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Cultura e Linguagem Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Me. Natalia Mendonça Conti Prof. Me. Bruno Pinheiro Ribeiro Revisão Textual: Prof.ª Esp. Aline Gonçalves Os Domínios da Linguagem: Teorias e Escolas de Pensamento Os Domínios da Linguagem: Teorias e Escolas de Pensamento • Observar a transformação da ideia de linguagem com base em diferentes teorias e pensamentos; • Refletir sobre as diferenças sobre a ideia de linguagem em seus contextos históricos; • Perceber as derivações implícitas às diferentes matizes teóricas sobre a linguagem. OBJETIVOS DE APRENDIZADO • Linguística Histórica no Século XIX; • Saussurianismo; • Sociolinguística; • Psicolinguística; • Semiótica; • Filosofia da Linguagem; • As Contribuições de Vygotsky e Lacan. UNIDADE Os Domínios da Linguagem: Teorias e Escolas de Pensamento Contextualização A segunda unidade de nossa disciplina trabalha com a apresentação de algumas escolas e autores das ciências da linguagem, tendo como base de produção teórica os estudos de Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov. Percorreremos a linguística histórica no século XIX, o Saussurianismo, a Sociolinguística, a Psicolinguística, a Semiótica, a Filosofia da Linguagem e as contribuições modernas de Vygotsky e Lacan. 8 9 Linguística Histórica no Século XIX Apesar de as línguas se estruturarem bem antes do século XIX, com particularida- des de seus contextos culturais e transformações ao longo da história, foi no século XIX que elas se tornaram objeto de uma ciência específica. Para o surgimento e a consolidação dessa ciência da linguagem, Ducrot e Todorov (2007) apresentam duas ideias fundamentais. A primeira delas é a de que a transformação das línguas não se processa somen- te pela vontade dos indivíduos, como por meio da criação de palavras para novas ideias; pelas modificações implementadas por gramáticos e/ou pelo esforço para que a língua seja compreendida por estrangeiros. Além disso, as transformações ocor- rem devido a uma necessidade interna da própria língua. Nesse processo, os linguis- tas observaram duas fortes tendências em relação às conexões entre uma palavra a, de uma época, e uma palavra b, análoga, de outra época. Quando b é formada de maneira consciente, a partir do modelo de a, diz-se que houve empréstimo; agora, se essa passagem de a para b não for consciente, diz-se que houve herança. A segunda característica salientada pelos autores é a de que as mudanças acon- tecem de modo irregular e respeitando a organização interna das línguas. Sendo assim: “A Linguagem Histórica (...) explica uma palavra b por uma palavra a prece- dente somente se a passagem de a para b for o caso particular de uma regra geral que seja válida para muitas outras palavras (...)” (DUCROT ; TODOROV, 2007, p. 20). Nesse sentido, é possível perceber a regularidade das línguas a partir das manifestações de seus componentes gramaticais e fonéticos. Essas ideias, destacadas por Ducrot e Todorov, começaram a ser formuladas, se- gundo os mesmos autores, em meados do século XIX, especialmente na Alemanha, a partir de algumas pesquisas linguísticas chamadas de Gramática Comparada ou Comparatismo. Essas pesquisas tinham como nomes principais os de F. Bopp., A. W. von Schlegel e F. von Schlegel, J. L. C. Grimm, A. Schleicher e R. Rask. Esses linguistas apresentam algumas características em comum: partilham o prin- cípio de que a maioria das línguas europeias modernas tem parentesco (que seria mais que mera semelhança) com línguas pregressas; as línguas seriam constituídas por diversas transformações de uma língua-mãe, que, nesse caso de estudo, seria a língua indo-europeia; o método desses pesquisadores é comparativo e busca esta- belecer conexões entre as línguas a partir de elementos que as atravessam; e essa comparação entre línguas se faz sobretudo a partir de elementos gramaticais. Nesse processo, para os comparatistas, há o chamado declínio das línguas, com transformações e desaparecimentos de elementos linguísticos ao longo do tempo. Essas mudanças seriam explicadas pelo predomínio do tratamento da língua, por parte dos indivíduos, como um instrumento de comunicação. A Gramática Comparada passou por uma renovação na segunda metade do século XIX, sofrendo forte influência das ideias positivistas. Os linguistas desse movimento 9 UNIDADE Os Domínios da Linguagem: Teorias e Escolas de Pensamento se autodenominavam como neogramáticos e suas principais características são: a linguagem histórica precisa descobrir e explicar as causas das transformações linguísticas e não somente descrever seus processos; essas explicações têm caráter positivo e as causas verificáveis são procuradas nas atividades dos sujeitos falantes; as comparações entre línguas não devem ter um lastro de tempo grande, dando preferência, assim, a comparações de línguas próximas historicamente; as causas são de tipo articulatória e psicológica; a explicação histórica das línguas se manifesta como a única forma de explicação linguística. Figura 1 – Bice Lazzari, Indicazione Fonte: Wikiart Saussurianismo O suíço Ferdinand de Saussure é um dos linguistas mais importantes da histó- ria. Sua primeira obra se vinculava aos neogramáticos, mas posteriormente sua teoria foi se deslocando dessa escola de pensamento e confrontando-se com os métodos comparatistas. A língua, para Saussure, tem organizações distintas, dadas as suas transforma- ções históricas específicas que ocorrem a partir do princípio fundamental, que é a comunicação. Sendo assim, para Saussure, a língua não existe de maneira indepen- dente, ela é, antes de qualquer coisa, um instrumento de comunicação. Saussure entende de maneira positiva que a linguagem se apresenta como uma organização a que ele chama de sistema (que mais adiante seria chamada de estrutura por seus seguidores). Nesse sistema, os elementos linguísticos estão associados entre si e conformados em um todo, e suas manifestações não se destacam desse todo. É a partir desse processo sistêmico que é possível determinar uma unidade linguística, que, segundo Saussure, é caracterizado como um valor. Esse valor seria a capacidade 10 11 de um objeto ser trocado por outro de natureza distinta, sendo o signo a sua forma na linguística: “Saussure mostra que a atividade efetiva que permite ao linguista determi- nar os elementos da língua (os signos) exige que se faça aparecer ao mesmo tempo o sistema que lhes confere valor” (DUCROT ; TODOROV, 2007, p. 27). Em seu sistema, Saussure elaborou mais alguns conceitos importantes para sua teoria linguística, que são: • Alternância : quando o significante de um signo é uma modificação do radical, sem que se acrescente um elemento suplementar ao radical ; • Segmentação : delimitação das unidades, segmentando a cadeia, no qual se procura descobrir os signos mínimos ; • Identificação : tarefa fundamental para a determinação das unidades, que consiste no reconhecimento de um só e mesmo elemento por meio de seus variados empregos ; • Opositividade : princípio “pelo qual se deve atribuir a um signo apenas os ele- mentos (fônicos ou semânticos) pelos quais se distingue de pelo menos outro signo” (DUCROT ; TODOROV, 2007, p. 28). Figura 2 – Akira Kanayama, Trabalho Fonte: Wikiart Sociolinguística Sociedade e linguagem, ao longo do tempo, permaneceram como instâncias des- tacadas, e os mecanismos de estudos acompanhavam essa separação, em que uma era entendida como causa da outra, e, de modo geral, o objetivo do conhecimento é a sociedade, sendo a linguagem um instrumento desse processo. Desse modo tradi- cional, a linguagem seria, portanto, determinada pela linguagem. Após os trabalhos de W. von Humboldt essa perspectiva passou a se modificar, sendo a linguagem não mais a consequência da sociedade, e sim a entidade capaz 11 UNIDADE Os Domínios da Linguagem: Teorias e Escolas de Pensamento de organizar o mundo e nos dar seus sentidos. Essas teoriasse desenvolveram, e um grupo alemão chamado de “neo-humboldtiano” conectava a linguagem a uma “visão do mundo” global, na qual seria possível compreender socialmente uma nação a partir do estudo detalhado de sua língua, especialmente com base nas análises dos “campos semânticos”. Nos Estados Unidos, um grupo de linguistas elaborou suas teorias, ao contrário dos alemães, com ênfase nas categorias gramaticais do que nas estruturas lexicais. E houve ainda um terceiro grupo de etnólogos americanos que se dedicaram a descrever as “taxonomias populares” das línguas indígenas. Há outra linha de estudos a que Ducrot e Todorov chamam de Antropologia Linguística, que teria seu ponto de partida na obra de Bronislaw Malinowski, quando a linguagem galga o estatuto de uma hipótese científica. Malinowski diferencia os enunciados linguísticos a partir de suas funções, que teriam de maneira mais comum o sentido de expressão do pensamento nas línguas “ocidentais” e serviriam costumeiramente como canal de realização de uma ação nas línguas chamadas de “primitivas”. (É importante perceber como a classificação primitiva é histórica e apresenta diversos problemas, como discutimos em outras unidades de nossa disciplina). E quando o sentido do enunciado não tem importância, ele é classificado como “modo accional” da linguagem. As ideias de Malinowski foram desenvolvidas pelo inglês J.R. Firth e mais alguns teóricos, e, segundo Ducrot e Todorov (2007), confundiram a dimensão accional dos enunciados com o sentido de uma frase, levando-os à creditar relevância ao “contexto da situação”. A pesquisa da linguagem para esses teóricos ingleses se daria em duas linhas: a de uma tipologia das situações e a de uma tipologia das fun- ções. Quase ao mesmo tempo, mas no ambiente do Círculo Linguístico de Praga, outros pesquisadores desenvolveram trabalhos linguísticos que se afirmavam como decididamente funcionais, e Bohuslav Havránek classificou a função do enunciado da seguinte maneira: 1) comunicação fatual, informação; 2) exortação, persuasão; 3) explicação geral; 4) explicação técnica; 5) formulação codificada. Em contrapartida à perspectiva funcionalista de Malinowski, Firth e Havránek, Cohen trabalha com a ideia de potências de linguagem, que seriam reunidas da seguinte forma: 1. A fala e as forças extra-humanas (como as religiões e os nomes de lugares); 2. As fórmulas eficazes nas relações humanas, como encontro e separação; pe- dido e agradecimento; hostilidade e pacificação etc.; 3. A persuasão e a instrução (propaganda política e religiosa; defesas em assem- bleias; ensino; reclame etc.); 4. O divertimento, como literatura, teatro, televisão, cinema, jogo de palavras etc. A partir dos anos 1960, nos Estados Unidos, com a reunião de linguistas, psicó- logos e etnólogos, a Antropologia Linguística tornou-se uma disciplina autônoma, e nesse processo destacam-se os estudos de pesquisadores como Dell Hymes e Susan Ervin-Tripp, entre outros. Hymes, não limitado ao puro descritivismo, se an- cora na análise do ato da comunicação e entende a atividade linguística a partir de uma “etnografia da fala”. Ervin-Tripp diferencia de maneira equivalente o quadro, os 12 13 interlocutores, o tema, as funções e a forma do enunciado. Esses e demais estudos seguem sendo realizados no interior desse campo aberto pela criação da Antropolo- gia Linguística e por sua consequente autonomização. Figura 3 – Toko Shinoda, Nexus Fonte: Wikiart Psicolinguística Embora a Psicologia e a Linguagem já se entrecruzassem como áreas do pen- samento afins e interpenetráveis, é com o Behaviorismo, fundado por B. Watson, que essa relação se consolida definitivamente. Watson, em um de seus estudos, destacava a linguagem e o pensamento como elementos importantes para suas pesquisas psicológicas, que tentavam explicar o comportamento humano com base nos hábitos dos indivíduos. Outro autor importante, Pavlov inventa a noção de sistema de sinalização que estaria em conexão com a noção de que a linguagem se estruturaria a partir de sinais particulares. Mais tarde, em 1930, C. Hull propõe uma hierarquia nos hábitos humanos, localizando a linguagem em uma instância secundária, como sendo um conjunto de respostas verbais a situações específi- cas. Em suas apreciações, Ducrot e Todorov (2007) consideram essas perspectivas behavioristas como imprecisas, posto que confundem teoricamente respostas ver- bais e linguagem. A partir das perspectivas behavioristas, surgiu a necessidade da investigação de processos intermediários não observáveis nos tipos de aprendizagem, no sentido psicológico. É a partir dessa linha de pesquisa que valorizou esses processos inter- mediários que a linguagem passou a ser valorizada como objeto de estudo e que se instituiu a teoria da mediação. Essa teoria, dentre outras coisas, tinha como objetivo a tentativa de explicar a aquisição da significação de uma palavra. Em paralelo à teoria behaviorista, consolidou-se a teoria gestaltista, que acreditava que o pensamento, a percepção e a linguagem são atividades estruturadas e estruturantes. 13 UNIDADE Os Domínios da Linguagem: Teorias e Escolas de Pensamento K. Goldstein “encara a linguagem como uma atividade global” (DUCROT; TODOROV, 2007, p. 77), mas com algumas distinções internas de seus elementos, sem que estes tenham total independência. Outra corrente que surge nesse momento é a liderada por J. Piaget, que tem como fundamento a proposição de uma teoria que explique a gênese daquilo que estava sendo descrito pelos gestaltistas. Os estudos de Piaget se contrapuseram às ideias de que o aumento da idade seria o responsável pelo acúmulo de hábitos dos indivíduos e criticavam as perspectivas inatas da estrutura organizadora das atividades humanas. Piaget também apontou a independência relativa do desenvolvimento intelectual da criança em relação à linguagem e postulou que a linguagem é um elemento da fun- ção simbólica. Piaget ficaria conhecido como um dos autores a desenvolver a noção de atividade estruturante do sujeito, e sua teoria “continha os meios de descrever como o sistema, formado pelo par sujeito-ambiente, pode transformar-se sozinho, progressivamente” (DUCROT; TODOROV, 2007, p. 77). Em 1948 surgiu a teoria matemática da comunicação, que considerava a lingua- gem como comportamento de comunicação e que procurou estudar os processos de codificação e descodificação das mensagens verbais em distintas circunstâncias. Com essa base conceitual, forjou-se a tentativa de estabelecer correspondência entre uma hierarquia de hábitos e a linguagem a partir da produção de modelos matemá- ticos, que, para Ducrot e Todorov (2007), se mostraram insuficientes. Um processo de retomada do debate crítico em torno do behaviorismo foi desem- penhado pelo linguista Noam Chomsky, que procurou ressaltar os aspectos produti- vos das condutas de linguagem. A partir desses estudos de Chomsky, uma corrente da psicolinguística se consolidou nos estudos do modo de passagem da estrutura profunda para a estrutura de superfície e pôs ênfase na realidade psicológica das transformações, que, dentre outras coisas, conseguia, por meio de técnicas específi- cas, revelar os tempos de produção ou compreensão de uma frase. Figura 4 – Hilma af. Klint, The Swan (No. 16) Fonte: Wikiart 14 15 Semiótica A Semiótica, segundo Ducrot e Todorov (2007), é a ciência que estuda os signos e que surgiu nominalmente com John Locke, mais ainda vinculada à Filosofia ou à Teoria Geral da Linguagem. É somente com o filósofo americano Charles Sanders Peirce que a semiótica funda-se como uma disciplina independente. Apesar de certa inconsistência teórica, Peirce logrou uma importante definição do signo: Um Signo, ou Representâmen, é um Primeiro, que mantém com um Segun- do, chama-se seu Objeto, uma relação triádica tão verdadeira que é capaz de determinar um Terceiro, denominado seu Interpretante, para que este assuma a mesma relação triádicacomo respeito ao mencionado Objeto que a reinante entre o Signo e o Objeto. (DUCROT; TODOROV, 2007, p. 90) Essa acepção de Peirce aloca o signo a partir de uma relação de três termos: “o que provoca o processo de encadeamento, seu objeto e o efeito que o signo produz ou interpretante” (DUCROT ; TODOROV, 2007, p. 90). Sendo o interpretante, em entendimento mais amplo, o sentido. Além de conceituar de maneira especial o interpretante, Peirce acreditava que o signo sempre mantinha relação com outros signos, conjugados em um sistema de signos, e a função da semiótica, desse modo, seria a classificação dessa variedade dos signos. O terceiro aspecto importante dos estudos de Peirce é a forma como ele define ícone, índice e símbolo. Sendo ícone um signo que seria determinado pelo dinamis- mo do objeto em função de sua característica interna. O símbolo seria referendado pela constituição de uma lei, como as palavras de uma língua. E o índice seria um signo que teria uma relação de adjacência com o objeto denotado, por exemplo: as palavras “eu”, “tu”, “aqui”, “agora” etc. Em paralelo aos estudos de Peirce, Saussure desenvolveu alguns preceitos da semio- logia. Ao contrário de Peirce, Saussure não usa a semiologia a partir das perspectivas filosóficas, e sim a partir das perspectivas linguísticas, e procura instituir uma ciência que teria a capacidade de definir os signos e desvelar as leis que os regem. Além de Peirce e Saussure, o filósofo alemão Ernst Cassirer foi mais um a contri- buir com os estudos da semiótica. Em sua obra mais conhecida, “Filosofia das For- mas Simbólicas”, Cassirer apresenta dois princípios fundamentais para a semiologia: a linguagem seria um atributo da humanidade e a distinguiria dos demais animais, posto que o ser humano seria o único ser vivo capaz de articular a linguagem para conceituá-la; a linguagem compreende uma série de outros sistemas além da lingua- gem verbal, tais como: o Mito, a Arte, a Ciência e a História. As artes e a literatura tiveram lugar especial nos estudos dos primeiros semiólogos. Jan Mukarovsky, por exemplo, defende que as artes devem ser parte da semiótica e define o signo estético como autônomo, que tem importância em si mesmo e não apenas como mediador de significação. Alguns autores seguiram esse curso de estudos e insistiram na diferença entre sistema linguístico e sistema das artes. Para Ch. Morris, o signo estético seria de modo geral icônico, e a filósofa americana Suzanne Langer 15 UNIDADE Os Domínios da Linguagem: Teorias e Escolas de Pensamento acreditava, por exemplo, que a música possuía uma forma específica de significância. Na França, a partir do trabalho de C. Levi-Strauss, R. Barthes e A. J. Greimas, verticalizou- se a semiótica, desenvolvendo estudos das relações sociais que se estruturariam na forma de uma linguagem e analisando com precisão a linguagem literária. Filosofia da Linguagem Para a Filosofia da Linguagem, segundo Ducrot e Teodorov (2007), há pelo menos dois sentidos possíveis. No primeiro, a Filosofia toma a linguagem como um objeto ex- terno a ela e, como tal, já com seus pressupostos estabelecidos, e tenta investigar esse objeto em relação a outros objetos. Nessa linha, destacam-se a corrente idealista francesa do início do século XX, que “tenta mostrar que a cristalização do sentido em palavras congeladas é uma das causas da ilusão substancialista, da crença em coisas dadas e em estados estáveis” (DUCROT; TODOROV, 2007, p. 95); e a Filosofia alemã do século XIX, que entendia a língua a partir de sua importância na história da humanidade, sendo a lin- guagem um elo entre gerações, das quais as mais novas agem sobre a língua e ao mesmo tempo colocam-na em destaque, estando, assim, no próprio fundamento da História. O outro sentindo ventilado por Ducrot e Teodorov (2007) é quando a filosofia toma a linguagem como objeto com intenção de observar e analisar a partir de seus atributos internos. Essa perspectiva estaria na Filosofia grega clássica, na qual Platão, por exemplo, procurava definir uma significação genérica que seria a gênese dos múltiplos empregos particulares dessa significação. Outra corrente importante foi a dos filósofos ingleses do século XX, que se autointitulavam “filósofos da linguagem” e definiam sua atividade como Filosofia Analítica, na qual a Filosofia pretendia-se reflexiva e buscava uma análise linguística sistemática. A Filosofia Analítica dividiu-se em duas correntes mais ou menos consistentes. Uma delas se vinculava mais diretamente ao neopositivismo e tinha a intenção de instituir uma investigação que lograsse uma crítica da linguagem. E a outra entendia seu trabalho com base nos estudos dos atos da linguagem. Figura 5 – Alma Woodsey Thomas, Late Night Reflections Fonte: Wikiart 16 17 As Contribuições de Vygotsky e Lacan Lev Semyonovich Vygotsky é um dos nomes mais importantes da história da Psicologia moderna. Com a influência decisiva do marxismo, Vygotsky embasou-se no materialismo histórico dialético para produzir sua epistemologia da Psicologia. Um elemento importante desse processo dialético material e histórico que Vygotsky se empenhará em estudar é a organização dos sistemas de signos. Dentro desse sistema de signos que a sociedade produz ao longo de sua história e que, portanto, está em movimento constante, Vygotsky se concentra nos estudos da linguagem e em suas consequências para o desenvolvimento das chamadas estrutu- ras psicológicas superiores (consciência) da criança. Para o autor russo, as experiên- cias sócio-históricas não estão sedimentadas somente nas criações materiais, essas experiências também se sedimentam nas formas verbais que transmitem conteúdos e, portanto, viabilizam a comunicação entre seres humanos. Nesse sentido, Vygotsky acredita que há uma interiorização de conteúdos determi- nados pelas transformações históricas e pelas organizações culturais, e que a lingua- gem é um meio de manifestação desses conteúdos. Sendo assim, para Vygotsky, há uma semelhança entre a natureza social e psicológica dos indivíduos, não sendo pos- sível analisá-las em separado. Sobre esse processo, Jobim e Souza assim o descreve: De acordo com Vygotsky, do desenvolvimento cultural da criança, toda função aparece duas vezes: primeiro em nível social e, mais tarde, em nível individual. Esse processo de internalização, quer dizer, de transfor- mação, de um processo interpessoal em processo intrapessoal, implica a utilização de signos e supõe uma evolução complexa em que ocorre uma série de transformações qualitativas da consciência da criança. Dessa for- ma, estudar a constituição da consciência na infância não se resume em analisar o mundo interno em si mesmo, mas sim em resgatar o reflexo do mundo externo no mundo interno, ou seja, a interação da criança com a realidade. (JOBIM E SOUZA, 1994, p. 125-126) Como se observa nas palavras anteriores, Vygotsky tenta compreender o mo- vimento que compõe a estrutura psicológica a partir das interações dos indivíduos com os signos organizados socialmente pela cultura, manifestados pela linguagem, por exemplo, e suas respectivas internalizações. E nesse processo Vygotsky destaca a infância como a fase na qual esse momento consegue se estabelecer, ou seja, mo- mento em que a consciência se forma não por mero desenvolvimento individual, mas pela relação com as dinâmicas sociais, com o mundo externo a ela mesma, com os signos que apreende a partir da convivência em sociedade. Vygotsky também avança consideravelmente nos estudos sobre fala e pensamento. Em sua abordagem, a linguagem não é um mero reflexo do pensamento, um fluxo inevitável das organizações intelectuais, e a fala também não é uma reprodução fide- digna dos processos mentais. Há, no pensamento, uma estrutura, e a sua transposição para a fala se dá de maneira complexa, que tem a linguagem como mediador decisivo. 17 UNIDADE Os Domínios da Linguagem: Teorias e Escolas de PensamentoE como a linguagem não se constitui como instrumento exclusivo do sujeito, ou seja, como ela é fruto de elaborações sociais, a organização da fala também está em cons- tante tensão com as dinâmicas sociais. Nesse processo de transição do pensamento para a fala, Vygotsky percebe, também, que o pensamento não tem um equivalente imediato na fala, por isso essa passagem precisa ser mediada pelo significado. Nesse sentido, as palavras que usamos ao nos expressarmos não correspondem exatamente ao que nos passa no pensamento, e ao mesmo tempo elas também não são recebidas pelo ouvinte com total identificação do significado proferido. Isso cria subtextos, sentidos ocultos. Essa dificuldade de comunicação também ocorre porque na fala incorporamos elementos afetivos, emoções, intenções, desejos etc. Isso faz com que as palavras também deri- vem significados a partir da forma como elas são ditas, e ao mesmo tempo elas são interpretadas por quem as ouve, de acordo com vários elementos do ouvinte. As propostas de Vygotsky têm influência importante para a teoria do conheci- mento, suas bases epistemológicas apontam para a necessidade de estudos psico- lógicos em vínculo com as transformações sócio-históricas, passam também pela importância dos processos de incorporação de signos das crianças e levam-nos a refletir sobre as estruturas da linguagem, levando em consideração os múltiplos sentidos que uma palavra pode alcançar, sentidos esses que estão contidos no mo- vimento entre o verbal e o extraverta. Lacan formou-se na base psicanalítica freudiana e a desenvolveu com alguns pon- tos de contato e conexão, mas também com desdobramentos distintos e inovadores para o campo, conferindo, assim, uma abordagem própria, a que podemos chamar de lacaniana. Com a influência do pensamento estruturalista, Lacan formula um de seus conceitos mais importantes “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Para os estruturalistas, as estruturas sociais determinam as ações humanas, e não o contrário. Diante disso, as produções de sentido não são oriundas dos indivíduos, mas das estruturas sociais que os conformam, e o fato social dessa agência estrutural é a linguagem. A linguagem aparece aqui como uma orga- nizadora de relações, de identidades e de diferenças, é por meio dela que as experiências e os sentidos são partilhados. Para Lacan, esse sistema linguístico, que é capaz de organizar as experiências, é chamado de simbólico. Esse sistema, para os estruturalistas, cria suas regras e age sobre os indivíduos mesmo sem a sua intenção e mesma percepção. Para Lacan, é essa formulação que sustenta sua ideia de inconsciente, um conjunto de regras, normas e leis que determina o espaço simbólico, ou seja, as formas de pensar. Esse universo simbólico de desejos, condutas e regras é estruturado por uma lei social, contudo, para Safatle (2018, p. 50), essa lei “não é normativa no sentido forte do termo.” Sua constituição “organiza distinções e oposições, que em si, não teriam sentido algum”. Para Lacan, segundo Safatle, essa “lei sociossimbólica é composta por significantes puros”, uma “cadeia de significantes”, e que a verdade do desejo do 18 19 sujeito é ser desejo da lei. Esse processo se estrutura a partir da identificação com o Nome-do-Pai, ou seja, como o desejo é regulado pelo falo. Contudo, a figura mascu- lina, produto da modernidade, jamais está à altura de sua função simbólica. A produção lacaniana é atravessada fundamentalmente pela ideia de crise da modernidade ocidental. É no seio dessa crise que os postulados normativos, os construtos que orientam condutas e edificam desejos entram em colapso, porque suas constituições colidem radicalmente com os sujeitos que interagem com essas estruturas. A psicanálise lacaniana vislumbra, diante desse quadro, uma ideia radical de sujeito: alguma coisa que seja capaz de se ultrapassar, de experimentar um processo profundo de desidentificação com esse eu estruturado pela psique moderna. De certa forma, o caminho apontado por Lacan é de uma negatividade contun- dente, na qual a afirmação da liberdade não se dará por meio da afirmação desse eu constituído pela modernidade, e sim por sua dissolução. A psicanálise lacaniana não se coloca, portanto, apenas como um processo de autoconhecimento profundo, ela é também um mergulho em direção a alguma coisa que ainda não sabemos o que é, a indeterminação que é capaz de dar corpo ao que agora aparece como impossível. 19 UNIDADE Os Domínios da Linguagem: Teorias e Escolas de Pensamento Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Vídeos Lacan: uma linguagem para o real https://youtu.be/AbHNb1C8znM As origens da linguagem https://youtu.be/cYJoXsfgenQ Leitura Noam Chomsky: entenda sua teoria linguística e seu pensamento político https://glo.bo/2Hc9iIn Língua e linguagem para Saussure: um percurso de elaboração dos conceitos no 1º, 2º e 3º curso MENEZES, S. F.; SILVA, M. A. Língua e linguagem para Saussure: um percurso de elaboração dos conceitos no 1º, 2º e 3º curso. Revista Percursos Linguísticos, Universidade Federal do Espírito Santo, v. 8, n. 20, 2018. https://bit.ly/3dr5G1q 20 21 Referências DUCROT, O.; TODOROV, T. Dicionário enciclopédico das ciências da lingua- gem. Trad. Alice Kyoko Miyashiro, J. Guinsburg, Mary Amazonas Leite de Barros e Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 2007. JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de Filosofia. 4. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. JOBIM E SOUZA, S. Infância e linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. Campinas, SP: Papirus, 1994. SAFATLE, V. Introdução a Jacques Lacan. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. 21
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