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4 ATIVIDADE C5 | H15 O Humanismo pode ser visto até hoje em nossos autos populares, como as apresentações do bumba meu boi (nas festas juninas) e dos presépios (no Natal). A poesia evolui no Humanismo, mas é o teatro que ganha destaque, especialmente as peças do autor português Gil Vicente, ainda hoje representadas nos palcos de Portugal e do Brasil. Vamos conferir a seguir as permanências e os avan- ços da literatura em língua portuguesa durante o período medieval, especialmente em relação à evolução do pensamento humano e às formas de convivência social. Humanismo: uma retomada do senso de humanidade � Humanismo: primeira mudança de paradigma na literatura portuguesa O Humanismo é a corrente artística e filosófica que marca a transição entre a arte medieval e a arte renascentista. Como seu nome indica, remete-se ao que é próprio do pensamento humanista. Reflexo da queda da visão teocêntrica (Deus no centro do Uni- verso) e, consequentemente, dos primeiros sinais da visão antropocêntrica (o homem no centro do Universo), a literatura humanista está ligada ao desenvolvimento dos burgos (cidades) e ao fortalecimento da classe burguesa (comerciantes), que ficava entre os nobres e os camponeses. Os burgueses portugueses empreendiam viagens pelo Mar Mediterrâneo em busca de novas mercadorias. Disso decorria o contato com outros povos e culturas, o que fomentou novas formas de ver e entender o mundo. Assim, os burgueses foram cul- tivando uma confiança crescente em si mesmos e nas oportunidades comerciais, que representavam possibilidades de mudança. Leonardo da Vinci/Web Gallery of Art (Domínio público) Nuno Gonçalves, Painéis de São Vicente, c. 1470, óleo e têmpera sobre madeira de car- valho, Museu Nacional de Arte Antiga, Lis- boa, Portugal. É a primeira grande obra da pintura portuguesa, retratando o encontro entre São Vicente (o patrono de Portugal) e o infante D. Henrique (o navegador por exce- lência). Figuram na imagem nobreza, clero e povo, e os traços realísticos demonstram o estilo humanista do pintor. N un o G on ça lv es (D om ín io p úb lic o) LITERATURA – FRENTE ÚNICA240 ATIVIDADE 4 Humanismo: uma retomada do senso de humanidade Lit er at ur a 2020-PV-LIT-OCTA+-V1-FU.INDD / 22-10-2019 (09:19) / ANDERSON.OLIVEIRA / PDF GRAFICA 2020-PV-LIT-OCTA+-V1-FU.INDD / 22-10-2019 (09:19) / ANDERSON.OLIVEIRA / PDF GRAFICA Em meados do século XV, Portugal iniciou as chamadas Grandes Navegações – ou era dos grandes descobrimentos –, que permitiram ampliar cada vez mais o espaço do comér- cio dentro do reino. Motivados por formas mais lucrativas de negócios, aventureiros portugueses buscaram rotas ma- rítimas que permitissem acesso mais direto às mercadorias do Oriente. À medida que surgiram, vieram os primeiros re- sultados positivos e foi aumentando a confiança no valor do ser humano, que, a partir desse momento, passou a ser visto como força motriz do universo. O verso de Fernando Pessoa “O mar sem fim é português”, da obra Mensagem, aponta para essa nova confiança no potencial de Portugal, nação que vinha enriquecendo e se destacando no cenário internacio- nal da época. Esse enriquecimento foi creditado à bravura dos navegadores, que se tornaram os novos heróis da nação. O infante D. Henrique de Avis, um dos príncipes de Portugal, foi a mais importante figura do início das Grandes Navegações, pois encabeçou a conquista de Ceuta, cidade localizada no norte da África, na altura do Estreito de Gibraltar, um porto comercial de grande destaque. A partir de Ceuta, Portugal empreendeu grandes disputas com os mouros de Marrocos e, assim, caiu nas graças do Papa. Não tardou para que as conquistas ultramarinas portuguesas fossem vistas como empreendimento sagrado e para que os trâmites comerciais ganhassem o respaldo da fé cristã. Assim, a orientação humanista, antropocêntrica, que a literatura portuguesa adquiria não diminuía a importância da religião católica no imaginário português: apenas ganhava nova roupagem. Poesia palaciana No Humanismo, a poesia ganhou ares mais sofisticados; conhecida ainda como cantiga ou como poesia palaciana, era feita para ser declamada nos saraus, mas perdeu o acompa- nhamento musical e ganhou novas estruturas e figuras esti- lísticas. O Cancioneiro geral (1516), com poemas compilados por Garcia de Resende, traz cantigas desse segundo momen- to da literatura portuguesa, em que o amor obteve configu- rações mais carnais e menos idealizadas e a própria relação amorosa passou a ser vista de forma mais complexa. Nesse período, o galego e o português já se diferenciavam como línguas independentes; por isso, apesar da grafia antiga, os poemas palacianos apresentam uma linguagem mais próxi- ma do português moderno. Observe, a seguir, uma cantiga de Duarte de Resende, relativa a uma mulher que ele servia: Outra cantigua Nam poffo ter o que quero, o que tenho nam queria, ca nam no tendo teria huu~ bem de queu desefpero. Nam tenho poder ~e mym, mas tem no em mym o defejo, desefpero, poys nam vejo o efeyto do feu fym. Afsy tenho o que nam quero, & nam tenho o que queria, ca, ffe o teueffe, teria efte bem, que nam efpero. RESENDE, Duarte de. In: RESENDE, Garcia de. Cancioneiro geral. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 1910. p. 164. Na cantiga, nota-se maior investimento nos recursos de linguagem. Se o eu lírico ainda lamenta a distância da mu- lher amada, como nas cantigas de amor trovadorescas, os trocadilhos e as aliterações conferem menos gravidade ao sofrimento amoroso, pois Duarte de Resende investe nos as- pectos lúdicos da poesia ao explorar com maior propriedade os aspectos semânticos e sonoros, suavizando, dessa forma, o servilismo e o desespero em relação à musa. Fernão Lopes e a crônica histórica Nuno Gonçalves, detalhe dos Painéis de São Vicente, c. 1470, óleo e têmpera sobre madeira de carvalho, Museu Na- cional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal. Destaque dos Painéis de São Vicente em que se vê um possível retrato de Fernão Lopes. N un o G on ça lv es (D om ín io p úb lic o) Fernão Lopes (c. 1378 -c. 1459) foi um cronista e o primei- ro historiador de Portugal, responsável por renovar o modo de contar a história de seu país. Nomeado guarda-mor da Torre do Tombo, ele era encarregado do arquivo do Estado e fazia o re- gistro dos feitos não somente do rei e dos nobres, mas também da “arraia miúda” (o povo). O método documental de Fernão Lopes não mostrava uma visão fragmentada da sociedade, em que apenas os grandes figuravam: ao contrário, ele descrevia as pequenas atividades cotidianas e fazia um retrato da vida de seu país, acompanhando todas as classes sociais. A partir de suas narrativas, é possível entrever, no ponto de vista e nos discursos das personagens, a força massiva da opinião pública. LITERATURA – FRENTE ÚNICA ATIVIDADE 4 Humanismo: uma retomada do senso de humanidade 241 2020-PV-LIT-OCTA+-V1-FU.INDD / 22-10-2019 (09:19) / ANDERSON.OLIVEIRA / PDF GRAFICA 2020-PV-LIT-OCTA+-V1-FU.INDD / 22-10-2019 (09:19) / ANDERSON.OLIVEIRA / PDF GRAFICA O povo e o rei Da bem-querença e amores que el-rei D. Fernando [nono rei de Portugal] tomou em Lisboa com D. Leonor Teles [senhora já casada com um fidalgo, João Lourenço da Cunha], como já dissemos, foi logo fama por todo o Reino, afirmando que era sua mulher, e que a tinha recebido a furto. E desprouve muito, a to- dos os da terra, da maneira que El-rei nisto teve; e não sòmente aos grandes e fidalgos, que amavam seu serviço e honra, mas ainda ao comum povo, que disto teve gram sentimento. E não prestou razões que lhe sôbre isto falassem os de seu conselho, dizendo que não era bem casar com tal mu- lher como aquela, sendo mulher de seu vassalo, e deixar tais casamentos de infantes filhas de reis, como achava, assim como de el-rei d’Aragão e de el-rei de Castela, com tanta sua honra e acrescentamento do Reino. E vendo que seu conse- lho não aproveitava, cessavam de lhe falar mais nisto.Os povos do Reino, arrazoando em tais novas, cada uns em seus lugares, juntaram-se em magotes, como é usança, culpando muito os privados de El-rei e os grandes da terra, que lho consentiam; e que pois lho êles não diziam, como cumpria, que era bem que se juntassem os povos, e que lho fôssem dizer. E entre os que se principalmente disto trabalharam, foram os da cidade de Lisboa, onde El-rei então estava; os quais, falando nisto, foram tanto por seu feito em diante, que se firmaram todos em conselho de lho dizer, elegendo logo por seu capitão, e propoedor por êles, um alfaiate que cha- mavam Fernão Vasques, homem bem razoado e jeitoso para o dizer. E juntaram-se um dia bem três mil, entre mesteirais de todos mesteres, e bèsteiros, e homens de pé. E todos, com armas, se foram aos paços onde El-rei pou- sava, fazendo grande arruído em falando sôbre esta cousa. El-rei, quando soube que aquelas gentes ali estavam, e a razão por que vinham, mandou-os preguntar, por um seu pri- vado, que era o que lhes prazia, e a que eram ali assim vindos. E Fernão Vasques respondeu em nome de todos, dizendo [...] [que] não tomasse mulher alheia, pois era cousa que lhe não haviam de consentir. Nem êle não havia por que lhes ter isto a mal, porque não queriam perder um tão bom rei como êle, por uma má mulher que o tinha enfeitiçado... [...] LOPES, Fernão; CAMPOS, Agostinho de (Org.). Crônicas de D. Pedro e D. Fernando. Lisboa: Livrarias Aillaud & Bertrand, 1921. p. 91-4. v. 1. (Antologia Portuguesa) Não prestou razões: de nada valeram as razões. Propoedor: proponente; o que havia de propor (expor) as razões do povo. Observe que, no último trecho do excerto apresentado, fica evidente a opinião pública da época, sendo exposta uma visão estereotipada da relação entre homens e mulheres: estas eram culpadas por “enfeitiçar” seus amantes, enquan- to eles permaneciam descritos como heróis, porém o herói em questão não conseguiu resistir aos seus “instintos”. O teatro de Gil Vicente Gil Vicente (c. 1465 -c. 1536) é considerado o pai do tea tro português. Embora esse tipo de arte fosse praticado durante o Trovadorismo – desde o século I, era comum por toda a Península Ibérica a exibição de autos e farsas populares, prin- cipalmente representações coletivas de episódios bíblicos –, foi Gil Vicente quem garantiu o estatuto literário do teatro em Portugal. Ele adequou a tradição dos autos e das farsas medie- vais à mentalidade vigente na época. Por meio de narrativas tradicionais ajustadas à linguagem coloquial desse período, Gil Vicente escreveu e dirigiu peças que criticavam com maestria todos os segmentos da sociedade. A primeira peça de Gil Vicente, Auto da visitação ou Mo- nólogo do vaqueiro (1502), criada para comemorar o nasci- mento de D. João III, o futuro rei, inaugura o teatro popular, e não religioso, em solo português. Com o tempo, suas peças foram atingindo um público cada vez mais amplo entre os que tinham acesso à Literatura, que, naquela época, só al- cançava uma pequeníssima parcela da população europeia. O teatro vicentino criticava a superficialidade dos nobres e a corrupção do clero e dos magistrados, mas o ponto de vista ainda era pautado nos valores cristãos e na confiança na Igreja enquanto instituição. Em suas peças, muitas vezes Gil Vicente criticava os indivíduos, e não necessariamente a instituição que eles representavam. Dessa forma, definimos essas obras como uma literatura de transição, ainda não to- talmente adepta aos preceitos renascentistas. Caricatura de Gil Vicente. LITERATURA – FRENTE ÚNICA242 ATIVIDADE 4 Humanismo: uma retomada do senso de humanidade 2020-PV-LIT-OCTA+-V1-FU.INDD / 22-10-2019 (09:19) / ANDERSON.OLIVEIRA / PDF GRAFICA 2020-PV-LIT-OCTA+-V1-FU.INDD / 22-10-2019 (09:19) / ANDERSON.OLIVEIRA / PDF GRAFICA O povo e o rei Da bem-querença e amores que el-rei D. Fernando [nono rei de Portugal] tomou em Lisboa com D. Leonor Teles [senhora já casada com um fidalgo, João Lourenço da Cunha], como já dissemos, foi logo fama por todo o Reino, afirmando que era sua mulher, e que a tinha recebido a furto. E desprouve muito, a to- dos os da terra, da maneira que El-rei nisto teve; e não sòmente aos grandes e fidalgos, que amavam seu serviço e honra, mas ainda ao comum povo, que disto teve gram sentimento. E não prestou razões que lhe sôbre isto falassem os de seu conselho, dizendo que não era bem casar com tal mu- lher como aquela, sendo mulher de seu vassalo, e deixar tais casamentos de infantes filhas de reis, como achava, assim como de el-rei d’Aragão e de el-rei de Castela, com tanta sua honra e acrescentamento do Reino. E vendo que seu conse- lho não aproveitava, cessavam de lhe falar mais nisto. Os povos do Reino, arrazoando em tais novas, cada uns em seus lugares, juntaram-se em magotes, como é usança, culpando muito os privados de El-rei e os grandes da terra, que lho consentiam; e que pois lho êles não diziam, como cumpria, que era bem que se juntassem os povos, e que lho fôssem dizer. E entre os que se principalmente disto trabalharam, foram os da cidade de Lisboa, onde El-rei então estava; os quais, falando nisto, foram tanto por seu feito em diante, que se firmaram todos em conselho de lho dizer, elegendo logo por seu capitão, e propoedor por êles, um alfaiate que cha- mavam Fernão Vasques, homem bem razoado e jeitoso para o dizer. E juntaram-se um dia bem três mil, entre mesteirais de todos mesteres, e bèsteiros, e homens de pé. E todos, com armas, se foram aos paços onde El-rei pou- sava, fazendo grande arruído em falando sôbre esta cousa. El-rei, quando soube que aquelas gentes ali estavam, e a razão por que vinham, mandou-os preguntar, por um seu pri- vado, que era o que lhes prazia, e a que eram ali assim vindos. E Fernão Vasques respondeu em nome de todos, dizendo [...] [que] não tomasse mulher alheia, pois era cousa que lhe não haviam de consentir. Nem êle não havia por que lhes ter isto a mal, porque não queriam perder um tão bom rei como êle, por uma má mulher que o tinha enfeitiçado... [...] LOPES, Fernão; CAMPOS, Agostinho de (Org.). Crônicas de D. Pedro e D. Fernando. Lisboa: Livrarias Aillaud & Bertrand, 1921. p. 91-4. v. 1. (Antologia Portuguesa) Não prestou razões: de nada valeram as razões. Propoedor: proponente; o que havia de propor (expor) as razões do povo. Observe que, no último trecho do excerto apresentado, fica evidente a opinião pública da época, sendo exposta uma visão estereotipada da relação entre homens e mulheres: estas eram culpadas por “enfeitiçar” seus amantes, enquan- to eles permaneciam descritos como heróis, porém o herói em questão não conseguiu resistir aos seus “instintos”. O teatro de Gil Vicente Gil Vicente (c. 1465 -c. 1536) é considerado o pai do tea tro português. Embora esse tipo de arte fosse praticado durante o Trovadorismo – desde o século I, era comum por toda a Península Ibérica a exibição de autos e farsas populares, prin- cipalmente representações coletivas de episódios bíblicos –, foi Gil Vicente quem garantiu o estatuto literário do teatro em Portugal. Ele adequou a tradição dos autos e das farsas medie- vais à mentalidade vigente na época. Por meio de narrativas tradicionais ajustadas à linguagem coloquial desse período, Gil Vicente escreveu e dirigiu peças que criticavam com maestria todos os segmentos da sociedade. A primeira peça de Gil Vicente, Auto da visitação ou Mo- nólogo do vaqueiro (1502), criada para comemorar o nasci- mento de D. João III, o futuro rei, inaugura o teatro popular, e não religioso, em solo português. Com o tempo, suas peças foram atingindo um público cada vez mais amplo entre os que tinham acesso à Literatura, que, naquela época, só al- cançava uma pequeníssima parcela da população europeia. O teatro vicentino criticava a superficialidade dos nobres e a corrupção do clero e dos magistrados, mas o ponto de vista ainda era pautado nos valores cristãos e na confiança na Igrejaenquanto instituição. Em suas peças, muitas vezes Gil Vicente criticava os indivíduos, e não necessariamente a instituição que eles representavam. Dessa forma, definimos essas obras como uma literatura de transição, ainda não to- talmente adepta aos preceitos renascentistas. Caricatura de Gil Vicente. LITERATURA – FRENTE ÚNICA242 ATIVIDADE 4 Humanismo: uma retomada do senso de humanidade 2020-PV-LIT-OCTA+-V1-FU.INDD / 22-10-2019 (09:19) / ANDERSON.OLIVEIRA / PDF GRAFICA 2020-PV-LIT-OCTA+-V1-FU.INDD / 22-10-2019 (09:19) / ANDERSON.OLIVEIRA / PDF GRAFICA Didaticamente, o teatro vicentino é dividido em: • Autos: peças teatrais de temática religiosa, tratada de modo sério ou cômico, que tinham objetivo moralizante. • Farsas: peças cômicas curtas, de um único ato, com te- mas extraídos do cotidiano e que visavam a simples di- versão. Além disso, são características importantes do teatro vi- centino: o texto metrificado e em versos, o que o aproximava de um musical ao ser declamado pelos atores; as persona- gens-tipo, que destacavam elementos criticáveis no caráter de determinada classe social; os diálogos irônicos (carrega- dos de duplo sentido), que construíam a cumplicidade com o público e levavam ao riso; as ideias humanistas, que sur- giam como uma dissonância e apontavam os novos valores da época. Da ampla produção teatral de Gil Vicente, destacam-se obras como Auto da barca do Inferno e Farsa de Inês Pereira. Auto da barca do Inferno O Auto da barca do Inferno (1517), obra mais conhecida de Gil Vicente, é uma complexa alegoria dramática que abre a trilogia das barcas (seguida do Auto da barca do purgatório e encerrada com o Auto da barca da glória). Inicialmente, o texto da peça circulou em folhetins – semelhantes à literatu- ra de cordel nordestina – e, somente em 1562, foi compilada em livro. A história resgata um elemento da mitologia grega, o mito de Caronte, e o reveste com o universo cristão. Na mi- tologia grega, Caronte era o barqueiro encarregado de levar as almas humanas para a vida após a morte – a travessia de Caronte era a divisa entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Na abertura do Auto da barca do Inferno, descreve- -se um cais parecido com o do mito grego, mas nele há dois barcos e dois barqueiros: um dos barcos é guiado por um anjo e tem por destino o Paraíso; o outro é guiado por um ar- rais infernal e seu companheiro e vai em direção ao Inferno. Então, surgem diferentes personagens-tipo – represen- tantes de uma determinada classe social com linguajar cuida- dosamente diferenciado – que abordam os barqueiros e vão sendo encaminhadas à barca que lhes é devida: um fidalgo, um onzeneiro, um parvo, um sapateiro, um frade, uma alco- viteira, um judeu, um corregedor, um procurador, um enfor- cado, quatro cavaleiros cruzados. O título decorre do fato de a maioria dos candidatos embarcarem para o Inferno, porém a peça é um auto de moralidade que aborda o julgamento das almas. Por meio dessa obra é possível não só vislumbrar a so- ciedade portuguesa das primeiras décadas do século XVI, mas também refletir sobre problemas sociais ainda presentes no mundo contemporâneo. Al ex an de r D m itr ie vi ch L ito vc he nk o (D om ín io p úb lic o) Alexander Dmitrievich Litovchenko, Caronte transportando almas através do Rio Styx, 1861, óleo sobre tela, The State Russian Mu- seum, São Petersburgo, Rússia. [Vem um Corregedor, carregado de feitos, com sua vara na mão, e chegando à barca do Inferno diz:] CORREGEDOR: Hou da barca! DIABO: Que quereis? CORREGEDOR: Stá aqui o senhor juiz! DIABO: Ó amador de perdiz. quantos feitos que trazeis! CORREGEDOR: No meu ar conhecereis que sem gosto os trago cá. DIABO: Como o direito vai lá? CORREGEDOR: Nestes feitos o vereis. DIABO: Ora pois, entrai, veremos que diz ‘i nesse papel... CORREGEDOR: E aonde vai o batel? DIABO: No Inferno vos poremos. CORREGEDOR: Como? À terra dos demos Há de ir um corregedor? DIABO: Santo descorregedor, embarcai, e remaremos! Ora, entrai, pois que viestes! CORREGEDOR: Non est de regulae juris, não! DIABO: Ita, Ita! Dai cá a mão, remaremos um remo destes. Fazei conta que nascestes para nosso companheiro. [E voltando-se autoritariamente para o seu Companheiro] Que fazes tu, barzoneiro? Faze-lhe essa prancha prestes! Non est de regulae juris: não é norma do direito. LITERATURA – FRENTE ÚNICA ATIVIDADE 4 Humanismo: uma retomada do senso de humanidade 243 2020-PV-LIT-OCTA+-V1-FU.INDD / 22-10-2019 (09:19) / ANDERSON.OLIVEIRA / PDF GRAFICA 2020-PV-LIT-OCTA+-V1-FU.INDD / 22-10-2019 (09:19) / ANDERSON.OLIVEIRA / PDF GRAFICA
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