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99 M aterial para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. Capítulo 5 Relações étnico- -raciais no Brasil O capítulo busca compreender, no primeiro tópico, as diferentes in- terpretações a respeito da formação étnica e social no Brasil, destacan- do-se, na geração de 1930, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, por buscarem explicações que se distanciam dos estereótipos e visões preconceituosas predominantes desde o final do século XIX. Veremos que há contradições no pensamento de Gilberto Freyre, porque, apesar de combater teorias alheias às explicações de cunho cultural da for- mação da sociedade brasileira, acaba por criar o que se convencionou chamar de democracia racial, como se no Brasil não houvesse racismo. Sérgio Buarque irá se opor a Gilberto Freyre, cunhando o conceito de cor- dialidade, espécie de hipocrisia repleta de afetuosidade que mascara as 100 Ética, cidadania e sustentabilidade Ma te ria l p ar a us o ex cl us ivo d e al un o m at ric ul ad o em c ur so d e Ed uc aç ão a D is tâ nc ia d a Re de S en ac E AD , d a di sc ip lin a co rre sp on de nt e. P ro ib id a a re pr od uç ão e o c om pa rti lh am en to d ig ita l, s ob a s pe na s da L ei . © E di to ra S en ac S ão P au lo .relações de conflito no Brasil, entre elas o racismo. Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Oracy Nogueira, Abdias Nascimento e Clóvis Moura são autores que contribuíram também, no século XX, para a compreensão da formação da cultura brasileira e crítica ao mito da democracia racial no Brasil. Em seguida, estudaremos o processo de escravização de indígenas e negros no Brasil, desde o período colonial, e qual foi o seu reflexo na composição social contemporânea brasileira. Trata-se de um tema im- portante para observarmos aspectos que nos permitirão estudar, no úl- timo tópico, a presença do racismo estrutural, tema hoje presente nas análises políticas e sociais do movimento negro ao avaliar de maneira crítica o racismo à brasileira e reivindicar a aquisição de direitos e con- quistas voltados à cidadania. 1 Formação da cultura brasileira: uma visão histórico-crítica Na segunda metade do século XIX, a literatura foi pioneira no Brasil na tentativa de compreender a identidade, a constituição étnica e social nacional. Repleto de distorções históricas, o romance indianista atribuía aos indígenas a concepção do bom selvagem de Rousseau. José de Alencar (1829-1877), maior expressão dessa fase da literatura românti- ca no Brasil, na obra O guarani (1857), relaciona os indígenas ao estado de natureza, vendo nos índios virtudes como bravura, coragem, pureza e bondade naturais. O índio tornou-se o símbolo do homem brasileiro. Tratava-se de uma visão idílica, advinda de interpretações que vinham da Europa e apenas lá tinham significado, não correspondendo à reali- dade dos indígenas. Na passagem do século XIX para o XX e contra essas relações for- çosas elaboradas pelo romance indianista, Silvio Romero (1851-1914) escreveu, entre 1888 e 1902, a obra História da literatura brasileira (1901), 101Relações étnico-raciais no Brasil M aterial para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. primeiro compêndio reunindo análises e classificações da literatura des- de a colonização, passando pela crítica aos autores românticos, e tam- bém primeira coleta de narrações, contos, folclore e histórias da cultura popular, muitas delas de origem indígena e africana. No entanto, a obra de Romero está repleta de análises evolucionistas e positivistas. Segundo o autor, o Brasil é constituído por três raças: negros, europeus brancos e indígenas, e observa-se entre negros e indígenas certa inferioridade, devendo haver o predomínio branco no processo de miscigenação. PARA SABER MAIS Do século XIX até a primeira metade do século XX, predominavam vi- sões etnocêntricas positivistas e evolucionistas. Comte (1798-1857), autor da frase “ordem e progresso”, afirma a superioridade europeia de- vido às revoluções industriais, científicas e políticas, de modo que os demais povos seriam atrasados. O evolucionismo estava inspirado no darwinismo social, concebia que os europeus e brancos eram biologica- mente superiores, devido também às condições climáticas de seu con- tinente, e os outros povos eram considerados primitivos, selvagens ou bárbaros, todos intelectualmente inferiores. Essas visões preconceituosas eram comuns no mundo e no Brasil dos séculos XIX e XX. Estiveram também presentes, por exemplo, nas interpretações da formação de nossa sociedade por Nina Rodrigues (1862-1906) e Oliveira Viana (1883-1951). Rodrigues, médica e antro- póloga, na obra As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil (1894), apresenta uma visão racista e eugenista, considerando os seg- mentos negros e indígenas da sociedade biologicamente inferiores e propensos à criminalidade. Concebe a necessidade de dois sistemas penais, um para brancos, outro para negros, em virtude da inferioridade intelectual dos últimos. Além disso, tomava como principal motivo do atraso social brasileiro o excessivo número de negros e indígenas, defen- dendo que houvesse um processo ou uma política de branqueamento do 102 Ética, cidadania e sustentabilidade Ma te ria l p ar a us o ex cl us ivo d e al un o m at ric ul ad o em c ur so d e Ed uc aç ão a D is tâ nc ia d a Re de S en ac E AD , d a di sc ip lin a co rre sp on de nt e. P ro ib id a a re pr od uç ão e o c om pa rti lh am en to d ig ita l, s ob a s pe na s da L ei . © E di to ra S en ac S ão P au lo .povo, leitura compartilhada na obra Evolução do povo brasileiro (1923), de Oliveira Viana. É importante atentar para o fato de que, quando procu- ramos classificar o comportamento humano, as hierarquias sociais e o papel ou a ocupação de cada indivíduo na sociedade com justificativas apenas biológicas, há o risco de incorrermos em visões preconceituo- sas, racistas, reducionistas e tomadas hoje como anticientíficas. A obra Os sertões (1902), de Euclides da Cunha (1866-1909), repre- senta no Brasil a primeira oposição às visões positivistas e evolucionis- tas. O livro está repleto de contradições, pois suas análises têm como ponto de partida concepções que o autor depois irá criticar, sobretudo no final do próprio livro. Euclides descreve primeiro como as condições geográficas e climáticas determinam o grau de inferioridade do serta- nejo, relegado à seca. No entanto, o autor presenciou, como jornalista, o genocídio de sertanejos em Canudos cometido pelo Exército brasileiro. A Guerra de Canudos ocorreu entre 1896 e 1897, quando os serta- nejos seguiam o líder espiritual Antônio Conselheiro, favorável ao re- torno da monarquia e contrário à República, defendida pelo Exército. Conselheiro atraía seguidores que buscavam se afastar da miséria e do desalento. Euclides descreve os sertanejos como resultado da mis- cigenação entre indígenas e negros, estes últimos recém-libertos; todos eles viviam à mercê do poder de coronéis e senhores de terra, que domi- navam diferentes municípios nordestinos. Militares e a opinião pública viam nos sertanejos o reflexo de segmentos sociais primitivos, atrasa- dos e contra a República, o que servia de álibi para a intervenção militar. Euclides, antes de presenciar o conflito e viajar para Canudos, concor- dava com essas visões ditas “civilizadas”. Mas em Os sertões acaba por reverter essas concepções racistas quando, diante do extermínio, se dá conta de que na verdade quemse apresentava como a barbárie eram os militares, passando a enxergar o sertanejo como “um forte”, resistente às condições climáticas e capaz de organizar uma cultura própria e re- pleta de significados apesar do meio em que vive. 103Relações étnico-raciais no Brasil M aterial para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. O movimento artístico modernista brasileiro ganhou maior destaque na Semana de 1922 e buscou a construção da identidade nacional. Na pintura, destacam-se Anita Malfatti (1889-1964) e Tarsila do Amaral (1886-1973). Na literatura, Mário de Andrade (1893-1945) e Oswald de Andrade (1890-1954). Macunaíma, de Mário, e o Manifesto antropófa- go, de Oswald, ambos publicados em 1928, procuravam representar o Brasil a partir da combinação entre o moderno e o rural, o branco, o índio e o negro, valorizando o sincretismo que constitui a cultura nacional e que lhe dá um caráter único. Por isso, Oswald (ANDRADE, 2017) anun- cia uma antropofagia, que na sua obra significa incorporar ou devorar elementos de outras culturas e gentes, principalmente a europeia, a in- dígena e a africana, dando origem a uma cultura nova. Atribui-se a Gilberto Freyre (1900-1987) a primeira tentativa genui- namente sociológica de interpretação da formação social brasileira, porque ele abandona definitivamente as visões evolucionistas e positi- vistas, ou seja, não busca analisar a constituição da sociedade a partir de critérios naturalistas. Casa-grande & senzala (1933) é uma obra que trouxe uma série de inovações. Freyre é um dos pioneiros no mundo na realização de estudos sobre a vida privada e empregou em sua obra uma linguagem dotada de regionalismos do Nordeste, rompendo com o linguajar mais científico e acadêmico de seus antecessores positivistas. Freyre negava a noção de que um povo seria biologicamente supe- rior ao outro, devendo cada sociedade ser estudada a partir de suas especificidades culturais e da sua relação com o ambiente à sua volta. O autor incorpora o relativismo cultural de Boas, traduzido não apenas na suspensão dos juízos morais (não há sociedade superior ou inferior, pois esses são valores etnocêntricos), mas também na sua atitude deli- berada de não criticar a escravidão no Brasil. É nesse ponto que encon- tramos a oposição que diferentes autores (Sérgio Buarque, Florestan Fernandes, Abdias Nascimento e Clóvis Moura) farão ao pensamento de Freyre, posto que ele apresenta uma explicação nostálgica do em- preendimento colonial português desde a descoberta do Brasil. O autor 104 Ética, cidadania e sustentabilidade Ma te ria l p ar a us o ex cl us ivo d e al un o m at ric ul ad o em c ur so d e Ed uc aç ão a D is tâ nc ia d a Re de S en ac E AD , d a di sc ip lin a co rre sp on de nt e. P ro ib id a a re pr od uç ão e o c om pa rti lh am en to d ig ita l, s ob a s pe na s da L ei . © E di to ra S en ac S ão P au lo .procura demonstrar que a colonização acabaria por ser um sucesso, julgando que a escravidão no Brasil teria sido, nas suas palavras, “ado- cicada”, capaz de “apaziguar conflitos”, de modo que consolidou a “de- mocratização social” (FREYRE, 1998, p. 46) por meio das relações afe- tuosas entre a casa-grande (habitação dos senhores) e a senzala (onde viviam aprisionados e amontados seus escravos). É a partir da moral das senzalas que se cunhou a noção de democracia racial, concepção segundo a qual inexiste o racismo no Brasil. Casa-grande & senzala inicia o seu percurso afirmando a existência da plasticidade portuguesa ainda na Europa pré-colonial. Portugal era visto como a porta de entrada da Europa, um país habituado ao contato com diferentes culturas e civilizações. Quando os portugueses iniciam as Grandes Navegações, principalmente por volta de 1400 d.C. e após expulsar os mouros de parte da Península Ibérica, procuram explorar a costa do continente africano. Acostumados com o contato cultural com outros povos, facilmente habituam-se à cultura dos indígenas, havendo casamentos, as primeiras miscigenações e o entrelaçamento de ele- mentos culturais. Com a expansão da produção do açúcar no Nordeste no final do século XVI, os engenhos passaram a empregar mão de obra escrava negra sequestrada da África. A vida colonial fundamentava-se no latifúndio, na escravidão e no patriarcado. Os senhores de terra ti- nham poder absoluto em suas propriedades, podendo julgar, castigar ou absolver todos os seus subordinados, conforme seus caprichos pessoais. Paradoxalmente a tudo isso, Freyre apresenta argumentos hoje considerados sádicos e racistas, considerando que a miscigena- ção entre brancos e negros foi pacífica e harmoniosa. Promove, ain- da, a sexualização e objetificação da mulher negra no imaginário social elitista, relativizando inclusive, com um discurso afetuoso, a violência contra os escravos, além de parecer lamentar o fim da vida colonial e da escravidão. [...] trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos 105Relações étnico-raciais no Brasil M aterial para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-do-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama do vento, a primeira completa sensa- ção de homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo. (FREYRE, 1998, p. 343) Em 1936, Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) publicou a obra Raízes do Brasil, livro dedicado a analisar o processo de formação da sociedade brasileira. De forma distinta de Gilberto Freyre, buscou uma interpretação crítica do processo colonial e pós-proclamação da República, renunciando à postura nostálgica ou otimista sobre as bases coloniais e rompendo com as teorias positivistas e evolucionistas. O autor procura demonstrar que, apesar da plasticidade portuguesa, o processo de dominação de índios e depois de negros escravos foi violento e marcado pelo personalismo, ou seja, pela supervalorização de traços autoritários individuais e ao mesmo tempo afetuosos dos se- nhores de terras. A vida no engenho garantia o total domínio do senhor sobre suas terras e escravos. Quando houve a independência (1822) e, depois, a proclamação da República (1889), o Estado brasileiro mostrou-se uma mera extensão da vida privada e dos interesses pessoais dos grandes proprietários rurais, evidenciando uma diferença gritante em relação aos processos históri- cos de outras nações, que procuraram separar os interesses públicos dos privados, além de enaltecer leis que criassem igualdade jurídica ou mesmo a sobreposição do meio urbano sobre o rural. No Brasil, ocorreu o inverso; o Estado e as instituições públicas mantiveram os privilégios co- loniais dos senhores, pouco atendendo aos interesses do povo. O Estado mantém a tradição colonial na qual todas as ações giram em torno de interesses e caprichos pessoais dos proprietários de terras. Quando o Estado se organiza e opera sem distinguir a esfera privada (ou familiar) dos interesses públicos, falamos em patrimonialismo. Sérgio Buarque 106 Ética, cidadania e sustentabilidade Ma te ria l p ar a us o ex cl us ivo d e al un o m at ric ul ad o em c ur so d e Ed uc aç ão a D is tâ nc ia d a Re de S en ac E AD , d a di sc ip lin a co rre sp on de nt e. P ro ib id a a re pr od ução e o c om pa rti lh am en to d ig ita l, s ob a s pe na s da L ei . © E di to ra S en ac S ão P au lo .percebe a manutenção de uma ordem social arcaica com familiares das elites rurais perpetuando-se no aparelho estatal e longe de produzir o bem comum. Soma-se a esses aspectos o que o autor denomina ho- mem cordial, ou cordialidade, fruto das relações afetuosas, personalis- tas, mas ao mesmo tempo violentas, que têm origem no poder patriarcal dos fazendeiros. Há um caráter de hipocrisia social na cordialidade. O principal argumento de Sérgio Buarque é o de que o brasileiro se diferencia de outros povos devido à sua cordialidade. Ser cordial não significa ser bondoso, caridoso ou sempre amável. O termo “cordial” vem do latim cordis e significa “aquilo que vem do coração” ou “agir com o coração”, isto é, pertence à ordem dos afetos. Isso quer dizer que é possível ser cordial com o inimigo, ou seja, agir de modo disfarçado ou mascarado, camuflando relações de oposição social por meio de um comportamento mais afetuoso ou simplesmente cordial. O conceito de cordialidade implica na crítica à obra de Gilberto Freyre, que observou a colonização brasileira como harmoniosa, democrati- zante, a partir do personalismo do senhor de terras. Freyre apresenta um documento da barbárie ao amenizar o escravagismo, mascara rela- ções violentas inerentes à escravidão de negros no Brasil com discurso afetuoso, cordial. Para Sérgio Buarque, embora as relações mais afetuosas pareçam ser mais dóceis e amigáveis, são elas também que permitem o masca- ramento de relações sociais como o racismo, os preconceitos sociais e até mesmo a aceitação passiva da corrupção, combinação de interesses públicos e privados, ou de atos que restrinjam os direitos individuais dos cidadãos. A cordialidade cria relações mais pessoais, torna o brasileiro avesso ao excesso de formalidades e hierarquias sociais, mais adepto às relações mais pessoais, familiares e íntimas, que acabam camuflan- do violências ou atitudes que criam exceções para as regras coletivas. Por isso, inspirado no conceito de cordialidade, Roberto da Matta (1936-), em Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema 107Relações étnico-raciais no Brasil M aterial para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. brasileiro, obra publicada em 1979, reflete sobre o jeitinho brasileiro, a malandragem e mesmo as chamadas “carteiradas”. Da Matta compa- ra, por exemplo, uma eventual desavença que aconteça entre indivídu- os em nações como Inglaterra e Estados Unidos (onde há princípios e construções históricas em torno da igualdade jurídica e maior tradição do exercício da cidadania) e no Brasil (onde predomina o personalismo, relações mais familiares e pouco formais). No primeiro caso, nos Estados Unidos e na Inglaterra, Da Matta (1997) afirma que um indivíduo provavelmente diria ao outro: “Quem é você para falar assim comigo?”, ou seja, diante de leis que tornam todos os indivíduos iguais, por qual motivo um deveria tirar vantagem sobre o outro ou desrespeitar algum princípio coletivo? Esse espírito cívico, descrito por Alexis de Tocqueville (1805-1859) na obra A democracia na América (1835), revela o grau de organização política dos povos saxões em torno de sua cidadania. No Brasil, ao contrário, no caso de alguma discussão, um sujeito provavelmente diria ao outro: “Você sabe com quem está falando?”. Perceba que nessa frase há a ideia de que o indi- víduo é superior às leis ou instituições, dando a entender que, pelo fato de ter relações próximas, familiares ou de amizade, com pessoas con- sideradas importantes, como delegados, políticos, juízes, policiais, etc., seria possível transgredir a lei ou tirar vantagem de qualquer situação, evidenciando-se assim o personalismo. Revela-se dessa forma como muitos no Brasil buscam as exceções às regras, o que permite relacio- nar a cordialidade com o jeitinho e a malandragem brasileiros. PARA PENSAR Procure em reportagens de revistas, jornais e sites situações na política ou na vida social que permitam identificar o conceito de cordialidade relacionado ao que se entende por jeitinho e malandragem. 108 Ética, cidadania e sustentabilidade Ma te ria l p ar a us o ex cl us ivo d e al un o m at ric ul ad o em c ur so d e Ed uc aç ão a D is tâ nc ia d a Re de S en ac E AD , d a di sc ip lin a co rre sp on de nt e. P ro ib id a a re pr od uç ão e o c om pa rti lh am en to d ig ita l, s ob a s pe na s da L ei . © E di to ra S en ac S ão P au lo .Críticas à obra de Gilberto Freyre foram também realizadas pelo soci- ólogo Florestan Fernandes (1920-1995). Florestan, na obra A integração do negro na sociedade de classes (1965), afirma que Freyre elaborou o mito da democracia racial brasileira. Trata-se de um mero discurso in- compatível com a realidade vivida pela população negra (FERNANDES; BASTIDES, 2008). Freyre é acusado de ter observado a senzala do con- forto e do alto janela da casa-grande, desconsiderando, portanto, as reais condições de exploração da população negra escravizada e a vio- lência que lhe foi imposta. Ignora também os castigos, as condições de humilhação e insalubridade da vida das senzalas. Abdias Nascimento (1914-2011) publica, em 1978, a obra O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado, na qual afirma que a tese da democracia racial no Brasil expressa um racismo velado, apresentando caráter genocida, cujo pano de fundo é o processo de bran- queamento da população. Clóvis Moura (1925-2003), na obra O negro: de bom escravo a mau cidadão? (1977), considera o mito da democracia ra- cial um instrumento ideológico que procura apaziguar a população negra para limitar sua ação política e luta por direitos e cidadania. Assim como Abdias Nascimento, Clóvis Moura relaciona o mito criado por Freyre com o discurso que procura estabelecer, no Brasil, o branqueamento progres- sivo operado pela miscigenação da sociedade brasileira. Vê-se a existên- cia, nesses autores, de uma oposição à crença de que a formação da sociedade brasileira teria culminado numa espécie de paraíso racial. Em 1942, Caio Prado Jr. (1907-1990) publica Formação do Brasil con- temporâneo, obra com ênfase em aspectos econômicos. É considerada a primeira interpretação marxista da formação do Brasil, procurando compreender as suas especificidades em relação a outras sociedades. Caio Prado destaca que, mesmo com a independência e após a procla- mação da República, o Brasil manteve aspectos econômicos e sociais arcaicos e coloniais, ou seja, estava atrelado ao fornecimento de produ- tos agrícolas para o mercado estrangeiro, com uma produção baseada no latifúndio, na monocultura e no emprego de mão de obra escrava e, 109Relações étnico-raciais no Brasil M aterial para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. depois, no início do século XX, de mão de obra livre, porém miserável (PRADO JR., 1973). O autor compreende que o fim da escravidão aca- bou por produzir uma população não integrada à economia e aos direi- tos, desarticulada, constituindo o que denomina como setor inorgânico. Este vive à mercê dos senhores oligárquicos, clã patriarcal e patrimonia- lista, que se consideram donos dos espaços públicos, correspondendo ao chamado setor orgânico. Raymundo Faoro (1925-2003) apresenta, no livro Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro (FAORO, 1975), as heranças do Estado patrimonialista português colonial na formação de instituições políticas no Brasil.Identifica a existência do estamento burocrático, eli- tes políticas e econômicas que historicamente se perpetuam nas ins- tituições públicas por meio de laços familiares, de amizade e troca de favores, que levam essas instituições a manterem interesses privados. Esse estamento burocrático, verdadeiro dono do poder, goza de privilé- gios sociais e econômicos quase sempre hereditários, fornecidos pelo próprio Estado, enquanto a maioria da população encontra-se margina- lizada. Parentes das elites se perpetuam nos cargos públicos, geração após geração, tornando o Estado brasileiro promotor de privilégios a um pequeno grupo oligárquico. A revolução burguesa no Brasil, texto publicado em 1975 por Florestan Fernandes, apresenta as contradições da formação social brasileira. Sobre a base da monocultura e do latifúndio voltado para exportação e da mão de obra escrava no período colonial, Fernandes (1975) tam- bém se depara com o patrimonialismo, percebendo que nossas elites impulsionaram modificações políticas com a intenção de manter seus privilégios, o que corresponde a um “progresso dentro da velha ordem” (FERNANDES, 1975). As reformas políticas, como a independência, a abolição da escravidão, a proclamação da República, a ditadura varguis- ta ou mesmo o golpe de 1964, foram instituídas de cima para baixo pelos segmentos privilegiados, que acabaram por fomentar uma mo- dernização conservadora. 110 Ética, cidadania e sustentabilidade Ma te ria l p ar a us o ex cl us ivo d e al un o m at ric ul ad o em c ur so d e Ed uc aç ão a D is tâ nc ia d a Re de S en ac E AD , d a di sc ip lin a co rre sp on de nt e. P ro ib id a a re pr od uç ão e o c om pa rti lh am en to d ig ita l, s ob a s pe na s da L ei . © E di to ra S en ac S ão P au lo .No século XX, a industrialização brasileira teve como base econômi- ca recursos oriundos da acumulação de riquezas da produção de café no estado de São Paulo. A formação do nosso capitalismo seguiu uma direção diferente do caminho traçado pelas burguesias europeias e nor- te-americanas, pois estas procuraram o desenvolvimento econômico ao valorizar a competitividade do setor privado e a negação da interven- ção do Estado na economia. No Brasil, nossa burguesia foi dependente do Estado, pouco afeita a promover de modo independente o processo de industrialização ou o crescimento econômico, e Fernandes (1975) indica a necessidade de mudança de mentalidade de nossa burguesia para produzir desenvolvimento econômico e social. Essa mudança cor- responderia não somente à criação de uma burguesia madura e autô- noma, mas também ao abandono de traços conservadores e arcaicos que acabam por atrelar aos trabalhadores assalariados no século XX condições de subsistência próximas à da escravidão. Darcy Ribeiro (1922-1997) escreveu a última das grandes interpre- tações da formação social com o livro O povo brasileiro, publicado em 1995. Ribeiro (2013) enfatiza os intercâmbios culturais desde a coloni- zação – primeiro entre indígenas e portugueses, depois entre negros escravizados e portugueses, sem negligenciar que consistiram em um processo marcado pela violência e pelo genocídio dos escravizados. Procura analisar a contribuição das três culturas (indígena, negra e euro- peia) em diversos âmbitos da vida social, como a alimentação, a lingua- gem, as vestimentas e a organização política e social. Por se tratar de uma obra escrita no final do século XX, apresenta um teor um tanto es- perançoso ou otimista, mostrando que, apesar das contradições sociais e do histórico de arbitrariedades contra escravos e demais trabalhado- res, o Brasil, em termos de convívio entre as culturas, poderia servir de exemplo ao mundo. Ribeiro considera a necessidade de superação do racismo e a urgência de transformações sociais, julgando haver, por meio do intercâmbio cultural entre diferentes povos no Brasil, uma nova civilização em fase de germinação, que nomeia como Nova Roma – o 111Relações étnico-raciais no Brasil M aterial para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. império romano foi longevo justamente porque soube incorporar outros povos, produzindo sincretismos e servindo como base de formação cul- tural para outras sociedades até hoje. 2 O processo de escravização de indígenas e africanos e seus reflexos na formação da cultura brasileira A colonização portuguesa no Brasil efetivamente estabeleceu-se a partir de 1534, quando colonos passaram a ocupar as capitanias here- ditárias, com a exploração de açúcar e a retirada da árvore pau-brasil, principalmente nas regiões litorâneas. Foi instituído o uso de mão de obra escrava indígena, geralmente aprisionada por meio de alianças en- tre os colonos e algumas sociedades indígenas que rivalizavam com outras. No século seguinte, bandeirantes promoviam expedições autô- nomas, isto é, sem apoio da Coroa portuguesa, em direção ao interior do Brasil atrás de pedras preciosas e escravos índios. Os portugueses expulsavam os nativos de suas terras e capturavam indígenas, vítimas de violências e genocídio. Os colonos portugueses contestavam a presença das missões jesu- ítas, que tinham o objetivo de catequizar os indígenas. Os missionários, presentes no Brasil a partir de 1549, embora fossem contra a escravi- dão dos índios, promoviam a aculturação destes, ou seja, exigiam que abandonassem suas crenças tradicionais e os levavam a se converter, aprender o idioma do colonizador e aceitar a introjeção de valores cris- tãos e europeus. Quando não escravizados pelos colonos ou catequiza- dos pelos missionários, os povos indígenas eram dizimados com vírus e doenças vindas da Europa, como o sarampo, a varíola e a gripe. Na passagem do século XVII para o XVIII e pressionados pelos jesu- ítas, que afirmavam a humanidade e a boa alma dos indígenas, a Coroa e os colonos se submeteram às exigências da Igreja, de modo que a 112 Ética, cidadania e sustentabilidade Ma te ria l p ar a us o ex cl us ivo d e al un o m at ric ul ad o em c ur so d e Ed uc aç ão a D is tâ nc ia d a Re de S en ac E AD , d a di sc ip lin a co rre sp on de nt e. P ro ib id a a re pr od uç ão e o c om pa rti lh am en to d ig ita l, s ob a s pe na s da L ei . © E di to ra S en ac S ão P au lo .escravidão e a morte de índios passaram a ser permitidas apenas em si- tuações que caracterizavam as chamadas guerras justas, ou seja, na hi- pótese de ataques deliberados dos indígenas aos colonizadores. Muitos desses conflitos eram forjados com o objetivo de aumentar o número de escravos, que eram distribuídos nas lavouras de cana-de-açúcar no litoral e na mineração no interior do território. Em 1755, foi proibida a escravidão dos indígenas. Vencia o argumento dos missionários, expul- sos do Brasil pouco tempo depois, em 1759, pelo Marquês de Pombal, responsável por confiscar os bens das missões na América portuguesa. Longe de representar caridade ou respeito aos povos indígenas, a afirmação de sua boa alma e o fim de sua escravidão traziam consigo um argumento econômico, que considerava mais vantajosa a compra de escravos negros traficados do continente africano. Vistas pelos co- lonizadores como hereges, sem alma e desumanizadas, as populações negras foram sequestradas e trazidas ao Brasil para servirem à escra- vidão, em substituição à mão de obra indígena. A captura, o trajeto da África até o Brasil pelo Oceano Atlântico, a distribuição, a revenda, a vida precária dentro das senzalas e o trabalho escravo, braçal e desgastan- te (repleto de castigos e torturas aos que tentassem fugir ou demons- trassem cansaço), eram etapas que constituíam de ponta a ponta um sistema muito maislucrativo do que a escravização indígena. A transi- ção do uso dos trabalhos forçados dos indígenas para o emprego de mão de obra escrava negra ocorreu entre os séculos XVII e XVIII. Na mineração e nos engenhos de açúcar, a exploração da população negra constituiu no Brasil a mais deplorável forma de escravidão, atrelada ao mercantilismo. A lucratividade do tráfico negreiro era imensa, assim como a desu- manização dos escravos. Os navios negreiros eram insalubres, os es- cravos eram acorrentados nos seus porões, muitos morriam de fome ou por doenças. Populações e etnias africanas eram desmembradas, misturadas a outras com tradições e idiomas diferentes, com o obje- tivo de evitar a comunicação, afinidades culturais ou mesmo qualquer 113Relações étnico-raciais no Brasil M aterial para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. possibilidade de rebelião contra os colonos. Nas senzalas, centenas de escravos se amontoavam sem privacidade, eram tratados como ani- mais. Os que tentavam fugir sem sucesso eram capturados, castigados e mutilados sob os olhos dos demais para servirem de exemplo. Aqueles que obtinham sucesso na fuga constituíam os quilombos, comunida- des de negros fugidos dos engenhos e das regiões de mineração. Os quilombos apresentavam elevado grau de organização política e econômica, buscavam reproduzir o sistema comunitário no qual viviam muitas etnias ainda no continente africano. Eram comunidades que se estabeleciam em locais distantes dos colonizadores, com produção agrícola e pecuária autossuficiente. Muitos quilombos praticavam mi- neração e comércio com cidades coloniais. O dinheiro arrecadado era utilizado para promover novas fugas ou comprar a alforria de outros escravos. Os quilombos promoviam o resgate de tradições culturais e políticas africanas. A maioria deles foi estabelecida onde hoje se situ- am os estados da Bahia, de Pernambuco, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais e Alagoas. O quilombo de Palmares, localizado no atual estado de Alagoas, destacou-se. No ano de 1670, possuía cerca de 50 mil ex- -escravos, liderados por Zumbi, que foram combatidos pelos coloniza- dores europeus porque representavam a possibilidade de liberdade e inspiravam a rebelião e a fuga de outros escravizados. Os quilombos fo- ram importantes para consolidar a construção de uma cultura afro-bra- sileira a partir de diferentes tradições incorporadas de diferentes etnias. O processo de abolição da escravatura da população negra foi lento, gradual e de cima para baixo, ou seja, organizado pelas elites latifundiá- rias brasileiras. A ideia era evitar uma rebelião popular escrava, de forma que a abolição foi operada segundo interesses dessas elites. No sécu- lo XIX, ainda durante o Império, foi aprovada a Lei Eusébio de Queirós (1850), que proibia o tráfico internacional negreiro. Na prática, foi resul- tado de pressões políticas inglesas, pois a mão de obra assalariada tra- ria mais vantagens ao desenvolvimento industrial europeu. Essa lei não inibiu o tráfico interno, que, com a expansão cafeeira no Vale do Paraíba, 114 Ética, cidadania e sustentabilidade Ma te ria l p ar a us o ex cl us ivo d e al un o m at ric ul ad o em c ur so d e Ed uc aç ão a D is tâ nc ia d a Re de S en ac E AD , d a di sc ip lin a co rre sp on de nt e. P ro ib id a a re pr od uç ão e o c om pa rti lh am en to d ig ita l, s ob a s pe na s da L ei . © E di to ra S en ac S ão P au lo .produziu compras de contingentes de escravos do Nordeste em direção ao Sudeste. Em 1871, foi sancionada a Lei do Ventre Livre, estabelecendo a li- berdade a todos os filhos de escravos nascidos a partir daquele ano. No entanto, é difícil imaginar uma criança nascida livre permanecer in- dependente da mãe escravizada, o que assegurava aos proprietários de escravos alguns anos a mais com crianças semiescravizadas em suas terras. Em 1855, promulgou-se a Lei dos Sexagenários, responsá- vel por libertar todos os escravos que haviam alcançado os 60 anos. No entanto, considerando o trabalho braçal, árduo e desgastante ao longo dos anos, eram raros os escravos que chegavam a essa idade, e os que chegavam já não estavam mais aptos ao trabalho após anos de subjugação. Em 13 de maio 1888, foi publicada a Lei Áurea, decretada pela regen- te Princesa Isabel. A regente, antes da abolição, procurou estabelecer uma espécie de reforma agrária para atender à população liberta, pro- posta refutada pelas elites rurais. O resultado é que, após a abolição, os ex-escravos não foram inseridos na sociedade ou contemplados pelos direitos dos cidadãos. Impedida de votar devido ao analfabetismo, sem propriedades, moradia, emprego ou acesso à educação, a população ne- gra não foi incorporada às instituições sociais e políticas. Proprietários de terras, antes mesmo da abolição, já operavam o processo de substi- tuição dos escravos por trabalhadores europeus, principalmente italia- nos. Com a abolição, os negros estavam na condição de marginalização e pauperismo. Em virtude dessa marginalização, perpetuada no século XX pela tra- dição do Estado patrimonialista, a população negra do Brasil foi relega- da às favelas e ao desemprego (quando muito, ao subemprego, com sa- lários irrisórios), com baixos índices de instrução e expectativa de vida e níveis elevados de mortalidade infantil. O preconceito racial é uma das consequências do período escravocrata. 115Relações étnico-raciais no Brasil M aterial para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. Juliana Borges, no livro Encarceramento em massa (2019), destaca que a maioria da população presidiária no Brasil é constituída por ne- gros. O preconceito policial e judiciário muitas vezes condiciona penas mais pesadas a negros e mais brandas a brancos de segmentos abas- tados. Em razão do preconceito e da exclusão social, muitos jovens negros acabam procurando recursos com atividades consideradas ilí- citas. São comuns prisões e mortes de negros cometidas por policiais de forma arbitrária e sem provas, incluindo crianças. Além disso, vemos poucos negros e negras nos mais elevados postos de trabalhos, raros são os professores universitários negros, assim como os apresentado- res de TV, juízes, protagonistas de filmes, novelas e séries. No Brasil, há elevadores de serviço com o objetivo de distinguir patrões brancos de empregados domésticos negros; babás, geralmente negras, estão uniformizadas de branco e cuidando de crianças ricas, o que reproduz a cor das vestimentas e as dinâmicas entre a casa-grande e a senzala no período colonial. 3 Aspectos políticos e sociais da cultura afro-brasileira Diferentes pensadores se deram conta das especificidades do racis- mo à brasileira. Guerreiro Ramos, por exemplo, na década de 1950, rela- ciona o preconceito racial às classes sociais. Cria-se no senso comum uma visão racista que se baseia nas condições econômicas, de modo que a pobreza passa a estar relacionada aos negros. Ramos (1950) atri- bui às desigualdades sociais o critério que estabelece o racismo. A aná- lise de Ramos pode ser identificada, por exemplo, quando comparamos os registros de nascimento e óbito de dois importantes literatos negros brasileiros, Machado de Assis (1839-1908) e Lima Barreto (1881-1922). No registro de nascimento de Machado, de origem pobre, consta que nasceu negro. Criador da Academia Brasileira de Letras em 1897 e consagrado com seus textos em jornais e livros, seu registro de óbito 116 Ética, cidadania e sustentabilidade Ma te ria l p ar a us o ex cl us ivo d e al un o mat ric ul ad o em c ur so d e Ed uc aç ão a D is tâ nc ia d a Re de S en ac E AD , d a di sc ip lin a co rre sp on de nt e. P ro ib id a a re pr od uç ão e o c om pa rti lh am en to d ig ita l, s ob a s pe na s da L ei . © E di to ra S en ac S ão P au lo .declara o autor como branco. Lima Barreto, por sua vez, filho de funcio- nário público no Rio de Janeiro, tem no seu registro de nascimento a cor branca. Morreu no ostracismo e internado num manicômio, vítima do al- coolismo. No seu registro de óbito, é declarado como um homem negro. Como se vê, a reflexão de Ramos (1950) gira em torno do fato de que a condição de classe ou o pertencimento a postos relevantes da sociedade estabelecem padrões racistas na sociedade brasileira. Oracy Nogueira, contemporâneo de Ramos, apresenta a comparação do racis- mo no Brasil e nos Estados Unidos. No primeiro caso, há o predomínio do que designa como preconceito racial de marca, o que significa dizer que o negro está socialmente relacionado às ocupações que exerce na sociedade. Quanto maior sua fama, grau de instrução, riqueza ou cargo, mais ele será considerado branco, produzindo uma espécie de apaga- mento da cor negra. Nos Estados Unidos, predomina o que Nogueira define como preconceito racial de origem, ou seja, aquele relacionado à ascendência, de modo que ser negro tem relação com a origem étnica. Paradoxalmente, ainda que uma criança nasça branca, mas tenha um avô negro, nos Estados Unidos ela é socialmente considerada negra de- vido à origem (NOGUEIRA, 2006). No século XXI, no Brasil, ganhou destaque também o debate em torno do conceito de colorismo. Trata-se de uma ideologia de branqueamento que, a partir da miscigenação e do fenótipo, categoriza e hierarquiza os indivíduos de acordo com o tom de pele, tendendo à condição europei- zante quanto mais clara for a cor ou à africanidade quanto mais distan- te da construção social do que é ser branco. Nesse ponto, por exemplo, podemos discutir a questão do cabelo, entre outras características físi- cas que acabam por produzir estereótipos e construções sociais que culminam na determinação da posição que um indivíduo deve ocupar na sociedade e no mercado de trabalho. Silvio Almeida (1976-), na obra O que é racismo estrutural? (2018), responde à questão percebendo que o racismo no Brasil é uma forma de violência histórica e transversal, pre- sente em diferentes instituições, reproduzido de diversas formas (nas 117Relações étnico-raciais no Brasil M aterial para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. empresas, na educação, nos esportes, etc.), portanto, está presente na cultura e no funcionamento das instituições. Devemos destacar duas intelectuais contemporâneas, Djamila Ribeiro (1980-) e Preta Rara (1985-), que tratam do tema do racismo brasileiro, respectivamente em Pequeno manual antirracista (2019) e Eu, emprega- da doméstica: a senzala moderna é o quartinho da empregada (2019). Essas obras revelam a maneira dissimulada como o racismo ocorre no país em diferentes relações sociais; sobretudo refletem a respeito das condições sociais da mulher negra e do lugar que ela ocupa na socieda- de. Djamila e Preta Rara promovem, ao lado da crítica ao racismo, a críti- ca ao machismo e ao patriarcado que se estabeleceram no Brasil desde o período colonial e seguem persistentes, devendo ser combatidos. Nascimento (2019) observa o racismo à brasileira como sútil, hipó- crita e dissimulado. Enquanto o discurso predominante (poderíamos dizer “cordial”) é o de que não há racismo no Brasil, as práticas sociais acabam sendo outras, promovendo, na sua visão, o genocídio da popu- lação e da cultura negra no Brasil, além de representar a ideologia do branqueamento. Isso ocorre porque as formas tradicionais de convivên- cia e religiosidade, a alimentação, as crenças, as manifestações artísti- cas, os conhecimentos milenares e os padrões de beleza da população negra foram historicamente foram reprimidos, eliminados e, mais re- centemente, acabaram por ser desvalorizados pelos padrões estéticos veiculados nos meios de comunicação. Quando muito, elementos cultu- rais de origem africana foram diluídos sob uma sociedade e instituições dominadas por brancos. Nascimento (2019) anuncia o conceito de quilombismo como a luta social dos negros no Brasil pela obtenção de direitos políticos, econômi- cos e sociais e de reconhecimento da importância de sua cultura para a construção do Brasil e da humanidade. Sua inspiração é o modo como no período colonial os quilombos mantiveram tradições africanas e con- solidaram formas de resistência e organização. A partir do exemplo dos 118 Ética, cidadania e sustentabilidade Ma te ria l p ar a us o ex cl us ivo d e al un o m at ric ul ad o em c ur so d e Ed uc aç ão a D is tâ nc ia d a Re de S en ac E AD , d a di sc ip lin a co rre sp on de nt e. P ro ib id a a re pr od uç ão e o c om pa rti lh am en to d ig ita l, s ob a s pe na s da L ei . © E di to ra S en ac S ão P au lo .quilombos, Nascimento propõe o quilombismo como movimento político e social da população negra no Brasil em direção às conquistas de direi- tos e à valorização do ser humano, devendo ser reconhecida com suas tradições e a busca pelo equilíbrio com a natureza, fomentando a produ- ção econômica sustentável. O quilombismo tem como objetivo principal extinguir o racismo por meio de uma educação que consolide a cultura afro-brasileira. Diz respeito a um anseio que permeia a necessidade de refundação do Brasil, em que brancos e negros possam viver sob con- dições de igualdade, liberdade, respeito, intercâmbio cultural e científico. Moura (2014), na obra Dialética radical do Brasil negro (1994), empre- ga o conceito de quilombagem, identificando nos próprios quilombos do Brasil colonial a primeira e ampla resistência de explorados contra dominadores e de luta pela liberdade e igualdade, antes mesmo que a burguesia na Europa iniciasse suas revoluções em nome dos direi- tos individuais, entre os séculos XVII e XVIII, e muito antes da classe trabalhadora, no século XIX. Embora oprimida e marginalizada, a po- pulação negra no Brasil soube sobreviver e resistir ao esquecimento e à negligência da organização social dos brancos nos últimos séculos. A quilombagem é expressa justamente nessa resistência e capacidade de sobrevivência, presente em favelas e no espírito colaborativo nas co- munidades. Ela se expressa também nas tradições religiosas, nas ma- nifestações estéticas, na linguagem, entre outros hábitos e costumes que foram preservados e devem ser, na visão do autor, os alicerces para a organização política da população negra, a fim de que ela mesma se torne protagonista na construção da história do Brasil. Considerações finais Este capítulo tratou das obras dos principais intérpretes da forma- ção da cultura e da sociedade brasileiras. Vimos, no primeiro tópico, os principais ensaios que procuraram compreender os processos históri- cos que deram origem à cultura nacional, destacando-se as críticas às 119Relações étnico-raciais no Brasil M aterial para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. concepções de Gilberto Freyre, que deram margem ao que Florestan Fernandes definiu como mito da democracia racial e que Sérgio Buarque de Holanda concebeu como uma das características da cordialidade. No segundo tópico, estudamos as condições da escravatura de índios e negros e observamos como resultaram nas desigualdades sociais pre- sentes até hojeno país. Em seguida, finalizamos o capítulo com o estu- do de interpretações acerca das lutas políticas e sociais do movimento negro em direção à valorização de uma cultura afro-brasileira e suas críticas ao racismo à brasileira. Referências ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018. ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Pólen, 2019. DA MATTA, Roberto. 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