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Cultura e Linguagem Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Me. Natalia Mendonça Conti e Prof. Me. Bruno Pinheiro Ribeiro Revisão Textual: Prof.ª Esp. Aline Gonçalves Cultura e Linguagem: Convite a uma Longa Viagem Cultura e Linguagem: Convite a uma Longa Viagem • Introduzir o debate acerca das categorias de Cultura e Linguagem, abordando conceitos ini- ciais correlacionados e o contexto em que essa discussão precisa ser feita, como meio de abrir os trabalhos. OBJETIVO DE APRENDIZADO • Introdução; • Pontos de Partida para Pensar a Linguagem; • O signo, a Semântica e o Discurso; • Pontos de Partida para Pensar em Cultura; • As Culturas, os Conhecimentos e a Modernidade. UNIDADE Cultura e Linguagem: Convite a uma Longa Viagem Introdução Cultura e linguagem e a relação entre elas como objetivo de investigação são algo que podemos considerar uma grande empreitada. Tratam-se de questões fundamentais para todas as áreas das ciências humanas, servindo também de amparo e diálogo com outros campos do saber humano. Sendo assim, nós as apresentamos como convite a uma lon- ga viagem. A imagem da viagem nos serve bem, porque em viagens costumamos estar abertos e curiosos, e nosso estado de atenção fica voltado a aspectos aos quais possivel- mente não estaríamos em nosso cotidiano. E é de longa duração a viagem, por se tratar, também, de uma imersão sem destino certeiro. Um campo vasto e multideterminado. Poderíamos dar o conselho de que não se arrisque em definições fáceis. Sabe quando colocamos um conceito ou uma categoria em um buscador da internet para que ele nos dê a melhor resposta? Nesse caso, muitos caminhos poderiam ser escolhidos. Há muitas abordagens distintas para cada Cultura e Linguagem, o que nos sugere que trajetórias foram estabelecidas e que cada uma tem sua história, que nos ajuda a compre- ender o momento atual das relações humanas, suas dimensões sociais, políticas e econô- micas. Como existe um interesse em aplicar a relação entre Cultura e Linguagem a um campo específico das ciências humanas, é preciso alertar que o momento da aplicação nos pede um olhar atento e prévio aos modos como essas trajetórias foram estabeleci- das. Como as teorias se desenvolveram em áreas como a Historiografia, Antropologia, Filosofia, Sociologia, Psicologia etc. Como circulam, são exercidas e exercem transfor- mações na contemporaneidade. Nosso intuito não será o de constituir uma História das Ideias, mas de passar por uma revisão dessa natureza para então buscarmos entender, dentro de nosso campo de estudo e pesquisa, como Cultura e Linguagem – conceitos ou categorias complexos e multideterminados – são compreendidos e operados como ferramentas de análise da realidade de nosso tempo – e de outros, por que não? Historicamente, veremos que estiveram fortemente entrelaçadas, sendo muito di- fícil pensá-las de modo totalmente separado e autônomo, ainda que cientificamente isso aconteça. Em alguma esfera, mesmo que não abertamente revelada, elas se tocam. Isso acontece, como veremos mais detalhadamente, porque sua origem não é única, mas se relaciona sempre com aspectos fundamentais do que entendemos como ontologia dos seres humanos – características fundamentais que nos definem enquanto espécie. Estão diretamente ligados a aspectos fundantes também das gran- des civilizações humanas, o trabalho e a linguagem. Você sabe o que significa Ontologia? Trata-se de um termo bastante usado na Filosofia, tendo sido introduzido pelo filósofo alemão Rudolph Goclenius, em 1613. Designa o estudo da metafísica do ser, “independente de suas determinações particulares e naquilo que cons- titui sua inteligibilidade própria”, ou seja, o “ser enquanto ser”, sua essência. Pode aparecer também enquanto sinônimo de metafísica (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006, p. 206). Os dicionários podem ser companheiros valiosos de viagem, e não só os que estamos mais habituados, mas os etimológicos, de Filosofia, Sociologia etc. 8 9 Figura 1 Fonte: smartrecovery.org Se consideramos que todo o nosso desenvolvimento enquanto espécie esteve ligado ao convívio social, às interações com o meio espacial e outros seres vivos, poderemos depreender que parte importante do que nos fez chegar até aqui tem a ver com a capacidade de interação, relação, formulação de entendimentos comuns e de possibi- lidades de reproduzir a vida materialmente (caçar, pescar, plantar, cozinhar, produzir tecnologia). A capacidade humana de desenvolver linguagem de modo complexo nos possibilitou a sistematização de experiências que se condensaram e se transformaram no tempo, produzindo tecnologia e meios de produção da vida – não só material, mas também simbolicamente. E o mais interessante é que, dentro disso que podemos cha- mar aqui de experiência humana, constituída em sua história de espécie, não possui um caráter unívoco. No pensamento contemporâneo da linguagem e da cultura, vere- mos como diferentes experiências constituem essa experiência maior, com origem em muitos pontos do planeta, em diferentes povos e formações linguístico-culturais. Depois de trabalharmos em torno da origem e primeiro contato com Cultura e Lin- guagem, veremos como estão ligadas às questões nacionais, territoriais e de formação e relação dos e entre os povos, além da formulação de nossas memórias sociais. Outra coi- sa importante com a qual ter atenção são os pontos de contato insurgentes entre Cultura e Linguagem, sendo ferramenta e canal um do outro para sua fluência e acontecimento. Pareceu um bom convite? Pontos de Partida para Pensar a Linguagem Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces se- cretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave? Carlos Drummond de Andrade 9 UNIDADE Cultura e Linguagem: Convite a uma Longa Viagem Definida genericamente, a linguagem é um sistema de signos convencionados a fim de representar a realidade, usado na comunicação humana. Genericamente porque, como veremos, poderíamos passar anos de nossas vidas estudando apenas o que significa Linguagem, nas diferentes abordagens e campos do saber em que foi e é pensada, analisada e desenvolvida. O entendimento do que seja Linguagem pode ser bastante distinto entre teorias e campos do saber, com ênfases em diferentes aspectos. Por exemplo, alguns consideram o aspecto comunicacional como funda- mental em sua definição, outros focam no entendimento do mecanismo de mediação entre o real e a sua representação em signos. Pode ser compreendida também como um espaço de entendimento e trânsito do sujeito como ser histórico e social. Na era moderna foi que seu estudo de modo sistemático ganhou espaço e vigor, tendo sido criada inclusive uma disciplina específica para investigação de suas particularidades, conhecida como Linguística. Torna-se, a Linguagem, uma categoria de importância filosófica, na medida em que passa a ser considerada um aspecto fundamental da relação entre os seres humanos e o real. E essa é uma discussão que se desdobra em tantas outras e abre tantos caminhos de investigação, e dificilmente conseguimos apontar aspectos conclusivos na(s) ciência(s) que investiga(m) a Linguagem. Existe, sim, um debate filosófico em aberto. A partir dessa nova localização e importância no pensamento filosófico moderno, passa- se a afirmar a “natureza intrinsecamente linguística do pensamento”, definição em aberto, ou, ainda, que “toda teoria tem necessariamente uma formulação linguística e se constrói linguisticamente”, sendo o problema da natureza da linguagem e do significado chave fundamental para as ciências que as pensam. Figura 2 Fonte: Wikimedia Commons Dentro do escopo científico de uma abordagem ainda genérica sobre linguagem, parece-me importante tocar em três aspectos de sua conformação e manifestação: o signo, a semântica e o discurso, que nos ajudarão posteriormente a compreender as escolas de pensamento, suas ideiase desenvolvimentos. O intuito de abordar es- sas partículas de nossa discussão é buscar estabelecer um ponto de partida comum, como marcas importantes, em nosso mapa de viagem. Pode parecer muito específi- co, mas faz sentido enquanto processo de construção desses saberes. 10 11 O signo, a Semântica e o Discurso O Signo Em um primeiro olhar, podemos compreender signo como um elemento que indica ou designa outro, representa-o. Esse é o sentido denotativo, e veremos que há perguntas que se desdobram desse entendimento e nos apresentam questões im- portantes. É possível que um signo seja natural? Por exemplo, é natural que fumaça seja signo/designe de fogo? Ou essa delimitação, esse movimento de ser levado a um entendimento é convencionado, próprio de símbolos constituídos histórica e cultural- mente, e de modos distintos, em diferentes sociedades? A Semiótica, campo de investigação da Linguística, discute se existem signos naturais ou se todo signo é convencionado. Toda ciência da linguagem terá o signo como sua noção básica, o que torna o seu entendimento bastante complexo. Existem diversas teorias do signo, e entre as mais modernas, também estão englobados os signos não verbais. Seria, então, o signo algo que evoca outra coisa, como sugere uma das primeiras teorias do signo – a de Santo Agostinho, como o que nos leva a pensar em algo? Ou seria algo que substitui uma coisa, como um referente? Bem, considerando que existe um vasto campo de discussão a respeito do que seja signo, vamos defini-lo com cautela, com base no que sugerem Ducrot e Todorov (2007, p. 102): (...) o signo como uma entidade, que 1) pode tornar-se sensível, e 2) para um grupo definido de usuários, assinala uma falta nela mesma. A par- te do signo que pode tornar-se sensível denomina-se, desde Saussure, SIGNIFICANTE, a parte ausente, SIGNIFICADO, e a relação mantida por ambos, SIGNIFICAÇÃO. O que os autores nos dizem é que um signo tem sua existência imperceptível, sendo, no entanto, possível a sua percepção, sendo sempre circunscrito a um gru- po delimitado de “usuários”, o que lhe confere uma particularidade interessante no campo da linguagem. O signo não é universal no tempo e no espaço; com caráter institucional, constitui-se e manifesta-se histórica e culturalmente, inscrito em suas realidades particulares. O referido grupo pode ser de uma só pessoa, ou formado por cidadãos de uma nação, concernentes a uma cultura nacional. Fora de uma so- ciedade, os signos não têm existência (ibidem). Um dos aspectos mais discutidos em torno dessas questões diz respeito à “na- tureza do significado”, que, de acordo com o que definiram os autores citados, não poderia ser pensado, de modo algum, separadamente do significante. Um significante desprovido de significado é simplesmente um objeto; ele é, mas não significa; um significado desprovido de significante é o indizí- vel, o impensável, o inexistente mesmo. A relação de significação é, em certo sentido, contrária à identidade a si; o signo é, simultaneamente, marca e falta: originalmente duplo. (ibidem) 11 UNIDADE Cultura e Linguagem: Convite a uma Longa Viagem Encontraremos nos estudos linguísticos, frequentemente, essas duas denomina- ções, significante e significado. Se estabelecêssemos um paralelo com a estética, o significante poderia ser definido como a forma do significado. Como se o significado chegasse a nós por meio de uma forma, a que chamamos significante. Mas, assim como na estética, essa separação só funciona a título de análise, visto que significado e significante existem juntos, realizam-se conjuntamente. Chegamos ao significado a partir do signo, e o sentido “não é uma substância qualquer que se poderia examinar independentemente dos signos em que ele é apre- endido”, só existindo a partir e nas relações de que participa. Uma pergunta que poderíamos nos fazer, filosoficamente, é se, considerando nosso contexto histórico, social e econômico de globalização profunda, o que, sem dúvida, engloba a dimensão da linguagem, é possível pensar em signos que sejam universais à humanidade desse tempo/espaço. Fica a questão como proposta de reflexão. A Semântica Do grego semantikós, semântica é a teoria do significado, sendo parte das ciên- cias da linguagem e tendo como campo a relação entre os signos e o real, os objetos e suas significações. Se em um momento anterior analisamos o signo de forma re- lativamente abstrata, ainda deslocado do loco de sua vigência, ao pensar semântica, observamos a relação entre significante e significado em movimento. A relação é o que guarda sua maior importância. Seus conceitos centrais são o próprio significado, a referência: a relação entre o signo e o objeto, e a verdade: a correspondência efetiva entre o signo e o objeto nessa relação. (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006, p. 249) É possível interpretar de diferentes modos as relações de significação, a partir de correntes teóricas da linguística e da filosofia da linguagem, como veremos adiante. Cada uma dessas correntes busca definir e explicar o modo como se dá a “referên- cia de um signo a um objeto e em que condições se pode definir essa relação como verdadeira” (ibidem). O Discurso A palavra discurso pode nos remeter inicialmente a uma figura importante que, em circunstância pública, tira do bolso um maço de papéis e lê um texto preparado a res- peito de algum tema de interesse comum. Uma sequência de palavras que serve a um fim de comunicação. Esse é o uso corrente, cotidiano de discurso, e há outros, sobre os quais se erguerão correntes de pensamento na Filosofia e nos estudos da linguagem. Do latim discursus, significa conversação. Nos campos do pensamento os quais nos propomos conhecer e investigar, trata-se de um modo de pensamento organizado, articulado, diferente de uma operação intuitiva. É comum que se denomine enquanto “pensamento discursivo”, e se constitui em um percurso – sendo o percurso já discurso 12 13 – para atingir o conhecimento e sua formulação. No pensamento contemporâneo, o discurso ganhará um lugar de destaque, sendo valorizado e reconhecido não apenas enquanto texto, mas como “o próprio campo de constituição do significado em que se estabelece a rede de relações semânticas com a visão de mundo que pressupõe”. É a partir dessas relações – da constituição e difusão de diferentes signos, da for- mação de significações e discursos que dão conta de promover diferentes e coexis- tentes visões de mundo, ou “pluriversos”, como gosta de tratar o pensador contem- porâneo Ailton Krenak, em jogo com a palavra “universo”, tão usada na fundação do pensamento moderno, que podemos estabelecer os ladrilhos para a nossa cami- nhada, introduzindo, nesse momento, não só a definição de Cultura e Linguagem, mas a sua relação entre si. Figura 3 Fonte: rebelion.org Pontos de Partida para Pensar em Cultura Segundo Williams (2007), cultura é uma das palavras mais difíceis, mais delica- das, de serem definidas. Essa dificuldade se explica, em grande parte, pela trans- formação histórica dos usos da palavra, gerando sentidos diversos e, às vezes, até contraditórios entre si. Esse processo tende, portanto, a dilatar o conceito de cultura, aumentando seu campo semântico. Essa ampliação tende a um movimento pendular interessante: por um lado, o conceito se esvazia de sentido devido a sua precariedade de contorno, sua explosão de sentidos que carece de definições mais precisas; ao mesmo tempo, essa variedade semântica abre espaço para novos usos da palavra, trazendo ao conceito uma conexão forte com o tempo e suas mutações, trazendo dinâmica à produção conceitual e aproximando-a da torrencial vida social. Cultura [Culture] é uma das duas ou três palavras mais complicadas da língua inglesa. Isso ocorre em parte por causa de seu intrincado desen- volvimento histórico em línguas europeias, mas principalmente porque passou a ser usada para referir-se a conceitos importantes em diversas disciplinas intelectuaisdistintas e em diversos sistemas de pensamento distintos e incompatíveis. (WILLIAMS, 2007, p. 117) 13 UNIDADE Cultura e Linguagem: Convite a uma Longa Viagem Diante desse cenário de múltiplos horizontes, a palavra cultura se apresenta como um problema. Problema esse que poderia gerar uma paralisia frente a sua comple- xidade conceitual, contudo o caminho pode ser outro, tratando o problema como incentivo à investigação diversa, à pesquisa múltipla e a uma possibilidade de apren- dizado que leva em conta a combinação de seus espaços de incompletude e suas certezas sempre dispostas a serem revistas e modificadas. Um problema que nos convida a refletir sobre a cultura como alguma coisa em constante movimento. Para começar os estudos sobre cultura, nessa perspectiva múltipla, seria impor- tante, então, diagnosticar suas raízes modernas, período em que o debate sobre a cultura ganhou força e formas substanciais. Vislumbrando as constituintes históricas, é possível entrever as camadas do conceito, sua permanência e seus limites, sobretu- do por seu contorno majoritariamente europeu. As Culturas, os Conhecimentos e a Modernidade A chamada era moderna da humanidade tem alguns eventos históricos, destacados aqui especialmente os da parte ocidental, que transformariam radicalmente os modos de vida e a própria percepção que a humanidade tem de si e de seu desenvolvimento. A Revolução Francesa, que durou aproximadamente dez anos, entre 1789 e 1799, notabilizou-se pela derrubada do longevo regime monárquico francês. Em seu lugar, foi estabelecida a república democrática burguesa, que conseguiu se estabelecer como regime político em conexão direta e indissolúvel dos modos de produção capitalista, ambos ainda em vigor e hegemonizando as formas de vida social contemporânea. Esse protagonismo da burguesia, como classe dominante, não se restringiu ape- nas às plataformas políticas que determinam as leis, as formas do estado, as nor- mas das instituições etc. Tampouco ela se perfaz apenas nas estruturas econômicas capitalistas que determinam os modos de produção, a circulação das mercadorias e as formas de trabalho. A hegemonia burguesa consolidou uma maneira de ver o mundo, de ler as coisas, de produzir pensamento, da humanidade se enxergar como tal e refletir sobre a variedade de seus processos culturais. Essa hegemonia elege o indivíduo, entendido em sua instância particular, como centro do universo. No centro, ao indivíduo é conferida a potência de produção da vida e, consequentemente, a responsabilidade pelo sucesso e pelo fracasso de seu desenvolvimento. Nessa perspectiva, o que somos, o que pensamos, o que produzi- mos culturalmente emana dos indivíduos, sendo eles o princípio, meio e fim desses processos, em um ciclo hermético, que tende a se autorreferenciar constantemente. A primeira contradição desse processo autorreferente é a sua pretensão univer- salizante. A eleição do indivíduo, ao contrário do que aparenta, se sustenta por modelos de representação, ou seja, a definição do indivíduo, portanto, do centro 14 15 do universo, do produtor da vida social, se dá a partir de um contorno específico: o indivíduo burguês europeu. Essa imagem se esforça para ser a representação do mundo, autoproclama-se como imagem da humanidade, mas, ao mesmo tempo, essa mesma imagem se consolida como um dos pilares de dominação sociossimbóli- ca, relegando à margem as culturas não identificadas com esse modelo. Figura 4 – Gustave Corbert, Le Désespéré Fonte: Wikimedia Commons Contudo, se por um lado a modernidade desenvolve o individualismo, por outro ela também carrega em seu bojo a consolidação das classes e suas disputas por espa- ço no tecido social. A burguesia entra em choque frontal com a classe trabalhadora e seus interesses. Além da exploração que advém das relações de trabalho, onde o lucro não é dividido por todos aqueles que produzem as riquezas, o conflito entre classes também se estabelece na subjetividade. A representação do burguês como sujeito universal e, portanto, como portador do sentido de indivíduo passa ao largo das formações sociais que constituem a classe trabalhadora e suas múltiplas culturas. Desse modo, as estruturas de conhecimento na modernidade são atravessadas ine- vitavelmente pelas tensões entre as classes, pelas disputas no interior da sociedade. Essas lutas fazem o conhecimento e a cultura terem uma parcela política fundamen- tal, na qual os critérios de validação e valorização não podem ser destituídos de suas posições sociais. Outro marco da modernidade é a Revolução Industrial, que se caracteriza como um processo histórico de desenvolvimento amplo de tecnologias, meios e modos de produção. Essas transformações agilizaram a produção e a circulação de mercado- rias, bem como a movimentação das pessoas, impactando na conformação das po- pulações do campo e da cidade. Com a circulação cada vez mais rápida de pessoas e produtos, as cidades passaram a ter uma concentração populacional cada vez mais intensa. Além desse funil humano, as informações encurtam seu tempo e espaço para se disseminarem. Podemos assistir, então, a uma transformação significativa na produção cultural, posto que os conteúdos e as formas fluam de maneira mais rápida e intensa, alcançando um contingente cada vez maior de pessoas. 15 UNIDADE Cultura e Linguagem: Convite a uma Longa Viagem Essa aceleração, por um lado, facilita a circulação; por outro, tende à dispersão, como ressalta David Harvey: Para começar, a modernidade não pode respeitar sequer o seu próprio passado, para não falar de qualquer ordem social pré-moderna. A tran- sitoriedade das coisas dificulta a preservação de todo sentido de conti- nuidade histórica. Se há algum sentido na história, há que descobri-lo e defini-lo a partir de dentro do turbilhão da mudança, um turbilhão que afeta tanto os termos da discussão como o que está sendo discutido. A modernidade, por conseguinte, não apenas envolve uma implacável ruptura com todas e quaisquer condições históricas precedentes, como é caracterizada por um interminável processo de rupturas e fragmentações internas inerentes. (HARVEY, 2008, p. 22) Essas rupturas e fragmentações fazem os espaços do pensamento e da produção cultural tenderem à instabilidade, à dificuldade da consolidação e da perenidade. Então, se por um lado o ideário burguês edifica sua subjetividade a partir do seu pa- drão de indivíduo, por outro, os conflitos e as fragmentações tendem a despedaçar esse projeto de indivíduo, tratando o sujeito, o conhecimento e a cultura como uma espécie de dispersão de cacos. Essa dispersão, aliada à rápida circulação, produz outro fenômeno de extrema importância para a produção subjetiva moderna, que é a compressão do espaço e do tempo. As distâncias se reduzem com a rapidez da transposição de suas fronteiras, quer seja de ordem material, quer seja de ordem ima- ginada. Sendo assim, a própria produção e afirmação do conhecimento e da cultura entram em crise, porque os critérios que justificam as pretensas verdades passam a vacilar, a desmanchar no ar, dada sua fluidez e fragmentação. Figura 5 – Umberto Boccioni, The City Rises Fonte: Wikimedia Commons Ainda na esteira da modernidade, o iluminismo se configura como um pilar da produção de conhecimento e de cultura, quer seja pela identificação com suas pre- missas, quer seja pelo enfrentamento delas. Como contraposição aos parâmetros da Idade Média, o iluminismo se autodeclara como a idade das luzes, incutindo ao período anterior a pecha das sombras e das trevas. As luzes acompanham as trans- formações econômicas e sociais e têm no progresso sua teleologia, sua promessa 16 17 de desenvolvimento. Com a noção de progresso como base, o conhecimento e a cultura passam a mirar-se como superação sucessiva de seus movimentos anteriores e, ao mesmo tempo, como ferramenta inequívoca do esclarecimento. Essas premis- sas estabelecem um encadeamento epistemológicoque esquematiza o pensamento, tratando tudo aquilo que não se enquadra a esses princípios como destituídos de condições para o estatuto do conhecimento. Ao mesmo tempo, a consolidação da ciência como um polo de produção de saberes que persegue a validação de seus métodos e da aferição de suas teses torna o conheci- mento um campo vasto e em expansão. O desenvolvimento tecnológico, a reconfigu- ração da nossa relação com o sistema solar, a descoberta de novos meios de locomo- ção, a teoria da evolução das espécies, a ampliação dos recursos medicinais e tantas outras transformações produzem um abalo sísmico em nossa percepção do mundo, em nosso corpo, em nossa relação com a natureza e tantas outras metamorfoses. Com essa transmutação anunciada e sentida, a subjetividade moderna aparece como que cindida, em crise, borrada como o impressionismo de Monet. A estabilida- de de projeção representacional do sujeito burguês, amparada pela promessa de um futuro promissor, pavimentado pelo progresso, mergulha no caos da fragmentação, desconserta-se com a inadequação modelar dos parâmetros universais burgueses e colide vertiginosamente com o não apaziguamento diante das formas sociais de ex- ploração e opressão de uma classe contra outra. Outro desdobramento histórico da hegemonia burguesa e seu projeto de autoafir- mação cultural é o processo de colonização americana e africana. Essa colonização brutal, concretizada na base do genocídio, da exploração e da imposição cultural, se implementou de maneira decisiva para o destino dos povos que tiveram seus territórios ocupados pelos europeus. Em termos epistemológicos, essa dominação pretendeu-se na medida do aniquilamento das culturas locais e de sua substituição pela cultura dos conquistadores europeus. Esse procedimento histórico pretendia o reforço da centralidade do sujeito burguês como elemento de representação do mo- delo da humanidade e como produtor e difusor da cultura. Com isso, a colonização se constitui como um projeto de eleição da cultura burguesa como parâmetro univer- sal, em uma tentativa de suprimir da cultura justamente o que tratamos no começo desta unidade: sua multiplicidade. Contudo, as culturas não consagradas pela dominação burguesa europeia não se dissiparam com o andar da história e seguiram seus rumos a despeito desses pro- cessos de violência. Esse andamento em diferentes estradas será tema de estudo em outras unidades desta disciplina. Rosana Paulina, Assentamento. Disponível em: https://bit.ly/3drUBNC 17 UNIDADE Cultura e Linguagem: Convite a uma Longa Viagem Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros Infância e Linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin JOBIM E SOUZA, S. Infância e Linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. Campinas: Papirus, 1994. Ideias para adiar o fim do mundo KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Vídeos Involuntários da Pátria – Conferência de Eduardo Viveiros de Castro https://youtu.be/l98nNx5S6HQ Cultura ou culturas brasileiras? – Conferência de Alfredo Bosi https://youtu.be/2FprGNQaQ90 18 19 Referências DUCROT, O.; TODOROV, T. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem. Trad. Alice Kyoko Miyashiro , J. Guinsburg, Mary Amazonas Leite de Barros e Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 2007. HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Trad. Adall Ubirajara Sobral e Mia Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2008. JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de Filosofia. 4. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. MARX, K. A ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007. WILLIAMS, R. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Trad. Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007. 19
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