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ESTADO MODERNO E CONTEMPORÂNEO AULA 2 Prof. Carlos Alberto Simioni 2 CONVERSA INICIAL Somente após as críticas iluministas, a partir do século XVIII e com a consolidação do capitalismo como sistema econômico, é que o chamado Estado Moderno se tornou preponderante. Entre o final daquele século e o ano da grande crise econômica capitalista em 1929, os principais países do mundo ocidental organizaram um Estado caracterizado por princípios liberais, fossem repúblicas ou monarquias constitucionais na sua forma de governo, fossem parlamentaristas ou presidencialistas quanto ao sistema de governo. O Estado foi paulatinamente se libertando da influência religiosa e o pressuposto de não interferência passou a predominar, ainda que nem sempre fosse observado na prática. Esta consolidação não se deu sem conflitos, a começar com a Revolução Francesa em 1789, símbolo de uma mudança de era, mas também em outros contextos onde a antiga nobreza tentava manter seu poder. Dois modelos de Estado liberal surgiram: o inglês e o norte-americano, como veremos adiante. Outros modelos de Estado existiam, incluindo países europeus como a Suíça e a Holanda (Itália e Alemanha iniciavam o processo de unificação). As jovens nações independentes no continente americano, com seus Estados contraditórios, copiados da Europa. Na Ásia, em 1800, o império Otomano continuava forte, mas com sinais de decadência. A China era um império ainda forte, mas cobiçado e logo seria dominada pelos ocidentais. A Índia, dividida em diversos reinos, logo seria colônia britânica. Japão e Pérsia muçulmana (Irã) começavam a organizar seus aparatos estatais. Na África, somente dois países foram independentes no século 19: Libéria (1847) e Abissínia (Etiópia), em 1896. No Brasil recém-independente, o Estado tinha estruturado o aparato burocrático durante o Império e com a República algumas mudanças ocorreram. Contudo, em linhas gerais, o aparato burocrático continuou tal qual o do Império, só que agora sujeito ao poder dos governadores. Em nível global, aos poucos a burocracia passa a ser condutora das coisas de Estado e uma grande fonte de poder. O Estado, cada vez mais racional (científico) e laico, passou a ser o grande “gerente” da administração do Estado- nação. Em todos os países, uma forma cada vez mais uniforme de administração 3 vai tomando forma, esticando seus tentáculos, ainda que o discurso liberal fosse contrário a este fortalecimento. Era o Estado burocrático moderno. TEMA 1 – A CRÍTICA ILUMINISTA O Iluminismo, dos séculos 17 e 18, foi um conjunto de obras e ideias que questionavam o Absolutismo e os valores medievais que ainda vingavam na sociedade europeia, por exemplo, o teocentrismo, que deveria ser substituído pelo domínio da Razão (ciência). O termo iluminismo se contrapõe à ideia de Trevas que obscureciam o conhecimento, típico do período medieval, de forma a iluminar o mundo com um novo tipo de conhecimento, que certamente seria usado para os assuntos da política e do Estado. Os princípios iluministas regem, em maior ou menor grau, a maioria das democracias modernas, assim como grande parte do cenário internacional, a partir da lógica do Estado-nação, do comércio global, da mediação das organizações internacionais e dos tratados internacionais. A seguir, as ideias de alguns iluministas sobre o Estado. 1.1 John Locke (1632-1704) Contratualista, é considerado um dos precursores do Iluminismo e um dos principais disseminadores do pensamento liberal inglês, em especial a defesa da propriedade privada como garantia da liberdade. Suas ideias estão expostas na obra Segundo tratado sobre o governo (1681), onde defende valores como: um Estado não autoritário, contrariando o pensamento hobbesiano, comum naquele período, e o uso da razão para explicar a realidade, e não do pensamento religioso ou da fé. Criticou a ideia do Direito Divino, em voga durante sua vida (auge do Absolutismo). Para Locke, o Estado deve estar sujeito à lei, argumento central do que seria mais tarde conhecido como Constitucionalismo, a Constituição como fonte e emanação do poder dos cidadãos. Defendeu a divisão do poder sem, no entanto, colocar o judiciário como poder independente, mas atrelado ao Legislativo, que seria o mais importante dos poderes, pois representaria o povo, a fonte real de poder. O terceiro Poder que apontou seria o Federativo, algo próximo do que hoje definimos como relações exteriores ou diplomacia. Mas o Estado, acima de tudo, seria o grande guardião da propriedade privada, base da liberdade e da sobrevivência. 4 As ideias de Locke têm um contexto, pois a Inglaterra teve um tipo diferente de Absolutismo. A divisão do poder no Estado Inglês representou a ascensão da burguesia, classe social que empoderou-se, em um primeiro momento neste país, para posteriormente se expandir pela Europa e pelos Estados Unidos. Os valores burgueses, apesar de conviverem com os da nobreza em relativa harmonia, acabaram por dar vazão ao domínio capitalista, à Revolução Industrial e ao avanço da ciência. 1.2 Adam Smith (1723 -1790) Smith foi um dos primeiros pensadores a defender o que seria um dos pilares do mundo capitalista: o mercado enquanto meio gerador de equilíbrio na sociedade e não controlado pelo Estado. Ele foi um dos primeiros a propor a visão hoje conhecida como Estado Mínimo, uma premissa ainda hoje do Estado liberal. Lembremos que o Estado Absolutista era extremamente intervencionista. No livro A riqueza das nações (1776), Smith defende as bases do capitalismo moderno, como a livre concorrência privada, o crescimento econômico, o acúmulo de capital e a divisão do trabalho. Ele também propõe, na lógica liberal, três atribuições básicas para o Estado: proteção contra ameaças ou invasão externa (defesa), proteção contra ameaças na própria sociedade (poder de polícia) e criação de instituições e obras públicas que não gerem interesse da iniciativa privada (indivíduos ou empresas). Tais fatores formariam um Estado guardião, protetor da iniciativa privada, assim como garantidor da soberania do Estado-nação. Além disso, o Estado seria um investidor em obras de infraestrutura, pelo menos aquelas que não atraem interesse privado, por serem muito caras ou por não gerarem lucro. É nesse prisma que o papel institucional do Estado se coloca para Smith, pois ele seria o garantidor da justiça em termos de liberdade individual, comércio, garantia à propriedade privada e segurança. 1.3 Charles de Montesquieu (1689-1755) Em sua obra O espírito das leis (1748), Montesquieu propõe ideias para impedir a tirania ou o governo despótico, evitando a violência e a arbitrariedade tão comuns durante o Absolutismo francês. Baseando-se no modelo inglês, ele 5 faz então o contraponto entre Monarquia Constitucional e República versus Despotismo. O Estado seria submetido à Constituição e estruturado em função de três poderes independentes. O Executivo dirigiria as coisas públicas em função das leis, no entanto, teria o poder de veto. A Magistratura seria um poder impessoal e independente, sendo as leis criadas pelos representantes do povo, o Legislativo (parlamento). As atribuições do Estado seriam racionalmente divididas, e um poder só interferiria em outro em situações especiais. Isso seria o que ele designou como sistema de freios e contrapesos, onde o poder controla o poder, evitando abusos de algum deles. 1.4 Jean Jacques Rousseau (1712-1778) O suíço J. J. Rousseau também critica a concentração do poder típica do Absolutismo e defende a soberania popular em um Estado que objetiva alcançar o interesse geral, garantindo o direito à propriedade. O que o diferencia dos demais é o argumento de que tal direito, contraditoriamente, seria a grande causa da desigualdade entre os homens e dos conflitos existentes nas sociedades humanas. Na obra O contrato social (1762), propõe um Estado republicano cuja função seria evitar a guerra ou os conflitos, garantindo a vontade da maioria. A educação seria o meio por excelência de garantir a igualdade entre todos os cidadãos, sendo função do Estado garanti-la. 1.5 Immanuel Kant (1724-1804) Defensor das ideias iluministas, o alemão Kant escreveu o tratado A paz perpétua (1795), onde apresenta princípios que poderiam evitar a guerra entre as nações, como a não intervenção, a formulação de tratados sem ressalvas, o republicanismo, o fim do patrimonialismo (o Estado pertencendo ao monarca) e o fim dos exércitos permanentes. Mas foi a proposta de uma espécie de “direito internacional” que deixou uma herança no campo das relações internacionais. O princípio deste direito seria o fato de que os Estados viviam na iminência de guerra entre si e, para evitar tal situação, deveriam entrar em acordo e criar uma federação de países, o que seria tentado no século XX com a Liga das Nações e posteriormente com a Organização das Nações Unidas (ONU). 6 TEMA 2 – A ESTRUTURAÇÃO DO ESTADO LIBERAL O Tratado de Westfália em 1648 foi um marco a partir do qual o Estado- nação passou, paulatinamente, a ser a instituição predominante no cenário internacional. Inglaterra e Holanda eram, naquele momento, as potências que despontavam, embora França e Espanha fossem países poderosos. Mas a França só se fortaleceu efetivamente décadas depois, enquanto a Espanha entrava em decadência, em boa medida, por não se desligar totalmente dos valores medievais, mas também por sucessivas derrotas militares. O empoderamento do Estado-nação exigiu um imenso aparato militar e burocrático, o que só foi possível neste momento. Desta forma, foi no século 19 que o Estado-nação independente organizou uma poderosa administração, baseada na ciência e na razão. O planejamento, a contabilidade, os registros minuciosos, o método. Em conjunto, estes e outros fatores deram outra característica a esta instituição. A Inglaterra — ou o Império Britânico — foi um dos primeiros países a se organizar a partir da burocracia moderna. Tal modelo foi aos poucos se alastrando pela Europa e, posteriormente, pelo mundo. O Estado Liberal, típico do século 19 e início do século 20, era bastante excludente. O consumo de mercadorias era restrito à reduzida classe alta e média. Na maioria dos países, poucos efetivamente participavam das eleições (homens brancos e com renda alta). No entanto, após a Primeira Guerra Mundial, houve uma progressiva ampliação da democracia, com grandes parcelas da população passando a participar: pobres, mulheres, população negra e indígena, analfabetos, dentre outros. 2.1 A Inglaterra como potência Ainda no período absolutista, a Inglaterra superou o poderio dos concorrentes e entrou no século 19 como a potência maior, principalmente após vencer a França Bonapartista, tornando-se o Império Britânico. A Grã-Bretanha designa a união da Inglaterra, País de Gales e Escócia. O Império acrescentou colônias. Há várias explicações para o fato de a Inglaterra tornar-se a potência predominante. Apesar de seu território relativamente pobre, três fatores foram essenciais para possibilitar sua hegemonia: o domínio dos mares, a Revolução Industrial e a abertura para a mentalidade capitalista. 7 Para Mello (1994), a esquadra de guerra, a marinha mercante e as inúmeras bases espalhadas pelo mundo seriam a garantia de segurança às ilhas Britânicas e ao domínio do comércio internacional. Isso seria confirmado mais tarde por uma teoria geopolítica. O almirante norte-americano Alfred Mahan criou a Teoria do Poder Marítimo (1890). A nação que dominasse as principais vias de navegação dominaria o mundo. A teoria, inclusive, instigou os Estados Unidos a seguir os mesmos passos da Inglaterra no início do século 20. A Inglaterra foi o berço da Revolução Industrial, o que possibilitou um aumento em escala sem precedentes na produção de mercadorias. Isso lhe deu amplas vantagens comerciais na concorrência com outras nações, oferecendo produtos baratos e em abundância. A Inglaterra possuía amplas jazidas de carvão, produto essencial para a energia a vapor, ampliando o poder britânico e consolidando o capitalismo como forma hegemônica da economia mundial. Com este poderio, a Inglaterra dominou o cenário internacional. E o aparato estatal foi fundamental para coordenar este processo, seja a industrialização ou a colonização de diversas áreas do globo. E na prevalência do modelo capitalista, mais tarde auxiliado pelos Estados Unidos e outros países europeus. 2.1.1 O modelo político econômico liberal Com uma economia francamente capitalista, o poderio das empresas privadas, aliado ao empoderamento do Estado, consolidou, no século 19, o modelo político e econômico que vinha sendo gestado dois séculos antes. Em termos de Estado-nação, a Inglaterra foi a potência hegemônica, conduzindo uma política imperialista, ou seja, uma política de expansão territorial pelo mundo, conquistando regiões e territórios, ou pelo menos, conquistando-os cultural e economicamente. Neste momento, os ingleses, junto a outros países europeus, iniciaram o “colonialismo”, isto é, a colonização na Ásia e África, além de manter territórios no Caribe. Internamente, o Estado britânico era liberal, econômica e politicamente. Mas não era um liberalismo como o atual. Era altamente protecionista e intervencionista, garantindo, pela força, o domínio comercial e industrial britânico, impedindo a justa concorrência de produtos estrangeiros. Politicamente, era uma monarquia constitucional parlamentarista, ou seja, quem 8 realmente domina o cenário político é o Parlamento, inclusive os assuntos externos. O poder é limitado, sendo o Executivo conduzido pelo Primeiro- Ministro, escolhido pelo partido vencedor das eleições. O Parlamento é dividido em Câmara Alta (dos Lordes, equivalente ao Senado) e Câmara Baixa (dos Comuns, equivalente à Câmara dos Deputados). O Império Britânico começa a perder seu poder após a Primeira Guerra Mundial e se desmantela, de fato, após a Segunda Guerra Mundial. Atualmente, existe a Comunidade Britânica de Nações, englobando a Grã-Bretanha e antigas colônias, agora independentes, mas é uma união simbólica. TEMA 3 – ESTADOS UNIDOS E O ESTADO LIBERAL REPUBLICANO Se a Inglaterra construiu um modelo de Estado diferente na Europa, predominantemente liberal, foram os Estados Unidos que mais radicalizaram essa proposta. Lembremos que defender ideias liberais no final do século 18 era ser radical ou revolucionário. Os Estados Unidos tiveram uma colonização distinta da latino-americana e, desde seus primórdios no século 17, colonos chegaram ao território norte-americano pautados em um ideal religioso protestante baseado no mito da terra prometida. Mas também com uma mentalidade aberta a uma democracia de base, ou seja, altamente participativa nas menores instâncias de poder, desde a igreja até o espaço comunitário local. É o que analisa um dos primeiros pensadores a procurar entender o fenômeno, o liberal Alexis de Tocqueville, na obra Da democracia na América, escrita após visita aos Estados Unidos em 1831, quando ainda era basicamente um país agrícola, com 25 Estados. Após a independência em 1776, os Estados Unidos tiveram certas facilidades em relação à Europa para que a democracia avançasse quase que sem limites: a ausência de uma aristocracia, uma cultura aberta à participação de base (soberania local), fim do voto censitário (só quem tinha renda ou era proprietário teria direitos políticos) e a Lei de Sucessões, que acabou com os privilégios hereditários do período colonial. A partir daí, Tocqueville, 50 anos depois da independência, analisa os efeitos desse processo nos Estados Unidos, cultural e politicamente. Argumenta que os efeitos daquela experiência se alastrariam pelo mundo, pois não era um fenômeno somente norte- americano, antes, indicava algo bem mais profundo das sociedades modernas: 9 o avanço da democracia e o predomínio de sociedades que hoje chamaríamos de padrão classe média. Saliente-se que tal situação não significa que os Estados Unidos eram um país maravilhoso. O fato de ser democrático não significava ausência de injustiças. Existiam fatores conjunturais ou típicos da época (que hoje chamaríamos de não democráticos, injustos e violentos). É o caso da escravidão, do extermínio de nações indígenas e a usurpação de territórios do México em 1848. 3.1 Democracia como Princípio A soberania local é um dos primeiros aspectos ressaltados por Tocqueville (2000), ao afirmar que na comuna (a Township, algo como um município), desde o período colonial havia grande autonomia, com os habitantes decidindo a maior parte dos seus problemas locais. Após a independência, esta cultura democrática facilitou ou mesmo forçou a que o país se organizasse a partir daqueles princípios. É neste aspecto que o Estado norte-americano foi uma novidade naquele momento, distinto, inclusive, do modelo inglês. O tipo de democracia era inimaginável para a maioria dos países daquele período. Por exemplo, quase todos os cidadãos votavam1. Grande parte dos funcionários públicos locais era eleita e havia pouca burocracia. Muitas decisões locais eram tomadas em assembleias. O que se denomina hoje como associativismo era uma prática constante em 1831. Ainda hoje, restam elementos daquela experiência, como a eleição do Xerife (responsável pela aplicação da lei nos condados), de certos agentes públicos e de juízes de primeira instância e grande variação na legislação de cada Estado ou município. 3.2 Um país republicano e liberal Os chamados pais fundadores dos Estados Unidos (G. Washington, T. Paine, B. Franklin, J. Adams, T. Jefferson, dentre outros) foram fortemente influenciados pelo Iluminismo, o que resultou em um modelo de Estado distinto. Republicano, tendo desde o início um Presidente eleito. Divisão em três poderes, 1 Lembremos que mesmo onde não havia escravidão, como nos Estados do norte, poucos cidadãos negros votavam, fato descrito por Tocqueville. As mulheres só tiveram o direito de votar em 1920. 10 com um judiciário fortalecido. Uma federação de Estados, altamente descentralizados nos aspectos administrativos. A própria discussão sobre a estruturação do Estado norte-americano foi diferenciada, com as proposições defendidas por cada parte expondo suas ideias em jornais. Havia ampla liberdade para criação de jornais, fossem grandes ou simplesmente panfletos locais. Vários destes textos estão atualmente reunidos na coletânea Os artigos federalistas (Ed. Nova Fronteira, 1993), onde se debate teses contrapostas, como federação ou confederação. Centralização ou descentralização (um Estado central forte ou autonomia local). Monarquia constitucional ou República. A divisão dos poderes. Prevaleceu um modelo de federação, mas com várias características de confederação (mais autonomia que em uma federação). Tocqueville afirma que, com a grande descentralização, restava ao Estado norte-americano cuidar dos assuntos externos e promover a justiça, mas com poder de submeter a legislação estadual caso necessário, embora raro como foi, posteriormente, a luta por direitos civis no Século 20. TEMA 4 – DOMINAÇÃO RACIONAL LEGAL: SEGURANÇA E BUROCRACIA (O Estado liberal possibilitou a estruturação da burocracia racional moderna. O sociólogo Max Weber é considerado um dos maiores teóricos ou intérpretes desse processo. Em sua vasta obra, analisou inúmeros temas, incluindo o advento do chamado Estado Racional Legal. Esse seria fruto de um lento processo histórico, com raízes na Idade Média, mas que só se consolidou na modernidade, primeiramente no mundo ocidental, em especial com o predomínio do capitalismo e do Estado-nação. Mas, antes de ser uma espécie de exaltação do Estado, o liberal Weber estava preocupado com o risco de que essa instituição se transformasse em uma moderna forma de dominação. 4.1 Segurança: o Estado e o monopólio do uso da violência Um dos atributos básicos do Estado moderno é tomar para si o uso de recursos violentos ou de coação, evitando que grupos particulares usassem tal recurso. Daí uma das mais conhecidas frases de Weber: […] o Estado Moderno é uma associação de dominação institucional que, em determinado território, de forma legítima, monopoliza a coação física legítima como meio de dominação reunindo para este fim meios 11 materiais de organização, dirigentes e funcionários, desapropriando os líderes autônomos que antes detinham aquele poder. (Weber, 2004, p. 529) Esse fato se realiza não somente na violência física — o último recurso — mas no poder de coagir e, se for o caso, forçar, por exemplo, a vigilância policial, ação de fiscais, oficiais de justiça, das forças armadas, a imposição de multas. E tudo isso é mediado por variadas instituições estatais ou por elas designadas. 4.1.1 As instituições de segurança O Estado Moderno se consolidou desde o período absolutista, principalmente em função do conceito de segurança. Era uma das funções primordiais do Estado a segurança externa e interna, ou seja, do Estado-nação, do território e do povo que ali habita, a garantia da ordem pública e da tranquilidade. Com a consolidação do Estado-nação e do Estado liberal, a consequência lógica é a existência de instituições, de recursos, de treinamento específico e de um aparato que permitisse atingir tais objetivos. Em função disso, duas forças de segurança estatais se institucionalizaram: as Forças Armadas e as Forças Policiais (Forças de Segurança Pública). Em princípio, são forças apolíticas, instituições típicas de Estado. Às Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) cabe a defesa do território, garantindo a soberania do Estado-nação. Desde o período absolutista até a atualidade, tais forças foram padronizadas como instituições de Estado ou organizações. Em todos os países, há uniformidade de funções militares, subdivisões e atribuições, ou mesmo uma cultura organizacional típica. No entanto, há divergências em relação ao seu papel interno. Em muitos contextos, conforme aponta Wright Mills (1981, capítulo 8 – “Os senhores da guerra”, livro A elite do poder), tais forças formam uma elite, interferindo em contextos políticos internos, direta ou indiretamente. No caso brasileiro, em todas as Constituições desde 1891, colocam-se as Forças Armadas como garantidoras da defesa das instituições ou garantia da lei e da ordem, expressões estas vagas o suficiente para gerar muita controvérsia. Já as forças policiais, de acordo com Afonso (2018), enquanto instituições modernas, tomaram forma a partir do início do século XIX, na França um pouco antes. Lembremos que o termo polícia tinha um significado mais amplo no período absolutista, contudo, passou a ter um significado restrito à segurança 12 interna, de forma que surgiram instituições policiais específicas e estas foram progressivamente se subdividindo, a começar pela divisão entre polícia administrativa (prevenção e repressão) e polícia judiciária (investigação). A partir de então, possuem objetivos mais específicos relativos à manutenção da tranquilidade pública e da segurança interna, garantindo a proteção da propriedade e da ordem pública. E Afonso (2018) complementa que Ao Estado liberal sucede o Estado de direito, limitando rigorosamente o exercício dos poderes de polícia. Passo a passo, o conceito de polícia redimensiona-se, ajusta-se aos princípios prevalentes do Estado de direito — como a dignidade da pessoa humana, a legalidade, a justiça, a liberdade, a segurança. É verdade que conceitos como ordem pública são passíveis de interpretação e podem variar de período a período. O próprio Afonso comenta que, em muitos contextos, as forças policiais no século XIX foram usadas para fins políticos ou de apoio a grupos específicos. No entanto, em sentido geral, de acordo com Bova (1998, p. 944), é uma função do Estado “que se concretiza numa instituição de administração positiva e visa a pôr em ação as limitações que a lei impõe à liberdade dos indivíduos e dos grupos para a salvaguarda e manutenção da ordem pública, em suas várias manifestações”. 4.2 A burocracia estatal como forma de dominação Até a modernidade, o poder se encarnava na figura do soberano ou de grupos dominantes, de forma que as leis e as diretrizes administrativas eram muitas vezes aplicadas de maneira pessoal, ou seja, variavam de acordo com as circunstâncias ou da preferência da autoridade. Para Weber (2004), uma peculiaridade da modernidade é o predomínio de uma dada forma de dominação, a institucional ou legal, que se manifesta de maneira impessoal, na forma de leis e de uma administração científica, isto é, baseada no cálculo racional, usando os modernos meios técnicos e organizacionais. Seus principais agentes não são indivíduos, mas organizações diversas. Os indivíduos são representantes ou agentes dessas instituições. Nessa perspectiva, o poder político é institucional, ou seja, não se encontra nos indivíduos, ainda que sejam agentes. Para ele, na moderna administração, o poder é exercido por administradores profissionais que “se estruturam hierarquicamente e que, em nome da racionalidade e do conhecimento, planejam, organizam, coordenam, comandam e controlam, por 13 uma relação de mando e subordinação, uma determinada coletividade” (Motta, 2003). Para mais detalhes sobre essas características, leia os próximos capítulos. Mas antes de considerar como algo maravilhoso, Weber, escrevendo no início do século XX, considera esse processo como um grande risco, apesar de seus incríveis resultados. Ele afirma que “o futuro pertence à burocratização” (2004, p. 542), ou seja, no mundo moderno seria impossível fugir dessa nova e poderosa forma de dominação, pois ela seria imperceptível e até agradável. O pior dos cenários seria a junção do autoritarismo e da burocracia racional. O resultado seria uma servidão diferente de todas as formas precedentes, pois estaria atrelada a um gigantesco organismo, o Estado administrado cientificamente. TEMA 5 – A CONSTRUÇÃO DO ESTADO BUROCRÁTICO BRASILEIRO Com a independência em 1822, como em qualquer outro país que se pretendesse moderno, devia ser criada uma estrutura mínima de instituições de Estado. Os primeiros passos, na verdade, foram dados quando a Família Real Portuguesa transferiu a Corte para o Brasil, em 1808. Mas, até as três primeiras décadas do século 20, seria exagero afirmar que o Brasil teria estruturado um Estado liberal e burocraticamente moderno. No máximo, criou algumas estruturas modernas, mas, antes de tudo, o aparato estatal foi dominado por uma elite, tese defendida por Carvalho (2005) e Faoro (2001). 5.1 A estrutura do Estado Após a independência, uma pequena batalha política ocorreu entre ideais liberais e monarquistas absolutistas. A monarquia prevaleceu, contudo, o imperativo de modernização era forte, de maneira que o Estado brasileiro se formou de forma híbrida, tentando seguir o modelo inglês, a monarquia parlamentar, porém com forte poder do Imperador. Por isso, ocorreu a criação anacrônica de um quarto poder, o Moderador, depois reduzido a três na República. Mas o que uniu aqueles dois períodos foi o domínio de elites (agrária, militar, burocrática), aspecto este que influenciou enormemente a conformação do aparato burocrático nacional. 14 5.1.1 A Administração Diferentemente do cenário inglês, o Estado brasileiro no período imperial é coordenador e empreendedor, não há empresas privadas nem capitalistas, salvo exceções como o Barão de Mauá (1813-1889) e uma tentativa de criação de indústrias de produtos de primeira necessidade (alimentação, tecidos, construção) ao final do império, projeto que tomou forma durante a Primeira República, principalmente em São Paulo e Rio de Janeiro. De acordo com Carvalho (2005, p. 148), durante o Império, “magistrados e militares, ao lado de agentes do fisco, estiveram entre os primeiros funcionários do Estado moderno a se organizarem em moldes profissionais. E foram as duas burocracias mais desenvolvidas que herdamos de Portugal”. Instituições foram criadas, funcionários nomeados, contudo, “não havia aí um corpo razoavelmente profissionalizado, com exceção, talvez, para a burocracia fiscal” (Carvalho, 2005, p. 148). E a característica de domínio de elites daquele período acabava unificando os diferentes estratos do topo da pirâmide social, “o topo da administração era, ao mesmo tempo, parte substancial da elite política” (Carvalho, 2005, p. 151). Tal situação pouco mudou durante a Primeira República, característica também observada por Faoro (2001), que denominou tal domínio como Estamento Burocrático (ver subitem seguinte). As províncias, transformadas em Estados, cujos presidentes (ou governadores) passaram a ser eleitos, ganharam grande autonomia e substantiva arrecadação própria. Suas assembleias podiam legislar sobre grande número de matérias. Esse sistema caracterizava o federalismo competitivo […]. O governo federal ocupava-se de assegurar a defesa e a estabilidade e proteger os interesses da agricultura exportadora através do câmbio e da política de estoques, com reduzida interferência nos assuntos “internos” dos demais Estados. Lá vicejavam os mandões locais, grandes proprietários de terra e senhores do voto de cabresto, e as grandes oligarquias, que controlavam as eleições e os governos estaduais e asseguravam as maiorias que apoiavam o governo federal (Costa, 2018). A estrutura administrativa, portanto, era refém dos senhores locais. Em um país que era ainda predominantemente agrário, os proprietários da terra (coronelismo) efetivamente dominavam. Na célebre obra Coronelismo, enxada e voto, Leal (2012, p. 34) mostra a relação de compromisso e de favores entre o líder local (coronel) e as autoridades estaduais, com consequências para o provimento de funções públicas: 15 Com o chefe local — quando amigo — é que se entende o governo do Estado em tudo quanto respeite aos interesses do município. Os próprios funcionários estaduais, que servem no lugar, são escolhidos por sua indicação. Professoras primárias, coletores, funcionários da coletoria, serventuários da justiça, promotor público, inspetores do ensino primário, servidores da saúde pública etc., para tantos cargos a indicação ou aprovação do chefe local costuma ser de praxe. Desta forma, até o final da Primeira República, o aparelho de Estado brasileiro era instrumentalizado por lideranças privadas, locais e estaduais, sujeito a todo tipo de vícios e desmandos, desvirtuando o próprio conceito de função pública. E permeando tudo isso, a relação dúbia entre o público e o privado, como observamos a seguir. 5.1.2 O patrimonialismo Até o advento do Estado racional moderno, não era um problema um regente ou um funcionário público usar seus poderes ou recursos públicos em benefício próprio. Tal prática era vista como inerente à própria função, um direito, especialmente dos líderes políticos. Tal prática é designada como patrimonialista, ou seja, a diferenciação entre interesse público e privado é muito branda. Campante (2003) aponta algumas características do patrimonialismo: bens públicos podem ser usados em benefício particular. As decisões de governo procuram beneficiar grupos privados específicos. A ação dos funcionários não é impessoal, mas sujeita a interesses ou preferências particulares. As regras não são estáveis, antes, analisadas ou usadas subjetivamente. É em função deste conceito que Faoro procura explicar as mazelas históricas do Estado brasileiro, ao propor que este foi moldado em função do Estado patrimonialista português, em especial, o domínio de certa elite, por este designada como estamento burocrático. Em termos sociológicos, o estamento social designa cada grupo de uma sociedade dividida, com os respectivos papéis e posições sociais bem definidas, seus privilégios, com poucas possibilidades de indivíduos de um grupo adentrar ao outro. Esta é a análise de Faoro (2001, p. 60), baseada em Max Weber. Estamento burocrático, portanto, seria um destes grupos de elite, uma característica das sociedades em que o Estado se fortalece e onde a administração se torna cada vez mais, de forma ambígua, um misto de racionalidade e de privilégios, aliada ao domínio de grupos específicos. Tal 16 situação, de acordo com Faoro, resulta em um tipo de administração pública patrimonialista, com privilégios legais e extralegais, decisões não muito racionais, baseadas em trocas ou acordos individuais e de grupos. A ideia de interesse público fica em segundo plano, superada pelos interesses individuais, de famílias e de grupos diversos. Assim, em tais sociedades, mediadas pelo estamento burocrático, o Estado acaba tendo um papel político, garantindo a manutenção de determinada ordem social ou de privilégios. 5.2 As forças de segurança pós Independência Enquanto parte do aparato fundamental de um Estado-nação, as forças de segurança brasileiras seguiram os passos iniciais da formatação das instituições nacionais. Em 1808, foi criada a Intendência Geral de Polícia da Corte, que podia investigar delitos e prender criminosos. E a Guarda Real de Polícia, criada em 1809, com estrutura militar e subordinada ao Intendente Geral de Polícia. De tais instituições, surgiram tempos depois, respectivamente, a Polícia Civil e a Polícia Militar. Eram instituições de Estado, criadas a partir da transferência da Corte de D. João VI ao Brasil. Após a independência, aos poucos foram se estruturando as organizações militares — marinha e exército — e a primeira instituição policial, a Guarda Nacional. Inicialmente civil, era um misto de força policial e militar, pois podia atuar (como atuou na Guerra do Paraguai) junto ao exército. Após o advento da República, foram criadas as polícias militares, e tais instituições adquiriram as características atuais, estaduais, e a divisão básica entre polícia civil e polícia militar. NA PRÁTICA Até a Segunda Guerra Mundial, a Inglaterra dominou o cenário internacional, embora outros países estivessem fortalecidos. Nestes, o modelo capitalista foi soberano, variando de país a país. Mas as guerras mundiais e a grande crise econômica de 1929 abalaram a fé no liberalismo como modelo ideal. A crise de 1929 foi um grande golpe na fé incondicional nas teses liberais, tão comum até então nos principais países ocidentais. Embora exista um debate 17 sobre as reais causas desta crise, ela resultou posteriormente em um Estado mais intervencionista, seja o modelo autoritário, seja o modelo socialdemocrata. Tanto é que nos anos 30 — período entre guerras — se caracterizaram no ocidente pelo predomínio de um Estado autoritário e nacionalista (antiliberal e anticomunista), como foi o caso do nazifascismo. E após a Segunda Guerra Mundial, predominou o chamado Welfare State. Além disso, velhos problemas persistiam, em especial a pobreza e a miséria. E a crise de 1929 só piorou tal situação, expondo ainda mais o velho dilema europeu (e global) de populações vivendo na pobreza e até aquele momento os Estados nacionais não tinham resposta para tal problema. FINALIZANDO Vimos o advento e fortalecimento do Estado Moderno Liberal, com as críticas feitas pelos iluministas. No século 19, algumas nações levaram adiante o modelo liberal, principalmente a Inglaterra e os Estados Unidos. Aliado ao predominante capitalismo, o Estado liberal permitiu que valores da modernidade, tais como democracia, liberdade, livre mercado e empreendedorismo, se alastrassem pelo mundo. É verdade que isso muitas vezes foi apenas simbólico e contraditório, mas é inegável que esses valores fazem parte dos projetos da maioria das sociedades contemporâneas. Vimos ainda que o Estado brasileiro, no período imperial e na Primeira República, foi criado com base em modelos modernos, mas acabou se tornando contraditório e ineficaz. 18 REFERÊNCIAS AFONSO, J. J. R. Polícia: Etimologia e evolução do conceito. Revista Brasileira de Ciências Policiais, Brasília, v. 9, n. 1, p. 213-260, jan./jul. 2018. Disponível em: <https://periodicos.pf.gov.br/index.php/RBCP/article/view/539/346>. Acesso em: 21 mar. 2023. BOVA, S. “Polícia”. In: BOBBIO, N.; MATTEUCCI; N. PASQUINO, G. 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