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Profª. Cristiane Literatura Página 1 de 20 Romantismo: nacionalismo, individualismo e revolução Estabeleceu-se que, em Portugal, o Romantismo surge em 1825 (data de publicação do longo poema narrativo Camões, de Almeida Garret) e perdura até 1865, com a Questão Coimbrã. No Brasil, inicia-se com a publicação de Suspiros poéticos e saudades (1836), de Gonçalves de Magalhães, e se encerra em 1881, com a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas. Romantismo início fim Brasil 1836 publicação de Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães 1881 publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis Portugal 1825 publicação de Camões, de Almeida Garret 1865 Questão Coimbrã Eugène Delacroix. A Liberdade guiando o povo. 1830. As ideias iluministas preparam a base filosófica para ocorrer, em 1789, a Revolução Francesa, marco do fim do absolutismo e da ascensão definitiva da burguesia ao poder: era a consolidação do modo capitalista de produção, que teria consequências irreversíveis para todo o mundo. Para as artes, a virada do século XVIII para o XIX também foi marcante. O Romantismo, movimento artístico surgido na Inglaterra e na Alemanha (à França coube coordená-lo e divulgá-lo), representou uma virada tão forte no pensamento e no modo de criar e produzir arte, que muitos teóricos consideram que somos românticos até hoje. De fato, se pensarmos que a escola romântica está diretamente vinculada à Revolução Francesa e à ascensão da burguesia e que ainda vivemos num modo capitalista de produção, é notória a presença do Romantismo no nosso 1 Ambos citados por Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira, p. 99. 2 Antigo Regime. cotidiano. Para entender a dimensão desse movimento, esclareçamos primeiro o sentido do termo. Certamente, num momento de devaneio, fantasia ou cavalheirismo, por exemplo, você já deve ter sido taxado de “romântico”. Essa é a acepção popular da palavra, e não a que usaremos aqui. Aqui, considerar romântico aquele que fala de amor não tem sentido, pois sabemos esse é um tema de que o ser humano sempre se ocupou. Mas há uma grande dificuldade na conceituação do termo. Segundo Paul Valéry, “seria necessário ter perdido todo espírito de rigor para querer definir o Romantismo”. Para Karl Mannheim, “o Romantismo expressa os sentimentos dos descontentes com as novas estruturas: a nobreza, que já caiu, e a pequena burguesia, que ainda não subiu: de onde as atitudes saudosistas ou reivindicatórias que pontuam todo o movimento”1. Vamos refletir sobre essas declarações. O Romantismo, principalmente em sua primeira fase: [...] vive as contradições próprias da Revolução Industrial e da burguesia ascendente. Definem-se as classes: a nobreza, há pouco apeada do poder; a grande e a pequena burguesia, o velho campesinato, o operariado crescente. Precisam-se as visões da existência: nostálgica, nos decaídos do Ancien Régime2; primeiro eufórica, depois prudente, nos novos proprietários; já inquieta e logo libertária nos que veem bloqueada a própria ascensão dentro dos novos quadros; imersa ainda na mudez da inconsciência, naqueles para os quais não soara em 89 a hora da Liberdade-Igualdade-Fraternidade. Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. 3 ed. São Paulo: Cultrix, p. 99. Além disso, essa falta de conceituação sobre o movimento deve-se em grande parte ao repúdio dos românticos pelas normas clássicas. Eles defendem o impuro, a mistura de gêneros, o caos, os extremos em vez do equilíbrio, o único em vez do perene, o individualismo em vez do universalismo: tudo o que veem do mundo não passa de um reflexo e/ou uma extensão do “eu”. A natureza, por exemplo, que para os árcades era cenário para o idílio dos amantes, agora passa a ser obscura, por refletir o estado de espírito de um eu que se autobusca. Esse egocentrismo se manifesta num sentimentalismo introvertido, instável, móvel, adolescente. Segundo Massaud Moisés, “o Romantismo é uma estética adolescente, expressando sentimentos femininamente adolescentes ou vice-versa”.3 O mergulho em si mesmo desperta a percepção da dignidade da dor e, em certa medida, o gosto pelo sofrimento e pelas fraquezas humanas. Toda essa introspecção conduz ao tédio, à melancolia – “mal do século” XIX – e à consequente fuga da realidade, o escapismo: tentando reencontrar-se com um passado medieval, fugindo para terras exóticas, usando drogas (álcool, alucinógenos), levando vida boêmia ou entregando- se a um hedonismo sem limites ou à paixão pela morte. O jovem Werther, personagem de Goethe, por exemplo, 3 Massaud Moisés. A literatura portuguesa. 33 ed. São Paulo: Cultrix, p. 117. Profª. Cristiane Literatura Página 2 de 20 suicida-se por não conseguir suportar a dor do amor; tema, aliás, que passa a ser usual na literatura desde então. Leia um diálogo do romance publicado em 1774 e note a presença de duas posturas antagônicas: a de Alberto, noivo de Carlota, espírito racionalista e equilibrado, e a de Werther, apaixonado pela noiva do outro, amante da loucura, da insensatez e da embriaguez como forma de atingir ações livres, nobres e inesperadas. As paixões do insensato – Aí o caso é completamente diferente – replicou Alberto – porque um homem que é arrastado pelas suas paixões perde toda a capacidade de raciocinar e passa a ser encarado como um ébrio, como um demente. – Ai de vós todos tão sensatos! – exclamei sorrindo. – Paixão! Embriaguez! Loucura! Conservai-vos tão serenos, tão desinteressados, vós, os moralistas; cobris de injúrias o bêbado, detestais o insensato, passais ao largo como o sacerdote e agradeceis a Deus, tal o fariseu, por não vos ter feito iguais a eles. Mais de uma vez me embriaguei, minhas paixões nunca estiveram longe da loucura e não me arrependo nem de uma coisa nem de outra, apesar de terem-me ensinado que sempre se haveria de menosprezar todos os indivíduos excepcionais que fizeram algo de grandioso, algo de aparentemente irrealizável! Mas também na vida cotidiana é insuportável ouvir quase sempre gritar para qualquer um empenhado numa ação livre, nobre, inesperada: “É um bêbado, está louco!” Envergonhai-vos, vós todos tão sóbrios! Envergonhai-vos, vós todos tão sensatos! Goethe, Werther. 10 ed. Munique: C.H. Beck, 1982, 14v., VI, p. 46-7. Leia a letra da canção de Cazuza e Frejat reproduzida a seguir e reflita: ainda somos românticos? Todo amor que houver nessa vida Eu quero a sorte de um amor tranquilo Com sabor de fruta mordida Nós na batida, no embalo da rede Matando a sede na saliva Ser teu pão, ser tua comida Todo amor que houver nessa vida E algum trocado pra dar garantia E ser artista no nosso convívio Pelo inferno e céu de todo dia Pra poesia que a gente não vive Transformar o tédio em melodia Ser teu pão, ser tua comida Todo amor que houver nessa vida E algum veneno antimonotonia E se eu achar tua fonte escondida Te alcanço em cheio, o mel e a ferida E o corpo inteiro como um furacão Boca, nuca, mão e a tua mente não 4 Ocorreram, durante o Romantismo, a profissionalização do escritor e a disseminação de novos gêneros literários, não-clássicos, que se disseminaram por todo o Ocidente. Ser teu pão, ser tua comida Todo amor que houver nessa vida E algum remédio que me dê alegria Frejat e Cazuza in cazuza, Preciso dizer que te amo. Toda essa negação do equilíbrio redefine o papel do artista e traz o benefício da solidão (que pode, como vimos, levar ao desespero), a beleza do mistério e o conceito de gênio (para os alemães, Genie, o inspirado): agora, os poetas se creem portadores de um furor artístico, de um estado de transe e de inspiração divina. Têm, portanto, uma missão: são vates, profetas, acreditam ter um dever poéticofrente aos outros homens. É interessante que embriagar de um individualismo exacerbado pode trazer ao romântico a superação dos liames da convivência: perde- se como pessoa, mas encontra-se como poeta e, consequentemente, como missionário. Assim, grandeza, missão e isolamento passam a ser os novos motes do artista, que se afasta cada vez mais do equilíbrio clássico para buscar um novo desequilíbrio. Pessimismo, sadismo e satanismo passam a ser formas de negação e revolta contra determinados valores sociais, demonstrados tanto na ironia e no sarcasmo quanto no ataque direto. Tudo o que contraria as normas (o crime, o vício, os desvios sexuais e morais) é para os românticos tão interessante quanto a virtude e a normalidade. Antônio Candido explica essa nova atitude: [...] denotando individualismo acentuado, desejo de desacordo com as normas e a rotina, é em parte devida à nova posição social do escritor, entregue cada vez mais à carreira literária, isto é, a si próprio e ao vasto público, em lugar do escritor pensionado, protegido, quase confundido na criadagem dos mecenas do período anterior. Deve ter havido na consciência literária um arrepio de desamparo, uma brusca falta de segurança, com a passagem do mecenato ao profissionalismo. A ruptura dos quadros sociais que sustinham o escritor – modificando igualmente o tipo de público a que se dirigia – alterou sua posição, deixando-o muito mais entregue a si mesmo e inclinado às aventuras do individualismo e do inconformismo. Em consequência, torna-se cada vez mais sensível à condição social dos outros homens, como cada vez mais disposto a interferir em seu favor. O advento das massas à vida política, em seguida à proletarização e à urbanização, decorrentes da revolução industrial e das lutas pela liberdade, trazem para o universo do homem de inteligência um termo novo e uma perspectiva inédita. Por isso, ao lado dos pessimistas, encontramos os profetas da redenção humana, às vezes irmanados na mesma pessoa; e o satanismo deságua não raro na rebeldia política e no sentimento de missão social [...]. Assim, pois, o individualismo e a consciência de solidão entrecortados pelo desejo de solidariedade, o pessimismo enlaçado à utopia social e à crença no progresso aumentam a complexidade desse tempo patético e dourado4. Antonio Candido. Formação da literatura brasileira, v. 2. 8 ed. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Itatiaia, 1997, p. 30. Profª. Cristiane Literatura Página 3 de 20 É notória também a busca pela liberdade, tanto na expressão como na forma. Já dissemos que se abandonou o rigor clássico. A musicalidade passa a ser um meio essencial para exprimir aquilo que não se consegue dizer apenas com belas palavras. Um ritmo fluido, cantante e declamatório torna-se corrente entre os poetas, assim como o uso de imagens mais próximas dos leitores e, portanto, mais facilmente apreensíveis. As gerações poéticas no Brasil Apesar de atribuirmos a Gonçalves de Magalhães o mérito de inaugurar o Romantismo brasileiro, de romântico ele tem apenas alguns temas, e não a liberdade formal almejada pelos grandes poetas do movimento. No Brasil, a poesia romântica passou por três momentos bem definidos. 1. O nacionalismo da primeira geração Gonçalves Dias foi, sem dúvida, o maior poeta da primeira geração brasileira, marcada notadamente pelo nacionalismo e pela saudade. Num tempo em que a poesia era caracterizada pelo transbordamento, pessimismo e intemperança sentimental, ele conseguiu equilibrar o afetivo e o simples. Persistia nele, porém, a necessidade da medida e um ritmo impecável, que de maneira alguma o desqualificam como romântico. Seu tema mais marcante era o índio. Frisava ora a selvageria, ora a docilidade dos nativos. Um de seus mais belos poemas é I-Juca Pirama (em tupi, “o que há de ser morto”), em que narra a história de um índio Tupi capturado pelos Aimorés que, diante da morte em ritual antropofágico, chora pensando no pai cego e perdido na floresta. Solto e execrado pelos inimigos e também pelo pai, que se envergonha da covardia do filho, I-Juca Pirama entrega-se lutando até a morte pela defesa de sua honra e coragem. Diferentemente dos índios de Alencar, que estudaremos na próxima aula, esse é vazio de personalidade, mas rico de sentido simbólico. Acompanhe um excerto desse belíssimo poema – e não deixe de notar seu ritmo impecável. A seguir, encontra-se “a obra-prima do exótico”5, lindo poema erótico em que um eu lírico feminino indígena descreve seu desejo de ter rompida a liga rubra de sua virgindade por seu amado Ubirajara. 5 Antonio Candido, op. cit., p. 74. I-Juca Pirama [excerto] Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi: Sou filho das selvas, Nas selvas cresci; Guerreiros, descendo Da tribo tupi. Da tribo pujante, Que agora anda errante Por fado inconstante, Guerreiros, nasci; Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi. Já vi cruas brigas, De tribos imigas, E as duras fadigas Da guerra provei; Nas ondas mendaces Senti pelas faces Os silvos fugaces Dos ventos que amei. Andei longes terras Lidei cruas guerras, Vaguei pelas serras Dos vis Aimorés, Vi lutas de bravos, Vi fortes – escravos! De estranhos ignavos Calcados aos pés. E os campos talados, E os arcos quebrados, E os piagas coitados Já sem maracás; E os meigos cantores, Servindo a senhores, Que vinham traidores, Com mostras de paz. Aos golpes do imigo, Meu último amigo, Sem lar, sem abrigo Caiu junto a mi! Com plácido rosto, Sereno e composto, O acerbo desgosto Comigo sofri. Meu pai a meu lado Já cego e quebrado, De penas ralado, Firmava-se em mi: Nós ambos, mesquinhos, Por ínvios caminhos, Cobertos d’espinhos Chegamos aqui! O velho no entanto Sofrendo já tanto De fome e quebranto, Só qu’ria morrer! Não mais me contenho, Nas matas me embrenho, Das frechas que tenho Me quero valer. Então, forasteiro, Caí prisioneiro De um troço guerreiro Com que me encontrei: O cru dessossego Do pai fraco e cego, Enquanto não chego Qual seja, – dizei! Eu era o seu guia Na noite sombria, A só alegria Que Deus lhe deixou: Em mim se apoiava, Em mim se firmava, Em mim descansava, Que filho lhe sou. Ao velho coitado De penas ralado, Já cego e quebrado, Que resta? – Morrer. Enquanto descreve O giro tão breve Da vida que teve, Deixai-me viver! Não vil, não ignavo, Mas forte, mas bravo, Serei vosso escravo: Aqui virei ter. Guerreiros, não coro Do pranto que choro: Se a vida deploro, Também sei morrer. Profª. Cristiane Literatura Página 4 de 20 Por que tardas, Jatir, que tanto a custo À voz do meu amor moves teus passos? Da noite a viração, movendo as folhas, Já nos cimos do bosque rumoreja. Eu sob a copa da mangueira altiva Nosso leito gentil cobri zelosa Com mimoso tapiz de folhas brandas, Onde o frouxo luar brinca entre flores. Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco, Já solta o bogari mais doce aroma! Como prece de amor, como estas preces, No silêncio da noite o bosque exala. Brilha a lua no céu, brilham estrelas, Correm perfumes no correr da brisa, A cujo influxo mágico respira-se Um quebranto de amor, melhor que a vida! A flor que desabrocha ao romper d'alva Um só giro do sol, não mais, vegeta: Eu sou aquela flor que espero ainda Doce raio do sol que me dê vida. Sejam vales ou montes, lago ou terra, Onde quer que tu vás, ou dia ou noite, Vai seguindo após ti meu pensamento; Outro amor nunca tive: és meu, sou tua! Meus olhos outros olhos nunca viram, Não sentiram meus lábios outros lábios, Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas A arazoia na cinta me apertaram.Do tamarindo a flor jaz entreaberta, Já solta o bogari mais doce aroma Também meu coração, como estas flores, Melhor perfume ao pé da noite exala! Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes À voz do meu amor, que em vão te chama! Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil A brisa da manhã sacuda as folhas! 2. O ultrarromantismo byronista A luz da noite faz mais belas as mulheres e as estrelas. Lord Byron A segunda geração é marcada por um Romantismo egótico de extremo subjetivismo: Dizia Obermann, no Senancour: “Eu sinto: eis a única palavra do homem que exige verdades. Eu sinto, eu existo para me consumir em desejos indomáveis, para me embebedar na sedução de um mundo fantástico, para viver aterrado com o seu voluptuoso engano.” Ora, a oclusão do sujeito em si próprio é detectável por uma fenomenologia bem conhecida: o devaneio, o erotismo difuso ou obsessivo, a melancolia, o tédio, o namoro com a imagem da morte, a depressão, a autoironia masoquista: desfigurações todas de um desejo de viver que não logrou sair do labirinto onde se aliena o jovem crescido em um meio romântico-burguês em fase de estagnação. 6 Comer, beber e amar; de que nos pode valer a quietude? Alfredo Bosi, op. cit., p. 120. Dentre os poetas dessa geração, o que mais se destaca no Brasil sem dúvida é Álvares de Azevedo. Não raro ambíguo – como qualquer adolescente, já que morreu aos 20 anos, Azevedo mostra-se dilacerado entre a ternura e a perversidade, a idealização e a degradação da mulher. Demonstrava um cansaço precoce de viver e uma nostalgia do vício e da revolta, corporificando, assim, as várias tendências psíquicas de sua geração. Nele, o sonho aparece tão nítido quanto a realidade, e a fantasia é mais viva que a experiência. “Spleen” e Charutos III Vagabundo Eat, drink, and love; what can the rest avail us?6 Byron. Don Juan. Eu durmo e vivo ao sol como um cigano, Fumando meu cigarro vaporoso; Nas noites de verão namoro estrelas; Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso! Ando roto, sem bolsos nem dinheiro; Mas tenho na viola uma riqueza: Canto à lua de noite serenatas, E quem vive de amor não tem pobreza. Não invejo ninguém, nem ouço a raiva Nas cavernas do peito, sufocante, Quando a noite na treva em mim se entornam Os reflexos do baile fascinante. Namoro e sou feliz nos seus amores Sou garboso e rapaz... Uma criada Abrasada de amor por um soneto Já um beijo me deu subindo a escada... Oito dias lá vão que ando cismado Na donzela que ali defronte mora. Ela ao ver-me sorri tão docemente! Desconfio que a moça me namora!... Tenho por meu palácio as longas ruas; Passeio a gosto e durmo sem temores; Quando bebo, sou rei como um poeta, E o vinho faz sonhar com os amores. O degrau das igrejas é meu trono, Minha pátria é o vento que respiro, Minha mãe é a lua macilenta, Profª. Cristiane Literatura Página 5 de 20 E a preguiça a mulher por quem suspiro. Escrevo na parede as minhas rimas, De painéis a carvão adorno a rua; Como as aves do céu e as flores puras Abro meu peito ao sol e durmo à lua. Sinto-me um coração de lazzaroni; Sou filho do calor, odeio o frio, Não creio no diabo nem nos santos... Rezo a Nossa Senhora e sou vadio! Ora, se por aí alguma bela Bem doirada e amante da preguiça Quiser a nívea mão se unir à minha, Há de achar-me na Sé, domingo, à Missa. Álvares de Azevedo, Lira dos Vinte Anos. Rio de Janeiro: Garnier, 1994. São três as publicações de Álvares de Azevedo: a peça teatral Macário, o livro de contos Noites na taverna e a principal delas, o livro de poemas Lira dos vinte anos. Exemplar por demonstrar as contradições do poeta7, é dividida em duas partes: a primeira representada por Ariel, entidade mitológica que representa a pureza e o espírito angélico, e a segunda, por Caliban, entidade mitológica que representa a zombaria e o espírito satânico. Esses contrastes são a grande qualidade do estilo do jovem poeta, que deliberadamente buscava essa dicotomia. No prefácio à segunda parte, adverte o leitor: “Cuidado, leitor, ao voltar esta página! Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico. Vamos entrar num mundo novo, terra fantástica. Quase que depois de Ariel, esbarramos em Caliban. A razão é simples. É que a unidade deste livro funde-se numa binomia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces.”8 Vamos, então, conhecer essa binomia. Os temas escolhidos aqui foram a morte e a mulher. MORTE Ariel - Lembrança de morrer No more! o never more! SHELLEY Quando em meu peito rebentar-se a fibra, Que o espírito enlaça à dor vivente, Não derramem por mim nenhuma lágrima Em pálpebra demente. E nem desfolhem na matéria impura A flor do vale que adormece ao vento: Não quero que uma nota de alegria Se cale por meu triste passamento. Eu deixo a vida como deixa o tédio Do deserto, o poento caminheiro -- Como as horas de um longo pesadelo Que se desfaz ao dobre de um sineiro; 7 Apesar de, a partir da edição de 1853, ter sido dividida em três. Como o desterro de minh’alma errante, Onde fogo insensato a consumia: Só levo uma saudade... é desses tempos Que amorosa ilusão embelecia. Só levo uma saudade... é dessas sombras Que eu sentia velar nas noites minhas... De ti, ó minha mãe, pobre coitada, Que por minha tristeza te definhas! De meu pai... de meus únicos amigos, Pouco – bem poucos... e que não zombavam Quando, em noites de febre endoudecido, Minhas pálidas crenças duvidavam. Se uma lágrima as pálpebras me inunda, Se um suspiro nos seios treme ainda, É pela virgem que sonhei... que nunca Aos lábios me encostou a face linda! Só tu à mocidade sonhadora Do pálido poeta deste flores... Se viveu, foi por ti! e de esperança De na vida gozar de teus amores. Beijarei a verdade santa e nua, Verei cristalizar-se o sonho amigo... Ó minha virgem dos errantes sonhos, Filha do céu, eu vou amar contigo! Descansem o meu leito solitário Na floresta dos homens esquecida, À sombra de uma cruz, e escrevam nela: Foi poeta – sonhou – e amou na vida. Sombras do vale, noites da montanha Que minha alma cantou e amava tanto, Protegei o meu corpo abandonado, E no silêncio derramai-lhe canto! Mas quando preludia ave d’aurora E quando à meia-noite o céu repousa, Arvoredos do bosque, abri os ramos... Deixai a lua pratear-me a lousa! Caliban - O poeta moribundo Poetas! amanhã ao meu cadáver Minha tripa cortai mais sonorosa!... Façam dela uma corda e cantem nela Os amores da vida esperançosa! Cantem esse verão que me alentava... O aroma dos currais, o bezerrinho, As aves que na sombra suspiravam, E os sapos que cantavam no caminho! Coração, por que tremes? Se esta lira Nas minhas mãos sem força desafina, Enquanto ao cemitério não te levam, Casa no marimbau a alma divina! Eu morro qual nas mãos da cozinheira O marreco piando na agonia... Como o cisne de outrora... que gemendo Entre os hinos de amor se enternecia. 8 Álvares de Azevedo, op. cit., p. 85. Profª. Cristiane Literatura Página 6 de 20 Coração, por que tremes? Vejo a morte, Ali vem lazarenta e desdentada... Que noiva!... E devo então dormir com ela? Se ela ao menos dormisse mascarada! Que ruínas! que amor petrificado! Tão antideluviano e gigantesco! Ora, façam ideia que ternuras Terá essa lagarta posta ao fresco! Antes mil vezes que dormir com ela. Que dessa fúria o gozo, amor eterno Se ali não há também amor de velha, Deem-me as caldeiras do terceiro inferno! No inferno estão suavíssimas belezas, Cleópatras, Helenas, Eleonoras; Lá se namora em boa companhia, Não pode haver inferno com Senhoras! Se é verdade que os homens gozadores, Amigos deno vinho ter consolos, Foram com Satanás fazer colônia, Antes lá que no Céu sofrer os tolos! Ora! e forcem um’alma qual a minha, Que no altar sacrifica ao Deus-Preguiça, A cantar ladainha eternamente E por mil anos ajudar a Missa! MULHER Ariel - Pálida à luz Pálida à luz da lâmpada sombria, Sobre o leito de flores reclinada, Como a lua por noite embalsamada, Entre as nuvens do amor ela dormia! Era a virgem do mar, na escuma fria Pela maré das águas embalada! Era um anjo entre nuvens d’alvorada Que em sonhos se banhava e se esquecia! Era mais bela! o seio palpitando Negros olhos as pálpebras abrindo Formas nuas no leito resvalando Não te rias de mim, meu anjo lindo! Por ti – as noites eu velei chorando, Por ti – nos sonhos morrerei sorrindo! Caliban - É ela! É ela! É ela! É ela! É ela! É ela! – murmurei tremendo, E o eco ao longe murmurou – é ela! Eu a vi... minha fada aérea e pura – A minha lavadeira na janela! Dessas águas-furtadas onde eu moro Eu a vejo estendendo no telhado Os vestidos de chita, as saias brancas; Eu a vejo e suspiro enamorado! Esta noite eu ousei mais atrevido Nas telhas que estalavam nos meus passos Ir espiar seu venturoso sono, 9 Alfredo Bosi, op. cit., p. 132. Vê-la mais bela de Morfeu nos braços! Como dormia! Que profundo sono!... Tinha na mão o ferro do engomado... Como roncava maviosa e pura!... Quase caí na rua desmaiado! Afastei a janela, entrei medroso... Palpitava-lhe o seio adormecido... Fui beijá-la... roubei do seio dela Um bilhete que estava ali metido... Oh! de certo... (pensei) é doce página Onde a alma derramou gentis amores; São versos dela... que amanhã de certo Ela me enviará cheios de flores... Tremi de febre! Venturosa folha! Quem pousasse contigo neste seio! Como Otelo beijando a sua esposa, Eu beijei-a a tremer de devaneio... É ela! É ela! – repeti tremendo; Mas cantou nesse instante uma coruja... Abri cioso a página secreta... Oh! Meu Deus! Era um rol de roupa suja! Mas se Werther morreu por ver Carlota Dando pão com manteiga às criancinhas Se achou-a assim mais bela – eu mais te adoro Sonhando-te a lavar as camizinhas! É ela! É ela! meu amor, minh’alma, A Laura, a Beatriz que o céu revela... É ela! É ela! – murmurei tremendo, E o eco ao longe suspirou – é ela! 3. O condoreirismo A poesia da terceira geração é chamada condoreira em referência ao pássaro condor, que, como ela, busca as alturas para voar. Esse momento poético coincide “com o amadurecer de uma situação nova: a crise do Brasil puramente rural; o lento mas firme crescimento da cultura urbana, dos ideais democráticos e, portanto, o despontar de uma repulsa pela moral do senhor-e-servo, que poluía as fontes da vida familiar e social do Brasil Império”.9 Retórica, repleta de hipérboles e antíteses, na poesia desse terceiro momento destacam-se os temas sociais e políticos e, principalmente, a abolição da escravatura e a apologia da república. Castro Alves é o poeta dos escravos; é o primeiro a cantar em voz alta o sofrimento do negro e a lutar por sua liberdade. Dotado de uma arte revolucionária e de uma poesia feita para ser declamada, exagera propositalmente na construção de imagens hiperbólicas e metafóricas e também na pontuação: em seus poemas transbordam exclamações, travessões e reticências, tudo para alcançar o público e convencê-lo pela oratória. É mestre na arte de captar plástica e musicalmente o ambiente, como poucos parnasianos posteriormente fariam. Veja o que é considerado um dos mais belos poemas descritivos da língua portuguesa. Profª. Cristiane Literatura Página 7 de 20 Castro Alves Crepúsculo sertanejo A tarde morria. Nas águas barrentas As sombras das margens deitavam-se longas; Na esguia atalaia das árvores secas Ouvia-se um triste chorar de arapongas. A tarde morria! Dos ramos, das lascas, Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos As trevas rasteiras com o ventre por terra Saíam, quais negros, cruéis leopardos. A tarde morria! Mais funda nas águas Lavava-se a galha do escuro ingazeiro… Ao fresco arrepio dos ventos cortantes Em músico estalo rangia o coqueiro. Sussurro profundo! Marulho gigante! Tal vez um silêncio!… Tal vez uma orquestra… Da folha, do cálix, das asas, do inseto… Do átomo à estrela… do verme – à floresta!… As garças metiam o bico vermelho Por baixo das asas – da brisa ao açoite: E a terra na vaga de azul do infinito Cobria a cabeça co’as penas da noite! Somente por vezes, dos jungles das bordas Das golfas enormes daquela paragem, Erguia a cabeça, surpreso inquieto, Coberto de limos – um touro selvagem. Então as marrecas, em torno boiando, O voo encurvavam medrosas, à-toa… E o tímido bando pedindo outras praias Passava gritando por sobre a canoa!… A mulher é captada por Castro Alves diferentemente de Álvares de Azevedo. Agora, ela é carnalizada e sensual. O também jovem poeta, morto aos 25 anos apenas, trata a mulher com intensidade na expressão do sentimento; suas relações visivelmente se realizam no plano físico. Os poemas transpostos a seguir são parte do livro Espumas flutuantes (1870). Note a influência do ultrarromantismo de Álvares de Azevedo em “Mocidade e morte”. Adormecida Uma noite, eu me lembro... Ela dormia Numa rede encostada molemente... Quase aberto o roupão... solto o cabelo E o pé descalço do tapete rente. ‘Stava aberta a janela. Um cheiro agreste Exalavam as silvas da campina... E ao longe, um pedaço do horizonte, Via-se a noite plácida e divina. De um jasmineiro os galhos encurvados, Indiscretos entravam pela sala, E de leve oscilando ao tom das auras, Iam na face trêmulos – beijá-la. Era um quadro celeste!... A cada afago Mesmo em sonhos a moça estremecia... Quando ela serenava... a flor beijava-a... Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia... Dir-se-ia que naquele doce instante Brincavam duas cândidas crianças... A brisa, que agitava as folhas verdes, Fazia-lhe ondear as negras tranças! E o ramo ora chegava ora afastava-se... Mas quando a via despeitada a meio, P’ra não zangá-la... sacudia alegre Uma chuva de pétalas no seio... Eu, fitando esta cena, repetia Naquela noite lânguida e sentida: “Ó flor! – tu és a virgem das campinas! “Virgem! – tu és a flor da minha vida!...” Mocidade e morte Oh! eu quero viver, beber perfumes Na flor silvestre, que embalsama os ares; Ver minh’alma adejar pelo infinito, Qual branca vela n’amplidão dos mares. No seio da mulher há tanto aroma... Nos seus beijos de fogo há tanta vida... – Árabe errante, vou dormir à tarde À sombra fresca da palmeira erguida. Mas uma voz responde-me sombria: Terás o sono sob a lájea fria. Morrer... quando este mundo é um paraíso, E a alma um cisne de douradas plumas: Não! o seio da amante é um lago virgem... Quero boiar à tona das espumas. Vem! formosa mulher – camélia pálida, Que banharam de pranto as alvoradas, Minh’alma é a borboleta, que espaneja O pó das asas lúcidas, douradas... E a mesma voz repete-me terrível, Com gargalhar sarcástico: – impossível! Mas talvez seu poema mais tocante seja “O navio negreiro”, parte de Os escravos (1883), em que se descreve a condição degradante do negro no transporte da África para o Brasil. Note “a pressão vigorosa da palavra, contida pela cutícula brilhante duma forma admiravelmente elaborada – quer nas imagens visuais, de expressividade poderosa e simples, [...] quer nos vocativos (ao albatroz, Profª. Cristiane Literatura Página 8 de 20 águia do oceano”; aos “heróis do Novo Mundo”), quer nos desenvolvimentos patéticos”.10 O navio negreiro — tragédia no mar [excertos] IV Era um sonho dantesco... o tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho. Em sangue a se banhar.Tinir de ferros... estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar... Negras mulheres, suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas Rega o sangue das mães: Outras moças, mas nuas e espantadas, No turbilhão de espectros arrastadas, Em ânsia e mágoa vãs! E ri-se a orquestra irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais... Se o velho arqueja, se no chão resvala, Ouvem-se gritos... o chicote estala. E voam mais e mais... Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali! Um de raiva delira, outro enlouquece, Outro, que martírios embrutece, Cantando, geme e ri! No entanto o capitão manda a manobra, E após fitando o céu que se desdobra, Tão puro sobre o mar, Diz do fumo entre os densos nevoeiros: “Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar!...” E ri-se a orquestra irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais... Qual um sonho dantesco as sombras voam!... Gritos, ais, maldições, preces ressoam! E ri-se Satanás!... V Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura... se é verdade Tanto horror perante os céus?! Ó mar, por que não apagas Co’a esponja de tuas vagas De teu manto este borrão?... Astros! noites! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! Quem são estes desgraçados Que não encontram em vós 10 Antonio Candido, op. cit., p. 250. Mais que o rir calmo da turba Que excita a fúria do algoz? Quem são? Se a estrela se cala, Se a vaga à pressa resvala Como um cúmplice fugaz, Perante a noite confusa... Dize-o tu, severa Musa, Musa libérrima, audaz!... Que com os tigres mosqueados Combatem na solidão. Ontem simples, fortes, bravos. Hoje míseros escravos, Sem luz, sem ar, sem razão... São mulheres desgraçadas, Como Agar o foi também. Que sedentas, alquebradas, De longe... bem longe vêm... Trazendo com tíbios passos, Filhos e algemas nos braços, N’alma — lágrimas e fel... Como Agar sofrendo tanto, Que nem o leite de pranto Têm que dar para Ismael. Lá nas areias infindas, Das palmeiras no país, Nasceram crianças lindas, Viveram moças gentis... Passa um dia a caravana, Quando a virgem na cabana São os filhos do deserto, Onde a terra esposa a luz. Onde vive em campo aberto A tribo dos homens nus... São os guerreiros ousados Cisma da noite nos véus... ... Adeus, ó choça do monte, ... Adeus, palmeiras da fonte!... ... Adeus, amores... adeus!... Depois, o areal extenso... Depois, o oceano de pó. Depois no horizonte imenso Desertos... desertos só... E a fome, o cansaço, a sede... Ai! quanto infeliz que cede, E cai p’ra não mais s’erguer!... Vaga um lugar na cadeia, Mas o chacal sobre a areia Acha um corpo que roer. Ontem a Serra Leoa, A guerra, a caça ao leão, O sono dormido à toa Sob as tendas d’amplidão! Hoje... o porão negro, fundo, Infecto, apertado, imundo, Tendo a peste por jaguar... E o sono sempre cortado Pelo arranco de um finado, E o baque de um corpo ao mar... Ontem plena liberdade, A vontade por poder... Profª. Cristiane Literatura Página 9 de 20 Hoje... cúm’lo de maldade, Nem são livres p’ra morrer.. Prende-os a mesma corrente — Férrea, lúgubre serpente — Nas roscas da escravidão. E assim zombando da morte, Dança a lúgubre coorte Ao som do açoute... Irrisão!... Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus, Se eu deliro... ou se é verdade Tanto horror perante os céus?!... Ó mar, por que não apagas Co’a esponja de tuas vagas Do teu manto este borrão? Astros! noites! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão!... O romance romântico brasileiro O romance é a epopeia do mundo sem deuses. Hegel O romance é um dos gêneros literários que se populariza com o Romantismo, mas sua origem é anterior. Para Adorno, “o romance foi a forma literária específica da era burguesa. Em seu início, encontra-se a experiência do mundo desencantado no Dom Quixote, e a capacidade de dominar artisticamente a mera existência continuou sendo seu elemento. O realismo era-lhe imanente; até mesmo os romances que, devido ao assunto, eram considerados fantásticos, tratavam de apresentar seu conteúdo de maneira a provocar a sugestão do real. No curso de um desenvolvimento que remonta ao século XIX e que hoje se intensificou ao máximo, esse procedimento tornou-se questionável”.11 Hoje, devido à sua elasticidade, é difícil caracterizar o gênero, mas certas características devem ser ressaltadas. Por ser narrativo, aproxima-se da epopeia – daí a afirmação de Hegel, na epígrafe –, mas, diferentemente das grandiosas obras épicas da Era Clássica (Classicismo, Barroco e Arcadismo), é escrito em prosa e não necessariamente inclui os deuses da mitologia greco-romana. Como toda narrativa, tem tempo, espaço, personagens, foco narrativo e enredo. É mais denso que o conto e se caracteriza por um encadeamento de conflitos segundo um fio condutor: Gênero entre todos contemplado foi o romance, “a revolução literária do Terceiro Estado” (Debenedetti). Os ingleses, que se anteciparam ao resto da Europa na marcha da Revolução Industrial, já dispunham, no século XVIII, de narradores de costumes burgueses; os românticos acrescentaram-lhe a ficção histórica e o romance egótico-passional, formas acessíveis ao novo público leitor composto principalmente de jovens e de mulheres, e ansioso de encontrar na literatura a projeção dos próprios conflitos emocionais. O romance foi, a partir do Romantismo, um excelente índice dos interesses da sociedade 11 Theodor W. Adorno. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2003, p. 55. (Coleção Espírito Crítico.) culta e semiculta do Ocidente. A sua relevância no século XIX se compararia, hoje, à do cinema e da televisão. Alfredo Bosi, op. cit., p. 106. No Romantismo, funciona como um contrapeso ao individualismo lírico que estudamos nas aulas anteriores, já que preserva uma atitude de objetividade e respeito ao material observado. No Brasil, essa tendência ao realismo levaria ao romance de costumes (em que se enquadra Memórias de um sargento de milícias, assunto da próxima aula) e ao romance regional, uma das especialidades de José de Alencar (1829-1877), o primeiro grande dentre os romancistas brasileiros. Joaquim Manoel de Macedo (1820-1882), autor de A Moreninha (1844), foi quem abriu os caminhos para o romance no Brasil e conferiu-lhe o prestígio de que desfrutaria posteriormente. Seus livros serviram de inspiração para Alencar, que retomaria e superaria a obra de Macedo, “como faria Machado de Assis em relação à sua”12. Macedo e Alencar responderiam à exigência dos leitores, público constituído basicamente por “moços e moças de classes altas, excepcionalmente médias, profissionais liberais da corte ou dispersos pelas províncias”, em busca de entretenimento13: Vistos sob esse ângulo, são exemplares os romances de Macedo e Alencar, que respondem, cada um a seu modo, às exigências mais fortes de tais leitores: reencontrar a própria e convencional realidade e projetar-se como herói ou heroína em peripécias com que não se depara a média dos mortais. A fusão de um pedestre e miúdo cotidiano com o exótico, o misterioso, o heroico, define bem o arco das tensões de uma sociedade estável, cujo ritmo vegetativo não lhe consentia projeto histórico ou modos de fuga além do oferecido por alguns tipos de ficção: a passadista e colonial [...], a indianista [...], a sertaneja. Ou trazendo o leitor de volta para o dia a dia das convenções, como em largos trechos de Macedo e do Alencarfluminense, centrados nos costumes da burguesia e no saboroso documento do Rio joanino que são as Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio. Alfredo Bosi, op. cit., p. 142. Como se vê, muitos romances românticos brasileiros guiam-se pelo gosto do público, desejoso de emocionantes peripécias que o entretivessem e o tirassem de seu cotidiano medíocre. Assim, não são muitos os autores (e obras) que se libertaram das pressões sociais e psicológicas. O nacionalismo, que na lírica levou essencialmente ao indianismo, na prosa levará também ao regionalismo. Bernardo Guimarães (1825-1884), Visconde de Taunay (1843-1899) e Franklin Távora (1842-1888) conseguiram, em alguns momentos, fugir às armadilhas da projeção dos próprios interesses e frustrações, mas, ainda assim, não alcançaram a qualidade estética que depois alcançariam os modernistas da segunda geração. Focalizaremos dois autores do romance romântico que se destacam dos demais: José de Alencar e Manoel Antônio de Almeida. 12 Antonio Candido. Formação da literatura brasileira, v. 2. 8 ed. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Itatiaia, 1997, p. 191. 13 Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. 3 ed. São Paulo: Cultrix, p. 141-142. Profª. Cristiane Literatura Página 10 de 20 − José de Alencar Maior nome da prosa romântica brasileira, cultivou o teatro, o romance, a crônica, obras críticas e uma autobiografia: Como e por que sou romancista (1873). Num de seus últimos trabalhos, procurou organizar sua obra em categorias, para justificar seu projeto nacionalista. Adotaremos a própria divisão temática e periódica de Alencar para seus romances, encontrada em sua apresentação à obra Sonhos d’Ouro14. a. Romances indianistas São as lendas e mitos da terra selvagem e conquistada; são as tradições que embalaram a infância do povo, e ele escutava como filho a quem a mãe acalenta no berço com as canções da pátria, que abandonou. Iracema pertence a essa literatura primitiva, cheia de santidade e enlevo, para aqueles que venceram na terra da pátria a mãe fecunda – alma mater –, e não enxergam nela o chão onde pisam. Exemplos: Ubirajara e Iracema. b. Romances históricos Representa o consórcio do povo invasor com a terra americana, que dele recebia a cultura, e lhe retribuía nos eflúvios de sua natureza virgem e nas reverberações de um solo esplêndido. [...] É a gestação lenta do povo americano, que devia sair da estirpe lusa, para continuar no novo mundo as gloriosas tradições de seu projenitor. Exemplos: O Guarani e As minas de prata. c. Romances regionais (ou sertanistas) Onde não se propaga com rapidez a luz da civilização, que de repente cambia a cor local, encontra-se ainda em sua pureza original, sem mescla, esse viver singelo de nosso país, tradições, costumes e linguagem, com um sainete todo brasileiro. Há não somente no país, como nas grandes cidades, até mesmo na corte, desses recantos, que guardam intacto, ou quase, o passado. Exemplos: O tronco do ipê, Til, O gaúcho e O sertanejo. 14 Todos os trechos citados foram extraídos de Alfredo Bosi, op. cit. d. Romances urbanos Compõem perfis femininos e quadros da sociedade para pintar a elite carioca do século XIX. Detêm-se, em vários momentos, na crítica à civilização entregue aos interesses econômicos. Exemplos: Lucíola e Senhora. Para Antonio Candido, porém, a divisão que se deve fazer na obra de Alencar é outra. Haverá pelo menos três alencares: Alencar dos rapazes As personagens são heróis idealizados, puros, inteiriços, que não se deixam abater por monstros, vilões ou perigos (ou se abatem apenas aparentemente para logo recuperar sua grandeza de caráter e soberania de atitudes) e ascendem como se numa apoteose para o gran finalle, sem o apelo necessário do final feliz. Mundo de grandezes épicas e lógicas arbitrárias, atrairia o gosto daqueles que buscam o entretenimento por meio de aventuras. O herói Peri de O Guarani se encaixa perfeitamente aqui. É também o caso de O gaúcho, O sertanejo, Ubirajara e As minas de prata. Alencar das moças As personagens são mulheres cândidas e moços impecavelmente bons, “que dançam aos olhos do leitor uma branda quadrilha, ao compasso do dever e da consciência, mais fortes que a paixão. As regras desse jogo bem conduzido iniciam-se com um obstáculo que ameace a união dos namorados, sem contudo destruí-la: tuberculose, honra comercial, erro sentimental, fedelidade ao passado, respeito à palavra. Em todos esse livros [...] o fulcro de energia narrativa é sempre a mulher, desde as evanescentes e apagadas, como a viuvinha, até a imperiosa Diva, que procura compensar a fraqueza e desconfiança da menina feia, tornada de repente bonita, por meio duma desequilibrada energia”.15 Alencar dos adultos Esse é o veio mais complexo de Alencar – onde os outros dois se encontram –, com romances constituídos por elementos pouco heroicos e pouco elegantes, mas dotados de inegável humanidade. Além disso, aí o autor dá força aos problemas ocasionados pelo desnível social. Só em Senhora e Lucíola, por exemplo, a mulher e o homem estão em pé de igualdade. No primeiro, uma forte história de conspurcação pelo dinheiro, “resolve, mesmo, largar um pouco o herói e, em vez de casá-lo com a herdeira rica, o faz vender-se a uma esposa milionária. Fernando Seixas é um intelectual elegante e pobre que [...] resolve o problema da posição social trocando por cem contos a liberdade de solteiro numa transição escusa”.16 Talvez a vertente mais rica, no sentido de nos conduzir à incessante busca romântica da identidade nacional, seja a indianista. 15 Antonio Candido, op. cit., p. 203. 16 Antonio Candido, op. cit., p. 205. Profª. Cristiane Literatura Página 11 de 20 O indianismo na obra de Alencar À primeira vista, o tempo de ruptura que moldou o primeiro quartel do século XIX no Brasil exigiria uma quebra entre a nação e a colônia e uma busca da afirmação do ser brasileiro em contraposição ao português, o americano versus o europeu. Sob essa ótica, poderíamos esperar que o índio ocupasse no imaginário pós-colonial o lugar do rebelde, mas não foi exatamente o que aconteceu com o autor de Senhora. Talvez por ter sido o primeiro a explorar na prosa mais profundamente o indianismo e não ter outro autor em quem se inspirar, o índio de Alencar entra em comunhão com o colonizador: não há um universo próprio do índio brasileiro, mas uma fusão dele com o fantasioso imaginário romântico medieval europeu. O heroísmo, a beleza e a naturalidade do nosso índio agregam-se ao poder do conquistador. Para Alfredo Bosi, o destino do nativo era tratado como sacrifício espontâneo e sublime: O mito alencariano reúne, sob a imagem comum do herói, o colonizador, tido como generoso feudatário, e o colonizado, visto, ao mesmo tempo, como súdito fiel e bom selvagem. Na outra face, que contempla a invenção, traz o mito signos produzidos conforme uma semântica analógica, sendo um processo figural, uma expressão romanesca, uma imagem poética. Na medida em que alcança essa qualidade propriamente estética, o mito resiste a integrar-se, sem mais, nesta ou naquela ideologia. Alfredo Bosi. Dialética da colonização. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 180. Diferentemente de Gonçalves Dias, que, quase apocalipticamente, vê com terror a aculturação de um povo, Alencar volta-se para a construção ideal de uma nova nacionalidade emergida do contexto colonial, daí Bosi afirmar o mito sacrificial como uma interpretação feudalizante da nossa história. Mais uma vez, a ideologia do colonizador se sobrepõe à nossa visão de mundo. O herói selvagem inclui-se na esfera de nobreza conquistadora: “é como se o cronista pusesse a História entre parênteses e imergisse numa paisagem sem tempo.”17 Peri é, ao mesmo tempo, tãonobre quanto os mais ilustres barões portugueses que haviam combatido em Aljubarrota ao lado do Mestre de Avis, o rei cavalheiro, e servo espontâneo de Cecília, a quem chama Uiára, isto é, senhora. Também Iracema, no romance homônimo, torna-se mulher de Martim Soares Moreno, mas a relação de sexos importa aí menos que a de domínio: a índia não é senhora, mas serva do conquistador, e morrerá por sua causa. Alfredo Bosi, op. cit., p. 190. De forma alguma, porém, esse ideário tão presente na obra de Alencar diminui a grandiosidade de seu estilo e a beleza de uma obra tão poética como Iracema. Uma das 17 Alfredo Bosi, op. cit., p. 192. 18 Narração escrita ou oral, de caráter maravilhoso, na qual os fatos históricos são deformados pela imaginação popular ou pela imaginação poética (Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Novo Aurélio Século XXI. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1999). mais comoventes obras indianistas do autor, merece um estudo mais detalhado. Iracema, a virgem dos lábios de mel Iracema, publicado pela primeira vez em 1865, narra a trágica história da bela índia que, apaixonada pelo guerreiro branco, entrega-se a ele, paixão que a leva à morte. O romance é subintitulado “a lenda do Ceará”, terra natal de Alencar, que pretendia criar um mito de origem do Brasil e convencer os leitores de que a história que nos conta é uma lenda18. Note como, apesar de o texto ser narrado quase todo em terceira pessoa, a primeira surge em certos momentos: Uma história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci, à calada da noite, quando a lua passeava no céu argenteando os campos, e a brisa rugitava nos palmares.19 Quando se nos dirige pessoalmente, acreditamos que a história emula a fala de um velho índio que constrói sua narrativa oralmente, segundo sua tradição. Está criado o mito, inclusive com sustentação histórica. No argumento histórico que precede a narrativa, Alencar esclarece a real existência de personagens como Martim Soares Moreno, Jacaúna e Poti (batizada Antônio Filipe Camarão). A guerra entre os Pitiguaras (tribo que ocupava o litoral do Ceará, aliada dos portugueses) e os Tabajaras (tribo que habitava a Serra do Ibiapaba, aliada dos franceses) ocorreu no início do século XVII. O tempo do narrador, a atualidade de então, portanto, difere do tempo das personagens. O tempo histórico do livro abarca o início do século XVII. Os capítulos de II a XXXII se passam no início de 1604, mas o primeiro capítulo não corresponde ao início da narrativa. Seria a fala em primeira pessoa do narrador que nos conta o amor da filha de Araquém, pajé da tribo dos Tabajaras, por Martim, primeiro colonizador português do Ceará. Se a ordem fosse linear, esse capítulo estaria entre o XXXII e o XXXIII, que começa em 1608 e termina em 1611. Observamos também a existência de um tempo poético: 19 Todos os excertos de Iracema foram extraídos de José de Alencar. Iracema. 2 ed. São Paulo: FTD, 1992. (Coleção Grandes Leituras.) Profª. Cristiane Literatura Página 12 de 20 A cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias do Ceará, levando no frágil barco o filho e o cão fiel. (cap. XXXIII – quatro estações = quatro anos). Quatro luas tinham alumiado o céu depois que Iracema deixara os campos de Ipu; e três depois que ela habitava nas praias do mar a cabana de seu esposo. (cap. XXIII – luas = meses) Três sóis havia que Martim e Iracema estavam nas terras do pitiguaras, senhores das margens do Camucim e Aracaju. (cap. XX – sóis = dias) Era o tempo em que o doce aracati chega do mar e derrama a deliciosa frescura pelo árido sertão. A planta respira; um suave arrepio eriça a verde cama da floresta. (cap. VI – aracati é a brisa marítima que refresca as tardes de verão) Quadro de Antônio Parreiras mostra o sofrimento de Iracema. No trecho a seguir, observe como o autor descreve Iracema. Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápida que a corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas. Um dia, ao pino do Sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava- lhe o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto. Iracema saiu do banho: o aljôfar d’água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste. A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru de palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá, as agulhas da juçara com que tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão. Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se. Diante dela e todo a contemplá-la está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo. Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido. De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d’alma que da ferida. O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa que causara. A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada. O guerreiro falou: — Quebras comigo a flecha da paz? — Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu? — Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus. — Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldeias, e à cabana de Araquém, pai de Iracema. A idealização da heroína, que a tantos leitores incomoda, é, na verdade, um dos pontos altos da obra. Note que sua beleza está sempre vinculada a elementos da natureza brasileira: seus cabelos são comparados à asa da graúna; seu talhe, ao da palmeira; seu sorriso, ao favo da jati, e assim por diante. Não é à toa: a obra é uma alegoria do processo de colonização da América: se Iracema representa a natureza americana, Martim (derivado de Marte, deus da guerra) simboliza o guerreiro europeu que desvirgina as matas nativas. Para a mata virgem, um fim trágico. Da união de ambos, porém, decorre o nascimento de Moacir, o filho da dor, o primeiro cearense; por extensão, o primeiro brasileiro. É interessante perceber a influência dos mitos bíblicos na construção da obra: “filho de minha dor” é também o nome que Raquel, mulher do patriarca Jacó, dá a seu último filho – em hebraico, Benoni. Os filhos de Jacó originariam as tribos que formam a nação de Israel, assim como o filho de Iracema e Martim dá origem aos brasileiros. Afrânio Coutinho, estudioso da nossa literatura,chegou a afirmar que até mesmo a escolha do nome da protagonista tem um sentido alegórico: Iracema é anagrama da palavra América. É importante ressaltar que a heroína não é submissa ao colonizador; ao contrário, é ela que toma a iniciativa do ato amoroso. O mito sacrificial proposto por Bosi mostra--se na entrega pacífica da índia ao colonizador. A crítica ainda não decidiu se Iracema é um poema em prosa ou uma prosa poética. É unânime, porém, que a narrativa é lírica não só na temática, mas também na forma. A poesia está presente tanto na escolha das imagens como no ritmo cadenciado que, em alguns momentos, apresenta- se em redondilhos: Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba. É notável o tom de oralidade que perpassa a obra. A linguagem do livro é rica também na influência do Tupi, seja na escolha dos vocábulos, nas construções frasais ou nas aliterações e assonâncias. Haroldo de Campos observou a recorrência de rimas com vogais abertas, típicas da língua indígena. Observe no trecho a sonoridade alcançada a partir da repetição do /a/: Profª. Cristiane Literatura Página 13 de 20 A graciosa ará, sua companheira e amiga, brica junto dela. Às vezes sobe os ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome. Não é à toa que Machado de Assis, aos 27 anos, escreveu sobre Iracema no Diário do Rio de Janeiro, em 1886: “Tal é o livro do Sr. José de Alencar, fruto do estudo e da meditação, escrito com sentimento e consciência [...] Há de viver este livro, tem em si as forças que resistem ao tempo, e dão plena fiança do futuro [...] Espera-se dele outros poemas em prosa. Poema lhe chamamos este, sem curar de saber se é antes uma lenda, se um romance: o futuro chamar-lhe-á obra-prima.” A obra realmente alcançou a atualidade. O Modernismo retomará a busca da identidade nacional e o índio voltará a aparecer, não mais idealizado. A excentricidade de Manuel Antônio de Almeida, um brasileiro20 Talvez circunstâncias de então marcadas pela sentimentalidade expliquem certa indiferença pela publicação em folhetins [...] das Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Era um desvio da proposta bem sucedida, quanto ao acatamento público, do romance de Macedo. [...] Disfarçaria sobretudo a sentimentalidade subordinada à perspectiva do triunfo do primeiro amor. Ao mesmo tempo, manter-se-ia fiel a esta tese romântica, que também atribuía à pureza do amor um poder reabilitador e reintegrador numa sociedade em que o sistema ético se impunha fortemente disciplinador. José Aderaldo Castello, A literatura brasileira – origens e unidade. Vol I, São Paulo: Edusp, 1999, p. 238. Manuel Antônio de Almeida (1830-1861) e as suas Memórias de um sargento de milícias (1852 a 1853) passaram despercebidos pela crítica literária durante muitos anos, talvez por destoarem da sentimentalidade predominante nas obras do período. As leituras históricas que se fazem sobre as obras literárias acabam determinando aquelas que serão (ou não) valorizadas. Assim como as Memórias, essa revalorização por parte da 20 Pseudônimo utilizado pelo autor na primeira publicação das Memórias de um sargento de milícias. 21 Antonio Candido e José Aderaldo Castello, Presença da Literatura Brasileira – das origens ao Realismo. 2 vol. 13 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008, p. 210 crítica especializada também ocorreu com livros de inegável importância como A divina comédia de Dante Alighieri ou Dom Quixote de Cervantes. Assim, diversas e sucessivas interpretações das memórias de um sargento de milícias esclarecem para nós não apenas a razão da sua importância nos dias de hoje, mas também a visão do homem do período em que a leitura foi traçada. Originalmente publicadas em folhetins no Correio Mercantil, as Memórias apresentam situações amorais, bem humoradas e são marcadas por um estilo coloquial e despojado, desinflado dos floreios românticos característicos das obras publicadas na mesma época. Isentas de traços idealizantes e repletas de tipos populares caricaturados, têm como autor um médico que nunca exerceu a profissão e que trabalhou toda a vida como jornalista; um escritor ausente de compromissos literários ou ambições de reconhecimento. A fluidez do discurso, que produz um efeito de espontaneidade e o talento narrativo de Manuel Antônio, reconhecidos anos mais tarde, tornaram as Memórias um dos romances mais estimados da nossa literatura. A obra nos oferece uma representação da sociedade carioca, que muito nos diz sobre a época de D. João VI no Brasil, através da história de Leonardo, “filho de uma pisadela e um beliscão”, conforme explicam os críticos Antonio Candido e José Aderaldo Castello21: O meirinho22 Leonardo Pataca e a saloia23 Maria da Hortaliça, vindos juntos de Portugal, têm um filho ilegítimo, Leonardo, personagem central do livro. Separados os pais, o menino é criado pelo barbeiro seu padrinho (o Compadre). As personagens, e sobretudo ele, se envolvem em toda sorte de ocorrências pitorescas, que fazem da narrativa uma sucessão vertiginosa de episódios e vão servindo ao autor para descrever os tipos, ambientes e costumes do Rio, na primeira metade do século XIX. Leonardo acaba alistado na tropa em castigo das suas malandragens, mas chega a sargento e consegue passar para a reserva. Casa-se então com o seu amor de infância, Luisinha, já viúva, pois esta havia sido obrigada pela tia que a criara, D. Maria, a desposar um intrigante. A partir da história do protagonista e de seu pai, também Leonardo, anti-heróis que estão muito longe de ser vilões, o autor relaciona o tempo das memórias (início do século XIX) com o tempo presente (meados do mesmo século), tão distantes entre si, mas que se fundem num mesmo espaço e que, por isso, se completam e acabam por construir um mesmo quadro contemporâneo. Assim, é um romance também representativo da narrativa urbana, característica, como vimos no caderno anterior, de autores românticos como José de Alencar. Por não ser, porém, uma obra típica da época, há uma discussão que perpassa os críticos que se debruçaram sobre as Memórias: seriam elas uma antecipação do Realismo24 em pleno Romantismo? 22 Funcionário judicial, correspondente ao atual oficial de justiça. 23 Camponesa dos arredores de Lisboa. 24 Realismo: escola literária que sucede o Romantismo, antirromântica por excelência, que estudaremos com mais propriedade nas próximas aulas. Profª. Cristiane Literatura Página 14 de 20 Romântico ou realista? No excerto a seguir, o narrador oferece a descrição de Luisinha, par romântico do protagonista do livro, Leonardo. Observe a maneira como ela é caracterizada: XVIII – Amores (excerto) Depois de mais algumas palavras trocadas entre os dois, D. Maria chamou por sua sobrinha, e esta apareceu. Leonardo lançou-lhe os olhos, e a custo conteve o riso. Era a sobrinha de D. Maria já muito desenvolvida, porém que, tendo perdido as graças de menina, ainda não tinha adquirido a beleza de moça: era alta, magra, pálida: andava com o queixo enterrado no peito, trazia as pálpebras sempre baixas, e olhava a furto; tinha os braços finos e compridos; o cabelo, cortado, dava-lhe apenas até o pescoço, e como andava mal penteada e trazia a cabeça sempre baixa, uma grande porção lhe caía sobre a testa e olhos como uma viseira. Trajava nesse dia um vestido de chita roxa muito comprido, quase sem roda, e de cintura muito curta; tinha ao pescoço um lenço encarnado de Alcobaça. Por mais que o compadre a questionasse, apenas murmurou algumas frases ininteligíveis com voz rouca e sumida. Mal a deixaram livre, desapareceu sem olhar para ninguém. Vendo-a ir-se, Leonardo tornou a rir-se interiormente. Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias. 31 ed. São Paulo:Ática, 2004, p. 66. Note que, a despeito de ter sido descrita numa época de pleno vigor romântico, a heroína de idealizada não tem nada. Diferentemente de outros autores de seu tempo, Manuel Antônio de Almeida não se enquadra completamente em padrões estéticos e em racionalizações ideológicas recorrentes no Brasil da primeira metade do século XIX: em sua obra não há indianismo, nacionalismo, grandeza do sofrimento, redenção pela dor etc. Apesar disso, cabe ainda interpretá-lo como um autor romântico. Antonio Candido justifica: Há no Romantismo certas obras de ficção que poderíamos chamar de excêntricas em relação à corrente formada pelas outras. Num conjunto de livros que exprimem, de modo mais ou menos simultâneo, as diversas tendências da ficção romântica para o fantástico, o poético, o quotidiano, o pitoresco, o humorístico, elas encarnam de modo quase exclusivo uma ou outra dentre elas, ficando assim meio à parte, como as Memórias de um Sargento de Milícias. Consideremos, porém, que nem o seu ponderado realismo nem o satanismo d’A Noite na Taverna [de Álvares de Azevedo] ou a poesia em prosa de Iracema [de José de Alencar], se afastam ou se opõem à corrente romântica: apenas decantam alguns de seus aspectos. Antonio Candido. Formação da Literatura Brasileira, vol. 2. 8 ed. Belo Horizonte / Rio de Janeiro: Itatiaia, 1997, p. 195. O crítico José Veríssimo, o primeiro a se debruçar seriamente sobre a obra, a comentar as Memórias de um sargento de milícias, em 1894, definiu-as como um romance de costumes caracterizado por um realismo antecipado, já que descreveria com a objetividade realista alguns lugares e cenas do Rio de Janeiro à época de D. 25 Antonio Candido, “Dialética da malandragem” in O discurso e a cidade, 3 ed, São Paulo/ Rio de Janeiro: Duas Cidades / Ouro sobre Azul, 2004. 26 Darcy Damasceno, “A afetividade linguística nas Memórias de um Sargento de Milícias” in Revista Brasileira de Filologia, vol. 2, tomo II, dez. 1956, p. 156. João VI. Romance de costumes, sim; mas daí a considerar que a obra é pré-realista é um grande exagero. Diversamente aos romances realistas da segunda metade do século XIX, as quais estudaremos com profundidade nas próximas aulas deste caderno, não há apregoação moral ou juízo de valor que envolva as Memórias ou mesmo seu narrador, o qual isenta as personagens de culpa. Não há figura que mereça censura; as boas atitudes das personagens equilibram-se com as más, numa espécie de pêndulo. Mesmo o Major Vidigal, figura histórica representativa da ordem e da moral, se pega em alguns trechos corroborando com a imoralidade. Além disso, não há realismo em sentido moderno; há, sim, como diz Candido, um “realismo espontâneo, [...] baseado na intuição da dinâmica social do Brasil na primeira metade do século XIX”25 e não em teses ou estudos científicos sobre a sociedade brasileira. Há o predomínio do “imaginoso e do improvisado sobre a retratação histórica”26. Não podemos também confundir uma obra realista com um retrato documental, e mesmo no nível do documentário as Memórias de um sargento de milícias são restritas, já que “ignora[m] as camadas dirigentes, de um lado, as camadas básicas, de outro”27. Realmente, o enfoque do livro é dado à pequena burguesia, com exceção de dois padres; de D. Maria e Luisinha, representantes de uma camada mais abastada da sociedade; de um chefe de polícia e de uma ou outra figura vinculada à corte. Não há, também, a presença do negro. Assim, sobre o aspecto documental do romance, Candido conclui que: [...] devemos começar verificando que o romance de Manuel Antônio de Almeida é constituído por alguns veios descontínuos, mas discerníveis, arranjados de maneira cuja eficácia varia: 1. os fatos narrados, envolvendo as personagens; 2. Os usos e costumes descritos; 3. As observações judicativas do narrador e de certos personagens. Quando o autor os organiza de modo integrado, o resultado é satisfatório e nós podemos sentir a realidade. Quando a integração é menos feliz, parece-nos ver uma justaposição mais ou menos precária de elementos não suficientemente fundidos, embora interessantes e por vezes encantadores como quadros isolados. Neste último caso é que os usos e costumes aparecem como documento, prontos para a ficha dos folcloristas, curiosos e praticantes da petit histoire. Antonio Candido, “Dialética da malandragem” in O discurso e a cidade, 3 ed, São Paulo/ Rio de Janeiro: Duas Cidades / Ouro sobre Azul, 2004, p. 28. Para o crítico, cuja interpretação das Memórias utilizaremos para compor a estrutura de nossa aula, a primeira metade da obra teria um caráter de crônica28, enquanto a segunda metade seria voltada para o romance, já que o elemento documentário seria parte constitutiva da ação, de maneira “que nunca parece que o autor esteja informando ou desviando a nossa atenção para um traço da sociedade”.29 27 Antonio Candido, op. cit. 28 Texto redigido de forma livre e pessoal que tem como tema assuntos e fatos relacionados com a atualidade (período em que foi escrito). 29 Antonio Candido, idem. Profª. Cristiane Literatura Página 15 de 20 Mário de Andrade, cujo interesse pela obra é manifesto e pode ser observado em termos de influência em obras modernistas como Macunaíma (1928), que apresenta traços fundamentais do esteriótipo brasileiro já presentes em certa medida nas Memórias, reorientou em 1941 a crítica30, ao definir o livro de Manuel Antônio de Almeida como um romance de tipo marginal com personagens anti-heroicos, modalidades de pícaro31. Porém, segundo Candido, é preciso atentar para as diferenças entre o pícaro da tradição espanhola e Leonardo filho. Apesar da origem humilde e irregular, do jogo de cintura e da leveza com que lida com os fatos, de ser motivado pelas circunstâncias e de viver ao sabor da sorte, o protagonista de Manuel Antônio de Almeida não é abandonado no mundo: já nasce malandro feito, não nutre em nenhum momento condição servil, não aprende com a experiência, não busca agradar os superiores e cultiva sentimentos leais e sinceros por amores e amigos. Em Memórias de um sargento de milícias há uma visão dinâmica da matéria narrada – o herói é personagem como os outros, apesar de preferencial. Mesmo na caricatura, diversamente ao romance picaresco, o livro é discreto e faz uso de vocabulário médio, não chega a ser obsceno. Assim, podemos afirmar que, em vez de um romance seguidor da tradição picaresca, inicia uma nova tradição que marcaria muitas obras posteriores: Leonardo filho é o primeiro grande malandro da novelística brasileira, vindo da tradição folclórica, cômica e popularesca. O protagonista pratica a esperteza pela esperteza e a sua malandragem faz lembrar a de heróis populares: visa ao próprio proveito ou à resolução de problemas concretos. Vejamos o que afirma Candido sobre aspectos do romance malandro que fariam com que o livro se projetasse no tempo: Poderíamos, então, dizer que a integridade das Memórias é feita pela associação íntima entre um plano voluntário (a representação dos costumes e cenas do Rio) e um plano talvez na maior parte involuntário (traços semi-folclóricos, manifestados sobretudo no teor dos atos e das peripécias). Como ingrediente, um realismo espontâneo e corriqueiro, mas baseado na intuição da dinâmica social do Brasil na primeira metade do século XIX. E nisto reside provavelmente o segredo da sua força e da sua projeção no tempo. Antonio Candido, “Dialética da malandragem” in O discurso e a cidade, 3 ed, São Paulo/ Rio de Janeiro: Duas Cidades / Ouro sobre Azul, 2004, p. 25. Assim sendo, apesar de tão diferente das obras típicas produzidas no mesmo período, podemos qualificar as Memórias como um exemplar romântico: temos aqui, segundo Candido, a velha história do herói que passa por diversas peripécias até alcançar finalmente a felicidade.E é verdade que, como afirmou Mário de Andrade, “o livro 30 Mário de Andrade, “Introdução”, in Manuel Antonio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias. 31 Personagem advindo da literatura espanhola que tem, dentre outras características, a marca de ser travesso, bufão e ardiloso. 32 Citado por Antonio Candido in Formação da Literatura Brasileira, vol. 2. 8 ed. Belo Horizonte / Rio de Janeiro: Itatiaia, 1997, p. 196. acaba quando o inútil da felicidade principia”32. O movimento é a lei do livro e a felicidade é estática por vocação, daí o seco e direto último parágrafo: Daqui em diante aparece o reverso da medalha. Seguiu- se a morte de D. Maria, a do Leonardo Pataca, e uma enfiada de acontecimentos tristes que pouparemos aos leitores, fazendo aqui o ponto final. Manuel Antônio de Almeida, op. cit., p. 152. O que para José de Alencar seria material para um grand finale, para Manuel Antônio dispensa comentários. Assim, as Memórias de um sargento de milícias seguem a tendência da produção cômica e satírica da Regência e dos primeiros anos do segundo reinado. Nada que se distinguisse tanto das crônicas e das obras jornalísticas da época... Martins Pena também traz a caricatura política em suas peças de teatro, e nem por isso é chamado realista. Um jantar brasileiro, Jean-Baptiste Debret, 1827, aquarela sobre papel. O crítico Astrojildo Pereira chegou a comparar a obra de Manuel Antônio de Almeida às gravuras de Debret33 (1768-1848) pela força representativa. Tempo e espaço: romance de costumes Os acontecimentos narrados em Memórias de um sargento de milícias se passam no Rio de Janeiro central: Restrito espacialmente, a sua ação decorre no Rio, sobretudo no que são hoje as áreas centrais e naquele tempo constituíam o grosso da cidade. Nenhum personagem deixa seu âmbito e apenas uma ou duas vezes o autor nos leva ao subúrbio, no episódio do Caboclo do Mangue e na festa campestre da família da Vidinha. Antonio Candido, “Dialética da malandragem” in O discurso e a cidade, 3 ed, São Paulo/ Rio de Janeiro: Duas Cidades / Ouro sobre Azul, 2004, p. 27. 33 Pintor e desenhista francês, fundou no Rio de Janeiro a Academia de Artes e Ofícios, onde lecionou pintura. Em 1831, de volta à França, publicou Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, obra na qual documentou aspectos da natureza, do homem e da sociedade brasileira do início do século XIX. Profª. Cristiane Literatura Página 16 de 20 Apesar de ter sido publicado como romance de folhetim entre os anos de 1852 e 1853, o texto narra episódios das primeiras décadas do século XIX, período em que D. João VI mudou-se com a família real para o Brasil. A única referência temporal que há nas Memórias encontra-se no início do livro, “era no tempo do rei”, que ademais as liga a um padrão de contos da carochinha. O tempo é, portanto, quase inexistente na composição, o que a vincula, como já dissemos, ao romance de costumes: a narrativa é mais voltada a retratar os fatos e costumes do Rio joanino do que a desenvolver um enredo – mesmo porque o autor chega a se esquecer do parentesco atribuído a determinadas personagens. Vejamos o que afirma Candido a respeito do tempo e do romance de costumes: Daí a composição do livro estar ligada á lógica do acontecimento, que por sua vez obedece ao movimento mais amplo do panorama social. O que encontramos no fundo do romance é essa condição, de ordem sociológica. Manuel Antônio deseja contar de que maneira se vivia no Rio popularesco de D. João VI: as famílias mal organizadas, os vadios, as procissões, as festas, as danças, a polícia; o mecanismo dos empenhos, influências, compadrios, punições, que determinavam uma certa forma de convivência e se manifestavam por certos tipos de comportamento. Como é artista vê, não o fenômeno, mas a sua manifestação, o fato: vê as situações em que aquelas condições se exprimem e apresenta uma coleção de cenas e acontecimentos. O livro aparece, pois, como sequência de situações, cuja precária unidade é garantida pela pessoa de Leonardo, verdadeiro pretexto, como nos romances picarescos. Essas situações, esses blocos de acontecimentos, se justapõem de certo modo e, salvo o tênue fio dos amores de Leonardo e Luisinha, não há entre eles precedência cronológica necessária. É que o tempo é quase inexistente na composição: aparece como dimensão inevitável de toda série de fatos, mas não como elemento conscientemente utilizado. [...] O movimento, a agitação incessante do livro pressupõem o tempo, mas não se inserem devidamente nele. Antonio Candido. Formação da Literatura Brasileira, vol. 2. 8 ed. Belo Horizonte / Rio de Janeiro: Itatiaia, 1997, p. 198. Estilo e linguagem O estilo do livro evita os floreios presentes em outras obras da época: busca frases objetivas, ordem direta, um tom coloquial e neutro. Sobre isso, afirma Candido: Pelo fato de ser um principiante sem compromissos com a literatura estabelecida, além de resguardado pelo anonimato, Manuel Antônio ficou à vontade e aberto para as inspirações do ritmo popular. Esta costela trouxe uma espécie de sabedoria irreverente, que é pré-crítica, mas que, pelo fato de reduzir tudo à amplitude da “natureza humana”, se torna afinal mais desmistificadora do que a intenção quase militante de um Alencar, mareada pelo estilo de classe. Sendo neutro, o estilo encantador de Manuel Antônio fica translúcido e mostra o outro lado de cada coisa, exatamente como o balanceio de outros 34 Segundo Hegel, “a natureza verdadeira e única da razão e do ser que são identificados um ao outro e se definem segundo o processo racional que procede pela união incessante de períodos. [...] Daí a equivalência dos opostos e a anulação do bem e do mal, num discurso desprovido de maneirismo. [...] A linguagem de Manuel Antônio, desvinculada da moda, torna amplos, significativos e exemplares os detalhes da realidade presente, porque os mergulha no fluido do populário, que tende a matar lugar e tempo, pondo os objetos que toca além da fronteira entre os grupos. É pois no plano do estilo que se entende o desvinculamento das Memórias em relação à ideologia das classes dominantes de seu tempo –, tão presente na retórica liberal e no estilo florido dos “beletristas”. Trata-se de uma libertação, que funciona como se a neutralidade moral correspondesse a uma neutralidade social, misturando as pretensões das ideologias no balaio da irreverência popularesca. Antonio Candido. “Dialética da malandragem” in O discurso e a cidade. 3 ed. São Paulo: Duas Cidades; Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004, p. 45. Já que essa neutralidade moral faz parte da obra, torna- se claro porque apenas depois do Modernismo ela tenha alcançado o reconhecimento da crítica. O narrador descreve as personagens sem ater-se a julgamentos. Ao caracterizá-las, mostra simultaneamente seu lado bom e seu lado mau: “Era a comadre uma mulher baixa, excessivamente gorda, bonachona, ingênua ou tola até certo ponto, e finória até outro” (p. 30); “O velho tenente- coronel, apesar de virtuoso e bom, não deixava de ter na consciência um sofrível par de pecados, desses que se chamam da carne, e que não hão de ser levados em conta, não de hoje, que a idade o tornara inofensivo, porém do tempo da sua mocidade” (p. 37); “D. Maria tinha um bom coração, era benfazeja, devota e amiga dos pobres, porém em compensação destas virtudes tinha um dos piores vícios daquele tempo e daqueles costumes: era a mania das demandas” (p. 61). Num universo sem culpas, quaisquer males parecem remediáveis. Ordem versus desordem: a dialética da malandragem segundo Candido Candido afirma que há na obra um estrato de personagens constituídos a partir da dialética34 da ordem e da desordem. Ao centro da base estaria Leonardo filho, com sua mãe à direita
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