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66 Unidade II Unidade II 5 IMUNO-HEMATOLOGIA, TRANSFUSÃO SANGUÍNEA E REAÇÃO TRANSFUSIONAL 5.1 Antígenos eritrocitários, constituição da membrana eritrocitária, classificação funcional, estrutura e funções dos grupos sanguíneos A descoberta do primeiro grupo sanguíneo, em 1900, pelo imunologista austríaco Karl Landsteiner, deu início à fase científica da transfusão sanguínea. Atualmente sabe-se que os antígenos eritrocitários são estruturas macromoleculares, herdados geneticamente, que se localizam na superfície extracelular da membrana dos eritrócitos podendo ser de natureza carboidrato, proteína ou glicoproteína. A maioria desses antígenos são imunogênicos e podem, portanto, induzir a formação de anticorpos em indivíduos desprovidos dessas moléculas durante transfusões, gestações e/ou transplantes. Esses indivíduos previamente sensibilizados, se expostos novamente ao antígeno eritrocitário, podem apresentar reações transfusionais hemolíticas, e no caso de mulheres em idade fértil, a gestação pode ser comprometida pela doença hemolítica do feto e recém-nascido (DHFRN) (RODRIGUES, 2016). As membranas plasmáticas de um modo geral apresentam–se como barreiras seletivas que asseguram a composição interna constante das células através do controle da transferência ativa e passiva de inúmeras moléculas. Essas membranas têm um sistema estrutural complexo, citoesqueleto, que envolve tanto a forma da célula, como sua mobilidade, deformabilidade e o transporte de macromoléculas. Entre os diferentes constituintes da membrana, apresentam-se receptores envolvidos em funções complexas que permitem a comunicação entre as células, reconhecimento imunológico e fenômenos de adesão celular (MURADOR; DEFFUNE, 2007). A membrana eritrocitária é essencialmente constituída de lipídios e proteínas. Os lipídios e proteínas estão dispostos na superfície da hemácia de forma complexa. Essa membrana consiste em uma bicamada fosfolipídica, que representa aproximadamente 50% de sua massa total e forma a barreira entre dois compartimentos líquidos, intra e extracelular. O citoesqueleto da membrana plasmática do eritrócito é formado por três proteínas principais: a espectrina, a proteína 4.1 e a actina. Essas proteínas, presentes no lado citosólico da bicamada lipídica, formam uma rede horizontal, essencial na manutenção da forma característica da hemácia (OLIVEIRA; RIBEIRO; VIZZONI, 2013). As trocas entre esses compartimentos são feitas através de bombas, canais de trocas de íons e transporte molecular como o da glicose. Além disso, a deformabilidade de sua membrana, a fluidez de seu citoplasma e a complexidade de sua superfície membranária, em relação ao seu volume interno, asseguram as funções de transporte de O2 dos pulmões e remoção do CO2 dos tecidos para os pulmões. Essa capacidade de transporte depende das condições de adaptação circulatória e, também, da hemoglobina citosólica e de um polipeptídio maior da membrana: a banda 3 ou proteína de troca 67 HEMOTERAPIA E BANCO DE SANGUE de íons (anion exchanger 1, AE1). Como transportador de membrana, a AE1, ou banda 3, media as trocas de Cl–/HCO3–, aumentando então a capacidade sanguínea de transporte de CO2, garantindo a homeostase e o equilíbrio ácido-básico. Por interação com lipídios e proteínas, a banda 3 multifuncional (AE1) une o complexo multiproteico do citoesqueleto e confere aos eritrócitos propriedades mecânicas e elásticas, regulando a viscosidade sanguínea. As glicoforinas A, B, C, D, que possuem receptores de membrana e antígenos participam do reconhecimento célula-célula na extremidade externa e auxiliam na estabilização do citoesqueleto através de ligações com a proteína 4.1 na face interna da membrana. Todas as proteínas de transporte da membrana do eritrócito são produzidas nos estágios primordiais dos eritroblastos (BONIFÁCIO; NOVARETTI, 2009). Resíduos de carboidratos Glicoforina A Banda 3 Glicoforina A Anquirina Proteína 4.2 Espectrina cadeia α e β Proteína 4.1 Proteína 4.1Actina Actina Figura 16 – Estrutura da membrana plasmática do eritrócito Fonte: Oliveira, Ribeiro e Vizzoni (2013, p. 15) Atualmente, entre os 346 antígenos eritrocitários descritos, 308 antígenos são classificados em 36 sistemas, pois suas bases moleculares são bem definidas. Os demais 38 antígenos são classificados em coleções ou séries e, à medida que suas bases genéticas são descobertas, o antígeno é classificado dentro de um sistema já existente ou passa a compor um novo sistema de grupo sanguíneo. Os principais sistemas sanguíneos em que os antígenos eritrocitários foram classificados são: ABO, Rhesus (Rh), MNS, I, P, Lewis, Lutheran, Kell, Duffy, Kidd e Xg. No entanto, há vários outros sistemas, como Gerbich (Ge), Diego, Indian (In), Scianna (Sc), Cartwright (Yt), Cromer (Cr) e Knops (Kn). Esses antígenos foram classificados de acordo com suas funções biológicas: proteínas estruturais, transporte, receptores/moléculas de adesão, enzimática, complemento, proteínas regulatórias e outras, sendo que um antígeno eritrocitário pode apresentar mais que uma função (BONIFÁCIO; NOVARETTI, 2009). Lembrete A nomenclatura ISBT para antígenos de grupos sanguíneos foi desenvolvida por um grupo de pesquisadores que fazem parte da Sociedade Internacional de Transfusão de Sangue (International Society of Blood Transfusion – ISBT). 68 Unidade II Quadro 6 – Grupos sanguíneos humanos com seus respectivos números ISBT (Sociedade Internacional de Transfusão Sanguínea), nome do gene, localização cromossômica dos genes e função da proteína N. ISBT Sistema sanguíneo Nome do gene Localização do cromossomo Função da proteína 001 ABO ABO ABO 9q34.2 Galactosiltransferase ou N-acetilgalactosaminiltransferase 002 MNS (glicoforin A/B/E) MNS GYPA, GYPB GYPE 4q31.21, 4q31.21, 4q31.1 Desconhecida/adesão? 003 P1PK P1PK A4GALT 22q13.2 Galactosiltransferase 004 Rh RH RHD, RHCE 1p36.11 Desconhecida; transporte de membrana? 005 Lutheran LU BCAM 19q13.2 Adesão 006 Kell KEL KEL 7q33 Metaloendopeptidase 007 Lewis LE FUT3, FUT6, FUT7 19p13.3 Fucosiltransferase (todos) 008 Duffy FY ACKR1 1q21-q22 Receptor de quimiocina 009 Kidd JK SLC14A1 18q11-q12 Transportador de ureia 010 Diego DI SLC4A1 17q21.31 Permutador aniônico 011 Yt YT ACHE 7q22 Acetilcolinesterase 012 Xg XG CD99, XG Xp22-32, Yp11.3, Xp22.32 Desconhecida/adesão? 013 Sciannna T/Tn SC ERMAP, C1GALT1, C1GALT1C1 1p34.2, 7p21.3, Xq24 Desconhecida/adesão? 014 Dombrock DO ART4 12p13-p12 ADP ribosiltransferase 015 Colton CO AQP1 7p14 Canal de água 016 Landsteiner-Wiener LW ICAM4 19p13.2 Molécula de adesão 017 Chido/Rodgers CH/RG C4A,C4B 6p21.3 Fator de complemento 018 H H FUT1, FUT2 e pseudogene 19q13.33 Fucosiltransferase 019 Kx XK XK Xp21.1 Desconhecida; transporte de membrana? 020 Gerbich GE GYPC 2q14-q21 Elemento citoesquelético 021 Cromer CROM CD55 1q32 Complemento cascata regular 022 Knops KN CR1 1q32.2 Receptor para ativação do complemento 023 Indian IN CD44 11p13 Adesão 024 Ok OK BSG 19p13.3 Receptor 025 Raph RAPH CD151, RHCE, RHD 11p15.5, 1p36.11, 1p36.11 Adesão 026 John Milton Hagen JMH SEMA7A 15q22.3-q23 Desconhecida; sinalização? 027 I I GCNT2 6p24.2 N-acetilgluconaminiltransferase 028 Globoside GLOB B3GALNT1 3q25 N-acetilgalactosaminiltransferase (B3GALNT1) 029 Gill GIL AQP3 9p13 Canal de água 030 Rh-associatedglycoprotein (RhAG) RHAG RHAG 6p12.3 Transporte da amônia ou dióxido de carbono 69 HEMOTERAPIA E BANCO DE SANGUE N. ISBT Sistema sanguíneo Nome do gene Localização do cromossomo Função da proteína 031 FORS FORS GBGT1 9q34.13-q34.3 N-acetilgalactosiltransferase 032 Junior JR ABCG2 4q22.1 Transportadores de cassetes de ligação ao ATP 033 Lan LAN ABCB6 2q36 Transportadores de cassetes de ligação ao ATP 034 Vel VEL SM1M1 1q36.32 Desconhecida 035 CD59 CD59 CD59 11p13 036 Augustine AUG SLC29A1 6p21.1 Fonte: Harmening (2019, p. 177-178). Receptor/Adesão Enzima DiegoGe In Xg Sc Lu Ok Kel Yt Cr KnDuffy MNS ComplementoTransporteEstruturaFigura 17 – Representação esquemática de antígenos de rupos sanguíneos conforme suas funções biológicas Fonte: Bonifácio e Novaretti (2009, p. 106). 5.2 Sistema de grupo sanguíneo ABO (ISBT 001) Em 1900, Landsteiner descreveu o primeiro sistema de grupo sanguíneo chamado de Sistema ABO, que relatou a presença dos antígenos A, B e C (C depois renomeado como O). Landsteiner descobriu que, misturando soro e hemácias de diferentes pessoas, poderiam ser definidos três grupos e, alguns anos após, Decastello descreveu o fenótipo AB. Em 1910, Von Dungern e Hirchfeld confirmaram que a herança genética de A e B obedeciam às leis de Mendel, com a presença de A e B como dominantes (ANVISA, 2014b). É o sistema mais conhecido e importante na prática transfusional. É o único sistema de grupo sanguíneo no qual os indivíduos já possuem anticorpos em seu soro para antígenos que estão ausentes em suas hemácias sem qualquer exposição anterior de transfusão ou gestação. Devido à presença desses anticorpos, uma transfusão ABO incompatível pode resultar na lise imediata dos eritrócitos do doador. 70 Unidade II Isso produz uma reação transfusional muito grave, que pode ser fatal, chamada de reação hemolítica aguda. O princípio dos testes de compatibilidade surgiram com a descoberta do sistema ABO, que provavelmente era a causa da maioria dos insucessos nas transfusões (HARMENING, 2019). Os genes ABO se localizam no braço longo do cromossoma 9 (posição 9q34.1-q34.2). Foram definidos quatro genes: A1, A2, B, O. Esses genes codificam a produção de duas enzimas glicosiltransferases A e B. A transferase A (α1,3 → N-acetilgalactosaminiltransferase), que adiciona o açúcar N-acetil-galactosamina e produz o antígeno A; e a transferase B (α1,3 → galactosiltransferase), que adiciona a galactose e produz o antígeno B num substrato precursor na membrana da hemácia, o antígeno H (que serve como estrutura básica para esses dois antígenos). A substância H é formada pela ação da enzima alfa-2-L- fucosiltransferase, que adiciona L-fucose à galactose terminal. Essa enzima é codificada no locus FUT1 do cromossomo 19, na posição q13.3, sendo, portanto, geneticamente independente do locus ABO. O gene O não produz transferase ativa. A sequência de DNA do gene O é idêntica à do gene A, exceto pela deleção (G-261) na região N-terminal, o que codifica uma proteína truncada. O gene alelo A2 difere de A1 pela simples deleção de uma base na região C-terminal, na posição 467, sendo o nucleotídeo T em A2 e C em A1; o gene A2 produz uma transferase A2 que tem uma atividade reduzida quando comparada com a transferase A1. A diferença entre genes A e B são sete nucleotídeos no DNA, que resultam em quatro aminoácidos diferentes nas transferases A e B (OLIVEIRA; RIBEIRO; VIZZONI, 2013). Galactose GalactoseFucose N-acetilglicosamina N-acetilglicosamina Galactose Glicose (Substância precursora) SP H A BAg Ag Ag Figura 18 – Representação esquemática da biossíntese dos antígenos ABO Adaptado de: Oliveira et al. (2013). Os antígenos do sistema ABO não estão restritos à membrana eritrocitária, sendo encontrados na saliva, urina, leite e nos líquidos biológicos, exceto fluido espinhal. A presença da substância ABO específica nos líquidos biológicos ocorre em indivíduos que apresentam o gene secretor (Se) FUT2 – que correspondem a 80% das pessoas. Encontra-se também na maioria das células epiteliais e endoteliais e sua presença nos linfócitos e nas plaquetas parece estar relacionada à absorção do plasma. Em decorrência da presença de antígenos ABO na maioria dos tecidos do organismo, trata-se mais de um sistema de histocompatibilidade, e são importantes na compatibilidade de transplantes de órgãos e medula óssea (ANVISA, 2014b). Os antígenos ABO estão expressos desde a 5-6ª semana de vida intrauterina, porém é somente ao redor dos 2 a 4 anos de vida que o número de sítios antigênicos apresenta expressão plena. 71 HEMOTERAPIA E BANCO DE SANGUE Os anticorpos ABO são dirigidos contra os antígenos ausentes nas hemácias do próprio indivíduo. São de classe IgM e IgG, ativos a 37 °C e capazes de fixar e ativar o complemento, provocando hemólises intravasculares severas em casos de incompatibilidades transfusionais. Também estão relacionados com a doença hemolítica do recém-nascido (DHRN), geralmente de intensidade leve. Os anticorpos do sistema ABO aparecem espontaneamente depois dos 4 meses de idade, com pico de produção após 5 anos de idade e com diminuição progressiva na velhice. Uma das explicações para o seu aparecimento é a ampla distribuição de estruturas semelhantes a esses antígenos na natureza, principalmente nas bactérias. Por isso esses anticorpos são chamados de ocorrência natural. As bactérias presentes no trato intestinal, na poeira e em alimentos promovem uma exposição constante de todos os indivíduos a essas estruturas, semelhantes aos açúcares A e B presentes nas hemácias (GIRELLO; KHUN, 2016). A identificação dos fenótipos ABO está relacionada à presença ou à ausência dos antígenos A e/ou B na membrana das hemácias (prova direta) e à detecção ou à ausência de anticorpos contra os antígenos eritrocitários que não estão presentes na superfície das hemácias (prova reversa). Resumindo: nas membranas das hemácias, são identificados dois tipos de antígenos de carboidratos, denominados aglutinogênios, sendo eles o aglutinogênio A e o aglutinogênio B, que caracterizam a presença desses carboidratos e irão determinar o fenótipo do sangue do indivíduo. No plasma do sangue, podemos identificar dois anticorpos, que são as aglutininas anti-A e anti-B. Dessa forma, os indivíduos que integram o grupo sanguíneo A possuem aglutinogênios A e aglutininas anti-B. Os que integram o grupo sanguíneo B possuem aglutinogênio B e aglutininas anti-A. Indivíduos que possuem o grupo sanguíneo AB possuem aglutinogênios A e aglutinogênio B, e por isso não possuem nenhuma das duas aglutininas. E, por fim, pessoas que integram o grupo O possuem aglutininas anti-A e aglutininas anti-B, portanto não possuem aglutinogênio. Quadro 7 – Principais fenótipos ABO Fenótipos: grupo sanguíneo Genótipos possíveis Antígenos (Ag) Anticorpos (Ac) O OO Nenhum Anti-A Anti-B A1 A1A1 A1 Anti-BA 1O A1A2 B BB B Anti-A BO AB A1B A1 Nenhum B A2 A2A2 A2 Anti-B A2O Eventual Anti-A1 A2B A 2B A2 Nenhum B Eventual Anti-A1 Adaptado de: Oliveira, Ribeiro e Vizzoni (2013). 72 Unidade II Os antígenos A e B apresentam subgrupos que se caracterizam por diferenças na quantidade e forma de expressão na membrana das hemácias devido a alterações genéticas (mutações na estrutura dos genes) que codificam transferases diferentes das transferases A e B, levando em geral a uma expressão enfraquecida dos antígenos (A e B) na membrana da hemácia. Os subgrupos, nos testes imuno-hematológicos, apresentam intensidade de reação mais fraca com reagentes anti-A, anti-B e anti-AB, o que pode levar a discrepâncias entre a prova direta e reversa da classificação ABO. O uso de lectinas específicas anti-A1 (Dolichos biflorus) e anti-H (Ulex europeaus) pode auxiliar na determinação dos subgrupos. As hemácias A1 apresentam reação positiva com lectina anti-A1 e negativa com lectina anti-H. Nos subgrupos de A, a reação com lectina anti-A1 apresenta reação negativa, e anti-H, reação positiva (ANVISA, 2014b). Os subgrupos também ocorrem nos indivíduos AB. Cerca de 80% dos indivíduos A e AB são A1/A1B, 19% são A2/A2B, e 1%, outros subgrupos (A3, Aint, Ael, Am, Ax, Ay etc.). Os subgrupos de B são raros (B3, Bx, Bm, Bel). A reação de aglutinação com antissoros A e B só é visível quando mais de 2 mil sítios antigênicos estão presentes na membrana das hemácias. Na medicina transfusional, em geral, não é importante distinguir os subgrupos de A e de B. A transfusão de subgrupos, em geral, não leva à reação transfusional (BATISSOCO; NOVARETTI, 2003). A ausência do gene H (FUT1) e, consequentemente, do antígeno H, denominadafenótipo Bombaim ou Oh, foi descrita em 1952 na Índia. O fenótipo resulta da herança de uma dose dupla do gene h, herdado como um traço autossômico recessivo, produzindo o genótipo muito raro hh. Como resultado, os genes ABO não podem ser expressos, e antígenos ABH não podem ser formados, uma vez que não há antígeno H produzido no fenótipo de Bombaim. Esse fenótipo distingue-se pela perda total da atividade das transferases ABH nos eritrócitos e nas secreções corpóreas e pelas grandes quantidades de anticorpos anti-H, além do anti-A e do anti-B. Por causa da presença do antígeno H na superfície dos eritrócitos do grupo sanguíneo O, os indivíduos com fenótipos Bombaim são incompatíveis também com os eritrócitos de doadores do grupo O, sendo compatíveis somente com outro indivíduo Bombaim (HARMENING, 2019). Pela importância clínica e a presença regular de anticorpos naturais hemolíticos do sistema ABO, é uma regra básica não transfundir hemácias portadoras de antígenos que possam ser reconhecidos pelos anticorpos do receptor. Assim, de acordo com essa norma, podemos estabelecer as seguintes regras de compatibilização no sistema ABO: transfusões de isogrupos sempre que possível; transfusões de heterogrupos apenas excepcionalmente, respeitando-se o seguinte esquema: AB ABO O A A B B A) B) Figura 19 – Representação esquemática para transfusão de hemocomponentes: A) transfusão de concentrado de hemácias; B) transfusão de plasma Adaptada de: Oliveira, Ribeiro e Vizzoni (2013). 73 HEMOTERAPIA E BANCO DE SANGUE A frequência dos fenótipos ABO varia de acordo com a raça e a população estudada. Algumas explicações foram dadas a esse fenômeno, como migração populacional, cruzamentos étnicos e doenças que conferem vantagens ou desvantagens a certos grupos sanguíneos. Tabela 14 – Frequências dos fenótipos ABO de grupos étnicos nos Estados Unidos (%) Alelo Em % nos Estados Unidos Caucasianos Negros Orientais A1 22 12 18 A2 7 6 Raro B 06 12 17 O 65 70 65 Adaptado de: Girello e Kuhn (2016, p. 166). 5.3 Sistema de grupo sanguíneo RH (ISBT 004) O sistema Rh é o mais complexo dos sistemas eritrocitários e o segundo mais importante, depois do sistema ABO, na medicina transfusional. Foi descoberto em 1939 por Levine e Stetson, por meio de um caso da doença hemolítica perinatal (DHPN). Uma mulher, ao dar à luz uma criança com anemia hemolítica, necessitou ser transfundida com o sangue ABO compatível de seu marido e, a seguir, apresentou reação transfusional grave. O soro dessa mulher aglutinava as hemácias do marido e de cerca de 80% dos doadores caucasianos também ABO-compatíveis. Na mesma época, Landsteiner e Wiener observaram que o soro de coelhos imunizados com hemácias do macaco rhesus também aglutinava cerca de 85% das hemácias humanas. Inicialmente foi pensado que, nos dois casos, os anticorpos identificavam o mesmo antígeno na superfície das hemácias humanas e do macaco rhesus (Ag Rh). Posteriormente, foi observado que não se tratava do mesmo antígeno, porém a nomenclatura Rh foi mantida para o sistema. O anticorpo do coelho (heteroanticorpo) passou a ser chamado de anti-LW, e o anticorpo humano (aloanticorpo) foi renomeado como anti-D (ANVISA, 2014b). Os antígenos do sistema Rh são encontrados exclusivamente nas hemácias. São proteínas codificadas por um par de genes homólogos, RHD e RHCE, encontrados no cromossomo 1p34-p36, que codificam as proteínas do sistema Rh e são codominantes. O gene RHD codifica a produção do antígeno RhD, e o gene RHCE, a produção de dois pares de antígenos antitéticos: C, c, E, e. Indivíduos RhD positivos possuem os genes RHD e RHCE, enquanto indivíduos RhD negativos apresentam somente o gene RHCE. Na maioria dos indivíduos RhD negativos, o gene RHD está deletado, portanto não existe o alelo d. O gene RHD codifica o polipeptídio D, e o gene RHCE (alelos RHCe, RHcE, RHce e RHCE) codifica os polipeptídios C/c e E/e. Embora o sistema apresente mais de cinquenta antígenos, apenas a classificação RhD, que se refere à presença ou ausência do antígeno RhD, deve ser realizada obrigatoriamente nas rotinas pré-transfusionais e em doadores de sangue. Aproximadamente, na população mundial observa-se 85% de frequência do antígeno D, mas dependendo da etnia, podemos 74 Unidade II encontrar frequências diversas do fenótipo RhD positivo, como em negros africanos (95%), europeus (82-88%) e até (100%) em algumas populações do extremo Oriente (CASTILHO; PELLEGRINO-JUNIOR; REID, 2015). NP U DD SMP1 SMP1 RhD RHCE COOH X Deletado X ce, Ce, cE, CE ce, Ce, cE, CE Rh-positivo Rh-negativo Figura 20 – Representação esquemática da biossíntese do sistema Rh: genes, proteínas e antígenos Adaptada de: Castilho; Pellegrino-Junior e Reid (2015). Os genes RHD e RHCE apresentam um elevado grau de homologia, com uma variação de 36 aminoácidos em 416 posições. O polimorfismo E/e resulta da substituição de um único aminoácido no éxon 5, na quarta alça extracelular, quando da substituição de uma prolina (E) na posição 226 para uma alanina (e). No polipeptídio Rh, que carreia os antígenos C e c, ocorre uma substituição de quatro aminoácidos em uma cadeia de 416 aminoácidos, embora apenas uma substituição pareça ser crítica para o polimorfismo C/c: a substituição de uma serina (C) na posição 103 por uma prolina (c). Por outra parte, o polipeptídio codificado pelo gene RHD difere daquele codificado pelo RHCE em 36 aminoácidos. Essas diferenças talvez possam explicar em parte a imunogenicidade do antígeno RhD, pois quando um indivíduo RhD negativo é exposto a hemácias RhD positivas, o seu sistema imune é estimulado por uma proteína que difere em 36 aminoácidos daquela que ele possui (CASTILHO; PELLEGRINO-JUNIOR; REID, 2015). Na prática transfusional, o sistema Rh é o sistema mais importante depois do sistema ABO, tendo sido responsável por casos de doença hemolítica do recém-nascido de intensidade variável, chegando mesmo a ser grave e levar a óbito fetal, além de ter sido responsabilizado por reações transfusionais hemolíticas graves. Ainda que cinquenta antígenos estejam relacionados ao sistema Rh, apenas 5 (D, C, c, E, e) são responsáveis pela grande maioria dos problemas clínicos associados a esse sistema. As complexidades sorológica e fenotípica associadas a esse sistema levaram à elaboração de nomenclaturas diferentes: o sistema Rh-Hr (Wiener), a terminologia CDE (Fischer e Race) e o sistema numérico da Sociedade Internacional de transfusão sanguínea (ISBT – Rosenfield), que se basearam em diferentes teorias quanto à genética desse sistema de grupo sanguíneo. 75 HEMOTERAPIA E BANCO DE SANGUE Quadro 8 – Nomenclaturas propostas para antígenos do sistema Rh Genótipos Ocorrência comum Wiener Fisher-Race Rosenfield R1r DCe/dce Rh:1, 2, -3, 4, 5 R1R1 DCe/DCe Rh, 1, 2, -3, -4, 5 rr dce/dce Rh: -1, -2, -3, 4, 5 R1R2 DCe/DcE Rh: 1, 2, 3, 4, 5 R2r DcE/dce Rh: 1, -2, 3, 4, 5 R2R2 DcE/DcE Rh:1, -2, 3, 4, -5 Ocorrência rara r’r dCe/dce Rh: -1, 2, -3, 4, 5 r’r’ dCe/dCe Rh: -1, 2, -3, -4, 5 r’’r dcE/dce Rh: -1, -2, 3, 4, 5 r’’r’’ dcE/dcE Rh: -1, -2, 3, 4, 5 R0r Dce/dce Rh: 1, -2, -3, 4, 5 R0R0 Dce/Dce Rh: 1, -2, -3, 4, 5 ryr dCE/dce Rh: -1, 2, 3, 4, 5 Fonte: Oliveira et al. (2013, p. 71). O antígeno RhD apresenta um extenso polimorfismo. Pode se apresentar como um antígeno com fraca expressão (D fraco) ou como um antígeno modificado (D parcial). Essas características, muitas vezes, só podem ser determinadas por estudos moleculares. Entretanto, portadores do antígeno D parcial e alguns D fracos estão propensos a imunizações de anti-D (NARDOZZA et al., 2010). Os antígenos “D fraco” apresentam-se como uma expressão enfraquecida do antígeno D, reagindo de maneira variável com os antissoros anti-D comerciais. Normalmente, esse antígeno não é detectado por técnicas de aglutinação direta, e sim por técnicas complementares, como tratamento enzimático das hemácias e técnica de Coombs indireta. Esse fenótipoocorre por uma variação qualitativa do antígeno RhD que produz uma alteração quantitativa de sítios antigênicos expressos na membrana eritrocitária. As hemácias contendo D fraco devem ser consideradas Rh positivas, podendo provocar, dessa forma, aloimunização transfusional ou feto-materna. Já os antígenos D parciais apresentam alterações qualitativas e quantitativas quando comparados com o antígeno D normal. Essas alterações podem ser caracterizadas pela ausência de um ou mais epítopos do antígeno D que foram substituídos por epítopos da proteína CcEe e podem ocorrer por mutações de ponto missenses no gene RHD, que levam a substituições de aminoácidos predominantemente nas alças extracelulares, mas também dispersas na proteína, por isso possuem epítopos alterados, com aminoácidos diferentes, que os reagentes monoclonais não reconhecem. As mutações de ponto missenses podem ser únicas (uma única mutação num determinado éxon do gene RHD) ou dispersas (mais de uma mutação de ponto em mais de um éxon do gene RHD). As mutações podem ocorrer também por rearranjos gênicos entre os genes RHD e RHCE (alelos híbridos) (CASTILHO; PELLEGRINO-JUNIOR; REID, 2015). 76 Unidade II Rh(D) - normal Legenda: Epítopo Antígeno Normal Normal Variante Variante Normal Reduzindo Normal Reduzido Rh(D) - fraco Rh(D) - parcial Rh(D) - parcial fraco Figura 21 – Representação da expressão fenotípica do antígeno D do sistema Rh Adaptada de: Castilho, Pellegrino-Junior e Reid (2015). Os métodos moleculares podem confirmar ou excluir a presença desses antígenos; entretanto, não devem ser analisados de forma isolada, ou seja, sem a realização de testes sorológicos, pois nem sempre a presença do gene resulta na expressão da proteína. No sistema Rh ocorre essa exceção, e há pessoas que possuem o gene RhD, mas não expressam a proteína: são os famosos pseudogenes. Dessa forma, ao utilizarmos os métodos moleculares em imuno-hematologia, devemos confrontar os resultados dos testes (genótipos) com os fenótipos, que são evidenciados por testes de sorologia de grupos sanguíneos (CASTILHO; PELLEGRINO-JUNIOR; REID, 2015). Os anticorpos do sistema Rh, em especial o anti-D, não são naturais. Eles são produzidos a partir de um estímulo imunológico, seja a gestação de um feto RhD positivo ou transfusão de um componente RhD positivo. No caso específico do antígeno D, estima-se em 80% a probabilidade de imunização após uma transfusão incompatível. Já a imunização por gravidez representa a maioria dos casos de doença hemolítica do recém-nascido, sendo devida ao anti-D. Entretanto, com a profilaxia por imunoglobulinas anti-RhD, o número de aloimunizações maternas contra o antígeno D diminuiu, mas o mesmo não ocorreu com os antígenos E, c, e C. Eles são de natureza IgG, ativos a 37 °C, e são melhor detectados por meio da utilização da antiglobulina humana ou por meio da utilização de painéis de hemácias tratadas por enzimas proteolíticas. Como são IgG, atravessam a barreira placentária e estão envolvidos em casos de doença hemolítica perinatal. Esses anticorpos não fixam complemento e a destruição das hemácias é extracelular, podendo estar associados a casos de reação transfusional hemolítica tardia por destruição das hemácias no meio extravascular (ANVISA, 2014b). 5.4 Outros sistemas de grupos sanguíneos importantes na prática transfusional 5.4.1 Sistema Kell (ISBT 006) O anticorpo anti-K foi descrito em 1946, após a implantação da técnica de Coombs no soro de uma paciente em um relato de DHPN. Verificaram que o anticorpo reagia com as hemácias de seu filho 77 HEMOTERAPIA E BANCO DE SANGUE recém-nascido, de seu marido e de sua filha mais velha. Assim foi nomeado o sistema Kell, sendo o terceiro mais importante e imunogênico sistema de grupos sanguíneos. Seu correspondente antitético foi descrito por Levine e colaboradores em 1949 e denominado k (cellano), sendo um antígeno de alta frequência. É um sistema bastante complexo e polimórfico, constituído por 35 antígenos (GIRELLO; KUHN, 2016). São codificados pelo gene KEL, que está localizado no braço longo do cromossoma 7q33. A expressão desses antígenos também é controlada por um gene regulador XK, localizado no braço curto do cromossoma X. A glicoproteína Kell pertence à subfamília das endopeptidases zinco-dependentes, cuja principal função é ativação de peptídeos bioativos por clivagem enzimática. Os antígenos do sistema Kell não estão presentes em plaquetas, linfócitos, granulócitos ou monócitos. Podem ser detectados nas células fetais a partir da décima semana de gestação, estando bem desenvolvidas ao nascimento. São antígenos extremamente imunogênicos, sendo o antígeno K o segundo mais imunogênico de todos os antígenos de grupos sanguíneos (o antígeno D é o mais imunogênico deles). Um paciente com fenótipo K(-) que receba uma única transfusão com a presença do antígeno tem uma probabilidade de até 10% para a formação do anticorpo correspondente (HARMENING, 2019). Já foram identificados 35 antígenos para o sistema Kell, sendo os mais importantes o K (K1), K (K2), Kpa (K3), Kpb (K4), Kpc (K21), Jsa (K6) e Jsb (K7). O antígeno K é de baixa frequência, ao passo que o antígeno k (celano) é de alta frequência e pode ser encontrado em aproximadamente 99,8% da população. Os antígenos Kell não são desnaturados por enzimas como bromelina, ficina e papaína; entretanto, são inativados por tripsina, quimiotripsina, soluções de ditiotreitol (DTT), 2-mercaptoetanol (2-ME), 2-aminoetilisotiourônio (AET) e ZZAP (que contém DTTe enzima proteolítica papaína ativada com cisteína). Tabela 15 – Frequência dos fenótipos Kell em brancos e negros Fenótipo Brancos (%) Negros (%) K-k+ 91 96,5 K+k+ 8,8 3,5 K+k- 0,2 <0,1 Kp(a+b-) <0,1 0 Kp(a+b+) 2,3 Raro Kp(a-b+) 97,7 100 Adaptada de: Harmening (2019). Entre os anticorpos irregulares mais detectados pelos serviços de hemoterapia, com exceção do anti-D, o anti-K é o anticorpo mais comumente encontrado. De forma geral, apresenta-se como um anticorpo de classe IgG reativo na fase de antiglobulina (AGH) e pode ser potente e ocasionar reações hemolíticas graves imediatas e tardias, assim como DHPN grave (CASTILHO; PELLEGRINO-JUNIOR; REID, 2015). 78 Unidade II 5.4.2 Sistema Kidd (ISBT 009) O sistema Kidd foi descoberto em 1951, após a implantação da técnica de Coombs em uma paciente que gerou um feto com DHRN, em decorrência de um anticorpo então denominado anti-Jka. Posteriormente foi revelado o anti-Jkb. O gene JK ou SCL14A1 está localizado nos lócus 18q12-q21, sendo esse gene pertencente à família de transportadores de ureia, preservando a estabilidade osmótica e a deformabilidade do eritrócito. A glicoproteína Kidd atravessa a membrana eritrocitária dez vezes, carrega um n-glycan na terceira alça extracelular e expressa os antígenos do sistema de grupo sanguíneo Kidd (GIRELLO; KUHN, 2016). O sistema de grupo sanguíneo Kidd possui dois alelos codominantes: JKA e JKB, e existem apenas três antígenos: Jka, Jkb e Jk3. Os antígenos Jka (JK1) e Jkb (JK2) são polimórficos em todas as populações testadas. Eritrócitos com fenótipo null Jk(a-b-) são raros e originados de um gene silencioso JK em homozigose, são relativamente resistentes à lise por ureia 2 mol/L e incapazes de concentrar maximamente a urina. Esses antígenos não são exclusivamente eritrocitários, podem ser encontrados em células endoteliais renais e em outros tecidos de órgãos como cérebro, bexiga, cólon, próstata, fígado e pâncreas. Os antígenos são detectados em eritrócitos fetais a partir da 11ª semana de idade gestacional e estão bem desenvolvidos ao nascimento e não são alterados por enzimas proteolíticas, ZZAP, DTT, AET e difosfato de cloroquina. Os antígenos Jka têm maior expressão na membrana eritrocitária quando presentes em indivíduos homozigóticos (JkaJka) quando comparados com indivíduos que apresentam os antígenos em heterozigose (JkaJkb). Tabela 16 – Fenótipos do sistema Kidd em brancos, negrose asiáticos Fenótipo Brancos (%) Negros (%) Asiáticos (%) Jk(a+b-) 28 57 23 Jk(a+b+) 49 34 50 Jk(a-b+) 23 9 27 Jk(a-b-) Extremamente raro Extremamente raro 0,9 -< 0,1 Polinésios Fonte: Harmening (2019, p. 200). Os anticorpos anti-Jkª e anti-Jkb são perigosos anticorpos encontrados no soro humano que podem determinar severa reação hemolítica transfusional imediata ou tardia. É uma IgG e reage melhor com AGH poliespecífica; em geral, fixa complemento e, em alguns casos, determina ligeira hemólise ou aglutinação direta com hemácias tratadas com enzimas. Apresentam a propriedade de demonstrar efeito de dose, o que dificulta a identificação desses anticorpos. Observa-se, ainda, a necessidade de utilizar uma amostra recente para identificação desses anticorpos. Os títulos de anti-Jka e anti-Jkb declinam rapidamente in vivo. Isso significa que um anticorpo identificado num primeiro momento pode não ser perceptível posteriormente, o que torna a verificação dos registros dos pacientes com esses anticorpos previamente formados uma necessidade que não deve ser negligenciada. Anti-Jk3 é 79 HEMOTERAPIA E BANCO DE SANGUE um anticorpo pertencente à classe IgG que reage com a antiglobulina. Indivíduos portadores desse anticorpo apresentam o fenótipo null (Jka-Jkb-). O anti-Jk3 está associado a DHRN leve e a reações hemolíticas transfusionais tardias (HARMENING, 2019). 5.4.3 Sistema Duffy (ISBT 008) O sistema de grupo sanguíneo Duffy foi identificado em 1950 em um paciente hemofílico chamado Duffy, que fora submetido a múltiplas transfusões com anticorpo anti-Fya. No ano posterior, foi descrito o anticorpo que definiu o seu par antitético, denominado anti-Fyb, no soro de uma mulher multípara. O gene FY está localizado no braço longo do cromossomo 1q22-23, é responsável pela glicoproteína Duffy, também chamada Duffy antigen receptor for chemokines (Darc), expressa em células eritroides e não eritroides (GIRELLO; KUHN, 2016). A glicoproteína Duffy possui sete domínios transmembranares, é composta de cinco antígenos: Fya, Fyb, Fy3, Fy5, Fy6. Porém não apresenta a função de transporte, pois a região N-terminal está orientada para a superfície exofacial. Os antígenos Duffy têm função de receptor de merozoítas de Plasmodium knowlesi em macacos e de Plasmodium vivax em humanos. A glicoproteína Duffy é receptora de citoquinas nos eritrócitos, liga várias quimiocinas pró-inflamatórias agudas e crônicas, incluindo interleucina 8, MGSA, MIP-1 e Rantes. Os receptores DARC estão potencialmente envolvidos na angiogênese do câncer, na pré-eclâmpsia e na hipertensão maligna (REID; LOMAS-FRANCIS; OLSSON, 2012). Os principais antígenos do sistema Duffy na rotina imuno-hematológica são Fya e Fyb, que são produtos de alelos codominantes que residem em uma glicoproteína ácida (gp-Fy), que transpassa a membrana sete vezes e têm um N-terminal no domínio extracelular e um C-terminal no domínio intracelular. Estão expressos em eritrócitos fetais a partir da sexta semana de idade gestacional, estando bem desenvolvidos ao nascimento. São destruídos por enzimas proteolíticas, como papaína, bromelina, ficina e quimiotripsina, além do ZZAP, que tem a capacidade de clivar a IgG. Antígenos Duffy se degradam com a estocagem, mesmo quando congelados. Há associação entre os antígenos Duffy e a infecção pelo parasito causador da malária, estando resistentes à infecção por P. vivax os indivíduos negros americanos e africanos com fenótipo Fy(a-b-), o que representa uma vantagem evolutiva. Tabela 17 – Frequência dos fenótipos Duffy em brancos, negros americanos e chineses Fenótipo Brancos (%) Negros (%) Chineses (%) Fy(a+b-) 17 9 90,8 Fy(a+b+) 49 1 8,9 Fy(a-b+) 34 22 0,3 Fy(a-b-) Muito raro 68 0 Fonte: Harmening (2019, p. 198). 80 Unidade II Anticorpos anti-Fya e anti-Fyb geralmente pertencem à classe IgG e reagem melhor à fase da antiglobulina humana, podendo fixar complemento. Os anticorpos podem apresentar efeito de dose e não reagem com hemácias tratadas por enzimas, sendo essa uma característica útil na análise da identificação de múltiplos anticorpos no soro que contenha anti-Fya ou anti-Fyb. Estão associados a reações transfusionais hemolíticas tardias com grau moderado de hemólise, principalmente em pacientes com anemia falciforme e múltiplos anticorpos. Anticorpo anti-Fy3 é produzido por indivíduos com fenótipo null Fy(a-b-) que não expressam nenhuma glicoproteína Duffy. Reagem com fenótipos Fy(a+b-) e Fy(a-b+) e, como os antígenos Fy3 não são destruídos por tratamento enzimático, esses anticorpos mantêm a sua reatividade mesmo quando as células são tratadas por enzimas proteolíticas (CASTILHO; PELLEGRINO-JUNIOR; REID, 2015). 5.4.4 Sistema MNS (ISBT 002) O sistema sanguíneo MNS é considerado o segundo sistema de grupo sanguíneo mais antigo depois do ABO. Os antígenos M e N foram descobertos por Landesteiner em 1927, já o S foi descrito vinte anos depois. Possui três genes como base, GYPA, GYPB e GYPE, localizados no cromossomo 4q28-q31. Foram descritos 46 antígenos do sistema MNS e eles estão associados às sialoglicoproteínas (SPG) da membrana eritrocitária, denominadas glicoforina A (GPA) e glicoforina B (GPB), transmembranárias. São as maiores proteínas da hemácia e contêm aproximadamente 50% de carboidratos. A GPE não é expressa em condições normais, entretanto o gene GYE participa de rearranjos gênicos. Em 1953, Wiener comunicou a descoberta de um anticorpo para um antígeno de alta frequência, que foi denominado U (GIRELLO; KUHN, 2016). A GPA expressa os antígenos M e N e tem número elevado de cópias (~106 cópias por eritrócito) e é tão abundante quanto a banda 3 na superfície eritrocitária. O alto conteúdo de ácido siálico na GPA serve como ligante para vírus, bactérias e parasitas. Células que não expressam GPA são mais resistentes à invasão pelo Plasmodium falciparum do que células normais. Os antígenos MN podem ser detectados na nona semana de gestação e estão bem desenvolvidos ao nascimento. Uma vez que os antígenos MN estão na extremidade externa da GPA, podem ser facilmente destruídos ou removidos por enzimas proteolíticas. Os antígenos Ss estão localizados em uma glicoproteína menor chamada Ss-sialoglicoproteína (Ss-SGP) ou glicoforina B (GPB). Existem cerca de 2 x 105 cópias de GPB por eritrócito, entretanto nem todas estão disponíveis para a ligação do anticorpo. Os antígenos Ss encontram-se bem desenvolvidos ao nascimento e estão presentes nos eritrócitos a partir da 12ª semana de idade gestacional. Os antígenos Ss podem ser destruídos por papaína, ficina e bromelina, embora o grau de degradação dependa da concentração da solução enzimática, da sua duração e da proporção utilizada. Ambas as glicoproteínas contêm resíduos de carboidratos com elevado conteúdo de ácido siálico, carregando alta carga negativa, prevenindo, dessa forma, a aglutinação espontânea dos eritrócitos e, portanto, são as que mais contribuem para o glicocálix (RODRIGUES, 2016). Os antígenos podem estar em dose simples ou dupla: MM, NN, MN, SS, ss, Ss. Em negros, podemos encontrar o fenótipo S-s- e, também, não apresentarão antígeno de alta frequência U, ou sua expressão 81 HEMOTERAPIA E BANCO DE SANGUE diminuída. Fenótipos raros En(a) são GPA negativos (M-N-), são raros também os indivíduos null (Mk), que não possuem GPA ou GPB . Tabela 18 – Frequência dos fenótipos do sistema MNS em brancos e negros Fenótipo Brancos (%) Negros (%) M+N- 28 26 M+N+ 50 44 M-N+ 22 30 S+s- 11 3 S+s+ 44 28 S-s+ 45 69 S-s-U- 0 <1 Fonte: Harmening (2019, p. 188). Os anticorpos anti-M e anti-N são, em sua maioria, crioaglutininas reativas em salina, de ocorrência natural e sem importância transfusional. Mas existem relatos de IgMs potentes e reativos a 37 °C, capazes de promover reação transfusional hemolítica aguda e tardia. Devido ao efeito de dose, anticorpos podem reagir melhor com dose dupla do antígeno M+N- (genótipo MM) ou M-N+ (genótipo NN). Anti-Me anti-N raramente causam DHPN. Os anticorpos de anti-S, anti-s e anti-U são clinicamente significantes. Eles são geralmente imunes a IgG, reativos a 37 °C e na fase de AGH. Podem ativar o sistema complemento, sendo implicados em reação transfusional hemolítica grave e DHPN. Tendo em vista que apenas 11% dos brancos e 3% dos negros são “s-”, pode ser difícil obter sangue para um paciente com anti-s. O anti-U é um anticorpo raro, encontrado na raça negra. Cerca de 1% dos negros americanos (e de 1% a 35% dos negros africanos) não apresenta o antígeno U, o que torna muito difícil encontrar sangue compatível, pois os pacientes apresentam fenótipo S-s-U- (REID; LOMAS-FRANCIS; OLSSON, 2012). 5.4.5 Sistema Lewis (ISBT 007) O sistema de grupo sanguíneo Lewis apresenta a característica de não ser produzido pelos eritrócitos e não estar integrado na estrutura membranar, o que o torna um sistema diferente dos demais. Os antígenos desse sistema são produzidos por células teciduais e secretados nos fluidos corporais, principalmente nas secreções e no plasma. O gene Lewis (FUT3) produz uma L-glicosiltransferase que acrescenta uma L-fucose a uma substância precursora básica para a produção dos antígenos do sistema Lewis. O gene Le encontra-se localizado no braço curto do cromossomo 19p13.3, estando ligado ao locus do complemento C3. Uma vez que os antígenos do sistema Lewis são produzidos por células teciduais, a produção dos antígenos é dependente tanto da herança dos genes Lewis quanto da herança do gene secretor (Sese) de substâncias ABH. Há uma interação gênica entre os genes Lewis e os genes ABO, uma vez que a quantidade de antígeno Lewis detectada no eritrócito é influenciada pelos genes ABO herdados. O sistema Lewis é composto de seis antígenos: Lea, Leb, Leab, LebH, Aleb, e BLeb. 82 Unidade II Tabela 19 – Frequência dos fenótipos Lewis em brancos e negros Fenótipo Brancos (%) Negros (%) Le(a+b-) 22 23 Le(a-b+) 72 55 Le(a-b-) 6 22 Le(a+b+) raro raro Fonte: Harmening (2019, p. 179). A substância Lea é secretada por todos os indivíduos, independentemente da presença do gene secretor, de modo que indivíduos não secretores (sese) de antígenos ABH podem conter antígenos Lea nos fluidos corporais que serão posteriormente adsorvidos à membrana dos eritrócitos, produzindo o fenótipo Le(a+b-). Dessa forma, os indivíduos Le(a+b-) são não secretores de substâncias ABH. A enzima Lewis está presente na saliva, no leite, nas glândulas submaxilares, na mucosa gástrica e em fluidos de cistos. A formação do antígeno Leb está associada à interação dos genes Sese, ABO, Hh e Lewis. Cabe destacar que os antígenos Lea e Leb não são alelos. O resultado da interação gênica entre os genes Lele e Sese é a produção do fenótipo Le(a-b+) (GIRELO; KUHN, 2016). O fenótipo Le(a-b-) não é decorrente da ausência do gene i (FUT 3), mas de mutações pontuais específicas no gene Le, que vão originar uma transferase Lewis não funcional ou parcialmente ativa, determinando, assim, a expressão negativa nos eritrócitos. A diminuição dos antígenos Lewis tem sido demonstrada em mulheres grávidas, resultando no fenótipo Le(a-b-) no decorrer da gestação. Pacientes com câncer, cirrose alcoólica, infecções virais e parasitárias podem não expressar os antígenos Lewis nos eritrócitos. Essa modificação do fenótipo positivo para fenótipo negativo é decorrente de metabolismo lipídico anormal, por alterações de triglicerídeos e de proteínas de alta densidade e/ou outras alterações neoplásicas que ocorrem em pacientes com câncer. Não são encontrados nos eritrócitos do sangue do cordão ou em recém-nascidos, de forma que, se forem testadas, essas células apresentarão o fenótipo Le(a-b-). Não demonstram efeito de dose nas reações sorológicas. Os anticorpos Lewis são produzidos, geralmente, por indivíduos Le(a-b-) sem qualquer exposição prévia ao antígeno; frequentemente são de natureza IgM e não atravessam a placenta, não sendo, assim, responsáveis por DHPN. São capazes de ativar o complemento, podendo provocar hemólise in vitro e in vivo com reações transfusionais hemolíticas graves. Apresentam reatividade exacerbada quando as células são tratadas por enzimas proteolíticas (HARMENING, 2019). 5.4.6 Sistema Diego (ISBT 010) O grupo sanguíneo Diego foi descrito em 1955, na Venezuela, em uma DHPN. Os antígenos desse sistema derivam de um gene (SLC4A1), cromossomo 17q21-q22, que codifica para a proteína banda 3 da membrana eritrocitária. Essa proteína é uma glicoproteína multipasso que apresenta domínios N-terminal intracitoplasmáticos, domínios transmembrana e domínios C-terminal também intracitoplasmáticos. Os antígenos mais conhecidos são o Dia/Dib. Mutação em ponto no gene que origina o fenótipo Dib faz com que ocorra alteração para o fenótipo Dia. A função dos antígenos Diego corresponde ao transporte 83 HEMOTERAPIA E BANCO DE SANGUE de ânions (HCO3– e Cl–) através da membrana e à manutenção da integridade das hemácias através da ligação do seu domínio N-terminal citoplasmático ao citoesqueleto celular. Também parece estar implicado na formação de antígenos senescentes, que são marcadores na membrana dos eritrócitos que devem ser retirados da circulação pelos histiócitos do sistema fagocítico mononuclear (BONIFÁCIO; NOVARETTI, 2009). A frequência do antígeno Dia é alta em indígenas sul-americanos (36%), sendo que, no Brasil, estudos comprovam a incidência desse fenótipo em até 76% dos membros de alguns povos indígenas. Também é prevalente em 20,4% nos indígenas mexicanos e em 10,2% de mexicanos residentes nos Estados Unidos. Sua frequência em povos de origem asiática varia de 5% a 15% (japoneses e chineses, respectivamente). Está presente em 1:4462 nos europeus (raro) e 1:827 em negros norte-americanos (muito raro). É considerado por esse motivo um marcador genético para a raça mongoloide, sendo significativo em estudos antropológicos (GIRELLO; KUHN, 2016). Esse sistema de grupo sanguíneo é constituído principalmente por dois pares independentes de antígenos Dia/Dib, Wra/Wrb e Wu/DISK, cada par contendo um antígeno de baixa incidência e um determinante antitético de alta incidência respectivamente, e por outros 16 antígenos menos expressivos. Para o par de antígenos Diego, existe a possibilidade de três genótipos: Di (a- b+), Di (a+ b+) e Di (a+ b-). Tabela 20 – Frequência dos antígenos do sistema Diego em diferentes populações Etnias Antígeno Dia Antígeno Dib Antígeno Wra Antígeno Wrb Japoneses 12% >99% <0,01% 100% Chineses 5% >99% <0,01% 100% Hispânicos 1% >99% <0,01% 100% Indígenas sul-americanos 2% a 54% 99% <0,01% 100% Caucasianos <0,1% >99,99% <0,01% 100% Negros <0,1% >99,99% <0,01% 100% Adaptada de: Reid, Lomas-Francis e Olsson (2012). Os anticorpos anti-Dia e anti-Dib apresentam-se como um anticorpo de classe IgG, geralmente imunes, reativos na fase de antiglobulina (AGH) e fixam complemento. O tratamento enzimático não altera sua reação. Os anticorpos são implicados em casos de DHPN e envolvidos em reações transfusionais hemolíticas imediatas e tardias (THORNTON; GRIMSLEY, 2019). 5.5 Importância clínica dos anticorpos antieritrocitários Pelo fato de os antígenos de grupos sanguíneos existirem na parte externa da membrana eritrocitária, eles demonstram importância na medicina transfusional, uma vez que a ausência de um antígeno pode levar à aloimunização de um indivíduo após transfusão de hemácias com o respectivo antígeno, além de aumentar o risco transfusional nas transfusões subsequentes (REID; LOMAS-FRANCIS; OLSSON, 2012). Pacientes que recebem transfusão de sangue podem desenvolver anticorpos contra diversos antígenos 84 Unidade II eritrocitários. Assim, a aloimunização demonstra consequências negativas aos receptores politransfundidos, tais como: aumento do risco de reação transfusional hemolítica, a redução do número de concentrados de hemácias compatíveis para futuras transfusões, destruição dos eritrócitos alogênicos, destruição doseritrócitos autólogos, DHPN e danos a tecidos transplantados. Os anticorpos mais envolvidos em reação transfusional hemolítica tardia são dirigidos contra antígenos dos sistemas Rh (34%), Kidd (30%), Duffy (14%) e Kell (13%) (THORNTON; GRIMSLEY, 2019). O significado clínico dos anticorpos antieritrocitários depende da frequência do antígeno e pode variar em distintos grupos étnicos, da sua imunogenicidade e de situações clínicas específicas, da expressão antigênica das hemácias envolvidas na reação, da amplitude térmica do anticorpo, do título do anticorpo, da classe da imunoglobulina, da especificidade do anticorpo, da capacidade de atuar em precursores eritroides e de fatores individuais (GIRELO; KUHN, 2016). A frequência de anticorpos irregulares na população politransfundida mostra uma prevalência em pacientes onco-hematológicos, anemia aplástica (AA), leucemia mieloide aguda (LMA), de 11-16%, com doenças crônicas como insuficiência renal crônica (IRC) e hemorragia digestiva alta (HDA), de 11-16%, e em pacientes com hemoglobinopatias, como a anemia falciforme, a aloimunização chega a 33,4% (RODRIGUES, 2016). Na prática transfusional de hoje, em razão do risco associado a transfusões e gestações futuras, têm-se tentado minimizar a probabilidade, de um indivíduo formar aloanticorpos antieritrocitários, realizando transfusões fenotipicamente compatíveis com os antígenos eritrocitários mais imunogênicos, como: D, K, E, c, Fya, Jka, S e s. A fenotipagem eritrocitária é essencial para a confirmação de aloanticorpos e pode facilitar a identificação de anticorpos que podem ser formados no futuro (CASTILHO; PELLEGRINO-JUNIOR; REID, 2015). Anticorpos antieritrocitários de importância clínica são aqueles capazes de causar morbidade em decorrência da aceleração da destruição das hemácias transfundidas. Esses anticorpos são geralmente da classe IgG ou IgM que reagem a 37 °C com amplitude térmica, podem ou não fixar complemento e reagem com o teste da antiglobulina humana (AHG). Causam reação transfusional hemolítica aguda ou tardia e DHPN. Geralmente são encontrados contra os antígenos ABO, Rh, Kell, Duffy, Kidd e Ss (HARMENING, 2019). Quadro 9 – Significado clínico de alguns aloanticorpos antieritrocitários Frequentemente importantes clinicamente Algumas vezes importantes clinicamente Clinicamente insignificantes se não reativo a 37 °C Geralmente clinicamente não significantes A e B Diego Duffy H em Bombaim Kell Kidd Rh S, s, U AnWJ Ata Colton Cromer Dombrock Gerbich Indian Jra Kx Lan LW Sciana Yta A1 H Lea M, N Leb Chido/Rodgers Cost JMN HLA/Bg Knops Xga Adaptado de: Reid, Lomas-Francis e Olsson (2012, p. 685). 85 HEMOTERAPIA E BANCO DE SANGUE 5.6 Testes imuno-hematológicos pré-transfusionais A imuno-hematologia é uma área essencialmente importante na prática transfusional, pois garante a qualidade e a segurança imunológica de uma transfusão. Com a união de duas áreas importantes nessa prática, a hematologia e a imunologia, é possível realizar um estudo clínico e laboratorial da interação dos eritrócitos do doador e o sistema imunológico do paciente que irá receber a transfusão sanguínea (ANVISA, 2014a). Os testes realizados nas amostras de sangue têm o objetivo principal de classificar e verificar a compatibilidade sanguínea entre doador e receptor, prevenindo as reações hemolíticas. Esses testes são realizados através das técnicas imuno-hematológicas e obrigatórios pela legislação, os principais testes exigidos são: tipagem sanguínea ABO e RhD, pesquisa de anticorpos irregulares (PAI) e prova de compatibilidade ou prova cruzada (PC) (GALDINO; PETRONI, 2018). Em imuno-hematologia, procura-se pesquisar in vitro a interação entre antígenos e anticorpos, seja para pesquisa dos antígenos (tipagem direta ABO) ou para pesquisa de anticorpos regulares (tipagem reversa ABO) ou irregulares (anti-E) no soro, por meio do método de hemaglutinação. Essas reações in vitro entre antígenos e anticorpos produzem imunocomplexos que não são visíveis para os anticorpos IgG e há necessidade de investigar essas reações. Hoje, encontramos uma variedade de métodos com o objetivo de detectar e quantificar as reações antígeno-anticorpo (antígeno x anticorpo). A hemaglutinação culmina formação de aglutinatos de hemácias sensibilizadas por anticorpos que ocorrem em duas etapas: a reação entre antígeno e anticorpo propriamente dita (etapa da sensibilização) e o fenômeno de hemaglutinação (etapa da visualização) (GIRELO; KUHN, 2016). As principais características das interações antígeno x anticorpo são: • Os antígenos possuem estruturas químicas que favorecem a complementaridade com o anticorpo, através de ligações não covalentes. • São reversíveis e possuem afinidades diferentes com substâncias variadas. Como um anticorpo pode se relacionar com antígenos com afinidades diversas, ele pode ligar-se com um que não seja o seu antígeno de melhor complementariedade através de ligações mais fracas com regiões semelhantes, mas não idênticas, àquele que o induziu. Essa ligação é chamada de reação cruzada. • A interação entre um anticorpo e seu antígeno pode ser dissociada/rompida. O processo de eluição pode ocorrer principalmente se fornecemos calor ao sistema ou modificamos o pH e/ou força iônica ou utilizamos solventes orgânicos. A ligação é, portanto, uma interação não covalente reversível. Esse é o princípio dos métodos de eluição, utilizados especialmente em casos de testes da antiglobulina humana positivos, que veremos no teste da antiglobulina humana direto. 86 Unidade II • Afinidade: força de ligação resultante do total de forças não covalentes entre um único sítio de ligação do Ac e um único epítopo do antígeno. Depende do grau de complementariedade entre as duas moléculas. Ac de baixa afinidade se liga de modo fraco e tende a se dissociar com facilidade. Ac de alta afinidade estabelece ligações fortes e mais duradouras. • Avidez: força resultante de interações múltiplas entre uma molécula de anticorpo e os epítopos de um antígeno complexo. Quanto maior a avidez, melhor seu efeito biológico final (ex.: reconhecimento de antígenos complexos sobre a superfície de patógenos). A baixa afinidade de um Ac pode ser compensada por sua elevada avidez. • Especificidade: é a habilidade do anticorpo em distinguir seu imunógeno de outros antígenos. Conceito de chave e fechadura. • Termodinâmica: os anticorpos são classificados em frios e quentes. Toda reação antígeno x anticorpo é exotérmica, ou seja, libera calor. Portanto a entalpia da reação é negativa. Anticorpos frios possui uma reação com muita liberação de calor, e, portanto, a fixação do antígeno ao anticorpo é máxima em baixas temperaturas (IgM geralmente tem maior afinidade pelo antígeno a 4 °C, ex.: anticorpos ABO, também chamados de anticorpos completos pois promovem aglutinação visível). Já os anticorpos quentes, pelo contrário, liberam menos calor e sua afinidade pelo antígeno é baixa em qualquer temperatura, porém reagem melhor à temperatura de 37 °C (IgG demonstram esse comportamento e são chamados de incompletos pois necessitam de um meio artificial para produzir a aglutinação para que possamos visualizar). A aglutinação é um fenômeno de mecanismo complexo, que leva à formação de grumos de células que chamamos de aglutinatos. A aglutinação pode ser específica e não específica, ou panaglutinação. A panaglutinação corresponde à aglutinação de hemácias normais, sem anticorpos específicos ligados aos antígenos, por interferência de substâncias presentes no meio, como macromoléculas, íons metálicos e compostos carregados ou neutros. Essas substâncias alteram o equilíbrio iônico e a constante dielétrica do meio, baixando o potencial zeta da suspenção de hemácias até um ponto crítico, em que a aglutinação ocorre. Exemplo: aglutinação decorrente de reações realizadas em tubos de ensaio mal lavados, impregnados por detergentes. Já a aglutinação específica ocorre por ligaçãode anticorpos específicos, que se fixarão aos antígenos da membrana da hemácia, neutralizando as cargas elétricas negativas e provocando a aglutinação (ANVISA, 2014b). O modelo físico-químico descrito a seguir considera que o fato mais importante é a distância média que separa as hemácias em suspensão. Essa distância pode ser diminuída pela adição de anticorpos ou outras substâncias ao meio, o potencial zeta está num ponto crítico em que a aglutinação ocorre. Observe o exemplo na figura seguinte. 87 HEMOTERAPIA E BANCO DE SANGUE Hemácias não sensibilizadas em solução fisiológica Hemácias sensibilizadas por anticorpos incompletos A distância, mas não existe a aglutinação Hemácias sensibilizadas por anticorpos completos ou adição de substâncias potencializadoras Aglutinação Força de repulsão Figura 22 – Esquema representativo do fenômeno da hemaglutinação Adaptada de: Girelo e Khun (2016, p. 60). A superfície da célula possui carga elétrica, que é principalmente conferida por sítios terminais das glicoproteínas e dos glicolipídios. Essa carga é geralmente negativa, e seu grau de negatividade pode variar de acordo com o número e a carga de íons expressos na superfície. As hemácias comportam-se como partículas eletronegativas, e os grupos carboxílicos (COOH-) das sialoglicoproteínas integrantes da membrana eritrocitária são os maiores responsáveis pela eletronegatividade. Como cargas iguais se repelem, os eritrócitos em suspensão permanecem separados uns dos outros em meio salino. Os eletrólitos contidos no meio envolvem cada hemácia como uma nuvem de íons positivos que se torna menos densa à medida que se distancia do glóbulo. A diferença de potencial entre a nuvem de cátions atraída pelas cargas elétricas negativas da membrana eritrocitária e o meio é chamada de potencial zeta. O potencial zeta é a medida da interação das forças de atração de Van der Waals e as forças eletrostáticas, ou seja, é a medida do potencial elétrico que circunda as partículas em suspensão de um coloide. Quanto maior é o potencial zeta, mais estável é um coloide, pois as partículas carregadas se repelem umas às outras, e essa força supera a tendência natural à agregação, o que significa menor agregação e menor coagulação. Na figura seguinte, observamos a representação esquemática do eritrócito em solução fisiológica. 88 Unidade II Potencial Zeta Na+ D COOH γ µCl - Z = potencial zeta γ = eletronegatividade da hemácia D = constante dielétrica do meio µ = força iônica do meio D Z = γ µ Figura 23 – Representação esquemática de hemácias em meio salino (solução fisiológica NaCl 0,85%) Adaptada de: Girelo e Khun (2016, p. 61). O sangue é um exemplo de coloide biológico sujeito ao potencial zeta. Se o potencial zeta estiver baixo, pode haver agregação eritrocitária, alteração no fluxo nos vasos sanguíneos e até trombose. Os sistemas coloidais (como o sangue) são mantidos estáveis por meio de uma pequena carga elétrica que conserva as partículas afastadas umas das outras. Essa carga elétrica gera uma diferença de potencial na superfície das partículas coloidais. Por terem grande quantidade de ácido N-acetilneuramínico e outros grupos carregados negativamente ancorados na superfície de outras glicoproteínas de membrana, os eritrócitos possuem carga negativa elevada, ou seja, um potencial zeta elevado. O potencial zeta de um sistema pode ser modificado por redução da carga elétrica das hemácias (γ), que pode ser obtida por: fixação de anticorpos – como os epítopos dos anticorpos são carregados positivamente, quando se fixam à membrana eritrocitária neutralizam as cargas dos antígenos específicos, reduzindo o potencial zeta –; ou por tratamento enzimático – a adição de enzimas proteolíticas, como a tripsina, remove fragmentos de proteínas da membrana, clivando glicoproteínas da superfície celular e diminuindo a carga negativa da membrana plasmática dos eritrócitos. Variação da composição do meio: pela adição de substâncias macromoleculares – como albumina bovina, polietilenoglicol (PEG), polibreno – que alteram a constante dielétrica do meio (D) (quanto maior a constante dielétrica do meio, menor será o potencial zeta e, consequentemente, maior será a sensibilização/aglutinação das hemácias) –; outros fatores podem modificar o valor do potencial zeta: pH – modifica a constante de equilíbrio; temperatura; exposição aguda ao frio – alterações no potencial zeta na membrana dos eritrócitos são observadas durante a exposição ao frio, podendo ocorrer a prevenção da agregação eritrocitária; concentração de sais; concentração de íons; efeito do palmitato, modificando o potencial de membrana do eritrócito, entre outros. Medicamentos, como a vancomicina, um antibiótico policatiônico que pode causar agregação espontânea nos eritrócitos por causa da diminuição do potencial zeta, também podem influenciar na agregação das hemácias (ANVISA, 2014b). A padronização da leitura das intensidades das reações é extremamente importante, pois a aglutinação é quantificada em intensidade de cruzes que vai de 1+ até 4+ e hemólise também considerada reação positiva, conforme a seguir. Pode ser realizada por diferentes técnicas: tubo, microplaca, coluna de aglutinação/gel centrifugação, fase sólida e hemácias magnetizadas. Na figura seguinte, podemos visualizar a reação para a técnica em tubo e gel centrifugação, as mais utilizadas no Brasil e que 89 HEMOTERAPIA E BANCO DE SANGUE apresentam, como resultado positivo, a presença de aglutinação com a interação antígeno-anticorpo, e como resultado negativo, a ausência de aglutinação. Quadro 10 – Intensidade das reações de aglutinação utilizadas na imuno-hematologia 4+ Botão sólido com pequenos grumos e fundo claro 3+ Grumos grandes e numerosos com fundo claro 2+ Grumos pequenos e numerosos com fundo róseo 1+ Grumos pequenos e fundo róseo (+) Fraco: presença de minúsculas aglutinações em fundo bastante róseo 0 (negativo) Negativo: ausência de aglutinação, fundo bastante róseo com hemácias em suspensão CM (campo misto) ou DP (dupla população) Presença de aglutinações e de hemácias em suspensão, com fundo róseo He Hemólise total ou parcial das hemácias. É indicador de positividade Adaptado de: Brasil (2014b). A) Dupla população Grumos centrais que se desprendem, deixando no fundo do tubo um anel circular que, após leve agitação, deixa as hemácias livres no sobrenadante. Positivo 4+ Um único grumo ou botão, sem hemácias livres no sobrenadante. Positivo 3+ Grumos grandes e pequenos, sem hemácias livres no sobrenadante. Negativo Hemácias livres no sobrenadante sem nenhuma formação de grumos. Fraçamento positivo (+) Poucos grumos pequenos com muitas hemácias livres no sobrenadante. Positivo 1+ Muitos grumos pequenos com muitas hemácias livres no sobrenadante. Positivo 2+ Grumos grandes e pequenos, com poucas hemácias livres no sobrenadante, que fica levemente rosado. B) hemóliseDP01+2+3+4+ Figura 24 – Visualização da quantificação das Intensidades das reações de aglutinação utilizadas em imuno-hematologia. A) Técnica em tubo; B) técnica em gel-teste Fonte: Schörner (s.d.). 90 Unidade II Em 1945, Coombs e colaboradores descreveram o teste de antiglobulina humana (AGH), e no ano seguinte, relataram o uso de antiglobulina humana para detectar in vivo a sensibilização de hemácias por anticorpos, tornando possível o diagnóstico da doença hemolítica perinatal (DHPN). Com a descoberta do teste de AGH, outros anticorpos IgG foram detectados com seus respectivos antígenos, levando à descoberta e à caracterização de muitos sistemas de grupos sanguíneos (VIZZONI; SILVA, 2015). Coombs produziu soro AGH injetando soro humano em coelhos. Como resposta imunológica, ocorreu a produção de anticorpo contra a globulina humana. O uso da antiglobulina humana para detectar a sensibilização de hemácias in vitro é uma técnica de duas fases chamada teste de antiglobulina indireta (TAI), também conhecidacomo teste de Coombs indireto, que pode realizar a pesquisa de anticorpos irregulares (PAI), fenotipagem D fraco, prova de compatibilidade (PC), entre outras aplicações. A sensibilização in vivo é detectada por procedimento de uma fase chamada de teste de antiglobulina direta (TAD), também conhecida como teste de Coombs direto. Quadro 11 – Aplicações do teste da antiglobulina indireto (TAI) Testes Sensibilização “in vitro” Detecção de anticorpos antieritrocitários: — Pesquisa de anticorpos antieritrocitários irregulares (PAI): anticorpos reagem com reagentes eritrocitários/triagem. — Prova cruzada: anticorpos do receptor reagem com hemácias do doador. Identificação de anticorpos antieritrocitários — Painel de hemácias: anticorpos reagem com hemácias do painel. Titulação de anticorpos — Anticorpos (diferentes diluições) reagem com hemácias selecionadas. Fenotipagem eritrocitária — Detecção de antígenos eritrocitários (K, Fy etc…). — Pesquisa de antígenos de fraca expressão. Fonte: Brasil (2014b, p. 51). O teste de Coombs é baseado no princípio de que as globulinas anti-humanas obtidas de espécies não humanas imunizadas se ligam a globulinas humanas como IgG ou complemento, livres no soro ou fixas a antígenos em hemácias. Os principais anticorpos de grupo sanguíneo são IgM (chamados de completos) e IgG (chamados de incompletos). Os anticorpos IgM se ligam facilmente aos antígenos correspondentes devido a sua estrutura pentâmera, que favorece a aglutinação direta das hemácias suspensas em salina (soro fisiológico). Os anticorpos IgG são chamados não aglutinantes pois sua estrutura monômera é muito pequena, esses anticorpos são capazes de sensibilizar as hemácias que tenham antígenos correspondentes, mas não promovem a aglutinação diretamente. As hemácias sensibilizadas por anticorpos IgG necessitam da adição do soro antiglobulina humana para aglutinarem; adicionalmente, alguns anticorpos de grupo sanguíneo têm a capacidade de ligar complemento à membrana da hemácia. O TAI e o TAD continuam sendo os procedimentos mais comuns e de muita importância na sorologia de grupos sanguíneos (VIZZONI; SILVA, 2015). A utilização do soro antiglobulina humana, na avaliação imunológica eritrocitária, pode ser considerada como a mais importante descoberta da medicina transfusional, depois do sistema de 91 HEMOTERAPIA E BANCO DE SANGUE grupo sanguíneo ABO. A facilidade de execução do teste antiglobulina e a informação diagnóstica que fornece contribuíram para sua utilização em larga escala até os dias de hoje. AGH poliespecífica contém anticorpo IgG e C3d do complemento humano. Outros anticorpos anticomplemento, tais como anti-C3b, anti-C4b ou anti-C4d, também podem estar presentes. A AGH poliespecífica comercialmente preparada contém pouca ou nenhuma atividade contra cadeias pesadas de IgA e IgM, porém a mistura de soros poliespecíficos pode conter atividade de anticorpos contra cadeias leves kappa e lambda comuns a todas as classes de imunoglobulinas com moléculas IgA ou IgM. AGH monoespecífico contém apenas uma especificidade de anticorpo. A antiglobulina humana anti-IgG, que é a mais usada, ou anticorpos específicos para componentes do complemento, como exemplo o C3b ou C3d (ANVISA, 2014b). O teste de antiglobulina, ao utilizar a anti-IgG humana, permite reconhecer a fração Fc do anticorpo fixado na membrana das hemácias sensibilizadas. Dessa forma, as duas porções Fab dos heteroanticorpos contidos no soro AGH formam uma ligação entre os anticorpos humanos, resultando no fenômeno da aglutinação (VIZZONI; SILVA, 2015). Observação A avaliação clínica e laboratorial do doador e do receptor na prática transfusional é imprescindível para garantir a segurança e a qualidade do processo transfusional. O controle de qualidade é outro fator crucial em todas as etapas de realização dos testes pré-transfusionais. A imuno-hematologia é o setor responsável pela realização de testes de compatibilidade entre os hemocomponentes (originados na doação de sangue) e os receptores, e necessita de expertise profissional e constantes treinamentos e capacitações. 5.6.1 Tipagem ABO/RhD Os grupos sanguíneos obrigatórios na classificação do sangue do doador e do receptor para tipagem sanguínea são os grupos ABO e RhD, em decorrência da sua alta taxa de imunogenicidade. Entretanto é importante lembrar que existem outros sistemas sanguíneos que também têm a sua importância clínica estudada: MNS, Lewis, Kell, Duffy, Kidd, Diego entre outros, como vimos anteriormente. A tipagem ABO deve ser realizada obrigatoriamente por meio de duas provas: • Prova direta ou globular: consiste em pôr em contato soros-teste conhecidos – anti-A, anti-B e anti-AB – com hemácias a serem testados para identificar a presença ou não dos antígenos A e B. Assim, serão definidos os grupos sanguíneos: A, B, AB, O. • Prova reversa ou sérica: consiste em colocar em contato o soro a testar com hemácias conhecidas A1 e B, permitindo reconhecer a presença ou não de anticorpos regulares dirigidos contra esses antígenos. 92 Unidade II A prova reversa é uma contraprova fundamental para a conclusão do exame. O grupo ABO só pode ser definido se existir concordância entre os resultados dessas duas provas, que devem ser interpretados e realizados como ilustrado na figura seguinte, com a adição dos reagentes seguida por uma centrifugação. Na interpretação observada na figura 26, a tipagem direta (colunas soro anti-A, soro anti-B e soro anti-A+B) pesquisam os antígenos presentes na membrana eritrocitária; ao passo que a tipagem reversa (colunas hemácia A1 e hemácia B) pesquisam os anticorpos naturais presentes no plasma; e por não apresentarmos anticorpo natural para antígeno presente nas hemácias é que o resultado da reversa é o oposto da tipagem direta. A realização da tipagem reversa é uma das formas da garantia da qualidade do resultado do sistema ABO liberado. Centrifugação Anti-soros comerciais + hemácia teste Hemácias A1 e B comerciais + soro teste anti-A anti-B anti-AB Hemácias A1 Hemácias B ABAB BB B B AA A A Prova direta - Pesquisa de antígenos A e B Prova reversa - Pesquisa de anticorpos A e B Figura 25 – Tipagem ABO em tubo prova direta e reversa Adaptada de: Anvisa (2014b). 93 HEMOTERAPIA E BANCO DE SANGUE Figura 26 – Interpretação dos resultados tipagem ABO Adaptada de: Anvisa (2014b). É necessário ficar atento a qualquer discrepância observada entre as tipagens direta e reversa, não liberando os resultados até que a discrepância tenha sido resolvida. Dependendo da tipagem sanguínea de um indivíduo, o anticorpo IgM anti-A ou anti-B presente no soro pode construir uma barreira para transfusões sanguíneas e para os transplantes de órgãos ABO incompatíveis. Discrepância na classificação ABO ocorre quando o resultado na prova direta e na prova reversa são divergentes, ou seja, definem fenotipagens ABO diferentes entre si. Problemas na prova direta: • Antígenos A e B fracos, em que os antígenos correspondentes só podem ser demonstrados por técnica de fixação e eluição, pela pesquisa de substâncias ABH na saliva, por estudo genético ou por pesquisa de transferases séricas. • Poliaglutinação de hemácias, fenômeno imunológico em que um antígeno é exposto ou existe anormalmente na superfície da hemácia e é reconhecido por um anticorpo: anti-T, anti-Tn etc. • Aglutinação inespecífica pela presença de geleia de Wharton em amostras de sangue de cordão. Aqui vale a pena lembrar que na determinação do grupo ABO em recém-nascidos só podemos realizar a classificação direta, porque os anticorpos naturais nesse momento ainda não são detectáveis. 94 Unidade II • Rouleaux: é o empilhamento das hemácias tornando todas as reações falsamente positivas na determinação ABO, inclusive os controles. Ocorre em macroglobulinemias, nos mielomas, nas hiperfibrinemias. Problemas na prova reversa: • Subgrupo de A e AB com presença de anti-A1. • Presença de autoaglutininafria na amostra. • Ausência ou diminuição de anticorpos naturais anti-A e anti-B, como em recém-nascidos, idosos e imunodeprimidos. • Presença de anticorpo irregular no plasma ou soro. A classificação rotineira do Rh positivo refere-se somente à presença ou ausência do antígeno RhD. Contrariamente ao sistema ABO, não há prova reversa, pois os indivíduos não apresentam naturalmente anticorpos séricos contra o antígeno RhD. A classificação do sistema Rh tem como princípio a pesquisa do antígeno D fixado na membrana da hemácia. Essa classificação define o fator Rh de um indivíduo e se dá por: • Tipagem RhD: determinação do antígeno D do sistema Rh nas hemácias. • Controle Rh: é um reativo controle com ausência de anticorpo anti-D e com o mesmo meio diluente do antissoro anti-D. Pela legislação, é obrigatório que o uso desses dois reagentes (anti-D e controle Rh) para tipagem RhD sejam do mesmo fabricante. Esse reativo controle tem por finalidade detectar erros em aglutinações inespecíficas em decorrência de patogenias existentes no paciente ou doador que resulte em uma reação falso positiva para o soro anti-D. Exemplo: casos de hiperproteinemia ou hemácias sensibilizadas com autoanticorpos podem aglutinar as hemácias e dar falso positivo, porém ao usar o controle Rh, esse teste também será positivo e assim invalidará a tipagem RhD. No caso dos antissoros anti-D produzidos em meio salino ou sem interferentes proteicos, o uso do soro controle na reação é dispensável. O desenvolvimento dos reagentes monoclonais para tipagem sanguínea trouxe grande contribuição ao arsenal imuno-hematológico. Hoje, esses reagentes vêm substituindo os reagentes policlonais com total eficácia. Os anticorpos monoclonais são projetados em laboratório para reconhecer especificamente marcadores proteicos especiais na superfície das hemácias. Os reagentes monoclonais anti-D são de origem humana e, dependendo do clone, podem ser IgG ou IgM. Eles são comercializados separadamente (reagente IgG ou IgM) ou em misturas de clones (IgG + IgM). Esses reagentes com mais de um clone apresentam grande probabilidade de detectar a maioria dos antígenos D variantes. Uma boa escolha do reagente a ser utilizado na prática laboratorial é essencial para resultados adequados. 95 HEMOTERAPIA E BANCO DE SANGUE A pesquisa D fraco juntamente com o controle Rh devem ser realizados quando na classificação do Rh(D) existir ausência de aglutinação (Rh negativo). Sua finalidade é detectar o antígeno D fraco ou D variante, pois alguns tipos dessas variantes, e até de D fracos, são susceptíveis à formação de anti-D quando expostos ao antígeno RhD normal, pois esses antígenos possuem alterações em seus epítopos. Nessa prova, é necessário usar técnicas mais sensíveis, como a técnica do Coombs indireto (TCI) para confirmar sua positividade ou negatividade. Centrifugação 1. Incubação 15’ a 37 °C Anti-soros comerciais + hemácia teste 3. Adição do soro AGH 2. Lavagem 3X das hemácias com NaCl Ctl Ctl Ctl Ctl Ctl CtlD D D D D D Técnica em tybo para tipagem RhD Técnica em tubo para pesquisa do antígeno D fraco Controle Rh Controle Rh Controle Rh anti-D anti-D anti-D lgG Figura 27 – Tipagem RhD em tubo a técnica para pesquisa do antígeno D fraco Adaptada de: Anvisa (2014b). Para a realização da pesquisa de antígeno D-fraco em doadores de sangue, recomenda-se a utilização de, no mínimo, dois antissoros anti-D, sendo que pelo menos um desses soros contenha anticorpos da classe IgG. Quando a tipagem RhD ou a pesquisa do antígeno D-fraco resultar positiva, o hemocomponente deve ser rotulado como “RhD positivo”. E se ambas as provas resultarem negativas, o sangue deve ser rotulado como “RhD negativo”. É importante destacar que, no caso da reação com o soro controle de RhD ser positiva, a tipagem RhD será considerada inválida e o componente sanguíneo só deverá ser rotulado e liberado para uso após a resolução do problema (BRASIL, 2017). Uma classificação correta da presença ou ausência do antígeno RhD e de suas variantes na membrana eritrocitária de um 96 Unidade II indivíduo é de grande importância, pois o antígeno RhD é o mais imunógeno em relação aos demais antígenos eritrocitários conhecidos. Para interpretação da tipagem RhD em tubo, ilustrada nas figuras seguintes, observa-se que a aglutinação do tubo contendo anti-D e a ausência de aglutinação do tubo controle Rh (Ctl) classifica a amostra como RhD positivo. Em caso de não haver aglutinação em nenhum dos tubos (anti-D e Ctl), deve ser realizada a pesquisa de D fraco. Os antígenos D fracos são variações quantitativas do antígeno RhD, e todos os epítopos (regiões reconhecidas por anticorpos) estão íntegros na membrana eritrocitária, porém expressos fracamente. Aglutinação com o reagente controle invalida a interpretação dos resultados D D D DD Ctl Ctl Ctl CtlCtl Aglutinação com anti-D e ausência de aglutinação no reagente Ctl. RhD positivo fraco (D fraco) RhD positivo Ausência de aglutinação nos 2 tubos anti-D e Ctl; realizar pesquisa de D fraco Aglutinação com anti-D e ausência de aglutinação no reagente Ct Figura 28 – Interpretação da tipagem RhD Adaptada de: Anvisa (2014b). Classificação sanguínea RhD anti-D IgG + IgM Hemácias previamente sensibilizadas “in vivo“ Realizar teste de Coombs direto; utilizar anti-D policlonal salino ou anti-D IgM monoclonal Tratamento das hemácias com reagentes especiais como cloroquina ou glicina ácida Resultado com o reagente anti-D Negativo Negativo RhD- Positivo Positivo RhD+ D franco ou D parcial RhD+ Pesquisar D fraco (AGH) Reagente controle positivo, teste inválido Devidos à presença de autoanticorpos Devidos à presença de aloanticorpos Aloimunização materno-fetal, transfusão recente Reagente controle negativo Teste validado Possibilidade Causas Conduta Figura 29 – Fluxograma de interpretação da tipagem RhD Adaptada de: Anvisa (2014b). 97 HEMOTERAPIA E BANCO DE SANGUE 5.6.2 Pesquisa de anticorpos irregulares (PAI) De acordo com a legislação vigente, a pesquisa de anticorpos antieritrocitários irregulares deve ser realizada no sangue dos doadores e receptores, empregando-se métodos que evidenciem a presença de anticorpos clinicamente significativos. O objetivo da pesquisa de anticorpos irregulares (PAI) é detectar no soro/plasma a presença de anticorpos irregulares (não anti-A e anti-B) dirigidos contra antígenos clinicamente significantes na medicina transfusional e gestacional. Ela determina a sensibilização de hemácias in vitro para a detecção e identificação de anticorpos incompletos (não aglutinantes). Na PAI são utilizados kits com suspensão de hemácias de doadores do grupo sanguíneo O que podem ser compostas de duas a três células, essas hemácias devem possuir os principais antígenos que são importantes para detecção dos anticorpos com potencial significado clínico, formando, assim, um painel de triagem. Quadro 12 – Diagrama para triagem de anticorpos irregulares com células do grupo O fenotipadas para os principais antígenos eritrocitários de importância clínica Diagrama para triagem de anticorpos Sistema Rh Kell MNS Kidd Duffy Lewis P Lutheran Células D C E c e K k M N S s J Jk Fya Fyb Lea Leb P1 Lu a Lub I + + + + + 0 + + + 0 + + 0 0 + + 0 + 0 + II + + 0 0 + + + 0 + + 0 + + + + 0 + + 0 + Adaptado de: Vizzoni e Silva (2015). Os anticorpos clinicamente significantes são os anticorpos contra antígenos eritrocitários (principalmente contra os sistemas Rh, Kell, Duffy, Kidd, Lewis, MNS, Diego), estando eles associados à diminuição da sobrevida de hemácias transfundidas e a reações transfusionais. Por isso esse teste tem que ser realizado antes do ato da transfusão sanguínea, pois ele previne que o receptor com um anticorpo irregular seja transfundido com hemácias com antígenos correspondentes e possa destruí-las, aumentando a possibilidade de desenvolver mais anticorpos irregulares e dificultando
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