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PV - 3 Série - Livro 1 - Octa Mais-81

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ATIVIDADE
C5 | H15
O Humanismo pode ser visto até hoje em nossos autos populares, como as apresentações do bumba meu boi (nas 
festas juninas) e dos presépios (no Natal). 
A poesia evolui no Humanismo, mas é o teatro que ganha destaque, especialmente as peças do autor português Gil 
Vicente, ainda hoje representadas nos palcos de Portugal e do Brasil. Vamos conferir a seguir as permanências e os avan-
ços da literatura em língua portuguesa durante o período medieval, especialmente em relação à evolução do pensamento 
humano e às formas de convivência social.
Humanismo: uma retomada do senso de humanidade
 � Humanismo: primeira mudança de paradigma na literatura portuguesa
O Humanismo é a corrente artística e filosófica que marca a transição entre a arte medieval e a arte renascentista. Como seu 
nome indica, remete-se ao que é próprio do pensamento humanista. Reflexo da queda da visão teocêntrica (Deus no centro do Uni-
verso) e, consequentemente, dos primeiros sinais da visão antropocêntrica (o homem no centro do Universo), a literatura humanista 
está ligada ao desenvolvimento dos burgos (cidades) e ao fortalecimento da classe burguesa (comerciantes), que ficava entre os 
nobres e os camponeses. 
Os burgueses portugueses empreendiam viagens pelo Mar Mediterrâneo em busca de novas mercadorias. Disso decorria o 
contato com outros povos e culturas, o que fomentou novas formas de ver e entender o mundo. Assim, os burgueses foram cul-
tivando uma confiança crescente em si mesmos e nas oportunidades comerciais, que representavam possibilidades de mudança. 
Leonardo da Vinci/Web Gallery of Art (Domínio público)
Nuno Gonçalves, Painéis de São Vicente, c. 
1470, óleo e têmpera sobre madeira de car-
valho, Museu Nacional de Arte Antiga, Lis-
boa, Portugal. É a primeira grande obra da 
pintura portuguesa, retratando o encontro 
entre São Vicente (o patrono de Portugal) e 
o infante D. Henrique (o navegador por exce-
lência). Figuram na imagem nobreza, clero e 
povo, e os traços realísticos demonstram o 
estilo humanista do pintor.
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LITERATURA – FRENTE ÚNICA240
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Humanismo: uma retomada do senso de humanidade
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2020-PV-LIT-OCTA+-V1-FU.INDD / 22-10-2019 (09:19) / ANDERSON.OLIVEIRA / PDF GRAFICA 2020-PV-LIT-OCTA+-V1-FU.INDD / 22-10-2019 (09:19) / ANDERSON.OLIVEIRA / PDF GRAFICA
Em meados do século XV, Portugal iniciou as chamadas 
Grandes Navegações – ou era dos grandes descobrimentos –, 
que permitiram ampliar cada vez mais o espaço do comér-
cio dentro do reino. Motivados por formas mais lucrativas 
de negócios, aventureiros portugueses buscaram rotas ma-
rítimas que permitissem acesso mais direto às mercadorias 
do Oriente. À medida que surgiram, vieram os primeiros re-
sultados positivos e foi aumentando a confiança no valor do 
ser humano, que, a partir desse momento, passou a ser visto 
como força motriz do universo. O verso de Fernando Pessoa 
“O mar sem fim é português”, da obra Mensagem, aponta 
para essa nova confiança no potencial de Portugal, nação que 
vinha enriquecendo e se destacando no cenário internacio-
nal da época. Esse enriquecimento foi creditado à bravura 
dos navegadores, que se tornaram os novos heróis da nação.
O infante D. Henrique de Avis, um dos príncipes de Portugal, 
foi a mais importante figura do início das Grandes Navegações, 
pois encabeçou a conquista de Ceuta, cidade localizada no 
norte da África, na altura do Estreito de Gibraltar, um porto 
comercial de grande destaque. A partir de Ceuta, Portugal 
empreendeu grandes disputas com os mouros de Marrocos 
e, assim, caiu nas graças do Papa. Não tardou para que as 
conquistas ultramarinas portuguesas fossem vistas como 
empreendimento sagrado e para que os trâmites comerciais 
ganhassem o respaldo da fé cristã. Assim, a orientação 
humanista, antropocêntrica, que a literatura portuguesa 
adquiria não diminuía a importância da religião católica no 
imaginário português: apenas ganhava nova roupagem.
Poesia palaciana 
No Humanismo, a poesia ganhou ares mais sofisticados; 
conhecida ainda como cantiga ou como poesia palaciana, era 
feita para ser declamada nos saraus, mas perdeu o acompa-
nhamento musical e ganhou novas estruturas e figuras esti-
lísticas. O Cancioneiro geral (1516), com poemas compilados 
por Garcia de Resende, traz cantigas desse segundo momen-
to da literatura portuguesa, em que o amor obteve configu-
rações mais carnais e menos idealizadas e a própria relação 
amorosa passou a ser vista de forma mais complexa. Nesse 
período, o galego e o português já se diferenciavam como 
línguas independentes; por isso, apesar da grafia antiga, os 
poemas palacianos apresentam uma linguagem mais próxi-
ma do português moderno. 
Observe, a seguir, uma cantiga de Duarte de Resende, 
relativa a uma mulher que ele servia:
Outra cantigua
Nam poffo ter o que quero,
o que tenho nam queria,
ca nam no tendo teria
huu~ bem de queu desefpero.
Nam tenho poder ~e mym,
mas tem no em mym o defejo,
desefpero, poys nam vejo
o efeyto do feu fym.
Afsy tenho o que nam quero,
& nam tenho o que queria,
ca, ffe o teueffe, teria
efte bem, que nam efpero.
RESENDE, Duarte de. In: RESENDE, Garcia de. Cancioneiro geral. Coimbra: 
Imprensa da Universidade de Coimbra, 1910. p. 164. 
Na cantiga, nota-se maior investimento nos recursos de 
linguagem. Se o eu lírico ainda lamenta a distância da mu-
lher amada, como nas cantigas de amor trovadorescas, os 
trocadilhos e as aliterações conferem menos gravidade ao 
sofrimento amoroso, pois Duarte de Resende investe nos as-
pectos lúdicos da poesia ao explorar com maior propriedade 
os aspectos semânticos e sonoros, suavizando, dessa forma, 
o servilismo e o desespero em relação à musa.
Fernão Lopes e a crônica histórica
Nuno Gonçalves, detalhe dos Painéis de São Vicente, 
c. 1470, óleo e têmpera sobre madeira de carvalho, Museu Na-
cional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal. Destaque dos Painéis de 
São Vicente em que se vê um possível retrato de Fernão Lopes.
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Fernão Lopes (c. 1378 -c. 1459) foi um cronista e o primei-
ro historiador de Portugal, responsável por renovar o modo de 
contar a história de seu país. Nomeado guarda-mor da Torre do 
Tombo, ele era encarregado do arquivo do Estado e fazia o re-
gistro dos feitos não somente do rei e dos nobres, mas também 
da “arraia miúda” (o povo). O método documental de Fernão 
Lopes não mostrava uma visão fragmentada da sociedade, em 
que apenas os grandes figuravam: ao contrário, ele descrevia 
as pequenas atividades cotidianas e fazia um retrato da vida 
de seu país, acompanhando todas as classes sociais. A partir 
de suas narrativas, é possível entrever, no ponto de vista e nos 
discursos das personagens, a força massiva da opinião pública.
LITERATURA – FRENTE ÚNICA
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Humanismo: uma retomada do senso de humanidade
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O povo e o rei
Da bem-querença e amores que el-rei D. Fernando [nono 
rei de Portugal] tomou em Lisboa com D. Leonor Teles [senhora 
já casada com um fidalgo, João Lourenço da Cunha], como já 
dissemos, foi logo fama por todo o Reino, afirmando que era sua 
mulher, e que a tinha recebido a furto. E desprouve muito, a to-
dos os da terra, da maneira que El-rei nisto teve; e não sòmente 
aos grandes e fidalgos, que amavam seu serviço e honra, mas 
ainda ao comum povo, que disto teve gram sentimento.
E não prestou razões que lhe sôbre isto falassem os de 
seu conselho, dizendo que não era bem casar com tal mu-
lher como aquela, sendo mulher de seu vassalo, e deixar tais 
casamentos de infantes filhas de reis, como achava, assim 
como de el-rei d’Aragão e de el-rei de Castela, com tanta sua 
honra e acrescentamento do Reino. E vendo que seu conse-
lho não aproveitava, cessavam de lhe falar mais nisto.Os povos do Reino, arrazoando em tais novas, cada uns 
em seus lugares, juntaram-se em magotes, como é usança, 
culpando muito os privados de El-rei e os grandes da terra, que 
lho consentiam; e que pois lho êles não diziam, como cumpria, 
que era bem que se juntassem os povos, e que lho fôssem dizer.
E entre os que se principalmente disto trabalharam, 
foram os da cidade de Lisboa, onde El-rei então estava; os 
quais, falando nisto, foram tanto por seu feito em diante, que 
se firmaram todos em conselho de lho dizer, elegendo logo 
por seu capitão, e propoedor por êles, um alfaiate que cha-
mavam Fernão Vasques, homem bem razoado e jeitoso para 
o dizer. E juntaram-se um dia bem três mil, entre mesteirais 
de todos mesteres, e bèsteiros, e homens de pé.
E todos, com armas, se foram aos paços onde El-rei pou-
sava, fazendo grande arruído em falando sôbre esta cousa. 
El-rei, quando soube que aquelas gentes ali estavam, e a 
razão por que vinham, mandou-os preguntar, por um seu pri-
vado, que era o que lhes prazia, e a que eram ali assim vindos. 
E Fernão Vasques respondeu em nome de todos, dizendo [...] 
[que] não tomasse mulher alheia, pois era cousa que lhe não 
haviam de consentir. Nem êle não havia por que lhes ter isto 
a mal, porque não queriam perder um tão bom rei como êle, 
por uma má mulher que o tinha enfeitiçado... [...]
LOPES, Fernão; CAMPOS, Agostinho de (Org.). Crônicas de 
D. Pedro e D. Fernando. Lisboa: Livrarias Aillaud & Bertrand, 
1921. p. 91-4. v. 1. (Antologia Portuguesa) 
Não prestou razões: de nada valeram as razões.
Propoedor: proponente; o que havia de propor (expor) as razões 
do povo.
Observe que, no último trecho do excerto apresentado, 
fica evidente a opinião pública da época, sendo exposta uma 
visão estereotipada da relação entre homens e mulheres: 
 estas eram culpadas por “enfeitiçar” seus amantes, enquan-
to eles permaneciam descritos como heróis, porém o herói 
em questão não conseguiu resistir aos seus “instintos”.
O teatro de Gil Vicente
Gil Vicente (c. 1465 -c. 1536) é considerado o pai do tea tro 
português. Embora esse tipo de arte fosse praticado durante 
o Trovadorismo – desde o século I, era comum por toda a 
Península Ibérica a exibição de autos e farsas populares, prin-
cipalmente representações coletivas de episódios bíblicos –, 
foi Gil Vicente quem garantiu o estatuto literário do teatro em 
Portugal. Ele adequou a tradição dos autos e das farsas medie-
vais à mentalidade vigente na época. Por meio de narrativas 
tradicionais ajustadas à linguagem coloquial desse período, Gil 
Vicente escreveu e dirigiu peças que criticavam com maestria 
todos os segmentos da sociedade. 
A primeira peça de Gil Vicente, Auto da visitação ou Mo-
nólogo do vaqueiro (1502), criada para comemorar o nasci-
mento de D. João III, o futuro rei, inaugura o teatro popular, 
e não religioso, em solo português. Com o tempo, suas peças 
foram atingindo um público cada vez mais amplo entre os 
que tinham acesso à Literatura, que, naquela época, só al-
cançava uma pequeníssima parcela da população europeia.
O teatro vicentino criticava a superficialidade dos nobres 
e a corrupção do clero e dos magistrados, mas o ponto de 
vista ainda era pautado nos valores cristãos e na confiança 
na Igreja enquanto instituição. Em suas peças, muitas vezes 
Gil Vicente criticava os indivíduos, e não necessariamente a 
instituição que eles representavam. Dessa forma, definimos 
essas obras como uma literatura de transição, ainda não to-
talmente adepta aos preceitos renascentistas. 
Caricatura de Gil Vicente.
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Humanismo: uma retomada do senso de humanidade
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O povo e o rei
Da bem-querença e amores que el-rei D. Fernando [nono 
rei de Portugal] tomou em Lisboa com D. Leonor Teles [senhora 
já casada com um fidalgo, João Lourenço da Cunha], como já 
dissemos, foi logo fama por todo o Reino, afirmando que era sua 
mulher, e que a tinha recebido a furto. E desprouve muito, a to-
dos os da terra, da maneira que El-rei nisto teve; e não sòmente 
aos grandes e fidalgos, que amavam seu serviço e honra, mas 
ainda ao comum povo, que disto teve gram sentimento.
E não prestou razões que lhe sôbre isto falassem os de 
seu conselho, dizendo que não era bem casar com tal mu-
lher como aquela, sendo mulher de seu vassalo, e deixar tais 
casamentos de infantes filhas de reis, como achava, assim 
como de el-rei d’Aragão e de el-rei de Castela, com tanta sua 
honra e acrescentamento do Reino. E vendo que seu conse-
lho não aproveitava, cessavam de lhe falar mais nisto.
Os povos do Reino, arrazoando em tais novas, cada uns 
em seus lugares, juntaram-se em magotes, como é usança, 
culpando muito os privados de El-rei e os grandes da terra, que 
lho consentiam; e que pois lho êles não diziam, como cumpria, 
que era bem que se juntassem os povos, e que lho fôssem dizer.
E entre os que se principalmente disto trabalharam, 
foram os da cidade de Lisboa, onde El-rei então estava; os 
quais, falando nisto, foram tanto por seu feito em diante, que 
se firmaram todos em conselho de lho dizer, elegendo logo 
por seu capitão, e propoedor por êles, um alfaiate que cha-
mavam Fernão Vasques, homem bem razoado e jeitoso para 
o dizer. E juntaram-se um dia bem três mil, entre mesteirais 
de todos mesteres, e bèsteiros, e homens de pé.
E todos, com armas, se foram aos paços onde El-rei pou-
sava, fazendo grande arruído em falando sôbre esta cousa. 
El-rei, quando soube que aquelas gentes ali estavam, e a 
razão por que vinham, mandou-os preguntar, por um seu pri-
vado, que era o que lhes prazia, e a que eram ali assim vindos. 
E Fernão Vasques respondeu em nome de todos, dizendo [...] 
[que] não tomasse mulher alheia, pois era cousa que lhe não 
haviam de consentir. Nem êle não havia por que lhes ter isto 
a mal, porque não queriam perder um tão bom rei como êle, 
por uma má mulher que o tinha enfeitiçado... [...]
LOPES, Fernão; CAMPOS, Agostinho de (Org.). Crônicas de 
D. Pedro e D. Fernando. Lisboa: Livrarias Aillaud & Bertrand, 
1921. p. 91-4. v. 1. (Antologia Portuguesa) 
Não prestou razões: de nada valeram as razões.
Propoedor: proponente; o que havia de propor (expor) as razões 
do povo.
Observe que, no último trecho do excerto apresentado, 
fica evidente a opinião pública da época, sendo exposta uma 
visão estereotipada da relação entre homens e mulheres: 
 estas eram culpadas por “enfeitiçar” seus amantes, enquan-
to eles permaneciam descritos como heróis, porém o herói 
em questão não conseguiu resistir aos seus “instintos”.
O teatro de Gil Vicente
Gil Vicente (c. 1465 -c. 1536) é considerado o pai do tea tro 
português. Embora esse tipo de arte fosse praticado durante 
o Trovadorismo – desde o século I, era comum por toda a 
Península Ibérica a exibição de autos e farsas populares, prin-
cipalmente representações coletivas de episódios bíblicos –, 
foi Gil Vicente quem garantiu o estatuto literário do teatro em 
Portugal. Ele adequou a tradição dos autos e das farsas medie-
vais à mentalidade vigente na época. Por meio de narrativas 
tradicionais ajustadas à linguagem coloquial desse período, Gil 
Vicente escreveu e dirigiu peças que criticavam com maestria 
todos os segmentos da sociedade. 
A primeira peça de Gil Vicente, Auto da visitação ou Mo-
nólogo do vaqueiro (1502), criada para comemorar o nasci-
mento de D. João III, o futuro rei, inaugura o teatro popular, 
e não religioso, em solo português. Com o tempo, suas peças 
foram atingindo um público cada vez mais amplo entre os 
que tinham acesso à Literatura, que, naquela época, só al-
cançava uma pequeníssima parcela da população europeia.
O teatro vicentino criticava a superficialidade dos nobres 
e a corrupção do clero e dos magistrados, mas o ponto de 
vista ainda era pautado nos valores cristãos e na confiança 
na Igrejaenquanto instituição. Em suas peças, muitas vezes 
Gil Vicente criticava os indivíduos, e não necessariamente a 
instituição que eles representavam. Dessa forma, definimos 
essas obras como uma literatura de transição, ainda não to-
talmente adepta aos preceitos renascentistas. 
Caricatura de Gil Vicente.
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Humanismo: uma retomada do senso de humanidade
2020-PV-LIT-OCTA+-V1-FU.INDD / 22-10-2019 (09:19) / ANDERSON.OLIVEIRA / PDF GRAFICA 2020-PV-LIT-OCTA+-V1-FU.INDD / 22-10-2019 (09:19) / ANDERSON.OLIVEIRA / PDF GRAFICA
Didaticamente, o teatro vicentino é dividido em: 
• Autos: peças teatrais de temática religiosa, tratada de 
modo sério ou cômico, que tinham objetivo moralizante. 
• Farsas: peças cômicas curtas, de um único ato, com te-
mas extraídos do cotidiano e que visavam a simples di-
versão.
Além disso, são características importantes do teatro vi-
centino: o texto metrificado e em versos, o que o aproximava 
de um musical ao ser declamado pelos atores; as persona-
gens-tipo, que destacavam elementos criticáveis no caráter 
de determinada classe social; os diálogos irônicos (carrega-
dos de duplo sentido), que construíam a cumplicidade com 
o público e levavam ao riso; as ideias humanistas, que sur-
giam como uma dissonância e apontavam os novos valores 
da época.
Da ampla produção teatral de Gil Vicente, destacam-se 
obras como Auto da barca do Inferno e Farsa de Inês Pereira. 
Auto da barca do Inferno
O Auto da barca do Inferno (1517), obra mais conhecida 
de Gil Vicente, é uma complexa alegoria dramática que abre 
a trilogia das barcas (seguida do Auto da barca do purgatório 
e encerrada com o Auto da barca da glória). Inicialmente, o 
texto da peça circulou em folhetins – semelhantes à literatu-
ra de cordel nordestina – e, somente em 1562, foi compilada 
em livro. 
A história resgata um elemento da mitologia grega, o 
mito de Caronte, e o reveste com o universo cristão. Na mi-
tologia grega, Caronte era o barqueiro encarregado de levar 
as almas humanas para a vida após a morte – a travessia de 
Caronte era a divisa entre o mundo dos vivos e o mundo dos 
mortos. Na abertura do Auto da barca do Inferno, descreve-
-se um cais parecido com o do mito grego, mas nele há dois 
barcos e dois barqueiros: um dos barcos é guiado por um 
anjo e tem por destino o Paraíso; o outro é guiado por um ar-
rais infernal e seu companheiro e vai em direção ao Inferno.
Então, surgem diferentes personagens-tipo – represen-
tantes de uma determinada classe social com linguajar cuida-
dosamente diferenciado – que abordam os barqueiros e vão 
sendo encaminhadas à barca que lhes é devida: um fidalgo, 
um onzeneiro, um parvo, um sapateiro, um frade, uma alco-
viteira, um judeu, um corregedor, um procurador, um enfor-
cado, quatro cavaleiros cruzados. O título decorre do fato de 
a maioria dos candidatos embarcarem para o Inferno, porém 
a peça é um auto de moralidade que aborda o julgamento das 
almas. Por meio dessa obra é possível não só vislumbrar a so-
ciedade portuguesa das primeiras décadas do século XVI, mas 
também refletir sobre problemas sociais ainda presentes no 
mundo contemporâneo.
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Alexander Dmitrievich Litovchenko, Caronte transportando almas 
através do Rio Styx, 1861, óleo sobre tela, The State Russian Mu-
seum, São Petersburgo, Rússia.
[Vem um Corregedor, carregado de feitos, com sua vara na 
mão, e chegando à barca do Inferno diz:]
CORREGEDOR: Hou da barca!
DIABO: Que quereis?
CORREGEDOR: Stá aqui o senhor juiz!
DIABO: Ó amador de perdiz.
 quantos feitos que trazeis!
CORREGEDOR: No meu ar conhecereis
 que sem gosto os trago cá.
DIABO: Como o direito vai lá?
CORREGEDOR: Nestes feitos o vereis.
DIABO: Ora pois, entrai, veremos
 que diz ‘i nesse papel...
CORREGEDOR: E aonde vai o batel?
DIABO: No Inferno vos poremos.
CORREGEDOR: Como? À terra dos demos
 Há de ir um corregedor?
DIABO: Santo descorregedor,
 embarcai, e remaremos!
 Ora, entrai, pois que viestes!
CORREGEDOR: Non est de regulae juris, não!
DIABO: Ita, Ita! Dai cá a mão,
 remaremos um remo destes.
 Fazei conta que nascestes
 para nosso companheiro.
 [E voltando-se autoritariamente para o 
seu Companheiro]
 Que fazes tu, barzoneiro?
 Faze-lhe essa prancha prestes!
Non est de regulae juris: não é norma do direito.
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