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05 02 - Romantismo - 2x2

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Profª. Cristiane 
Literatura 
 
Página 1 de 20 
Romantismo: nacionalismo, individualismo e revolução 
 
Estabeleceu-se que, em Portugal, o Romantismo 
surge em 1825 (data de publicação do longo poema 
narrativo Camões, de Almeida Garret) e perdura até 1865, 
com a Questão Coimbrã. No Brasil, inicia-se com a 
publicação de Suspiros poéticos e saudades (1836), de 
Gonçalves de Magalhães, e se encerra em 1881, com a 
publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas. 
Romantismo início fim 
Brasil 1836 
publicação de 
Suspiros poéticos e 
saudades, de 
Gonçalves de 
Magalhães 
1881 
publicação de 
Memórias 
póstumas de Brás 
Cubas, de 
Machado de Assis 
Portugal 1825 
publicação de 
Camões, de Almeida 
Garret 
1865 
Questão Coimbrã 
 
 
Eugène Delacroix. A Liberdade guiando o povo. 1830. 
As ideias iluministas preparam a base filosófica 
para ocorrer, em 1789, a Revolução Francesa, marco do fim 
do absolutismo e da ascensão definitiva da burguesia ao 
poder: era a consolidação do modo capitalista de produção, 
que teria consequências irreversíveis para todo o mundo. 
Para as artes, a virada do século XVIII para o XIX também 
foi marcante. O Romantismo, movimento artístico surgido 
na Inglaterra e na Alemanha (à França coube coordená-lo 
e divulgá-lo), representou uma virada tão forte no 
pensamento e no modo de criar e produzir arte, que muitos 
teóricos consideram que somos românticos até hoje. De 
fato, se pensarmos que a escola romântica está 
diretamente vinculada à Revolução Francesa e à ascensão 
da burguesia e que ainda vivemos num modo capitalista de 
produção, é notória a presença do Romantismo no nosso 
 
1 Ambos citados por Alfredo Bosi. História concisa da literatura 
brasileira, p. 99. 
2 Antigo Regime. 
cotidiano. Para entender a dimensão desse movimento, 
esclareçamos primeiro o sentido do termo. 
Certamente, num momento de devaneio, fantasia 
ou cavalheirismo, por exemplo, você já deve ter sido taxado 
de “romântico”. Essa é a acepção popular da palavra, e não 
a que usaremos aqui. Aqui, considerar romântico aquele 
que fala de amor não tem sentido, pois sabemos esse é um 
tema de que o ser humano sempre se ocupou. Mas há uma 
grande dificuldade na conceituação do termo. Segundo 
Paul Valéry, “seria necessário ter perdido todo espírito de 
rigor para querer definir o Romantismo”. Para Karl 
Mannheim, “o Romantismo expressa os sentimentos dos 
descontentes com as novas estruturas: a nobreza, que já 
caiu, e a pequena burguesia, que ainda não subiu: de onde 
as atitudes saudosistas ou reivindicatórias que pontuam 
todo o movimento”1. Vamos refletir sobre essas 
declarações. O Romantismo, principalmente em sua 
primeira fase: 
[...] vive as contradições próprias da Revolução 
Industrial e da burguesia ascendente. Definem-se as 
classes: a nobreza, há pouco apeada do poder; a grande e 
a pequena burguesia, o velho campesinato, o operariado 
crescente. Precisam-se as visões da existência: nostálgica, 
nos decaídos do Ancien Régime2; primeiro eufórica, depois 
prudente, nos novos proprietários; já inquieta e logo 
libertária nos que veem bloqueada a própria ascensão 
dentro dos novos quadros; imersa ainda na mudez da 
inconsciência, naqueles para os quais não soara em 89 a 
hora da Liberdade-Igualdade-Fraternidade. 
Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. 3 ed. São 
Paulo: Cultrix, p. 99. 
Além disso, essa falta de conceituação sobre o 
movimento deve-se em grande parte ao repúdio dos 
românticos pelas normas clássicas. Eles defendem o 
impuro, a mistura de gêneros, o caos, os extremos em vez 
do equilíbrio, o único em vez do perene, o individualismo 
em vez do universalismo: tudo o que veem do mundo não 
passa de um reflexo e/ou uma extensão do “eu”. A 
natureza, por exemplo, que para os árcades era cenário 
para o idílio dos amantes, agora passa a ser obscura, por 
refletir o estado de espírito de um eu que se autobusca. 
Esse egocentrismo se manifesta num sentimentalismo 
introvertido, instável, móvel, adolescente. Segundo 
Massaud Moisés, “o Romantismo é uma estética 
adolescente, expressando sentimentos femininamente 
adolescentes ou vice-versa”.3 
O mergulho em si mesmo desperta a percepção da 
dignidade da dor e, em certa medida, o gosto pelo 
sofrimento e pelas fraquezas humanas. Toda essa 
introspecção conduz ao tédio, à melancolia – “mal do 
século” XIX – e à consequente fuga da realidade, o 
escapismo: tentando reencontrar-se com um passado 
medieval, fugindo para terras exóticas, usando drogas 
(álcool, alucinógenos), levando vida boêmia ou entregando-
se a um hedonismo sem limites ou à paixão pela morte. O 
jovem Werther, personagem de Goethe, por exemplo, 
3 Massaud Moisés. A literatura portuguesa. 33 ed. São Paulo: 
Cultrix, p. 117. 
 
Profª. Cristiane 
Literatura 
 
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suicida-se por não conseguir suportar a dor do amor; tema, 
aliás, que passa a ser usual na literatura desde então. Leia 
um diálogo do romance publicado em 1774 e note a 
presença de duas posturas antagônicas: a de Alberto, noivo 
de Carlota, espírito racionalista e equilibrado, e a de 
Werther, apaixonado pela noiva do outro, amante da 
loucura, da insensatez e da embriaguez como forma de 
atingir ações livres, nobres e inesperadas. 
 
As paixões do insensato 
– Aí o caso é completamente diferente – replicou 
Alberto – porque um homem que é arrastado pelas suas 
paixões perde toda a capacidade de raciocinar e passa 
a ser encarado como um ébrio, como um demente. 
– Ai de vós todos tão sensatos! – exclamei sorrindo. – 
Paixão! Embriaguez! Loucura! Conservai-vos tão 
serenos, tão desinteressados, vós, os moralistas; cobris 
de injúrias o bêbado, detestais o insensato, passais ao 
largo como o sacerdote e agradeceis a Deus, tal o 
fariseu, por não vos ter feito iguais a eles. Mais de uma 
vez me embriaguei, minhas paixões nunca estiveram 
longe da loucura e não me arrependo nem de uma coisa 
nem de outra, apesar de terem-me ensinado que sempre 
se haveria de menosprezar todos os indivíduos 
excepcionais que fizeram algo de grandioso, algo de 
aparentemente irrealizável! 
Mas também na vida cotidiana é insuportável ouvir 
quase sempre gritar para qualquer um empenhado 
numa ação livre, nobre, inesperada: “É um bêbado, está 
louco!” Envergonhai-vos, vós todos tão sóbrios! 
Envergonhai-vos, vós todos tão sensatos! 
 
Goethe, Werther. 10 ed. Munique: C.H. Beck, 1982, 14v., VI, p. 46-7. 
 
Leia a letra da canção de Cazuza e Frejat reproduzida a 
seguir e reflita: ainda somos românticos? 
Todo amor que houver nessa vida 
 
Eu quero a sorte de um amor tranquilo 
Com sabor de fruta mordida 
Nós na batida, no embalo da rede 
Matando a sede na saliva 
 
Ser teu pão, ser tua comida 
Todo amor que houver nessa vida 
E algum trocado pra dar garantia 
 
E ser artista no nosso convívio 
Pelo inferno e céu de todo dia 
Pra poesia que a gente não vive 
Transformar o tédio em melodia 
 
Ser teu pão, ser tua comida 
Todo amor que houver nessa vida 
E algum veneno antimonotonia 
 
E se eu achar tua fonte escondida 
Te alcanço em cheio, o mel e a ferida 
E o corpo inteiro como um furacão 
Boca, nuca, mão e a tua mente não 
 
 
4 Ocorreram, durante o Romantismo, a profissionalização do 
escritor e a disseminação de novos gêneros literários, não-clássicos, 
que se disseminaram por todo o Ocidente. 
Ser teu pão, ser tua comida 
Todo amor que houver nessa vida 
E algum remédio que me dê alegria 
 
Frejat e Cazuza in cazuza, Preciso dizer que te amo. 
 
Toda essa negação do equilíbrio redefine o papel 
do artista e traz o benefício da solidão (que pode, como 
vimos, levar ao desespero), a beleza do mistério e o 
conceito de gênio (para os alemães, Genie, o inspirado): 
agora, os poetas se creem portadores de um furor artístico, 
de um estado de transe e de inspiração divina. Têm, 
portanto, uma missão: são vates, profetas, acreditam ter um 
dever poéticofrente aos outros homens. É interessante que 
embriagar de um individualismo exacerbado pode trazer ao 
romântico a superação dos liames da convivência: perde-
se como pessoa, mas encontra-se como poeta e, 
consequentemente, como missionário. Assim, grandeza, 
missão e isolamento passam a ser os novos motes do 
artista, que se afasta cada vez mais do equilíbrio clássico 
para buscar um novo desequilíbrio. Pessimismo, sadismo e 
satanismo passam a ser formas de negação e revolta 
contra determinados valores sociais, demonstrados tanto 
na ironia e no sarcasmo quanto no ataque direto. Tudo o 
que contraria as normas (o crime, o vício, os desvios 
sexuais e morais) é para os românticos tão interessante 
quanto a virtude e a normalidade. Antônio Candido explica 
essa nova atitude: 
[...] denotando individualismo acentuado, desejo de 
desacordo com as normas e a rotina, é em parte devida à 
nova posição social do escritor, entregue cada vez mais à 
carreira literária, isto é, a si próprio e ao vasto público, em 
lugar do escritor pensionado, protegido, quase confundido 
na criadagem dos mecenas do período anterior. Deve ter 
havido na consciência literária um arrepio de desamparo, 
uma brusca falta de segurança, com a passagem do 
mecenato ao profissionalismo. A ruptura dos quadros 
sociais que sustinham o escritor – modificando igualmente 
o tipo de público a que se dirigia – alterou sua posição, 
deixando-o muito mais entregue a si mesmo e inclinado às 
aventuras do individualismo e do inconformismo. 
Em consequência, torna-se cada vez mais sensível 
à condição social dos outros homens, como cada vez mais 
disposto a interferir em seu favor. O advento das massas à 
vida política, em seguida à proletarização e à urbanização, 
decorrentes da revolução industrial e das lutas pela 
liberdade, trazem para o universo do homem de inteligência 
um termo novo e uma perspectiva inédita. Por isso, ao lado 
dos pessimistas, encontramos os profetas da redenção 
humana, às vezes irmanados na mesma pessoa; e o 
satanismo deságua não raro na rebeldia política e no 
sentimento de missão social [...]. Assim, pois, o 
individualismo e a consciência de solidão entrecortados 
pelo desejo de solidariedade, o pessimismo enlaçado à 
utopia social e à crença no progresso aumentam a 
complexidade desse tempo patético e dourado4. 
 
Antonio Candido. Formação da literatura brasileira, v. 2. 8 ed. 
Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Itatiaia, 1997, p. 30. 
 
Profª. Cristiane 
Literatura 
 
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É notória também a busca pela liberdade, tanto na 
expressão como na forma. Já dissemos que se abandonou 
o rigor clássico. A musicalidade passa a ser um meio 
essencial para exprimir aquilo que não se consegue dizer 
apenas com belas palavras. Um ritmo fluido, cantante e 
declamatório torna-se corrente entre os poetas, assim como 
o uso de imagens mais próximas dos leitores e, portanto, 
mais facilmente apreensíveis. 
As gerações poéticas no Brasil 
Apesar de atribuirmos a Gonçalves de Magalhães o 
mérito de inaugurar o Romantismo brasileiro, de romântico 
ele tem apenas alguns temas, e não a liberdade formal 
almejada pelos grandes poetas do movimento. 
No Brasil, a poesia romântica passou por três 
momentos bem definidos. 
 
1. O nacionalismo da primeira geração 
 
 Gonçalves Dias foi, sem dúvida, o maior poeta da 
primeira geração brasileira, marcada notadamente pelo 
nacionalismo e pela saudade. Num tempo em que a poesia 
era caracterizada pelo transbordamento, pessimismo e 
intemperança sentimental, ele conseguiu equilibrar o 
afetivo e o simples. Persistia nele, porém, a necessidade da 
medida e um ritmo impecável, que de maneira alguma o 
desqualificam como romântico. Seu tema mais marcante 
era o índio. Frisava ora a selvageria, ora a docilidade dos 
nativos. Um de seus mais belos poemas é I-Juca Pirama 
(em tupi, “o que há de ser morto”), em que narra a história 
de um índio Tupi capturado pelos Aimorés que, diante da 
morte em ritual antropofágico, chora pensando no pai cego 
e perdido na floresta. Solto e execrado pelos inimigos e 
também pelo pai, que se envergonha da covardia do filho, 
I-Juca Pirama entrega-se lutando até a morte pela defesa 
de sua honra e coragem. Diferentemente dos índios de 
Alencar, que estudaremos na próxima aula, esse é vazio de 
personalidade, mas rico de sentido simbólico. Acompanhe 
um excerto desse belíssimo poema – e não deixe de notar 
seu ritmo impecável. A seguir, encontra-se “a obra-prima do 
exótico”5, lindo poema erótico em que um eu lírico feminino 
indígena descreve seu desejo de ter rompida a liga rubra de 
sua virgindade por seu amado Ubirajara. 
 
5 Antonio Candido, op. cit., p. 74. 
I-Juca Pirama [excerto] 
 
Meu canto de morte, 
Guerreiros, ouvi: 
Sou filho das selvas, 
Nas selvas cresci; 
Guerreiros, descendo 
Da tribo tupi. 
Da tribo pujante, 
Que agora anda errante 
Por fado inconstante, 
Guerreiros, nasci; 
Sou bravo, sou forte, 
Sou filho do Norte; 
Meu canto de morte, 
Guerreiros, ouvi. 
Já vi cruas brigas, 
De tribos imigas, 
E as duras fadigas 
Da guerra provei; 
Nas ondas mendaces 
Senti pelas faces 
Os silvos fugaces 
Dos ventos que amei. 
Andei longes terras 
Lidei cruas guerras, 
Vaguei pelas serras 
Dos vis Aimorés, 
Vi lutas de bravos, 
Vi fortes – escravos! 
De estranhos ignavos 
Calcados aos pés. 
E os campos talados, 
E os arcos quebrados, 
E os piagas coitados 
Já sem maracás; 
E os meigos cantores, 
Servindo a senhores, 
Que vinham traidores, 
Com mostras de paz. 
Aos golpes do imigo, 
Meu último amigo, 
Sem lar, sem abrigo 
Caiu junto a mi! 
Com plácido rosto, 
Sereno e composto, 
O acerbo desgosto 
Comigo sofri. 
Meu pai a meu lado 
Já cego e quebrado, 
De penas ralado, 
Firmava-se em mi: 
Nós ambos, mesquinhos, 
Por ínvios caminhos, 
Cobertos d’espinhos 
Chegamos aqui! 
O velho no entanto 
Sofrendo já tanto 
De fome e quebranto, 
Só qu’ria morrer! 
Não mais me contenho, 
Nas matas me embrenho, 
Das frechas que tenho 
Me quero valer. 
Então, forasteiro, 
Caí prisioneiro 
De um troço guerreiro 
Com que me encontrei: 
O cru dessossego 
Do pai fraco e cego, 
Enquanto não chego 
Qual seja, – dizei! 
Eu era o seu guia 
Na noite sombria, 
A só alegria 
Que Deus lhe deixou: 
Em mim se apoiava, 
Em mim se firmava, 
Em mim descansava, 
Que filho lhe sou. 
Ao velho coitado 
De penas ralado, 
Já cego e quebrado, 
Que resta? – Morrer. 
Enquanto descreve 
O giro tão breve 
Da vida que teve, 
Deixai-me viver! 
Não vil, não ignavo, 
Mas forte, mas bravo, 
Serei vosso escravo: 
Aqui virei ter. 
Guerreiros, não coro 
Do pranto que choro: 
Se a vida deploro, 
Também sei morrer. 
 
 
Profª. Cristiane 
Literatura 
 
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Por que tardas, Jatir, que tanto a custo 
À voz do meu amor moves teus passos? 
Da noite a viração, movendo as folhas, 
Já nos cimos do bosque rumoreja. 
 
Eu sob a copa da mangueira altiva 
Nosso leito gentil cobri zelosa 
Com mimoso tapiz de folhas brandas, 
Onde o frouxo luar brinca entre flores. 
 
Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco, 
Já solta o bogari mais doce aroma! 
Como prece de amor, como estas preces, 
No silêncio da noite o bosque exala. 
 
Brilha a lua no céu, brilham estrelas, 
Correm perfumes no correr da brisa, 
A cujo influxo mágico respira-se 
Um quebranto de amor, melhor que a vida! 
 
A flor que desabrocha ao romper d'alva 
Um só giro do sol, não mais, vegeta: 
Eu sou aquela flor que espero ainda 
Doce raio do sol que me dê vida. 
 
Sejam vales ou montes, lago ou terra, 
Onde quer que tu vás, ou dia ou noite, 
Vai seguindo após ti meu pensamento; 
Outro amor nunca tive: és meu, sou tua! 
 
Meus olhos outros olhos nunca viram, 
Não sentiram meus lábios outros lábios, 
Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas 
A arazoia na cinta me apertaram.Do tamarindo a flor jaz entreaberta, 
Já solta o bogari mais doce aroma 
Também meu coração, como estas flores, 
Melhor perfume ao pé da noite exala! 
 
Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes 
À voz do meu amor, que em vão te chama! 
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil 
A brisa da manhã sacuda as folhas! 
 
2. O ultrarromantismo byronista 
A luz da noite faz mais belas as 
mulheres e as estrelas. 
 
Lord Byron 
A segunda geração é marcada por um Romantismo egótico 
de extremo subjetivismo: 
Dizia Obermann, no Senancour: “Eu sinto: eis a única 
palavra do homem que exige verdades. Eu sinto, eu existo 
para me consumir em desejos indomáveis, para me 
embebedar na sedução de um mundo fantástico, para viver 
aterrado com o seu voluptuoso engano.” Ora, a oclusão do 
sujeito em si próprio é detectável por uma fenomenologia 
bem conhecida: o devaneio, o erotismo difuso ou 
obsessivo, a melancolia, o tédio, o namoro com a imagem 
da morte, a depressão, a autoironia masoquista: 
desfigurações todas de um desejo de viver que não logrou 
sair do labirinto onde se aliena o jovem crescido em um 
meio romântico-burguês em fase de estagnação. 
 
6 Comer, beber e amar; de que nos pode valer a quietude? 
Alfredo Bosi, op. cit., p. 120. 
Dentre os poetas dessa geração, o que mais se destaca 
no Brasil sem dúvida é Álvares de Azevedo. Não raro 
ambíguo – como qualquer adolescente, já que morreu aos 
20 anos, Azevedo mostra-se dilacerado entre a ternura e a 
perversidade, a idealização e a degradação da mulher. 
Demonstrava um cansaço precoce de viver e uma nostalgia 
do vício e da revolta, corporificando, assim, as várias 
tendências psíquicas de sua geração. Nele, o sonho 
aparece tão nítido quanto a realidade, e a fantasia é mais 
viva que a experiência. 
 
“Spleen” e Charutos 
III Vagabundo 
Eat, drink, and love; what can the rest avail us?6 
Byron. Don Juan. 
Eu durmo e vivo ao sol como um cigano, 
Fumando meu cigarro vaporoso; 
Nas noites de verão namoro estrelas; 
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso! 
 
Ando roto, sem bolsos nem dinheiro; 
Mas tenho na viola uma riqueza: 
Canto à lua de noite serenatas, 
E quem vive de amor não tem pobreza. 
 
Não invejo ninguém, nem ouço a raiva 
Nas cavernas do peito, sufocante, 
Quando a noite na treva em mim se entornam 
Os reflexos do baile fascinante. 
 
Namoro e sou feliz nos seus amores 
Sou garboso e rapaz... Uma criada 
Abrasada de amor por um soneto 
Já um beijo me deu subindo a escada... 
 
Oito dias lá vão que ando cismado 
Na donzela que ali defronte mora. 
Ela ao ver-me sorri tão docemente! 
Desconfio que a moça me namora!... 
Tenho por meu palácio as longas ruas; 
Passeio a gosto e durmo sem temores; 
Quando bebo, sou rei como um poeta, 
E o vinho faz sonhar com os amores. 
 
O degrau das igrejas é meu trono, 
Minha pátria é o vento que respiro, 
Minha mãe é a lua macilenta, 
 
Profª. Cristiane 
Literatura 
 
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E a preguiça a mulher por quem suspiro. 
 
Escrevo na parede as minhas rimas, 
De painéis a carvão adorno a rua; 
Como as aves do céu e as flores puras 
Abro meu peito ao sol e durmo à lua. 
 
Sinto-me um coração de lazzaroni; 
Sou filho do calor, odeio o frio, 
Não creio no diabo nem nos santos... 
Rezo a Nossa Senhora e sou vadio! 
 
Ora, se por aí alguma bela 
Bem doirada e amante da preguiça 
Quiser a nívea mão se unir à minha, 
Há de achar-me na Sé, domingo, à Missa. 
 
 Álvares de Azevedo, Lira dos Vinte Anos. 
 Rio de Janeiro: Garnier, 1994. 
 
São três as publicações de Álvares de Azevedo: a peça 
teatral Macário, o livro de contos Noites na taverna e a 
principal delas, o livro de poemas Lira dos vinte anos. 
Exemplar por demonstrar as contradições do poeta7, é 
dividida em duas partes: a primeira representada por Ariel, 
entidade mitológica que representa a pureza e o espírito 
angélico, e a segunda, por Caliban, entidade mitológica que 
representa a zombaria e o espírito satânico. Esses 
contrastes são a grande qualidade do estilo do jovem poeta, 
que deliberadamente buscava essa dicotomia. No prefácio 
à segunda parte, adverte o leitor: “Cuidado, leitor, ao voltar 
esta página! Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico. 
Vamos entrar num mundo novo, terra fantástica. Quase que 
depois de Ariel, esbarramos em Caliban. A razão é simples. 
É que a unidade deste livro funde-se numa binomia. Duas 
almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais 
ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira 
medalha de duas faces.”8 
Vamos, então, conhecer essa binomia. Os temas 
escolhidos aqui foram a morte e a mulher. 
 
MORTE 
Ariel - Lembrança de morrer 
No more! o never more! 
SHELLEY 
 
Quando em meu peito rebentar-se a fibra, 
Que o espírito enlaça à dor vivente, 
Não derramem por mim nenhuma lágrima 
Em pálpebra demente. 
 
E nem desfolhem na matéria impura 
A flor do vale que adormece ao vento: 
Não quero que uma nota de alegria 
Se cale por meu triste passamento. 
 
Eu deixo a vida como deixa o tédio 
Do deserto, o poento caminheiro 
 
-- Como as horas de um longo pesadelo 
Que se desfaz ao dobre de um sineiro; 
 
 
7 Apesar de, a partir da edição de 1853, ter sido dividida em 
três. 
Como o desterro de minh’alma errante, 
Onde fogo insensato a consumia: 
Só levo uma saudade... é desses tempos 
Que amorosa ilusão embelecia. 
 
Só levo uma saudade... é dessas sombras 
Que eu sentia velar nas noites minhas... 
De ti, ó minha mãe, pobre coitada, 
Que por minha tristeza te definhas! 
 
De meu pai... de meus únicos amigos, 
Pouco – bem poucos... e que não zombavam 
Quando, em noites de febre endoudecido, 
Minhas pálidas crenças duvidavam. 
 
Se uma lágrima as pálpebras me inunda, 
Se um suspiro nos seios treme ainda, 
É pela virgem que sonhei... que nunca 
Aos lábios me encostou a face linda! 
 
Só tu à mocidade sonhadora 
Do pálido poeta deste flores... 
Se viveu, foi por ti! e de esperança 
De na vida gozar de teus amores. 
 
Beijarei a verdade santa e nua, 
Verei cristalizar-se o sonho amigo... 
Ó minha virgem dos errantes sonhos, 
Filha do céu, eu vou amar contigo! 
 
Descansem o meu leito solitário 
Na floresta dos homens esquecida, 
À sombra de uma cruz, e escrevam nela: 
Foi poeta – sonhou – e amou na vida. 
 
Sombras do vale, noites da montanha 
Que minha alma cantou e amava tanto, 
Protegei o meu corpo abandonado, 
E no silêncio derramai-lhe canto! 
 
Mas quando preludia ave d’aurora 
E quando à meia-noite o céu repousa, 
Arvoredos do bosque, abri os ramos... 
Deixai a lua pratear-me a lousa! 
 
Caliban - O poeta moribundo 
Poetas! amanhã ao meu cadáver 
Minha tripa cortai mais sonorosa!... 
Façam dela uma corda e cantem nela 
Os amores da vida esperançosa! 
 
Cantem esse verão que me alentava... 
O aroma dos currais, o bezerrinho, 
As aves que na sombra suspiravam, 
E os sapos que cantavam no caminho! 
 
Coração, por que tremes? Se esta lira 
Nas minhas mãos sem força desafina, 
Enquanto ao cemitério não te levam, 
Casa no marimbau a alma divina! 
 
Eu morro qual nas mãos da cozinheira 
O marreco piando na agonia... 
Como o cisne de outrora... que gemendo 
Entre os hinos de amor se enternecia. 
 
 
8 Álvares de Azevedo, op. cit., p. 85. 
 
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Coração, por que tremes? Vejo a morte, 
Ali vem lazarenta e desdentada... 
Que noiva!... E devo então dormir com ela? 
Se ela ao menos dormisse mascarada! 
 
Que ruínas! que amor petrificado! 
Tão antideluviano e gigantesco! 
Ora, façam ideia que ternuras 
Terá essa lagarta posta ao fresco! 
 
Antes mil vezes que dormir com ela. 
Que dessa fúria o gozo, amor eterno 
Se ali não há também amor de velha, 
Deem-me as caldeiras do terceiro inferno! 
 
No inferno estão suavíssimas belezas, 
Cleópatras, Helenas, Eleonoras; 
Lá se namora em boa companhia, 
Não pode haver inferno com Senhoras! 
 
Se é verdade que os homens gozadores, 
Amigos deno vinho ter consolos, 
Foram com Satanás fazer colônia, 
Antes lá que no Céu sofrer os tolos! 
 
Ora! e forcem um’alma qual a minha, 
Que no altar sacrifica ao Deus-Preguiça, 
A cantar ladainha eternamente 
E por mil anos ajudar a Missa! 
 
MULHER 
Ariel - Pálida à luz 
Pálida à luz da lâmpada sombria, 
Sobre o leito de flores reclinada, 
Como a lua por noite embalsamada, 
Entre as nuvens do amor ela dormia! 
 
Era a virgem do mar, na escuma fria 
Pela maré das águas embalada! 
Era um anjo entre nuvens d’alvorada 
Que em sonhos se banhava e se esquecia! 
Era mais bela! o seio palpitando 
Negros olhos as pálpebras abrindo 
Formas nuas no leito resvalando 
 
Não te rias de mim, meu anjo lindo! 
Por ti – as noites eu velei chorando, 
Por ti – nos sonhos morrerei sorrindo! 
Caliban - É ela! É ela! É ela! É ela! 
É ela! É ela! – murmurei tremendo, 
E o eco ao longe murmurou – é ela! 
Eu a vi... minha fada aérea e pura – 
A minha lavadeira na janela! 
Dessas águas-furtadas onde eu moro 
Eu a vejo estendendo no telhado 
Os vestidos de chita, as saias brancas; 
Eu a vejo e suspiro enamorado! 
Esta noite eu ousei mais atrevido 
Nas telhas que estalavam nos meus passos 
Ir espiar seu venturoso sono, 
 
9 Alfredo Bosi, op. cit., p. 132. 
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços! 
Como dormia! Que profundo sono!... 
Tinha na mão o ferro do engomado... 
Como roncava maviosa e pura!... 
Quase caí na rua desmaiado! 
Afastei a janela, entrei medroso... 
Palpitava-lhe o seio adormecido... 
Fui beijá-la... roubei do seio dela 
Um bilhete que estava ali metido... 
Oh! de certo... (pensei) é doce página 
Onde a alma derramou gentis amores; 
São versos dela... que amanhã de certo 
Ela me enviará cheios de flores... 
Tremi de febre! 
Venturosa folha! 
Quem pousasse contigo neste seio! 
Como Otelo beijando a sua esposa, 
Eu beijei-a a tremer de devaneio... 
É ela! É ela! – repeti tremendo; 
Mas cantou nesse instante uma coruja... 
Abri cioso a página secreta... 
Oh! Meu Deus! Era um rol de roupa suja! 
Mas se Werther morreu por ver Carlota 
Dando pão com manteiga às criancinhas 
Se achou-a assim mais bela – eu mais te adoro 
Sonhando-te a lavar as camizinhas! 
É ela! É ela! meu amor, minh’alma, 
A Laura, a Beatriz que o céu revela... 
É ela! É ela! – murmurei tremendo, 
E o eco ao longe suspirou – é ela! 
3. O condoreirismo 
A poesia da terceira geração é chamada condoreira em 
referência ao pássaro condor, que, como ela, busca as 
alturas para voar. Esse momento poético coincide “com o 
amadurecer de uma situação nova: a crise do Brasil 
puramente rural; o lento mas firme crescimento da cultura 
urbana, dos ideais democráticos e, portanto, o despontar de 
uma repulsa pela moral do senhor-e-servo, que poluía as 
fontes da vida familiar e social do Brasil Império”.9 Retórica, 
repleta de hipérboles e antíteses, na poesia desse terceiro 
momento destacam-se os temas sociais e políticos e, 
principalmente, a abolição da escravatura e a apologia da 
república. 
Castro Alves é o poeta dos escravos; é o primeiro a 
cantar em voz alta o sofrimento do negro e a lutar por sua 
liberdade. Dotado de uma arte revolucionária e de uma 
poesia feita para ser declamada, exagera propositalmente 
na construção de imagens hiperbólicas e metafóricas e 
também na pontuação: em seus poemas transbordam 
exclamações, travessões e reticências, tudo para alcançar 
o público e convencê-lo pela oratória. É mestre na arte de 
captar plástica e musicalmente o ambiente, como poucos 
parnasianos posteriormente fariam. Veja o que é 
considerado um dos mais belos poemas descritivos da 
língua portuguesa. 
 
 
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Castro Alves 
Crepúsculo sertanejo 
 
A tarde morria. Nas águas barrentas 
As sombras das margens deitavam-se longas; 
Na esguia atalaia das árvores secas 
Ouvia-se um triste chorar de arapongas. 
 
A tarde morria! Dos ramos, das lascas, 
Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos 
As trevas rasteiras com o ventre por terra 
Saíam, quais negros, cruéis leopardos. 
 
A tarde morria! Mais funda nas águas 
Lavava-se a galha do escuro ingazeiro… 
Ao fresco arrepio dos ventos cortantes 
Em músico estalo rangia o coqueiro. 
 
Sussurro profundo! Marulho gigante! 
Tal vez um silêncio!… Tal vez uma orquestra… 
Da folha, do cálix, das asas, do inseto… 
Do átomo à estrela… do verme – à floresta!… 
As garças metiam o bico vermelho 
Por baixo das asas – da brisa ao açoite: 
E a terra na vaga de azul do infinito 
Cobria a cabeça co’as penas da noite! 
 
Somente por vezes, dos jungles das bordas 
Das golfas enormes daquela paragem, 
Erguia a cabeça, surpreso inquieto, 
Coberto de limos – um touro selvagem. 
 
Então as marrecas, em torno boiando, 
O voo encurvavam medrosas, à-toa… 
E o tímido bando pedindo outras praias 
Passava gritando por sobre a canoa!… 
 
A mulher é captada por Castro Alves diferentemente de 
Álvares de Azevedo. Agora, ela é carnalizada e sensual. O 
também jovem poeta, morto aos 25 anos apenas, trata a 
mulher com intensidade na expressão do sentimento; suas 
relações visivelmente se realizam no plano físico. Os 
poemas transpostos a seguir são parte do livro Espumas 
flutuantes (1870). Note a influência do ultrarromantismo de 
Álvares de Azevedo em “Mocidade e morte”. 
Adormecida 
Uma noite, eu me lembro... Ela dormia 
Numa rede encostada molemente... 
Quase aberto o roupão... solto o cabelo 
E o pé descalço do tapete rente. 
 
‘Stava aberta a janela. Um cheiro agreste 
Exalavam as silvas da campina... 
E ao longe, um pedaço do horizonte, 
Via-se a noite plácida e divina. 
 
De um jasmineiro os galhos encurvados, 
Indiscretos entravam pela sala, 
E de leve oscilando ao tom das auras, 
Iam na face trêmulos – beijá-la. 
 
Era um quadro celeste!... A cada afago 
Mesmo em sonhos a moça estremecia... 
Quando ela serenava... a flor beijava-a... 
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia... 
Dir-se-ia que naquele doce instante 
Brincavam duas cândidas crianças... 
A brisa, que agitava as folhas verdes, 
Fazia-lhe ondear as negras tranças! 
 
E o ramo ora chegava ora afastava-se... 
Mas quando a via despeitada a meio, 
P’ra não zangá-la... sacudia alegre 
Uma chuva de pétalas no seio... 
 
Eu, fitando esta cena, repetia 
Naquela noite lânguida e sentida: 
“Ó flor! – tu és a virgem das campinas! 
“Virgem! – tu és a flor da minha vida!...” 
 
Mocidade e morte 
Oh! eu quero viver, beber perfumes 
Na flor silvestre, que embalsama os ares; 
Ver minh’alma adejar pelo infinito, 
Qual branca vela n’amplidão dos mares. 
No seio da mulher há tanto aroma... 
Nos seus beijos de fogo há tanta vida... 
– Árabe errante, vou dormir à tarde 
À sombra fresca da palmeira erguida. 
 
Mas uma voz responde-me sombria: 
Terás o sono sob a lájea fria. 
 
Morrer... quando este mundo é um paraíso, 
E a alma um cisne de douradas plumas: 
Não! o seio da amante é um lago virgem... 
Quero boiar à tona das espumas. 
Vem! formosa mulher – camélia pálida, 
Que banharam de pranto as alvoradas, 
Minh’alma é a borboleta, que espaneja 
O pó das asas lúcidas, douradas... 
E a mesma voz repete-me terrível, 
Com gargalhar sarcástico: – impossível! 
 
Mas talvez seu poema mais tocante seja “O navio 
negreiro”, parte de Os escravos (1883), em que se descreve 
a condição degradante do negro no transporte da África 
para o Brasil. Note “a pressão vigorosa da palavra, contida 
pela cutícula brilhante duma forma admiravelmente 
elaborada – quer nas imagens visuais, de expressividade 
poderosa e simples, [...] quer nos vocativos (ao albatroz, 
 
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águia do oceano”; aos “heróis do Novo Mundo”), quer nos 
desenvolvimentos patéticos”.10 
O navio negreiro — tragédia no mar [excertos] 
IV 
Era um sonho dantesco... o tombadilho 
Que das luzernas avermelha o brilho. 
Em sangue a se banhar.Tinir de ferros... estalar de açoite... 
Legiões de homens negros como a noite, 
Horrendos a dançar... 
 
Negras mulheres, suspendendo às tetas 
Magras crianças, cujas bocas pretas 
Rega o sangue das mães: 
Outras moças, mas nuas e espantadas, 
No turbilhão de espectros arrastadas, 
Em ânsia e mágoa vãs! 
 
E ri-se a orquestra irônica, estridente... 
E da ronda fantástica a serpente 
Faz doudas espirais... 
Se o velho arqueja, se no chão resvala, 
Ouvem-se gritos... o chicote estala. 
E voam mais e mais... 
 
Presa nos elos de uma só cadeia, 
A multidão faminta cambaleia, 
E chora e dança ali! 
Um de raiva delira, outro enlouquece, 
Outro, que martírios embrutece, 
Cantando, geme e ri! 
 
No entanto o capitão manda a manobra, 
E após fitando o céu que se desdobra, 
Tão puro sobre o mar, 
Diz do fumo entre os densos nevoeiros: 
“Vibrai rijo o chicote, marinheiros! 
Fazei-os mais dançar!...” 
 
E ri-se a orquestra irônica, estridente... 
E da ronda fantástica a serpente 
Faz doudas espirais... 
Qual um sonho dantesco as sombras voam!... 
Gritos, ais, maldições, preces ressoam! 
E ri-se Satanás!... 
V 
Senhor Deus dos desgraçados! 
Dizei-me vós, Senhor Deus! 
Se é loucura... se é verdade 
Tanto horror perante os céus?! 
Ó mar, por que não apagas 
Co’a esponja de tuas vagas 
De teu manto este borrão?... 
Astros! noites! tempestades! 
Rolai das imensidades! 
Varrei os mares, tufão! 
 
Quem são estes desgraçados 
Que não encontram em vós 
 
10 Antonio Candido, op. cit., p. 250. 
Mais que o rir calmo da turba 
Que excita a fúria do algoz? 
Quem são? Se a estrela se cala, 
Se a vaga à pressa resvala 
Como um cúmplice fugaz, 
Perante a noite confusa... 
Dize-o tu, severa Musa, 
Musa libérrima, audaz!... 
Que com os tigres mosqueados 
Combatem na solidão. 
Ontem simples, fortes, bravos. 
Hoje míseros escravos, 
Sem luz, sem ar, sem razão... 
 
São mulheres desgraçadas, 
Como Agar o foi também. 
Que sedentas, alquebradas, 
De longe... bem longe vêm... 
Trazendo com tíbios passos, 
Filhos e algemas nos braços, 
N’alma — lágrimas e fel... 
Como Agar sofrendo tanto, 
Que nem o leite de pranto 
Têm que dar para Ismael. 
 
Lá nas areias infindas, 
Das palmeiras no país, 
Nasceram crianças lindas, 
Viveram moças gentis... 
Passa um dia a caravana, 
Quando a virgem na cabana 
São os filhos do deserto, 
Onde a terra esposa a luz. 
Onde vive em campo aberto 
A tribo dos homens nus... 
São os guerreiros ousados 
Cisma da noite nos véus... 
... Adeus, ó choça do monte, 
... Adeus, palmeiras da fonte!... 
... Adeus, amores... adeus!... 
 
Depois, o areal extenso... 
Depois, o oceano de pó. 
Depois no horizonte imenso 
Desertos... desertos só... 
E a fome, o cansaço, a sede... 
Ai! quanto infeliz que cede, 
E cai p’ra não mais s’erguer!... 
Vaga um lugar na cadeia, 
Mas o chacal sobre a areia 
Acha um corpo que roer. 
 
Ontem a Serra Leoa, 
A guerra, a caça ao leão, 
O sono dormido à toa 
Sob as tendas d’amplidão! 
Hoje... o porão negro, fundo, 
Infecto, apertado, imundo, 
Tendo a peste por jaguar... 
E o sono sempre cortado 
Pelo arranco de um finado, 
E o baque de um corpo ao mar... 
 
Ontem plena liberdade, 
A vontade por poder... 
 
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Hoje... cúm’lo de maldade, 
Nem são livres p’ra morrer.. 
Prende-os a mesma corrente 
— Férrea, lúgubre serpente — 
Nas roscas da escravidão. 
E assim zombando da morte, 
Dança a lúgubre coorte 
Ao som do açoute... Irrisão!... 
 
Senhor Deus dos desgraçados! 
Dizei-me vós, Senhor Deus, 
Se eu deliro... ou se é verdade 
Tanto horror perante os céus?!... 
Ó mar, por que não apagas 
Co’a esponja de tuas vagas 
Do teu manto este borrão? 
Astros! noites! tempestades! 
Rolai das imensidades! 
Varrei os mares, tufão!... 
O romance romântico brasileiro 
O romance é a epopeia do mundo sem deuses. 
Hegel 
 O romance é um dos gêneros literários que se 
populariza com o Romantismo, mas sua origem é anterior. 
Para Adorno, “o romance foi a forma literária específica da 
era burguesa. Em seu início, encontra-se a experiência do 
mundo desencantado no Dom Quixote, e a capacidade de 
dominar artisticamente a mera existência continuou sendo 
seu elemento. O realismo era-lhe imanente; até mesmo os 
romances que, devido ao assunto, eram considerados 
fantásticos, tratavam de apresentar seu conteúdo de 
maneira a provocar a sugestão do real. No curso de um 
desenvolvimento que remonta ao século XIX e que hoje se 
intensificou ao máximo, esse procedimento tornou-se 
questionável”.11 Hoje, devido à sua elasticidade, é difícil 
caracterizar o gênero, mas certas características devem ser 
ressaltadas. Por ser narrativo, aproxima-se da epopeia – 
daí a afirmação de Hegel, na epígrafe –, mas, 
diferentemente das grandiosas obras épicas da Era 
Clássica (Classicismo, Barroco e Arcadismo), é escrito em 
prosa e não necessariamente inclui os deuses da mitologia 
greco-romana. Como toda narrativa, tem tempo, espaço, 
personagens, foco narrativo e enredo. É mais denso que o 
conto e se caracteriza por um encadeamento de conflitos 
segundo um fio condutor: 
 
 Gênero entre todos contemplado foi o romance, “a 
revolução literária do Terceiro Estado” (Debenedetti). Os ingleses, 
que se anteciparam ao resto da Europa na marcha da Revolução 
Industrial, já dispunham, no século XVIII, de narradores de 
costumes burgueses; os românticos acrescentaram-lhe a ficção 
histórica e o romance egótico-passional, formas acessíveis ao 
novo público leitor composto principalmente de jovens e de 
mulheres, e ansioso de encontrar na literatura a projeção dos 
próprios conflitos emocionais. O romance foi, a partir do 
Romantismo, um excelente índice dos interesses da sociedade 
 
11 Theodor W. Adorno. Posição do narrador no romance 
contemporâneo. In: Notas de literatura I. São Paulo: Duas 
Cidades/Editora 34, 2003, p. 55. (Coleção Espírito Crítico.) 
culta e semiculta do Ocidente. A sua relevância no século XIX se 
compararia, hoje, à do cinema e da televisão. 
Alfredo Bosi, op. cit., p. 106. 
 No Romantismo, funciona como um contrapeso ao 
individualismo lírico que estudamos nas aulas anteriores, já 
que preserva uma atitude de objetividade e respeito ao 
material observado. No Brasil, essa tendência ao realismo 
levaria ao romance de costumes (em que se enquadra 
Memórias de um sargento de milícias, assunto da próxima 
aula) e ao romance regional, uma das especialidades de 
José de Alencar (1829-1877), o primeiro grande dentre os 
romancistas brasileiros. 
 Joaquim Manoel de Macedo (1820-1882), autor de 
A Moreninha (1844), foi quem abriu os caminhos para o 
romance no Brasil e conferiu-lhe o prestígio de que 
desfrutaria posteriormente. Seus livros serviram de 
inspiração para Alencar, que retomaria e superaria a obra 
de Macedo, “como faria Machado de Assis em relação à 
sua”12. Macedo e Alencar responderiam à exigência dos 
leitores, público constituído basicamente por “moços e 
moças de classes altas, excepcionalmente médias, 
profissionais liberais da corte ou dispersos pelas 
províncias”, em busca de entretenimento13: 
 
 Vistos sob esse ângulo, são exemplares os romances de 
Macedo e Alencar, que respondem, cada um a seu modo, às 
exigências mais fortes de tais leitores: reencontrar a própria e 
convencional realidade e projetar-se como herói ou heroína em 
peripécias com que não se depara a média dos mortais. A fusão 
de um pedestre e miúdo cotidiano com o exótico, o misterioso, o 
heroico, define bem o arco das tensões de uma sociedade estável, 
cujo ritmo vegetativo não lhe consentia projeto histórico ou modos 
de fuga além do oferecido por alguns tipos de ficção: a passadista 
e colonial [...], a indianista [...], a sertaneja. Ou trazendo o leitor de 
volta para o dia a dia das convenções, como em largos trechos de 
Macedo e do Alencarfluminense, centrados nos costumes da 
burguesia e no saboroso documento do Rio joanino que são as 
Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio. 
Alfredo Bosi, op. cit., p. 142. 
 Como se vê, muitos romances românticos 
brasileiros guiam-se pelo gosto do público, desejoso de 
emocionantes peripécias que o entretivessem e o tirassem 
de seu cotidiano medíocre. Assim, não são muitos os 
autores (e obras) que se libertaram das pressões sociais e 
psicológicas. 
 O nacionalismo, que na lírica levou essencialmente 
ao indianismo, na prosa levará também ao regionalismo. 
Bernardo Guimarães (1825-1884), Visconde de Taunay 
(1843-1899) e Franklin Távora (1842-1888) conseguiram, 
em alguns momentos, fugir às armadilhas da projeção dos 
próprios interesses e frustrações, mas, ainda assim, não 
alcançaram a qualidade estética que depois alcançariam os 
modernistas da segunda geração. Focalizaremos dois 
autores do romance romântico que se destacam dos 
demais: José de Alencar e Manoel Antônio de Almeida. 
12 Antonio Candido. Formação da literatura brasileira, v. 2. 8 
ed. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Itatiaia, 1997, p. 191. 
13 Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. 3 ed. 
São Paulo: Cultrix, p. 141-142. 
 
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− José de Alencar 
 
 Maior nome da prosa romântica brasileira, cultivou 
o teatro, o romance, a crônica, obras críticas e uma 
autobiografia: Como e por que sou romancista (1873). Num 
de seus últimos trabalhos, procurou organizar sua obra em 
categorias, para justificar seu projeto nacionalista. 
Adotaremos a própria divisão temática e periódica de 
Alencar para seus romances, encontrada em sua 
apresentação à obra Sonhos d’Ouro14. 
a. Romances indianistas 
São as lendas e mitos da terra selvagem e conquistada; 
são as tradições que embalaram a infância do povo, e ele 
escutava como filho a quem a mãe acalenta no berço com 
as canções da pátria, que abandonou. Iracema pertence a 
essa literatura primitiva, cheia de santidade e enlevo, para 
aqueles que venceram na terra da pátria a mãe fecunda – 
alma mater –, e não enxergam nela o chão onde pisam. 
Exemplos: Ubirajara e Iracema. 
b. Romances históricos 
Representa o consórcio do povo invasor com a terra 
americana, que dele recebia a cultura, e lhe retribuía nos 
eflúvios de sua natureza virgem e nas reverberações de um 
solo esplêndido. [...] É a gestação lenta do povo americano, 
que devia sair da estirpe lusa, para continuar no novo 
mundo as gloriosas tradições de seu projenitor. Exemplos: 
O Guarani e As minas de prata. 
c. Romances regionais (ou sertanistas) 
Onde não se propaga com rapidez a luz da civilização, 
que de repente cambia a cor local, encontra-se ainda em 
sua pureza original, sem mescla, esse viver singelo de 
nosso país, tradições, costumes e linguagem, com um 
sainete todo brasileiro. Há não somente no país, como nas 
grandes cidades, até mesmo na corte, desses recantos, 
que guardam intacto, ou quase, o passado. Exemplos: O 
tronco do ipê, Til, O gaúcho e O sertanejo. 
 
 
14 Todos os trechos citados foram extraídos de Alfredo Bosi, op. 
cit. 
d. Romances urbanos 
Compõem perfis femininos e quadros da sociedade 
para pintar a elite carioca do século XIX. Detêm-se, em 
vários momentos, na crítica à civilização entregue aos 
interesses econômicos. Exemplos: Lucíola e Senhora. 
Para Antonio Candido, porém, a divisão que se deve 
fazer na obra de Alencar é outra. Haverá pelo menos três 
alencares: 
Alencar dos rapazes 
As personagens são heróis idealizados, puros, 
inteiriços, que não se deixam abater por monstros, vilões ou 
perigos (ou se abatem apenas aparentemente para logo 
recuperar sua grandeza de caráter e soberania de atitudes) 
e ascendem como se numa apoteose para o gran finalle, 
sem o apelo necessário do final feliz. Mundo de grandezes 
épicas e lógicas arbitrárias, atrairia o gosto daqueles que 
buscam o entretenimento por meio de aventuras. O herói 
Peri de O Guarani se encaixa perfeitamente aqui. É também 
o caso de O gaúcho, O sertanejo, Ubirajara e As minas de 
prata. 
Alencar das moças 
As personagens são mulheres cândidas e moços 
impecavelmente bons, “que dançam aos olhos do leitor uma 
branda quadrilha, ao compasso do dever e da consciência, 
mais fortes que a paixão. As regras desse jogo bem 
conduzido iniciam-se com um obstáculo que ameace a 
união dos namorados, sem contudo destruí-la: tuberculose, 
honra comercial, erro sentimental, fedelidade ao passado, 
respeito à palavra. Em todos esse livros [...] o fulcro de 
energia narrativa é sempre a mulher, desde as 
evanescentes e apagadas, como a viuvinha, até a 
imperiosa Diva, que procura compensar a fraqueza e 
desconfiança da menina feia, tornada de repente bonita, por 
meio duma desequilibrada energia”.15 
Alencar dos adultos 
Esse é o veio mais complexo de Alencar – onde os 
outros dois se encontram –, com romances constituídos por 
elementos pouco heroicos e pouco elegantes, mas dotados 
de inegável humanidade. Além disso, aí o autor dá força 
aos problemas ocasionados pelo desnível social. Só em 
Senhora e Lucíola, por exemplo, a mulher e o homem estão 
em pé de igualdade. No primeiro, uma forte história de 
conspurcação pelo dinheiro, “resolve, mesmo, largar um 
pouco o herói e, em vez de casá-lo com a herdeira rica, o 
faz vender-se a uma esposa milionária. Fernando Seixas é 
um intelectual elegante e pobre que [...] resolve o problema 
da posição social trocando por cem contos a liberdade de 
solteiro numa transição escusa”.16 
Talvez a vertente mais rica, no sentido de nos conduzir 
à incessante busca romântica da identidade nacional, seja 
a indianista. 
 
 
15 Antonio Candido, op. cit., p. 203. 
16 Antonio Candido, op. cit., p. 205. 
 
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O indianismo na obra de Alencar 
À primeira vista, o tempo de ruptura que moldou o 
primeiro quartel do século XIX no Brasil exigiria uma quebra 
entre a nação e a colônia e uma busca da afirmação do ser 
brasileiro em contraposição ao português, o americano 
versus o europeu. Sob essa ótica, poderíamos esperar que 
o índio ocupasse no imaginário pós-colonial o lugar do 
rebelde, mas não foi exatamente o que aconteceu com o 
autor de Senhora. Talvez por ter sido o primeiro a explorar 
na prosa mais profundamente o indianismo e não ter outro 
autor em quem se inspirar, o índio de Alencar entra em 
comunhão com o colonizador: não há um universo próprio 
do índio brasileiro, mas uma fusão dele com o fantasioso 
imaginário romântico medieval europeu. O heroísmo, a 
beleza e a naturalidade do nosso índio agregam-se ao 
poder do conquistador. Para Alfredo Bosi, o destino do 
nativo era tratado como sacrifício espontâneo e sublime: 
 
O mito alencariano reúne, sob a imagem comum do herói, o 
colonizador, tido como generoso feudatário, e o colonizado, visto, 
ao mesmo tempo, como súdito fiel e bom selvagem. Na outra face, 
que contempla a invenção, traz o mito signos produzidos conforme 
uma semântica analógica, sendo um processo figural, uma 
expressão romanesca, uma imagem poética. Na medida em que 
alcança essa qualidade propriamente estética, o mito resiste a 
integrar-se, sem mais, nesta ou naquela ideologia. 
 
Alfredo Bosi. Dialética da colonização. 2 ed. 
São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 180. 
 
Diferentemente de Gonçalves Dias, que, quase 
apocalipticamente, vê com terror a aculturação de um povo, 
Alencar volta-se para a construção ideal de uma nova 
nacionalidade emergida do contexto colonial, daí Bosi 
afirmar o mito sacrificial como uma interpretação 
feudalizante da nossa história. Mais uma vez, a ideologia 
do colonizador se sobrepõe à nossa visão de mundo. O 
herói selvagem inclui-se na esfera de nobreza 
conquistadora: “é como se o cronista pusesse a História 
entre parênteses e imergisse numa paisagem sem 
tempo.”17 
Peri é, ao mesmo tempo, tãonobre quanto os mais ilustres 
barões portugueses que haviam combatido em Aljubarrota ao lado 
do Mestre de Avis, o rei cavalheiro, e servo espontâneo de Cecília, 
a quem chama Uiára, isto é, senhora. Também Iracema, no 
romance homônimo, torna-se mulher de Martim Soares Moreno, 
mas a relação de sexos importa aí menos que a de domínio: a 
índia não é senhora, mas serva do conquistador, e morrerá por 
sua causa. 
Alfredo Bosi, op. cit., p. 190. 
De forma alguma, porém, esse ideário tão presente na 
obra de Alencar diminui a grandiosidade de seu estilo e a 
beleza de uma obra tão poética como Iracema. Uma das 
 
17 Alfredo Bosi, op. cit., p. 192. 
18 Narração escrita ou oral, de caráter maravilhoso, na qual os 
fatos históricos são deformados pela imaginação popular ou pela 
imaginação poética (Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Novo Aurélio 
Século XXI. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1999). 
mais comoventes obras indianistas do autor, merece um 
estudo mais detalhado. 
Iracema, a virgem dos lábios de mel 
 
 Iracema, publicado pela primeira vez em 1865, 
narra a trágica história da bela índia que, apaixonada pelo 
guerreiro branco, entrega-se a ele, paixão que a leva à 
morte. O romance é subintitulado “a lenda do Ceará”, terra 
natal de Alencar, que pretendia criar um mito de origem do 
Brasil e convencer os leitores de que a história que nos 
conta é uma lenda18. Note como, apesar de o texto ser 
narrado quase todo em terceira pessoa, a primeira surge 
em certos momentos: 
Uma história que me contaram nas lindas várzeas onde 
nasci, à calada da noite, quando a lua passeava no céu 
argenteando os campos, e a brisa rugitava nos palmares.19 
Quando se nos dirige pessoalmente, acreditamos 
que a história emula a fala de um velho índio que constrói 
sua narrativa oralmente, segundo sua tradição. Está criado 
o mito, inclusive com sustentação histórica. No argumento 
histórico que precede a narrativa, Alencar esclarece a real 
existência de personagens como Martim Soares Moreno, 
Jacaúna e Poti (batizada Antônio Filipe Camarão). A guerra 
entre os Pitiguaras (tribo que ocupava o litoral do Ceará, 
aliada dos portugueses) e os Tabajaras (tribo que habitava 
a Serra do Ibiapaba, aliada dos franceses) ocorreu no início 
do século XVII. O tempo do narrador, a atualidade de então, 
portanto, difere do tempo das personagens. 
O tempo histórico do livro abarca o início do século 
XVII. Os capítulos de II a XXXII se passam no início de 
1604, mas o primeiro capítulo não corresponde ao início da 
narrativa. Seria a fala em primeira pessoa do narrador que 
nos conta o amor da filha de Araquém, pajé da tribo dos 
Tabajaras, por Martim, primeiro colonizador português do 
Ceará. Se a ordem fosse linear, esse capítulo estaria entre 
o XXXII e o XXXIII, que começa em 1608 e termina em 
1611. Observamos também a existência de um tempo 
poético: 
19 Todos os excertos de Iracema foram extraídos de José de 
Alencar. Iracema. 2 ed. São Paulo: FTD, 1992. (Coleção Grandes 
Leituras.) 
 
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A cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim 
partiu das praias do Ceará, levando no frágil barco o filho e o cão 
fiel. (cap. XXXIII – quatro estações = quatro anos). 
Quatro luas tinham alumiado o céu depois que Iracema 
deixara os campos de Ipu; e três depois que ela habitava nas 
praias do mar a cabana de seu esposo. (cap. XXIII – luas = meses) 
Três sóis havia que Martim e Iracema estavam nas terras 
do pitiguaras, senhores das margens do Camucim e Aracaju. (cap. 
XX – sóis = dias) 
Era o tempo em que o doce aracati chega do mar e 
derrama a deliciosa frescura pelo árido sertão. A planta respira; 
um suave arrepio eriça a verde cama da floresta. (cap. VI – aracati 
é a brisa marítima que refresca as tardes de verão) 
 
 
Quadro de Antônio Parreiras mostra o sofrimento de Iracema. 
No trecho a seguir, observe como o autor descreve 
Iracema. 
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, 
nasceu Iracema. 
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais 
negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de 
palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a 
baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais 
rápida que a corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e 
as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande 
nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a 
verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas. Um dia, 
ao pino do Sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-
lhe o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da 
noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os 
úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam 
o canto. Iracema saiu do banho: o aljôfar d’água ainda a roreja, 
como à doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto 
repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e 
concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto 
agreste. A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto 
dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem 
pelo nome; outras remexe o uru de palha matizada, onde traz a 
selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá, as agulhas da 
juçara com que tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão. 
Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem 
os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se. Diante 
dela e todo a contemplá-la está um guerreiro estranho, se é 
guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o 
branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das 
águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o 
corpo. Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha 
embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do 
desconhecido. De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz 
da espada; mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião 
de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu 
mais d’alma que da ferida. O sentimento que ele pôs nos olhos e 
no rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a 
uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa que 
causara. A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e 
compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a 
flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo 
a ponta farpada. 
O guerreiro falou: 
— Quebras comigo a flecha da paz? 
— Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus 
irmãos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro 
guerreiro como tu? 
— Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que 
teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus. 
— Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, 
senhores das aldeias, e à cabana de Araquém, pai de Iracema. 
 
A idealização da heroína, que a tantos leitores 
incomoda, é, na verdade, um dos pontos altos da obra. Note 
que sua beleza está sempre vinculada a elementos da 
natureza brasileira: seus cabelos são comparados à asa da 
graúna; seu talhe, ao da palmeira; seu sorriso, ao favo da 
jati, e assim por diante. Não é à toa: a obra é uma alegoria 
do processo de colonização da América: se Iracema 
representa a natureza americana, Martim (derivado de 
Marte, deus da guerra) simboliza o guerreiro europeu que 
desvirgina as matas nativas. Para a mata virgem, um fim 
trágico. Da união de ambos, porém, decorre o nascimento 
de Moacir, o filho da dor, o primeiro cearense; por extensão, 
o primeiro brasileiro. É interessante perceber a influência 
dos mitos bíblicos na construção da obra: “filho de minha 
dor” é também o nome que Raquel, mulher do patriarca 
Jacó, dá a seu último filho – em hebraico, Benoni. Os filhos 
de Jacó originariam as tribos que formam a nação de Israel, 
assim como o filho de Iracema e Martim dá origem aos 
brasileiros. Afrânio Coutinho, estudioso da nossa literatura,chegou a afirmar que até mesmo a escolha do nome da 
protagonista tem um sentido alegórico: Iracema é 
anagrama da palavra América. É importante ressaltar que 
a heroína não é submissa ao colonizador; ao contrário, é 
ela que toma a iniciativa do ato amoroso. O mito sacrificial 
proposto por Bosi mostra--se na entrega pacífica da índia 
ao colonizador. 
A crítica ainda não decidiu se Iracema é um poema 
em prosa ou uma prosa poética. É unânime, porém, que a 
narrativa é lírica não só na temática, mas também na forma. 
A poesia está presente tanto na escolha das imagens como 
no ritmo cadenciado que, em alguns momentos, apresenta-
se em redondilhos: 
 
Verdes mares bravios 
de minha terra natal, 
onde canta a jandaia 
nas frondes da carnaúba. 
É notável o tom de oralidade que perpassa a obra. 
A linguagem do livro é rica também na influência do Tupi, 
seja na escolha dos vocábulos, nas construções frasais ou 
nas aliterações e assonâncias. Haroldo de Campos 
observou a recorrência de rimas com vogais abertas, típicas 
da língua indígena. Observe no trecho a sonoridade 
alcançada a partir da repetição do /a/: 
 
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A graciosa ará, sua companheira e amiga, brica junto 
dela. Às vezes sobe os ramos da árvore e de lá chama a virgem 
pelo nome. 
Não é à toa que Machado de Assis, aos 27 anos, 
escreveu sobre Iracema no Diário do Rio de Janeiro, em 
1886: “Tal é o livro do Sr. José de Alencar, fruto do estudo 
e da meditação, escrito com sentimento e consciência [...] 
Há de viver este livro, tem em si as forças que resistem ao 
tempo, e dão plena fiança do futuro [...] Espera-se dele 
outros poemas em prosa. Poema lhe chamamos este, sem 
curar de saber se é antes uma lenda, se um romance: o 
futuro chamar-lhe-á obra-prima.” 
A obra realmente alcançou a atualidade. O 
Modernismo retomará a busca da identidade nacional e o 
índio voltará a aparecer, não mais idealizado. 
 
A excentricidade de Manuel Antônio de Almeida, um 
brasileiro20 
Talvez circunstâncias de então marcadas pela sentimentalidade 
expliquem certa indiferença pela publicação em folhetins [...] das 
Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de 
Almeida. Era um desvio da proposta bem sucedida, quanto ao 
acatamento público, do romance de Macedo. [...] Disfarçaria 
sobretudo a sentimentalidade subordinada à perspectiva do triunfo 
do primeiro amor. Ao mesmo tempo, manter-se-ia fiel a esta tese 
romântica, que também atribuía à pureza do amor um poder 
reabilitador e reintegrador numa sociedade em que o sistema ético 
se impunha fortemente disciplinador. 
José Aderaldo Castello, A literatura brasileira – origens e unidade. Vol I, 
São Paulo: Edusp, 1999, p. 238. 
 
Manuel Antônio de Almeida (1830-1861) e as suas 
Memórias de um sargento de milícias (1852 a 1853) 
passaram despercebidos pela crítica literária durante 
muitos anos, talvez por destoarem da sentimentalidade 
predominante nas obras do período. As leituras históricas 
que se fazem sobre as obras literárias acabam 
determinando aquelas que serão (ou não) valorizadas. 
Assim como as Memórias, essa revalorização por parte da 
 
20 Pseudônimo utilizado pelo autor na primeira publicação das 
Memórias de um sargento de milícias. 
21 Antonio Candido e José Aderaldo Castello, Presença da Literatura 
Brasileira – das origens ao Realismo. 2 vol. 13 ed. Rio de Janeiro: 
Bertrand Brasil, 2008, p. 210 
crítica especializada também ocorreu com livros de 
inegável importância como A divina comédia de Dante 
Alighieri ou Dom Quixote de Cervantes. Assim, diversas e 
sucessivas interpretações das memórias de um sargento de 
milícias esclarecem para nós não apenas a razão da sua 
importância nos dias de hoje, mas também a visão do 
homem do período em que a leitura foi traçada. 
Originalmente publicadas em folhetins no Correio 
Mercantil, as Memórias apresentam situações amorais, 
bem humoradas e são marcadas por um estilo coloquial e 
despojado, desinflado dos floreios românticos 
característicos das obras publicadas na mesma época. 
Isentas de traços idealizantes e repletas de tipos populares 
caricaturados, têm como autor um médico que nunca 
exerceu a profissão e que trabalhou toda a vida como 
jornalista; um escritor ausente de compromissos literários 
ou ambições de reconhecimento. A fluidez do discurso, que 
produz um efeito de espontaneidade e o talento narrativo 
de Manuel Antônio, reconhecidos anos mais tarde, 
tornaram as Memórias um dos romances mais estimados 
da nossa literatura. 
A obra nos oferece uma representação da 
sociedade carioca, que muito nos diz sobre a época de D. 
João VI no Brasil, através da história de Leonardo, “filho de 
uma pisadela e um beliscão”, conforme explicam os críticos 
Antonio Candido e José Aderaldo Castello21: 
 
O meirinho22 Leonardo Pataca e a saloia23 Maria da 
Hortaliça, vindos juntos de Portugal, têm um filho ilegítimo, 
Leonardo, personagem central do livro. Separados os pais, o 
menino é criado pelo barbeiro seu padrinho (o Compadre). As 
personagens, e sobretudo ele, se envolvem em toda sorte de 
ocorrências pitorescas, que fazem da narrativa uma sucessão 
vertiginosa de episódios e vão servindo ao autor para descrever 
os tipos, ambientes e costumes do Rio, na primeira metade do 
século XIX. Leonardo acaba alistado na tropa em castigo das suas 
malandragens, mas chega a sargento e consegue passar para a 
reserva. Casa-se então com o seu amor de infância, Luisinha, já 
viúva, pois esta havia sido obrigada pela tia que a criara, D. Maria, 
a desposar um intrigante. 
A partir da história do protagonista e de seu pai, 
também Leonardo, anti-heróis que estão muito longe de ser 
vilões, o autor relaciona o tempo das memórias (início do 
século XIX) com o tempo presente (meados do mesmo 
século), tão distantes entre si, mas que se fundem num 
mesmo espaço e que, por isso, se completam e acabam por 
construir um mesmo quadro contemporâneo. Assim, é um 
romance também representativo da narrativa urbana, 
característica, como vimos no caderno anterior, de autores 
românticos como José de Alencar. 
Por não ser, porém, uma obra típica da época, há 
uma discussão que perpassa os críticos que se debruçaram 
sobre as Memórias: seriam elas uma antecipação do 
Realismo24 em pleno Romantismo? 
 
22 Funcionário judicial, correspondente ao atual oficial de 
justiça. 
23 Camponesa dos arredores de Lisboa. 
24 Realismo: escola literária que sucede o Romantismo, antirromântica 
por excelência, que estudaremos com mais propriedade nas próximas 
aulas. 
 
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Romântico ou realista? 
No excerto a seguir, o narrador oferece a descrição de 
Luisinha, par romântico do protagonista do livro, Leonardo. 
Observe a maneira como ela é caracterizada: 
XVIII – Amores (excerto) 
 Depois de mais algumas palavras trocadas entre os dois, 
D. Maria chamou por sua sobrinha, e esta apareceu. Leonardo 
lançou-lhe os olhos, e a custo conteve o riso. Era a sobrinha de D. 
Maria já muito desenvolvida, porém que, tendo perdido as graças 
de menina, ainda não tinha adquirido a beleza de moça: era alta, 
magra, pálida: andava com o queixo enterrado no peito, trazia as 
pálpebras sempre baixas, e olhava a furto; tinha os braços finos e 
compridos; o cabelo, cortado, dava-lhe apenas até o pescoço, e 
como andava mal penteada e trazia a cabeça sempre baixa, uma 
grande porção lhe caía sobre a testa e olhos como uma viseira. 
Trajava nesse dia um vestido de chita roxa muito comprido, quase 
sem roda, e de cintura muito curta; tinha ao pescoço um lenço 
encarnado de Alcobaça. 
Por mais que o compadre a questionasse, apenas 
murmurou algumas frases ininteligíveis com voz rouca e sumida. 
Mal a deixaram livre, desapareceu sem olhar para ninguém. 
Vendo-a ir-se, Leonardo tornou a rir-se interiormente. 
 
Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias. 
 31 ed. São Paulo:Ática, 2004, p. 66. 
Note que, a despeito de ter sido descrita numa época de 
pleno vigor romântico, a heroína de idealizada não tem nada. 
Diferentemente de outros autores de seu tempo, Manuel Antônio 
de Almeida não se enquadra completamente em padrões 
estéticos e em racionalizações ideológicas recorrentes no Brasil 
da primeira metade do século XIX: em sua obra não há indianismo, 
nacionalismo, grandeza do sofrimento, redenção pela dor etc. 
Apesar disso, cabe ainda interpretá-lo como um autor romântico. 
Antonio Candido justifica: 
Há no Romantismo certas obras de ficção que 
poderíamos chamar de excêntricas em relação à corrente formada 
pelas outras. Num conjunto de livros que exprimem, de modo mais 
ou menos simultâneo, as diversas tendências da ficção romântica 
para o fantástico, o poético, o quotidiano, o pitoresco, o 
humorístico, elas encarnam de modo quase exclusivo uma ou 
outra dentre elas, ficando assim meio à parte, como as Memórias 
de um Sargento de Milícias. Consideremos, porém, que nem o seu 
ponderado realismo nem o satanismo d’A Noite na Taverna [de 
Álvares de Azevedo] ou a poesia em prosa de Iracema [de José 
de Alencar], se afastam ou se opõem à corrente romântica: 
apenas decantam alguns de seus aspectos. 
Antonio Candido. Formação da Literatura Brasileira, vol. 2. 8 
ed. Belo Horizonte / Rio de Janeiro: Itatiaia, 1997, p. 195. 
O crítico José Veríssimo, o primeiro a se debruçar 
seriamente sobre a obra, a comentar as Memórias de um 
sargento de milícias, em 1894, definiu-as como um 
romance de costumes caracterizado por um realismo 
antecipado, já que descreveria com a objetividade realista 
alguns lugares e cenas do Rio de Janeiro à época de D. 
 
25 Antonio Candido, “Dialética da malandragem” in O discurso e a 
cidade, 3 ed, São Paulo/ Rio de Janeiro: Duas Cidades / Ouro sobre 
Azul, 2004. 
26 Darcy Damasceno, “A afetividade linguística nas Memórias de um 
Sargento de Milícias” in Revista Brasileira de Filologia, vol. 2, tomo II, 
dez. 1956, p. 156. 
João VI. Romance de costumes, sim; mas daí a considerar 
que a obra é pré-realista é um grande exagero. 
Diversamente aos romances realistas da segunda metade 
do século XIX, as quais estudaremos com profundidade nas 
próximas aulas deste caderno, não há apregoação moral ou 
juízo de valor que envolva as Memórias ou mesmo seu 
narrador, o qual isenta as personagens de culpa. Não há 
figura que mereça censura; as boas atitudes das 
personagens equilibram-se com as más, numa espécie de 
pêndulo. Mesmo o Major Vidigal, figura histórica 
representativa da ordem e da moral, se pega em alguns 
trechos corroborando com a imoralidade. Além disso, não 
há realismo em sentido moderno; há, sim, como diz 
Candido, um “realismo espontâneo, [...] baseado na 
intuição da dinâmica social do Brasil na primeira metade do 
século XIX”25 e não em teses ou estudos científicos sobre a 
sociedade brasileira. Há o predomínio do “imaginoso e do 
improvisado sobre a retratação histórica”26. Não podemos 
também confundir uma obra realista com um retrato 
documental, e mesmo no nível do documentário as 
Memórias de um sargento de milícias são restritas, já que 
“ignora[m] as camadas dirigentes, de um lado, as camadas 
básicas, de outro”27. Realmente, o enfoque do livro é dado 
à pequena burguesia, com exceção de dois padres; de D. 
Maria e Luisinha, representantes de uma camada mais 
abastada da sociedade; de um chefe de polícia e de uma 
ou outra figura vinculada à corte. Não há, também, a 
presença do negro. Assim, sobre o aspecto documental do 
romance, Candido conclui que: 
[...] devemos começar verificando que o romance de 
Manuel Antônio de Almeida é constituído por alguns veios 
descontínuos, mas discerníveis, arranjados de maneira cuja 
eficácia varia: 1. os fatos narrados, envolvendo as personagens; 
2. Os usos e costumes descritos; 3. As observações judicativas do 
narrador e de certos personagens. Quando o autor os organiza de 
modo integrado, o resultado é satisfatório e nós podemos sentir a 
realidade. Quando a integração é menos feliz, parece-nos ver uma 
justaposição mais ou menos precária de elementos não 
suficientemente fundidos, embora interessantes e por vezes 
encantadores como quadros isolados. Neste último caso é que os 
usos e costumes aparecem como documento, prontos para a ficha 
dos folcloristas, curiosos e praticantes da petit histoire. 
Antonio Candido, “Dialética da malandragem” in O discurso e a 
cidade, 3 ed, São Paulo/ Rio de Janeiro: Duas Cidades / Ouro sobre 
Azul, 2004, p. 28. 
Para o crítico, cuja interpretação das Memórias 
utilizaremos para compor a estrutura de nossa aula, a 
primeira metade da obra teria um caráter de crônica28, 
enquanto a segunda metade seria voltada para o romance, 
já que o elemento documentário seria parte constitutiva da 
ação, de maneira “que nunca parece que o autor esteja 
informando ou desviando a nossa atenção para um traço da 
sociedade”.29 
27 Antonio Candido, op. cit. 
28 Texto redigido de forma livre e pessoal que tem como tema 
assuntos e fatos relacionados com a atualidade (período em que 
foi escrito). 
29 Antonio Candido, idem. 
 
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Mário de Andrade, cujo interesse pela obra é 
manifesto e pode ser observado em termos de influência 
em obras modernistas como Macunaíma (1928), que 
apresenta traços fundamentais do esteriótipo brasileiro já 
presentes em certa medida nas Memórias, reorientou em 
1941 a crítica30, ao definir o livro de Manuel Antônio de 
Almeida como um romance de tipo marginal com 
personagens anti-heroicos, modalidades de pícaro31. 
Porém, segundo Candido, é preciso atentar para as 
diferenças entre o pícaro da tradição espanhola e Leonardo 
filho. Apesar da origem humilde e irregular, do jogo de 
cintura e da leveza com que lida com os fatos, de ser 
motivado pelas circunstâncias e de viver ao sabor da sorte, 
o protagonista de Manuel Antônio de Almeida não é 
abandonado no mundo: já nasce malandro feito, não nutre 
em nenhum momento condição servil, não aprende com a 
experiência, não busca agradar os superiores e cultiva 
sentimentos leais e sinceros por amores e amigos. Em 
Memórias de um sargento de milícias há uma visão 
dinâmica da matéria narrada – o herói é personagem como 
os outros, apesar de preferencial. Mesmo na caricatura, 
diversamente ao romance picaresco, o livro é discreto e faz 
uso de vocabulário médio, não chega a ser obsceno. Assim, 
podemos afirmar que, em vez de um romance seguidor da 
tradição picaresca, inicia uma nova tradição que marcaria 
muitas obras posteriores: Leonardo filho é o primeiro 
grande malandro da novelística brasileira, vindo da tradição 
folclórica, cômica e popularesca. O protagonista pratica a 
esperteza pela esperteza e a sua malandragem faz lembrar 
a de heróis populares: visa ao próprio proveito ou à 
resolução de problemas concretos. Vejamos o que afirma 
Candido sobre aspectos do romance malandro que fariam 
com que o livro se projetasse no tempo: 
 
Poderíamos, então, dizer que a integridade das 
Memórias é feita pela associação íntima entre um plano voluntário 
(a representação dos costumes e cenas do Rio) e um plano talvez 
na maior parte involuntário (traços semi-folclóricos, manifestados 
sobretudo no teor dos atos e das peripécias). Como ingrediente, 
um realismo espontâneo e corriqueiro, mas baseado na intuição 
da dinâmica social do Brasil na primeira metade do século XIX. E 
nisto reside provavelmente o segredo da sua força e da sua 
projeção no tempo. 
Antonio Candido, “Dialética da malandragem” in O discurso e a 
cidade, 3 ed, São Paulo/ Rio de Janeiro: Duas Cidades / Ouro sobre 
Azul, 2004, p. 25. 
Assim sendo, apesar de tão diferente das obras 
típicas produzidas no mesmo período, podemos qualificar 
as Memórias como um exemplar romântico: temos aqui, 
segundo Candido, a velha história do herói que passa por 
diversas peripécias até alcançar finalmente a felicidade.E 
é verdade que, como afirmou Mário de Andrade, “o livro 
 
30 Mário de Andrade, “Introdução”, in Manuel Antonio de 
Almeida, Memórias de um sargento de milícias. 
31 Personagem advindo da literatura espanhola que tem, dentre 
outras características, a marca de ser travesso, bufão e ardiloso. 
32 Citado por Antonio Candido in Formação da Literatura 
Brasileira, vol. 2. 8 ed. Belo Horizonte / Rio de Janeiro: Itatiaia, 
1997, p. 196. 
acaba quando o inútil da felicidade principia”32. O 
movimento é a lei do livro e a felicidade é estática por 
vocação, daí o seco e direto último parágrafo: 
Daqui em diante aparece o reverso da medalha. Seguiu-
se a morte de D. Maria, a do Leonardo Pataca, e uma enfiada de 
acontecimentos tristes que pouparemos aos leitores, fazendo aqui 
o ponto final. 
Manuel Antônio de Almeida, op. cit., p. 152. 
O que para José de Alencar seria material para um 
grand finale, para Manuel Antônio dispensa comentários. 
 Assim, as Memórias de um sargento de milícias 
seguem a tendência da produção cômica e satírica da 
Regência e dos primeiros anos do segundo reinado. Nada 
que se distinguisse tanto das crônicas e das obras 
jornalísticas da época... Martins Pena também traz a 
caricatura política em suas peças de teatro, e nem por isso 
é chamado realista. 
 
 
Um jantar brasileiro, Jean-Baptiste Debret, 1827, aquarela sobre papel. O 
crítico Astrojildo Pereira chegou a comparar a obra de Manuel Antônio de 
Almeida às gravuras de Debret33 (1768-1848) pela força representativa. 
Tempo e espaço: romance de costumes 
Os acontecimentos narrados em Memórias de um 
sargento de milícias se passam no Rio de Janeiro central: 
Restrito espacialmente, a sua ação decorre no Rio, sobretudo 
no que são hoje as áreas centrais e naquele tempo constituíam o 
grosso da cidade. Nenhum personagem deixa seu âmbito e 
apenas uma ou duas vezes o autor nos leva ao subúrbio, no 
episódio do Caboclo do Mangue e na festa campestre da família 
da Vidinha. 
Antonio Candido, “Dialética da malandragem” in O discurso e a 
cidade, 3 ed, São Paulo/ Rio de Janeiro: Duas Cidades / Ouro sobre 
Azul, 2004, p. 27. 
 
33 Pintor e desenhista francês, fundou no Rio de Janeiro a Academia de 
Artes e Ofícios, onde lecionou pintura. Em 1831, de volta à França, 
publicou Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, obra na qual 
documentou aspectos da natureza, do homem e da sociedade brasileira 
do início do século XIX. 
 
Profª. Cristiane 
Literatura 
 
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Apesar de ter sido publicado como romance de folhetim 
entre os anos de 1852 e 1853, o texto narra episódios das 
primeiras décadas do século XIX, período em que D. João 
VI mudou-se com a família real para o Brasil. A única 
referência temporal que há nas Memórias encontra-se no 
início do livro, “era no tempo do rei”, que ademais as liga a 
um padrão de contos da carochinha. O tempo é, portanto, 
quase inexistente na composição, o que a vincula, como já 
dissemos, ao romance de costumes: a narrativa é mais 
voltada a retratar os fatos e costumes do Rio joanino do que 
a desenvolver um enredo – mesmo porque o autor chega a 
se esquecer do parentesco atribuído a determinadas 
personagens. Vejamos o que afirma Candido a respeito do 
tempo e do romance de costumes: 
Daí a composição do livro estar ligada á lógica do 
acontecimento, que por sua vez obedece ao movimento mais 
amplo do panorama social. O que encontramos no fundo do 
romance é essa condição, de ordem sociológica. Manuel Antônio 
deseja contar de que maneira se vivia no Rio popularesco de D. 
João VI: as famílias mal organizadas, os vadios, as procissões, as 
festas, as danças, a polícia; o mecanismo dos empenhos, 
influências, compadrios, punições, que determinavam uma certa 
forma de convivência e se manifestavam por certos tipos de 
comportamento. Como é artista vê, não o fenômeno, mas a sua 
manifestação, o fato: vê as situações em que aquelas condições 
se exprimem e apresenta uma coleção de cenas e 
acontecimentos. O livro aparece, pois, como sequência de 
situações, cuja precária unidade é garantida pela pessoa de 
Leonardo, verdadeiro pretexto, como nos romances picarescos. 
Essas situações, esses blocos de acontecimentos, se justapõem 
de certo modo e, salvo o tênue fio dos amores de Leonardo e 
Luisinha, não há entre eles precedência cronológica necessária. É 
que o tempo é quase inexistente na composição: aparece como 
dimensão inevitável de toda série de fatos, mas não como 
elemento conscientemente utilizado. [...] O movimento, a agitação 
incessante do livro pressupõem o tempo, mas não se inserem 
devidamente nele. 
Antonio Candido. Formação da Literatura Brasileira, vol. 2. 8 ed. 
Belo Horizonte / Rio de Janeiro: Itatiaia, 1997, p. 198. 
Estilo e linguagem 
O estilo do livro evita os floreios presentes em outras 
obras da época: busca frases objetivas, ordem direta, um 
tom coloquial e neutro. Sobre isso, afirma Candido: 
Pelo fato de ser um principiante sem compromissos 
com a literatura estabelecida, além de resguardado pelo 
anonimato, Manuel Antônio ficou à vontade e aberto para 
as inspirações do ritmo popular. Esta costela trouxe uma 
espécie de sabedoria irreverente, que é pré-crítica, mas 
que, pelo fato de reduzir tudo à amplitude da “natureza 
humana”, se torna afinal mais desmistificadora do que a 
intenção quase militante de um Alencar, mareada pelo 
estilo de classe. Sendo neutro, o estilo encantador de 
Manuel Antônio fica translúcido e mostra o outro lado de 
cada coisa, exatamente como o balanceio de outros 
 
34 Segundo Hegel, “a natureza verdadeira e única da razão e do 
ser que são identificados um ao outro e se definem segundo o 
processo racional que procede pela união incessante de 
períodos. [...] Daí a equivalência dos opostos e a anulação 
do bem e do mal, num discurso desprovido de maneirismo. 
[...] A linguagem de Manuel Antônio, desvinculada da 
moda, torna amplos, significativos e exemplares os 
detalhes da realidade presente, porque os mergulha no 
fluido do populário, que tende a matar lugar e tempo, pondo 
os objetos que toca além da fronteira entre os grupos. É 
pois no plano do estilo que se entende o desvinculamento 
das Memórias em relação à ideologia das classes 
dominantes de seu tempo –, tão presente na retórica liberal 
e no estilo florido dos “beletristas”. Trata-se de uma 
libertação, que funciona como se a neutralidade moral 
correspondesse a uma neutralidade social, misturando as 
pretensões das ideologias no balaio da irreverência 
popularesca. 
Antonio Candido. “Dialética da malandragem” in O discurso e a 
cidade. 3 ed. São Paulo: Duas Cidades; Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 
2004, p. 45. 
Já que essa neutralidade moral faz parte da obra, torna-
se claro porque apenas depois do Modernismo ela tenha 
alcançado o reconhecimento da crítica. O narrador 
descreve as personagens sem ater-se a julgamentos. Ao 
caracterizá-las, mostra simultaneamente seu lado bom e 
seu lado mau: “Era a comadre uma mulher baixa, 
excessivamente gorda, bonachona, ingênua ou tola até 
certo ponto, e finória até outro” (p. 30); “O velho tenente-
coronel, apesar de virtuoso e bom, não deixava de ter na 
consciência um sofrível par de pecados, desses que se 
chamam da carne, e que não hão de ser levados em conta, 
não de hoje, que a idade o tornara inofensivo, porém do 
tempo da sua mocidade” (p. 37); “D. Maria tinha um bom 
coração, era benfazeja, devota e amiga dos pobres, porém 
em compensação destas virtudes tinha um dos piores vícios 
daquele tempo e daqueles costumes: era a mania das 
demandas” (p. 61). Num universo sem culpas, quaisquer 
males parecem remediáveis. 
Ordem versus desordem: a dialética da malandragem 
segundo Candido 
Candido afirma que há na obra um estrato de 
personagens constituídos a partir da dialética34 da ordem e 
da desordem. Ao centro da base estaria Leonardo filho, 
com sua mãe à direita

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