crédito: AlfRibeiro/Adobe Stock. É comum vincular o sincretismo às religiões dos povos colonizados. Há leituras ingênuas, preconceituosas e pejorativas que concebem o sincretismo como contaminação de uma religião que se pretende pura. No âmbito acadêmico, há análises que o consideram instrumento de resistência e sobrevivência de religiosidades subalternizadas em contextos de exclusivismo religioso, bem como posições que o percebem como um elemento positivo do fenômeno religioso. “Entre rejeição e aceitação, o sincretismo se reinventa para dar coerência – nem sempre reconhecida pelas religiões estabelecidas – às leituras do mundo realizadas pelas pessoas” (Sanchez, 2016, p. 70). Não é difícil recordar mais uma vez Guimaraes Rosa: “Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só para mim é pouca, talvez não me chegue”. 10 Nesse sentido, o sincretismo é compreendido a partir de sua densidade. Como define Sanchez (2016, p. 70), o sincretismo é “o conjunto de conexões interculturais e inter-religiosas que são expressões de vivências religiosas fundamentais para as pessoas”. De modo que todas as religiões são sincréticas, isto é, o sincretismo é próprio da manifestação do sagrado que é sempre fragmentada, bem como a expressão da fé sempre é mediada pela cultura. Ceci Mariani (2016, p. 165) explica a positividade do sincretismo de Afonso Maria Ligorio nesses termos: Afonso, olhando para as religiões sincréticas ou para o sincretismo nas religiões, vê o sincretismo como um processo de diálogo que resulta em uma liberdade criativa e que deve ser compreendido no âmbito da teologia não em contraposição, mas em interação com a inculturação e também com a evangelização. No contexto brasileiro, o sincretismo sempre foi marcante no campo religioso, pois “uma tendência à hibridização teria como causa o encontro desigual de três povos desenraizados, encontro marcado pela dominação europeia portuguesa sobre o nativo e o africano” (Mariani, 2016, p. 164). Se do ponto de vista institucional europeu e cristão, de modo geral, o sincretismo era a contaminação da fé, por outro lado, entre as religiosidades populares, “as religiões populares são capazes de incorporar elementos religiosos diversos e dão aos seus membros sentido e capacidade para entenderem o mundo e organizarem suas vidas” (Sanchez, 2016, p. 69). Assim, podemos entender a maneira sui generis das experiências religiosas populares que escapa às estatísticas, como explica Faustino Teixeira (2005, p. 29): “A forma de ser católico no Brasil é bem distinta do modo de inserção em outros lugares. Os processos de dupla filiação religiosa, de trânsito e sincretismo são comuns no Brasil, e nem sempre os Censos conseguem captar tal realidade”. Recordemos Guimaraes Rosa: “Bebo água de todo rio... [...] Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles”. 11 TEMA 5 – O PROBLEMA DA INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO O contexto pluralista que temos descrito não é tão pacífico quanto possa parecer. Segundo Marion Brepohl, se há um movimento global de ações afirmativas de retorno ao religioso, onde “observa-se a progressão de novas espiritualidades que vêm ganhando terreno em vários grupos sociais, muitas vezes, independentemente das instituições eclesiásticas” (Brepohl, 2016, p. 140), também é visível hoje com pelo menos quatro fundamentalismos: a) o combate católico romano contra o laicismo europeu e marxismo latino- americano; b) o protestantismo norte-americano com sua postura anticomunista, promotora do American Way Of Life e militância pró-vida e pró-família; c) o sionismo judeu, na Palestina, contra a presença árabe; e d) o islamismo que pretende re-islamizar os territórios edificando um governo segundo o alcorão. Se o trânsito religioso e o sincretismo podem ser compreendidos em expressões da cultura popular e no indivíduo leigo, posições exclusivistas e elitistas emergem a partir de lideranças e instituições religiosas pela imposição de programas particulares na agenda pública, como é o caso de setores cristãos no cenário brasileiro (Zeferino; Andrade, 2020). Nas políticas internas de diversos países, em nome da fé (discurso não necessariamente autorizado pelos fiéis e pela maioria do clero, em alguns casos), presenciam-se conflitos entre convicções religiosas e seculares (o que até pode ser fecundo), e conflitos bem mais tensos entre diferentes confissões religiosas, como os muçulmanos e hindus, disputando a região de Caxemira entre Índia, Paquistão e China; as guerras civis entre muçulmanos e cristãos na Nigéria; os ataques à umbanda e ao candomblé no Brasil. Na política internacional, a “guerra” entre muçulmanos talibãs e o governo norte-americano; o massacre de cristãos em diversas regiões do mundo (Brepohl, 2016, p. 142). Ao observar o fenômeno de intolerância religiosa, João Décio Passos (2017, p. 17) argumenta que, ao mesmo tempo em que “as religiões são canteiros privilegiados de germinação e perpetuação das intolerâncias por se tratar de tradições que se definem a partir de fundamentos, organização grupal, normas e objetivos explícitos”, elas próprias deveriam produzir a solução por meio da a) revisão dos fundamentos da fé; b) superação do autocentramento da comunidade e c) o diálogo permanente como método (Passos, 2017, p. 21-25). 12 Nesse sentido, é bastante conhecida a noção de que o mundo só terá paz se houver paz entre as religiões. Por isso, o diálogo inter-religioso é tão urgente como necessário. Figura 3 – Papa Francisco, líder da Igreja Católica Apostólica Romana, visita Templo do Monte, em Jerusalém, e se encontra com lideranças muçulmanas Crédito: Roman Yanushevsky/Shutterstock. A noção de religião de David Tracy (1994) supera as definições totalizantes e compreende a religião com as questões da existência humana e a busca por uma existência autêntica, que se traduzem em linguagem e constituem asreligiões particulares. Neste horizonte, cada religião possui seus clássicos, aqueles textos, eventos, símbolos, imagens, rituais que expressam uma determinada experiência religiosa e que sempre comunicam algo, possuem um excesso de sentido, não são exauridos por uma interpretação única. Assim, podemos entender a conversação entre as religiões como diálogo com seus clássicos pela busca da verdade e reconhecimento das diferenças e alteridades, ou semelhança na diferença. Não uma conversa reducionista que tenta eliminar as diferenças dizendo que todas as religiões são iguais, mas uma conversa que leva a sério as diferenças e a possibilidade do encontro de semelhanças. E talvez a forma mais clara de reducionismo seja uma abordagem totalizante, que admite apenas uma forma de compreensão do fenômeno religioso. A imaginação analógica tracyana indica uma vontade de se entrar na conversa com a disposição de se arriscar certas pressuposições à medida em que se considera o outro (este outro também pode ser identificado como o clássico religioso) seriamente em sua alteridade – com suas diferenças, semelhanças e pretensões de verdade – para que se possa, de fato, compreendê-lo. Mesmo assim, esta aproximação do outro – por mais aberta e desejosa 13 de aprender do outro ou do clássico que seja – sempre será apenas relativamente adequada. (Zeferino; Sinner, 2019, p. 693) Em resumo, a esperança da interpretação está na conversação com os clássicos, na perspectiva de interpretação da situação contemporânea, na possibilidade de encontrar nos clássicos alguma iluminação que auxilie a pensar uma existência humana não centrada em si mesma, mas voltada para a solidariedade. Como aponta Veliq (2019, p. 57), “a capacidade de ouvir o outro se mostra como tarefa mais que necessária em nossos dias e somente com essa disposição é que qualquer diálogo poderá, de alguma forma, produzir frutos que gerem vida para o mundo em que vivemos”. NA PRÁTICA A partir dos elementos estudados, busque avaliar seu conhecimento sobre as religiosidades da América Latina. Assista o filme “Deus é Brasileiro” de Carlos Diegues, e tente identificar elementos da religiosidade como sincretismo, trânsito religioso, dupla pertença, pluralismo, exclusivismo, diálogo inter- religioso, bem como referências a religiosidades particulares na obra. FINALIZANDO Nesta aula aprendemos que: 1. A partir da segunda metade do século XX, surge no campo religioso novos movimentos espirituais contestatórios das instituições religiosas hegemônicas, que ficou conhecido como Nova Era, cujas características são tendências ecléticas, gnósticas, terapêutica e globais. 2. As espiritualidades Nova Era são diversas, mas podem ser descritas a partir dos seguintes elementos: a) origem na contracultura; b) resgate de saberes ancestrais e/ou de civilizações extintas; c) integração com a natureza; e d) ênfase no autoconhecimento e práticas terapêuticas. 3. No Brasil, espiritualidades do tipo Nova Era estão presentes em uma diversidade de grupos e religiões, estrangeiras e nacionais, e podem ser assim classificadas: a) bruxaria e neopaganismo; b) religiões orientais; c) religiões ayahuasqueiras; e d) grupos místicos 4. O Santo Daime é uma religião originário do Brasil do tipo ayahuasqueira, constituída por elementos das religiosidades cristãs e ameríndias, com 14 rituais que combinam a ayahuasca e hinos, cujos efeitos são terapêuticos e éticos. 5. O campo religioso contemporâneo é caracterizado pelo paradigma do pluralismo, cuja compressão implica no reconhecimento de que todas as religiões são genuinamente diferentes e autenticamente preciosas, bem como a liberdade de credo para grupos e indivíduos. 6. O trânsito religioso também é característico do momento atual. Diante de uma variedade de ofertas religiosas, os indivíduos circulam entre religiões sem desenvolver propriamente noções de pertencimento institucional, e/ou favorecendo processos de dupla ou múltipla pertença. 7. O sincretismo longe de ser marca de inferioridade ou um perigo para uma suposta pureza da fé, constitui elemento próprio das religiões. 8. Mesmo em um contexto pluralista, sincrético e com trânsito religioso, noções exclusivistas ainda marcam o campo religioso. O diálogo inter- religioso é condição necessária para a construção de um mundo mais pacífico e solidário. 15 REFERÊNCIAS BIRCHAL, F. Nova Era: uma manifestação de fé da contemporaneidade. Horizonte, Belo Horizonte, v. 5, n. 9, p. 97-105, dez. 2006. BREPOHL, M. Estado laico e pluralismo religioso. Estudos de Religião, São Bernardo do Campo, v. 30, n. 1, p. 127-144, jan./abr. 2016. CAMURÇA, M. Os “Sem Religião” no Brasil: Juventude, Periferia, Indiferentismo Religioso e Trânsito entre Religiões Institucionalizadas Estudos de Religião, São Bernardo do Campo, v. 31, n. 3, p. 55-70, set./dez. 2017. CORDOVIL, D; CASTRO, D. Espiritualidades Holísticas na Metrópole da Amazônia: presença e expansão de Religiões de Nova Era em Belém, Pará. Estudos de Religião, São Bernardo do Campo, v. 28, n. 2, p. 115-137, jul./dez. 2014. DEUS é brasileiro. Direção de Carlos Diegues. Rio de Janeiro: Globo Filmes, 2003. 1 DVD (110 min). FRANCISCO, A. J. Pare de sofrer: trânsitos religiosos e televangelismo na fronteira. Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 22, p. 446-465, 6 out. 2011. GUERRIERO, S; MEDIA, F, COSTA, M; BELIN, C; LEITE, A. Os componentes constitutivos da Nova Era: a formação de um novo ethos. Rever, São Paulo, Ano 16, n. 2, p. 10-30, mai./ago. 2016. LIBÂNIO, J. Nova era: seus desafios à fé cristã. Horizonte, Belo Horizonte, v. 1, n. 2, p. 7-16, 2º sem. 1997. MARIANI, C. AFONSO, M. L. Soares, teólogo e cientista da religião: libertação e sincretismo. Rever, São Paulo, Ano 16, n. 01, p. 163-172, Jan./Abr. 2016 PANASIEWICZ, R; ARAGÃO, G. Novas fronteiras do pluralismo religioso: apontamentos sobre o pós-religional e o transreligioso. Horizonte, Belo Horizonte, v. 13, n. 40, p. 1841-1869, 25 dez. 2015. PASSOS, J. A intolerância religiosa: mecanismos e antídotos. Rever, São Paulo, Ano 17, n. 3, p. 11-27, set./dez. 2017 RIBEIRO, C. 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