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AULA 5 ORGANIZAÇÕES E TRABALHO Profª Laira Gonçalves Adversi A luno: A N G É LIC A C A P R ILE S S A N T O S E m ail: a.capriles@ hotm ail.com 2 CONVERSA INICIAL O termo organizações alternativas tem sido usado para denominar organizações que se diferenciam ou se contrapõem ao modelo dominante de organização, também chamadas de organizações convencionais. Como foi visto em aulas anteriores, as organizações convencionais, entre outras características, são gerencialistas, burocráticas, orientadas exclusivamente para o crescimento econômico e para o mercado. Posto isso, as organizações alternativas buscam se afastar dessas características das organizações convencionais, contrapondo-se ao modelo dominante organizacional ao tentar fornecer caminhos alternativos e, assim, romper com status quo (Barcellos, et al., 2014; 2017; Barcellos; Dellagnelo, 2013; Zilio et al., 2012). Essas organizações também são reconhecidas por serem ignoradas pela tradição de estudos organizacionais e pelo mainstream da administração (Misoczky et al., 2008; Misoczky, 2010; Chiesa; Cavedon, 2015). Além disso, não apresentam modelos ou padrões a serem seguidos, pois cada organização alternativa possui sua singularidade e, por isso, também se diferencia das outras. Esta aula tem o objetivo de apresentar as principais características das organizações alternativas de trabalho na atualidade, as quais podem ser caracterizadas de diversas formas. Os temas são: 1. O modo de organizar das organizações alternativas de trabalho; 2. Limites ao crescimento econômico; 3. Convivialidade; 4. Simplicidade voluntária; 5. Teoria da dádiva. TEMA 1 – O MODO DE ORGANIZAR DAS ORGANIZAÇÕES ALTERNATIVAS Os termos usados para identificar as organizações alternativas são diversos (Barcellos; Dellagnelo, 2013): organizações contra-hegemônicas, mídia contra-hegemônica (Zilio et al., 2012), organizações anarquistas (Casagrande; Câmara, 2011; Chiesa; Cavedon, 2015), movimentos sociais e organizações de lutas sociais (Misoczky et al., 2008), organizações coletivas e organizações da sociedade civil, organizações coletivas, organizações de resistência (Barcellos; Dellagnelo, 2013; Misoczky et al., 2008), organizações substantivas (Serva, 1993; A luno: A N G É LIC A C A P R ILE S S A N T O S E m ail: a.capriles@ hotm ail.com 3 Serva 1997a; Serva 1997b; Seifert; Vizeu, 2015), comunidades tradicionais e comunidades faxinais (Seifert; Vizeu, 2015), organização liminar (Meira, 2013), gestão social (Barcellos; Dellagnelo, 2013), organizações não convencionais, entre outros. As organizações alternativas relacionam-se aos modos de organizar que desafiam o modelo dominante, contrariando-o com o objetivo de superá-lo e substitui-lo, sem se limitar à mera adaptação funcional de conceitos e ferramentas gerenciais, confrontando a visão estabelecida do mundo como mercado (organização como empresa, ser humano como recurso) e apresentando-se como busca de rupturas ao sistema de capital (Misoczky, 2010; Barcellos; Dellagnelo, 2013). Também buscam soluções não mercadológicas para problemas individuais ou coletivos (Barcellos; Dellagnelo, 2013). Essas organizações realizam procedimentos democráticos formais no intuito de envolver os membros nas decisões políticas (Barcellos; Dellagnelo, 2013) e são caracterizadas por horizontalidade, participação direta nas decisões, construção coletiva da organização e de suas práticas, valores orientados para a vida, tolerância e solidariedade na relação com a alteridade, práxis criativa (Misoczky, 2010) e processos autogestionários (Misoczky; Flores; Böhm, 2008), estratégias organizacionais coletivas e relativamente não hierárquicas, recursos com códigos- fonte abertos e princípios de publicação, trabalho voluntário, colaboração e paixão (Barcellos; Dellagnelo, 2013). Além disso, podem proporcionar um ambiente favorável à manifestação do indivíduo, a partir do qual se podem reunir e acolher demandas identitárias diversas, além da capacidade de romper com o status quo (Zilio et al., 2012). Seus princípios baseiam-se em liberdade, convivialidade, ética, vida plena na qual cada um é independente dos outros, mas vive em relação com eles), nova participação política, não hierárquica, cooperativa, entre outros (Casagrande; Câmara, 2011; Chiesa; Cavedon, 2015). São caracterizadas por um gerenciamento mais participativo, dialógico, em que o processo decisório é exercido por diferentes sujeitos sociais em busca de soluções consensuais (Tenório, 1998; Barcellos; Dellagnelo, 2013). TEMA 2 – LIMITES AO CRESCIMENTO ECONÔMICO Explanamos anteriormente acerca das organizações convencionais que são orientadas exclusivamente para o crescimento econômico. Relembrando, a orientação para o crescimento econômico baseia-se na acumulação ilimitada de A luno: A N G É LIC A C A P R ILE S S A N T O S E m ail: a.capriles@ hotm ail.com 4 capital, ou seja, a acumulação de riqueza e a geração de lucro (Latouche, 2009). Por isso, verifica-se que a sociedade sofre de uma quase universal idolatria do gigantismo, em que se busca o crescimento econômico a qualquer custo. Além disso, já apresentamos os problemas oriundos da orientação exclusiva para o crescimento econômico. Entre os principais problemas do crescimento econômico, estão as questões ambientais, ou seja, a exaustão de serviços ecossistêmicos, a impossibilidade de florescimento individual e, por último, as desigualdades sociais. Postas as características das organizações convencionais orientadas exclusivamente para o crescimento econômico e os problemas oriundos disso, faz-se necessário reconhecer as virtudes da pequenez (Schumacher, 1977) e promover práticas de incentivos aos pequenos produtores, além de adotar práticas de consumo de produtos oriundos das micro e pequenas organizações que não tenham como foco principal o crescimento econômico, mas, sim, preocupações com o meio ambiente, a responsabilidade social e o florescimento de seus integrantes e da comunidade a que pertencem. As organizações convencionais vendem a ideia de que todos podem crescer economicamente sem considerar os problemas disso para o planeta, para a saúde das pessoas e também para a sociedade – neste último caso, por causa do aumento da desigualdade social. Nas grandes empresas, por exemplo, um cargo em uma hierarquia superior é disputado por muitas pessoas, causando competição e sofrimento nos trabalhadores, minando, assim, a solidariedade entre as pessoas. Reconhecendo os efeitos prejudiciais sociais dessas práticas, algumas organizações buscam alternativas a essa lógica de crescimento econômico a todo custo. As teorias administrativas direcionam as organizações para a busca de eficiência máxima e crescimento econômico. Porém, na prática, verifica-se que muitas organizações não têm o crescimento econômico e a eficiência máxima como princípio orientador. O documentário Menos é mais, produzido e disponibilizado em 2014 pelo canal Futura, mostra casos em que os proprietários de microempresas discursam a favor de impor limites ao crescimento econômico para promover a qualidade de vida e a satisfação no trabalho. O documentário mostra organizações que optam voluntariamente por impor limites ao crescimento econômico. Para estas, o crescimento econômico não é o principal objetivo, e seus proprietários relatam os A luno: A N G É LIC A C A P R ILE S S A N T O S E m ail: a.capriles@ hotm ail.com 5 motivos pela opção de não crescer, enfatizando que ser pequeno é bom. O documentário mostra uma cervejaria, uma cafeteria e um restaurante árabe da região de Curitiba, no Paraná. O primeiro caso mostrado pelo documentário é o da cervejaria Bodebrown.De acordo com o proprietário, mais importante do que crescer economicamente é ter bons amigos, viver melhor, compartilhar, ter mais amor, buscar o resgate cultural, a simplicidade e os valores do passado, expressar a aptidão artística deixando de lado o estresse. Para ele, o poder e as posses não deixam as pessoas mais felizes. O segundo caso é o da cafeteria Café Terceiro Milênio. O proprietário optou por permanecer pequeno, limitar a produção mesmo quando o mercado pedia mais. Para ele, o bem-estar da família e o fazer o que gosta valem mais do que a expansão dos negócios. O terceiro caso é do restaurante árabe Casa do Kibe. A organização optou por não expandir para shoppings e filiais. De acordo com o proprietário, o trabalho deve trazer contentamento, bem viver, tempo para lazer e possibilidade de atuar com alegria. Para ele, não vale a pena buscar o crescimento econômico para ter mais trabalho e preocupação. “Não me deixo escravizar pelo trabalho”, afirmou. TEMA 3 – CONVIVIALIDADE Convivialidade é um termo cunhado por Ivan Illich (1976). Para entender o que significa, faz-se necessário compreender primeiro o que é o modo de produção industrial, pois, segundo Illich (1976), a sociedade convivial é o oposto da sociedade industrial, e na sociedade em que vivemos existe o monopólio do modo de produção industrial sobre outros modos alternativos de produção pós- industrial. O modo de produção industrial baseia-se na produtividade máxima e na padronização. Os produtos são produzidos em escala a fim de fornecer menores preços ao consumidor final. Para isso, o trabalhador que atua na indústria realiza um trabalho repetitivo e rotineiro, seguindo normas não estabelecidas por ele. Há a exigência de maior produtividade a fim de colocar maior quantidade de produtos no mercado para venda. Para isso, usam-se métodos e ingredientes artificiais e exploração máxima da mão de obra trabalhadora. Produzir mais é sinal de sucesso, pois proporciona o lucro e o crescimento econômico. A luno: A N G É LIC A C A P R ILE S S A N T O S E m ail: a.capriles@ hotm ail.com 6 O modo de produção industrial cria a sociedade industrial, pois o parâmetro de produtividade máxima, usado pelas indústrias, é transferido para a vida pessoal dos indivíduos. Assim, busca-se em todos os âmbitos da vida a produtividade máxima, na maioria das vezes em detrimento da qualidade de vida e de relacionamentos saudáveis. O indivíduo que realiza poucas atividades não se sente produtivo. Procura preencher seus horários com diversas atividades, e o ócio é visto com algo ruim. Além da perda da qualidade de vida e do bem viver, a sociedade industrial inviabiliza a contemplação e, consequentemente, a reflexão, fazendo com que as pessoas reproduzam hábitos, pensamentos e formas de vida e trabalho, sem utilização de um senso verdadeiramente crítico, impossibilitando transformações significativas na sociedade e em suas vidas privadas. A sociedade convivencial, em oposição à sociedade industrial, valoriza as relações sociais e o bem viver das pessoas. As pessoas são mais importantes do que os números e do que a quantificação, a quantidade de bens produzidos. A sociedade convivial possibilidade autonomia e liberdade para as pessoas. O homem não é controlado pela estrutura na qual está inserido, mas, sim, tem poder de ação. Ou seja, “o homem controla a ferramenta”. Podemos dizer que as ferramentas são os objetos, os bens materiais, a tecnologia e a eficiência máxima, por exemplo. Estão relacionadas à necessidade de busca de eficiência máxima em todos os sentidos da vida, uma eficiência que foi determinada pela racionalidade dirigente do modo de produção industrial em que os homens são escravos de uma estrutura social imposta, que exige cada vez mais produtividade e consumismo. Os objetos, ou seja, os bens materiais e a tecnologia, dominam os homens. Quando a ferramenta é justa, há a possibilidade de o homem não ser dominado por esta na sociedade convivencial, pois ela cria eficiência sem degradar a autonomia pessoal, assim não provoca nem escravos, nem senhores Na sociedade convivial, é possível colocar a ferramenta a serviço das pessoas integradas na coletividade. Assim, não há necessidade de sempre ter que recorrer a um corpo de especialistas. Ou seja, não é um diploma ou uma formação que rotula, capacita ou legitima as pessoas. Na sociedade convivial, o homem tem liberdade para moldar os objetos que o rodeiam (oposto ao que ocorre na sociedade industrial). Assim, o valor técnico é substituído pelo valor ético, pois as pessoas participam da criação da vida social. A luno: A N G É LIC A C A P R ILE S S A N T O S E m ail: a.capriles@ hotm ail.com 7 A sociedade convivencial repousa em contratos sociais em que há o livre acesso às ferramentas da comunidade na condição de não prejudicarem uma idêntica liberdade de acesso aos outros. Porém, a visualização e a prática de uma sociedade convivial em substituição ao modo de produção industrial são um desafio, pois “estamos a tal ponto deformado pelos hábitos industriais que já não ousamos considerar os campos das possibilidades” (Illich, 1976, p. 10). TEMA 4 – SIMPLICIDADE VOLUNTÁRIA As organizações convencionais, ou seja, o modelo organizacional dominante, como visto anteriormente, baseiam-se, entre outras premissas, no crescimento econômico. Para isso, fundamentam-se no consumismo. Assim, as organizações convencionais estão alinhadas à chamada sociedade de consumo (Baudrillard, 2008; Baumam, 2008), buscando produzir cada vez mais produtos e serviços de maneira mais eficiente possível. As pessoas, nas organizações convencionais da sociedade de consumo, buscam o status, a autovalorização (Gregg, 1977), e acreditam que seus problemas são resolvidos com o consumo (Murphy, 2000). Porém, conforme salientado por Silva e Hor-Meyl (2016), a relação entre felicidade, riqueza e consumo (Csikszentmihalyi, 1999; Hsee al., 2009) vem sendo contestada. O estudo de Silva e Hor-Meyl (2016) salienta que o elevado consumo não leva necessariamente à felicidade do indivíduo (Csikszentmihalyi, 1999; Ahuvia, 2008) nem à melhora da qualidade de vida (Csikszentmihalyi, 1999; Karabati; Cemalcilar, 2010). Identifica-se que é possível ocorrer até mesmo o oposto: o excesso de posse de bens materiais poderia até indicar um indivíduo insatisfeito com a vida (Csikszentmihalyi, 2000), pois o consumismo seria uma compensação de uma vida infeliz (Baumam, 2008). Nesse contexto, há estudos sobre a simplicidade voluntária, os quais apresentam estilos de vida alternativos que transformam as formas organizacionais de trabalho das pessoas que optam por isso. A expressão simplicidade voluntaria teve origem no trabalho de Richard Gregg de 1936 (Silva; Hor-Meyl, 2016), que o definiu como um estilo de vida ligado à dimensão espiritual do homem, quando o indivíduo abre mão de vida materialista (Leonard-Burton, 1981) e evita o acúmulo de posses desnecessárias (Ballantine; Creery, 2010; Silva; Hor-Meyl, 2016). A luno: A N G É LIC A C A P R ILE S S A N T O S E m ail: a.capriles@ hotm ail.com 8 A simplicidade voluntaria é a decisão por reduzir gastos com consumo, valorizando a satisfação não material, uma escolha voluntária que não seria motivada por coerção ou condições financeiras desfavoráveis (Etzioni, 1998). Posto isso, cabe mencionar, conforme salientado pelo estudo de Silva e Hor-Meyl (2016), que de um lado observa-se que, principalmente no Brasil, há consumidores ávidos por adquirir produtos e serviços que antes lhes eram inacessíveis, pois grande parte da população somente recentemente começou a ter acesso a níveis mais elevados de consumo, além da subsistência (Rocha; Silva, 2008). Por outro lado, há um grupo pequeno de indivíduos que têm optado, de forma voluntária,por reduzir seu consumo (Silva; Hor-Meyl, 2016). Assim, conforme Elgin (2000); a simplicidade não teria relação com pobreza, que é uma condição involuntária que leva à redução do consumo (Silva; Hor-Meyl, 2016). A simplicidade voluntária, de acordo com Gregg (1977, citado por Silva; Hor-Meyl, 2016, p. 100), “pode variar de acordo com o clima, com a cultura e com características pessoais do indivíduo, não apresentando um padrão único - o que é simplicidade para um pode ser diferente para outro, principalmente se a comparação for entre diferentes culturas” A principal razão para adoção da simplicidade voluntária seria o desejo do indivíduo de encontrar equilíbrio ao viver de forma “aparentemente simples e interiormente rica”, representando verdadeira mudança de valores (Elgin; Mitchell, 1977, p. 2, citados por Silva; Hor-Meyl, 2016, p. 100). O estudo de Silva e Hor-Meyl (2016) identificou seis motivos pelos quais as pessoas optam pela adoção da simplicidade voluntaria: 1. Insatisfação no trabalho; 2. Insatisfação com exagero no consumo; 3. Vida espiritual e religião; 4. Busca de mais tempo para o lazer; 5. Resgate de valores familiares; 6. Busca de libertação da pressão da sociedade. A adoção da simplicidade voluntária ocasionou mudanças na vida das pessoas investigadas relacionadas a ocupação profissional, moradia, transporte, alimentação, consumo e descarte de bens, organização pessoal e consciências ecológica e social. Quanto à mudança de ocupação profissional, os entrevistados reduziram a carga horária de trabalho e buscaram empregos que dão prazer, sem priorizar ganhos financeiros. Quanto à moradia, reduziram a A luno: A N G É LIC A C A P R ILE S S A N T O S E m ail: a.capriles@ hotm ail.com 9 complexidade de moradia e puderam se mudar para regiões rurais ou para o interior. No quesito transporte, priorizaram o uso de transporte público e da bicicleta e o caminhar. Quando possuem automóveis, não se preocupam com que seja um modelo moderno. Quanto à mudança na alimentação, verificou-se que os indivíduos buscam por produtos naturais, menos industrializados. Alguns plantam os alimentos que consomem. Além disso, houve redução drástica do consumo de bens e produtos, além da mudança de consciência ambiental e social. A respeito da organização pessoal, reduzem o acúmulo de bens e a desordem. Além disso, no grupo entrevistado, houve aumento da valorização de experiências como estar em contato com a natureza, ter tempo para relacionamento com amigos e familiares, viagens, atividades que lhes dão prazer. TEMA 5 – TEORIA DA DÁDIVA A dádiva, de acordo com o dicionário (Dicio, S.d.), é o ato ou efeito de dar espontaneamente algo de valor, material ou não, a alguém. Representa aquilo que é dado, um presente, uma oferta, um mimo ou um brinde. Assim, a teoria da dádiva, basicamente, refere-se às trocas realizadas entre as pessoas por meio da doação, e não por meio de compra e venda. Refere-se ao dar e receber entre as pessoas. O principal sistematizador do termo foi o antropólogo Marcel Mauss. De acordo com Martins (2005, p. 1). Uma das contribuições centrais de Mauss para a sociologia foi demonstrar que o valor das coisas não pode ser superior ao valor da relação e que o simbolismo é fundamental para a vida social. Ele chegou a esta compreensão a partir da constatação de que as modalidades de trocas nas sociedades arcaicas não são apenas coisas do passado, tendo importância fundamental para se compreender a sociedade moderna. A dádiva é uma teoria do vínculo social. O vínculo entre as pessoas se estabelece por meio da dádiva devido à tríplice obrigação coletiva de dar, receber e retribuir bens simbólicos ou materiais (Mauss, 2003). Tudo o que participa da vida humana, sejam bens materiais ou simples gestos, tem relevância para a produção (Martins, 2005). Podem ser bens materiais, simbólicos, tangíveis ou não, dos quais o primeiro objetivo é criar, recriar ou fortalecer os vínculos entre as pessoas ou grupos (Vizeu, 2009). A dádiva, de acordo com Caillé (2002), deve ser empreendida sem a garantia de retorno (Vizeu, 2009). É uma troca recíproca, mesmo quando A luno: A N G É LIC A C A P R ILE S S A N T O S E m ail: a.capriles@ hotm ail.com 10 empreendida entre desiguais. Para estabelecer um vínculo entre doador e receptor, a dádiva deve ser uma atitude espontânea por parte do primeiro, como também deve ser espontânea a retribuição (Vizeu, 2009). A dádiva, de acordo com Mauss, deve ser um ato voluntário por parte do doador, bem como a contra-dádiva para o receptor, mesmo que, implicitamente, configure-se como uma obrigação. Assim, para demonstrar apreço pelo outro, “meu” gesto deve parecer um ato de desprendimento (gratuito), uma doação de algo de valor que, espontaneamente, “passo” para outra pessoa (Vizeu, 2009). A troca mercantil é um dos pilares da nossa sociedade, então tendemos a pensar todas as relações de troca dessa forma (Vizeu, 2009). Porém, a teoria da dádiva também se faz importante para a compreensão da sociedade moderna (Martins, 2005). Na economia mercantil, a impessoalidade, imposta pela lógica de mercado, estabelece-se em detrimento aos vínculos sociais. De acordo com Godbout (1999), a lógica do mercado permite a liberação imediata de inúmeras relações sociais indesejáveis, justamente porque o compromisso do contrato permite a liquidação imediata da obrigação. Nas trocas mercantis, criam-se figuras impessoais e descomprometidas: contratante e contratado, consumidor e empresa, Estado e contribuinte (Vizeu, 2009). Em contrapartida, segundo Godbout (1999), a dádiva não comporta a equivalência contábil e a possibilidade de liquidação imediata da dívida. Na lógica da dádiva, o tempo de retribuição deve ser, necessariamente, indeterminado, para surgir o sentimento de obrigação de retribuição e, assim, garantir a circularidade da dádiva e a perenidade do vínculo entre aqueles que trocam. Aqui, o principal valor considerado não é a utilidade ou o valor do bem trocado em si, mas, sim, o valor do vínculo firmado a partir da troca (Vizeu, 2009). A tripla obrigação de dar, receber e retribuir seria anterior aos interesses contratuais e às obrigações legais. Diferentemente do sistema bipartido do mercado, que funciona pela equivalência (dar-pagar), na dádiva (dar-receber- retribuir), o bem devolvido nunca tem valor igual àquele do bem inicialmente recebido (Martins, 2005). Aqui, o valor importante não é o quantitativo, mas o qualitativo, e o que funda a devolução não é a equivalência, mas a assimetria. Um presente ou uma hospitalidade nunca se paga em moeda de mesmo valor, tampouco é retornada necessariamente no mesmo instante da ação (senão corre-se o risco de a ação ser interpretada como uma equivalência que levaria à ruptura da interação). Mas esse presente ou A luno: A N G É LIC A C A P R ILE S S A N T O S E m ail: a.capriles@ hotm ail.com 11 hospitalidade pode ser retribuído num outro momento mediante uma gentileza ou favor, fazendo circular a roda das práticas sociais e das experiências de vida entre os envolvidos. (Martins, 2005) A teoria mercantil associa-se ao modelo de gestão das organizações convencionais de trabalho, enquanto a teoria da dádiva, por possibilitar a reflexão de novos cominhos para a compreensão das relações pessoais, pode estar associada às organizações alternativas de trabalho, visto que nas trocas mercantis, por exemplo, imperam a impessoalidade, a equivalência monetária e os bens matérias, enquanto na troca-dádiva ressurgem a pessoalidade e os aspectos simbólicos não abarcados pela economia convencional. A luno: A N G É LIC A C A P R ILE S S A N T O S E m ail: a.capriles@ hotm ail.com 12 REFERÊNCIAS ADVERSI, L.G. Organizações não convencionais: um estudo comparativode casos. 2018. 173 f. 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