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106 1 Profª Natali Hoff Conflitos Internacionais Aula 1 106 2 Conversa Inicial 106 3 Este curso tem como objetivo apresentar um panorama dos conflitos internacionais: o que são e como podem ser analisados Portanto, você será capaz não apenas de identificar os diferentes tipos de conflitos internacionais, mas também compreendê-los por uma perspectiva crítica, que busca problematizar as relações de poder envolvidas e as possibilidades de construção de uma paz sustentável em ambientes pós-conflitos Objetivos do curso 106 4 Tema 1: Conflito e sua definição conceitual Tema 2: Conflitos internacionais Tema 3: Paz e conflito nas relações internacionais: lentes analíticas Tema 4: Analisando conflitos Tema 5: Na prática: conflitos contemporâneos (Síria) Temas da aula 106 5 Conflito e sua definição conceitual 106 6 A palavra conflito vem da palavra latina conflictus, que significa colisão ou choque. No entanto, existe um desacordo considerável sobre como definir o conflito Os pesquisadores engajados no estudo dos conflitos continuam trabalhando para desenvolver melhores definições para o termo, partindo de diferentes entendimentos sobre a realidade Definindo o termo conflito 106 7 Por exemplo: existem definições baseadas Nas principais causas de conflito, como recursos materiais, poder, valores ou sentimentos (às vezes chamados de agentes causadores) Há também definições baseadas na natureza das partes em conflito, como indivíduos, organizações ou Estados Essas definições se desenvolveram com o que hoje é conhecido como teoria do conflito, levando em consideração práticas emergentes de análise e intervenção de conflitos 106 8 Quando tentamos definir um conflito, é preciso considerar os entendimentos que temos a respeito de sua natureza social. Nesse sentido, conflito é comumente entendido como: Uma forma de oposição entre as partes Ausência de acordo entre as partes Uma maneira de resolver contradições sociais Um processo natural na interação social humana 106 9 106 10 No entanto, a tendência geral tem sido considerar o conflito como algo normal, isto é, como um fenômeno social cotidiano e como uma característica inerente aos sistemas sociais humanos A sociedade, por sua própria natureza, como os próprios seres humanos, não é perfeita, portanto a desarmonia e as contradições são partes inevitáveis do desenvolvimento social 106 11 A distinção que deve ser feita é entre o próprio conflito e suas consequências negativas – assim, devemos considerar os modos como os conflitos são tratados em determinada sociedade e as relações de poder que acabam sendo incluídas nesses processos Nessa perspectiva, uma guerra não é o conflito em si, mas sim o resultado negativo de como o conflito foi tratado – o escalonamento da desavença para ações violentas 106 12 “Um conflito é um desacordo entre duas ou mais partes, no qual as partes envolvidas percebem-se como uma ameaça às suas necessidades, interesses ou preocupações” (University of Wisconsin, s.d.) Como podemos definir o conflito? 106 13 Nessa definição, podemos identificar que um conflito envolve: Desacordo, divergência, diferentes pontos de vista e interesses – ponto de inflexão, principal motivador do conflito e causa da violência Partes envolvidas na disputa, que podem ser indivíduos, grupos, governos e agentes internacionais (são os chamados atores envolvidos no conflito) 106 14 Percepção de ameaças – trata-se do sentimento de ameaça, antecipação ou expectativa sobre a possibilidade de ser “atacado” (diferentemente de ameaça real, está mais relacionada com o sentimento de insegurança) Necessidades, interesses e preocupações – podem ter diferentes formas e importância para um conflito. Tais fatores podem ser tangíveis (como dinheiro, comida, água e outros recursos) ou intangíveis (como sentimentos de segurança, amor ou vingança) 106 15 A categorização de conflitos pode ajudar a entender melhor a natureza do conflito que se está analisando – a classificação fornece diretrizes para observar os aspectos centrais em determinado conflito, ajudando a desenvolver métodos de intervenção Os critérios utilizados para classificação variam. Entre outros, incluem: As partes em conflito Podemos falar em tipos de conflitos? 106 16 O contexto do conflito ou as áreas da vida social em que o conflito ocorre (por exemplo: político, econômico, cultural etc.) As motivações ou necessidades por trás do conflito As consequências do conflito A duração do conflito A intensidade do conflito Ausência ou presença de violência no conflito 106 17 Se o contexto é tomado como base para a classificação, os tipos de conflito correspondentes são: político, cultural, ideológico, econômico, organizacional etc. O critério de motivação e necessidades produz três tipos principais de conflito: i) conflitos baseados em necessidades materiais (recursos); ii) conflitos baseados em necessidades sociais (equilíbrio de poder entre partidos, status, papéis em um grupo); e iii) conflitos baseados em necessidades culturais e espirituais (valores, ideias, princípios) 106 18 Além disso, muitos critérios gêmeos são usados na classificação de conflitos, tais como: duração (longo prazo e curto prazo); intensidade (lenta e rápida ou impetuosa); display (manifesto e latente, também conhecido como quente/frio e aberto/fechado); consequências (construtivas e destrutivas); e escala (micro e macro) São identificados quatro tipos de conflito em que se aplica ainda o critério da violência: não violento, armado de menor intensidade, armado de maior intensidade e guerra 106 19 Esses tipos podem ser úteis para descrever conflitos, mas é importante lembrar que existem muitas sobreposições e vários critérios de classificação que podem ser necessários para descrever adequadamente o conflito 106 20 Conflitos internacionais 106 21 Um conflito é considerado “internacional” em duas instâncias: Quando ocorre nas fronteiras de um Estado Nacional e os atores primários do conflito são fundamentalmente Estados soberanos Quando um conflito interno (isto é, aquele que ocorre dentro das fronteiras de um Estado) acaba engendrando impactos regionais ou globais e com isso atrai (...) Conflitos internacionais: o que são? 106 22 (...) atores externos como mediadores ou como aliados para as diferentes partes envolvidas no conflito Tradicionalmente são estudados os conflitos internacionais “armados”, ou seja, aqueles conflitos nos quais há a utilização da violência direta entre as partes envolvidas no conflito (que podem ser Estados, grupos armados, milícias etc.) 106 23 Os conflitos podem ser classificados de acordo com a sua natureza: Interestatais – entre dois ou mais Estados Nacionais (Ex.: Segunda Guerra Mundial e Guerra do Golfo) Intraestatais – conflitos localizados dentro das fronteiras de um Estado, geralmente envolvendo, por um lado, o governo, e, por outro lado, grupos opositores (exemplo: Colômbia com as FARC e Ruanda) 106 24 Intraestatais internacionalizados – são conflitos localizados no interior de um Estado, mas além de envolverem a disputa entre governo e grupo opositores, há a intervenção de atores internacionais ou de outros Estados (exemplo: Síria e Ucrânia) 106 25 106 26 Velhas guerras: conflitos tradicionais entre dois ou mais Estados soberanos – reguladas em certa medida pelo Direito Internacional (Ex.: Segunda Guerra Mundial) Nesse sentido, as velhas guerras são mais previsíveis, realizadas com base em táticas e estratégias militares Novas guerras versus velhas guerras 106 27 Mary Kaldor (2006) foi a responsável pela ideia de “novas guerras”, na qual ela defendia que estas não eram mais um terreno de disputas entre Estados soberanos,visto que assumiam uma nova forma de violência organizada entre grupos discordantes e/ou entre esses grupos e o governo. Com isso, o conflito torna-se mais profundo, complexo e enraizado no interior dos Estados (e mais difícil de se combater) Diferenciam-se das velhas guerras pelos seus objetivos, geralmente relacionados às identidades particulares, pelos métodos de combate, baseados na guerrilha (...) 106 28 (...) e na contrainsurgência, e pelas formas de financiamento, derivadas, na maioria dos casos, da criminalidade e do apoio de agentes externos simpáticos às causas envolvidas A solução para essas novas guerras seria a retomada da legitimidade pelo Estado e a reconstrução do controle do monopólio e organização da violência, sendo implementada por autoridades locais, regionais ou internacionais (Kaldor, 2006, p. 5-10) 106 29 106 30 106 31 106 32 A análise dos conflitos internacionais possibilita pensar melhor os processos e práticas para resolvê-los Por meio desse tipo de análise, é possível apontar os melhores caminhos para transformar as relações existentes entre as partes envolvidas no conflito, de modo a tornar menos provável que estas retomem as ações violentas no futuro Conflitos internacionais: por que estudar? 106 33 Contudo, é fundamental que essa análise do conflito considere mais do que o contexto imediato que conduziu à violência em determinada localidade. Ela precisa problematizar o contexto, as causas profundas e as cisões sociais, culturais, econômicas e políticas envolvidas na disputa 106 34 Paz e conflito nas relações internacionais: lentes analíticas 106 35 Não podemos falar em conflitos sem falar em paz e guerra A paz pode ser simplesmente descrita, dentro de um enquadramento bastante restrito, como a ausência de guerra O termo é originário da palavra latina pax e tradicionalmente se igualava à ideia de absentia belli, que se traduz como ausência de guerra Paz e conflito nas relações internacionais: uma narrativa em disputa 106 36 No entanto, hoje a paz possui muitos outros significados e conotações, e, apesar de o conceito ainda ser entendido com frequência nesses parâmetros limitados, muitos autores vêm desafiando essa definição incompleta Portanto, percebe-se que, nas Relações Internacionais, o estudo dos conflitos pode ser feito com base em perspectivas e entendimentos diferenciados Estudos para a paz versus estudos estratégicos – como ler os conflitos? 106 37 Estudos estratégicos – subárea das Relações Internacionais, vinculada aos estudos de segurança internacional Entendimento dominante sobre a segurança durante a Guerra Fria Nessa abordagem, o estudo sobre os conflitos internacionais é centrado na sobrevivência do Estado e nos estudos militares Centralidade da guerra e da ideia de conflitos tradicionais Conflitos e estudos estratégicos 106 38 Contexto político: disputa bipolar entre Estados Unidos e União Soviética, na qual existiam dois “projetos políticos, econômicos e ideológicos de mundo” concorrentes e mutualmente excludentes. Isso fomentava que os estudos estratégicos se voltassem para a questão da sobrevivência Desse modo, o tipo de pesquisa realizada e a forma como os conflitos eram compreendidos pelos estudos estratégicos estavam muito relacionados com a política das grandes potências e com o acirramento da corrida armamentista naquele momento histórico 106 39 Forte influência dos conceitos do neorrealismo e da geopolítica no modo de se pensar a segurança internacional e os conflitos Assim, no período da Guerra Fria, temos: A centralidade do conceito de estratégia (não se estava discutindo a segurança, mas sim as melhores estratégias de projeção de poder e contenção de inimigos) 106 40 Foco na segurança nacional – questões relacionadas aos indivíduos e às ameaças de outras naturezas eram marginalizadas nessas discussões Padrões de amizade e inimizade entre os Estados – Teoria dos Jogos Começa a haver uma discussão sobre como as armas nucleares poderiam ter um uso estratégico (pós-Hiroshima e Nagasaki) Preocupação com as guerras por procuração (proxy wars) 106 41 Preocupação em como os Estados poderiam utilizar armas de destruição em massa como instrumento de política externa Discussão sobre a estabilidade da bipolaridade: dissuasão, corrida armamentista, dilema de segurança, política de alianças e contenção do comunismo (crença no expansionismo soviético) 106 42 Mesmo após o fim da Guerra Fria, os conflitos continuam a ser analisados com base nas percepções mais duras de segurança e com grande enfoque na questão da sobrevivência do Estado – as análises geopolíticas e neorrealistas dos conflitos geralmente os entendem dessa forma Há uma crescente preocupação com o acesso dos Estados aos recursos escassos, como petróleo, gás natural e até mesmo água Estudos sobre a posição estratégica do Oriente Médio e a incidência de conflitos na região 106 43 A abordagem da geografia dos conflitos – relacionada à localização de um país, aos recursos existentes na região e ao tipo de conflitos observados O combate ao terrorismo é entendido por essas perspectivas em termos militares – guerra ao terror Estabilidade do sistema internacional na multipolaridade Ameaças oriundas de Estados considerados com problemas de capacidades (“Estados falidos”) 106 44 Segundo Johan Galtung (1969), as questões subjacentes ao conflito, a saber, as condições estruturais, como a distribuição desigual de recursos, a discriminação e os desequilíbrios de poder devem ser resolvidas para que a verdadeira paz ocorra Diferenciação entre paz positiva e paz negativa Conflitos e estudos para a paz 106 45 A mera ausência de guerra pode ser descrita como uma paz negativa A expressão “paz negativa” descreve a paz em seu sentido tradicional. É uma abordagem centrada no Estado, fundada na crença geral de que todas as relações sociais são, em última análise, reguladas pela violência. A paz não é percebida como um estado natural de coisas, e sim, meramente, como o oposto da guerra 106 46 O objetivo é evitar a guerra, e esse entendimento está presente em abordagens como o equilíbrio de poder ou a dissuasão – uma sociedade em paz é, nesse sentido, uma sociedade que, mesmo que seja visivelmente violenta, é caracterizada por não estar envolvida em nenhum tipo de conflito militar direto (guerra, guerra civil, insurgência, guerrilha etc.) Para Galtung (1969), a paz positiva, por sua vez, contempla a promoção da paz por meios não militares, focando em questões sociais, culturais e estruturais 106 47 Para isso, é preciso pensar sobre a violência direta, a violência estrutural e a violência cultural O conceito de paz positiva implica no fim não apenas da violência direta em uma sociedade, mas também da violência estrutural e da violência cultural ou da injustiça social Isso significa que os métodos usados para alcançar a paz são importantes para o resultado 106 48 A paz positiva propõe que envolver todas as partes em uma solução negociada certamente a tornará mais sustentável Essa compreensão da paz enfatiza o fato de que, mesmo durante períodos sem guerra, as pessoas ainda estão sendo mortas e feridas, física e mentalmente. A desigualdade nas estruturas sociais limita o que os indivíduos podem alcançar em suas vidas. A violência institucional, o racismo, a exploração e outras barreiras à igualdade de oportunidades limitam a paz 106 49 106 50 “A paz não é apenas um objetivo distante que buscamos, mas um meio pelo qual chegamos a esse objetivo” (Martin Luther King, 2000) O ponto é imaginar a paz não como um destino, mas, sim, como um processo A paz é, muitas vezes, mal-entendida, vista como algo estático e dual (ou se tem ou não se tem).Muito pelo contrário, a paz requer esforço e tem que ser trabalhada em todos os momentos. (...) 106 51 (...) Não envolve sentar-se em silêncio e rezar para que a violência termine, pois requer que medidas ativas e pacíficas sejam tomadas para melhorar a situação Dessa forma, essa compreensão processual sobre a paz leva a um entendimento diferente sobre os conflitos, em que se destaca a necessidade de se pensar em formas de solucionar as desigualdades sociais como um meio de superação do conflito 106 52 Aproxima o nível de análise dos indivíduos (não é estadocêntrico) Incentiva a reflexão sobre as causas do conflito (raízes profundas) 106 53 Os estudos da paz, muito embora sejam a abordagem mais utilizada para se estudar os conflitos internacionais desde o fim da Guerra Fria, recebem inúmeras críticas Isso advém do fato de a paz ser um conceito de difícil definição e de a literatura tradicional entender a paz de acordo com ideias e padrões ocidentais de desenvolvimento Por conseguinte, critica-se o ocidentrismo (...) Conflitos e estudos da paz: críticas 106 54 (...) presente nas políticas e práticas de promoção da paz Critica-se a ideia de paz liberal – sobretudo partindo da virada local Muitos autores destacam que as abordagens dos estudos para a paz não consideram as particularidades de cada processo político e social que conduziu ao conflito (não observam as raízes profundas), concentrando-se em replicar modelos institucionais que nem sempre respondem aos problemas específicos de cada conflito 106 55 Analisando conflitos 106 56 A análise de conflitos permite a identificação dos elementos abaixo: Tipo do conflito As razões que levaram ao conflito As causas e consequências do conflito Os componentes e os diferentes atores envolvidos Os níveis em que o conflito ocorre Análise de conflitos 106 57 ANÁLISE DE CONFLITOS Interesses Dinâmicas Posições Atores Níveis Tipos Causas Relacionamentos Motivações 106 58 Em geral, os atores em conflito podem ser divididos em dois grupos principais: partes em conflito e partes externas ao conflito Uma parte em conflito é um indivíduo, grupo, organização, associação informal, comunidade, grupo étnico, estado ou organização internacional que está ativamente engajada no conflito, apresentando certo interesse nos seus resultados e tomando ações para alcançar seus objetivos em relação a ele As partes envolvidas no conflito 106 59 Exceto no caso de conflitos intrapessoais (ver acima), em que há sempre pelo menos duas partes em conflito Uma parte em conflito pode ser um ator principal – direto ou indireto – no conflito cujos possíveis defensores não estejam ativamente envolvidos em ações de conflito As partes externas ao conflito, por outro lado, não estão diretamente envolvidas no conflito e devem ser imparciais 106 60 Isso significa que o terceiro está interessado apenas no processo de resolver o conflito, não no resultado. Um terceiro intervém entre as partes para ajudá-las em seus esforços de gerenciamento de conflitos. Este pode ser mediador, facilitador, observador, pesquisador, árbitro ou executor. A identificação de partes em conflito pode ser complicada 106 61 A pirâmide do conflito é um modelo que nos ajuda a identificar os atores envolvidos no conflito, os diferentes níveis que eles ocupam e a quantidade de poder e influência que eles têm A pirâmide é composta por três níveis, nos quais se localizam diferentes atores envolvidos em conflito: (1) a elite superior, (2) a faixa intermediária e (3) a base A pirâmide do conflito 106 62 A parte superior da pirâmide é composta pelas lideranças (elites) – em conflito internacional, pode ser o governo, as organizações internacionais ou líderes políticos, militares ou religiosos. Essas lideranças estão ativamente envolvidas nos processos de tomada de decisão e são responsáveis por medidas que auxiliam na continuação do conflito e nos processos de sua resolução ou transformação A faixa intermediária (central da pirâmide) é composta por lideranças de médio alcance – inclui líderes da sociedade civil e organizações governamentais médias 106 63 A base da pirâmide (sua maior parte) é reservada para as bases sociais afetadas pelo conflito, significando o maior número de pessoas no cenário de conflito – população em geral A pirâmide do conflito nos ajuda a analisar os principais atores presentes e envolvidos em um conflito, diferenciando-os segundo cada um dos níveis descritos 106 64 Os três níveis estão presentes em cada contexto: se você está falando de um conflito em um Estado-nação ou em uma pequena comunidade, você sempre terá uma elite, uma faixa intermediária e um nível de base Ela auxilia ainda a pensar sobre as raízes dos conflitos, uma vez que ilumina as relações de poder presentes em determinada sociedade em conflito 106 65 106 66 Existem muitas causas possíveis para a ocorrência de um conflito – podendo incluir interesses materiais conflitantes, falta de benefícios materiais, diferenças de identidade, de perspectiva ideológica ou espiritual, estereótipos e preconceitos, frustrações com relações interpessoais ou falta de conhecimento, habilidades e experiência para superar diferenças Raízes profundas dos conflitos 106 67 Identificar e compreender as possíveis causas de um conflito são essenciais para lidar com isso de forma eficaz, sendo uma parte fundamental da análise de conflitos A ideia de buscar compreender as “raízes profundas” de um conflito vai ao encontro com a necessidade de se utilizar uma análise que vai além da superfície Quais as motivações reais por trás de um conflito? – mais que isso, quais os motivos e interesses que movem determinados agentes a permanecerem em conflito? 106 68 Nem sempre um conflito é visto como negativo por todas as partes que entram em conflito Mais adiante, veremos uma imagem que mostra a Árvore do conflito, um método simples de análise de conflitos que pode ser usado por jovens trabalhadores para descobrir as causas subjacentes de um conflito Mesmo quando se utiliza um método como a Árvore do conflito, é importante considerar as dimensões objetivas e subjetivas das causas de um conflito 106 69 Às vezes as pessoas pensam que determinado elemento é uma causa de conflito, mas, na verdade, é apenas sua opinião subjetiva sobre o que está na raiz do problema Precisamos permanecer conscientes de que as partes em conflito geralmente ocultam suas reais motivações e necessidades, em vez de falar sobre as causas reais do conflito. Elas podem fazer isso porque acham que ganharão alguma vantagem estratégica 106 70 Seja qual for o motivo, é importante se concentrar em descobrir as causas reais do conflito Para as partes em conflito, algumas das causas podem ser difíceis de discutir abertamente. Em outros cenários, as partes em conflito podem não estar cientes de algumas das causas 106 71 Fazer distinções claras entre as causas do conflito e todos os outros fatores envolvidos – o comportamento das partes em conflito, suas necessidades e as consequências do conflito – é importante porque é a análise de conflitos que direciona os esforços para desenvolver abordagens apropriadas à intervenção 106 72 A Árvore do conflito assume que parte do conflito não é visto As causas de um conflito são consideradas suas raízes: estas estão sob o solo, portanto, não são visíveis para os envolvidos As consequências do conflito são seus ramos e folhas: que são visíveis para todos 106 73 106 74 Um conflito pode ser analisado pelas suas fases de desenvolvimento – isso nos permite observar as situações, tensões e os dilemas que levaram ao escalonamento da violência em um conflito. As fases são: Pré-conflito– momento de identificação das diferenças e formação das tensões entre as partes envolvidas Estágios de um conflito 106 75 Confrontação – nenhuma das partes admite os erros, e posições cada vez mais extremas são tomadas pelos envolvidos. Começa-se a utilização de ameaças Crise – ápice do conflito, com hostilidade aberta e/ou violência. A comunicação entre as partes geralmente é interrompida (não há diálogo) 106 76 Resultados e consequências (outcomes) – a utilização da força pode seguir seu curso até que uma das partes “ganhe”, ou outra se renda, ou um cessar-fogo seja acordado entre as partes, ou todos estejam esgotados. Nesse ponto, pode haver intervenção externa (até militar) para interromper a violência 106 77 Quando a violência chegou ao fim, e um acordo foi alcançado, a tensão diminui e os relacionamentos podem ser restabelecidos entre as partes No entanto, ainda há um trabalho considerável a ser feito para alcançar a paz positiva (em outras palavras, uma situação de justiça e melhoria das condições de vida) e assim evitar que aquela sociedade recaia em um conflito violento Pós-conflito: restaurando a paz 106 78 Percebam que apenas um acordo de paz ou um cessar-fogo não são suficientes para garantir a estabilidade de uma sociedade e fomentar uma paz sustentável Portanto, é importante trabalhar na reintegração e na reconstrução da confiança entre as partes envolvidas no conflito para evitar a recorrência da violência 106 79 Os esforços de construção da paz buscam reparar relacionamentos danificados, com o objetivo de, a longo prazo, se chegar a uma reconciliação duradoura entre antigos partidos em conflito Por essa razão, o estudo sobre os conflitos não pode ser deslocado das discussões sobre a paz Percebam como as análises dos estudos estratégicos não são suficientes para se pensar sobre essas questões tão importantes 106 80 Assim como podemos dividir um conflito em fases ou estágios, é possível pensar nos estágios dos momentos pós-conflito. Isso é importante, pois permite pensar sobre a construção da paz e a consolidação de um ambiente estável, diminuindo as chances de a violência voltar a ser utilizada. As fases são (percebam que essas fases dizem respeito a tipos, ideias, nem sempre significam a prática de resolução de conflitos): Estágios do período pós-conflito 106 81 Pós-conflito – momento imediato ao fim do confronto violento entre as partes (acordo de paz ou cessar-fogo) Abertura de canais de comunicação – ambos os lados concordam que é necessária uma solução. Pode haver mediação externa na comunicação entre as partes. Formas de avançar são estabelecidas 106 82 Entendimento mútuo – as pessoas começam a entender as opiniões umas das outras; momento de construção de respeito mútuo. O conflito é mapeado para ajudar a encontrar possíveis soluções Buscar soluções para as controvérsias – é encontrada uma abordagem de resolução com a qual todos concordam – para isso se usa a lei, os métodos de resolução de conflitos ou as parcerias. As soluções são acordadas e postas em prática pelas partes envolvidas. É estabelecido um ambiente no qual a paz pode se tornar duradoura 106 83 Na prática: conflitos contemporâneos (Síria) 106 84 De acordo com Pettersson e Wallensteen (2015): Desde o fim da Guerra Fria, o número de conflitos armados no mundo diminuiu substancialmente No entanto, nos últimos dez anos, o Uppsala Conflict Data Program (UCDP) tem registrado uma tendência ascendente desigual, mas claramente visível, relacionada ao crescimento no número de conflitos armados internacionalizados Conflitos internacionais contemporâneos 106 85 Nos últimos anos, o conflito na Síria e a escalada da violência em países como Iraque, Afeganistão, Nigéria e Ucrânia resultaram no maior número anual de mortes no período pós-Guerra Fria Porém é preciso ressaltar um notável desenvolvimento positivo desde 2011, representado pelo aumento do número de acordos de paz que estão sendo assinados 106 86 Em 2014, foi observado que 40 conflitos armados ocorreram em 27 locais em todo o mundo, representando um aumento de 18% em comparação com os 34 conflitos registrados em 2013 Esse é também o maior número de conflitos relatado desde 1999 Embora o número permaneça relativamente baixo em comparação com o período imediato após a Guerra Fria, é visível que a tendência no início dos anos 2000 (quando houve o decréscimo dos conflitos armados) (...) 106 87 (...) parece estar sendo revertida De fato, os números estão atualmente no mesmo nível da segunda metade dos anos 1990 O ano de pico de 1991 viu 51 conflitos ativos, ao passo que o menor número de conflitos ativos no período pós-Guerra Fria foi registrado em 2010, quando 31 conflitos estavam ativos Dos 40 conflitos ativos relatados, 11 atingiram o nível de intensidade da guerra – conflitos com pelo menos 1.000 mortes relacionadas à batalha em um ano – cinco a mais que em 2013 106 88 O que se destaca no século XXI é a falta de conflitos entre Estados em larga escala. Apenas um foi ativo em 2014, o conflito entre Índia e Paquistão, que levou a menos de 50 mortes Os 39 conflitos restantes foram travados dentro dos Estados (intraestatais), mas 13 deles – ou 33% – foram internacionalizados no sentido de que um ou mais Estados contribuíram com tropas para um ou ambos os lados 106 89 Esses conflitos internacionalizados foram: Afeganistão, Azerbaijão (Nagorno- Karabakh), Iraque, Mali, Nigéria, Somália, Sudão do Sul, Uganda, Ucrânia (Donetsk), Ucrânia (Lugansk), Ucrânia (Novorossiya), EUA (o conflito com a Al-Qaeda) e Iêmen Esses números representam um aumento em relação ao ano anterior, quando 27% dos conflitos registrados foram internacionalizados 106 90 O envolvimento de atores externos em conflitos internos não é um fenômeno novo. No entanto, vale ressaltar que a proporção de 2014 é a maior registrada em todo o período pós-Segunda Guerra Mundial Os Estados Unidos e a Rússia foram dois dos principais agentes externos em 2014, envolvidos em quatro e três conflitos, respectivamente. A Jordânia, o Reino Unido, a Bélgica e a França participaram de três conflitos cada um 106 91 As operações de paz das Nações Unidas são um instrumento desenvolvido para ajudar os países afetados por conflitos a criar as condições para alcançar uma paz permanente e duradoura A primeira operação de paz das Nações Unidas foi estabelecida em 1948 para monitorar o Acordo de Armistício entre Israel e seus vizinhos árabes Desde então, 63 operações de paz das Nações Unidas foram criadas Operações de paz da ONU 106 92 No decorrer do tempo, as operações de paz evoluíram para atender às necessidades de diferentes conflitos e contextos políticos. Isso porque os objetivos das operações de paz da ONU eram, inicialmente, limitados à manutenção do cessar-fogo e ao alívio das tensões sociais no terreno, para que os esforços, em nível político, resolvessem o conflito por vias pacíficas (pretendiam ser menos intrusivas – relação com o conceito de soberania) 106 93 Essas missões consistiam em observadores militares e tropas equipadas com armamento leve, com a função de monitorar e ajudar no cessar-fogo e em acordos de paz Com o fim da Guerra Fria, o contexto mudou bastante, de maneira que foi expandido o campo de atuação As missões “tradicionais” tornaram-se complexas operações “multidimensionais” criadas para assegurar a implementação de abrangentes acordos de paz e ajudar a estabelecer as bases para uma paz sustentável 106 94 Brahimi Report (1992) – relatório contendo a estratégia da ONU para as operações de paz “Peacemaking: busca pela restauração da paz por meios pacíficos, utilizando-se geralmente de ações diplomáticas [...]. São despendidos os esforçosnecessários para tentar resolver conflitos sem o uso da força, sendo este o primeiro estágio da resolução das divergências, podendo ser substituído pelo peace-enforcement quando não há grande probabilidade de resolução pacífica dos mesmos” Operações de paz da ONU: estratégias 106 95 Peace-enforcement é a imposição da paz e ocorre durante os combates. Uma força externa, geralmente um único país, entra no conflito e, pela violência, põe fim ao conflito, muitas vezes aliando-se a uma das partes envolvidas no conflito (pense na Rússia e no Irã na Síria). Isso é bastante raro na história moderna em relação aos outros dois fenômenos, e é geralmente considerado contrário às leis e normas internacionais 106 96 “Peacekeeping: medidas que visam à preservação da paz, mesmo que frágil, e à assistência na implementação dos acordos de paz [...]. É a ‘parte do meio’ das intervenções, iniciando-se próximo ao fim do peacemaking (ou enforcement) e terminando pouco depois do início do peacebuilding” 106 97 “Peacebuilding: caracteriza-se como um processo longo e profundo que envolve um conjunto de medidas que visam à redução do risco de ocorrência de novos conflitos e ao reforço das capacidades nacionais [...]. Assim, busca-se a construção da paz positiva, criando laços e incentivos para que os lados ora beligerantes busquem a paz entre si, e reforça as instituições locais e o papel do Estado nesse contexto (statebuilding)” 106 98 Contexto: Primavera árabe em 2011 – forte repressão do governo aos protestos contrários ao regime de Bashar al-Assad (início das hostilidades) Questões geopolíticas – posição estratégica na região e jogo de interesses Instabilidade no Iraque e ascensão do Estado Islâmico – efeito spillover Na prática: conflito na Síria 106 99 Conflito: Escalonamento da violência e formação de grupos organizados: Exército Livre da Síria (resistência ao governo) Estado Islâmico, Frente al-Nusra (braço da al- Qaeda) e as milícias curdas Envolvimento externo – principalmente Estados Unidos e Turquia, de um lado, e Rússia e Irã, do outro (Conselho de Segurança congelado – poder de veto) Ataques com gás Sarim, catástrofe humanitária e crise dos refugiados sírios 106 100 106 101 Natureza do conflito: intraestatal internacionalizado e multidimensional Atores envolvidos: governo sírio, “rebeldes”, Estado Islâmico, Turquia, Estados Unidos, Rússia, Irã e ONU Interesses e motivos: geopolíticos, ideológicos, religiosos, políticos, estratégicos e econômicos Raízes profundas: formação do Estado sírio, repressão política interna, interferência externa ao longo da história do país Como podemos analisar o conflito na Síria? 106 102 Consequências: efeito spillover na região (instabilidade) e crise de refugiados em escala global Resolução: o conflito ainda está longe de ser resolvido. A maior dificuldade reside nos posicionamentos contrários entre EUA e Rússia, congelando o Conselho de Segurança. Ainda, Assad se nega a negociar com os rebeldes e não cogita deixar o governo Algum tipo de avanço: recuperação de Raqqa (em posse do Estado Islâmico) 106 103 Referências 106 104 CONTI, T. Os tipos de violência Direta, Estrutural e Cultura. 2016. Disponível em: <http://thomasvconti.com.br/2016/os- conceitos-de-violencia-direta-estrutural-e-cultural/>. Acesso em: 18 ago. 2018. GALTUNG, J. Violence, Peace, and Peace Research. Journal of Peace Research, v. 6, n. 3, p. 167-191, 1969. doi: 10.1177/002234336900600301. ______. Theories of Peace. A Synthetic Approach to Peace Thinking. 1967. Disponível em: <http://www.transcend.org/galtung/index.php#publications> . Acesso em: 8 set. 2018. KALDOR, M. New and Old Wars: Organized Violence in a Global Era. Cambridge, UK: Polity, 2006. OHANA, Y. et al. T-KIT: Youth transforming conflict. Council of Europe Publishing, 2012. 106 105 ONU – Organização das Nações Unidas. A ONU, a paz e a segurança. [2018?]. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/acao/paz-e- seguranca/>. Acesso em: 18 ago. 2018. PETTERSSON, T.; WALLENSTEEN, P. Armed conflicts, 1946–2014. Journal of Peace Research, p. 536-550, 2015. Disponível em: <https://pcr.uu.se/digitalAssets/667/c_667482-l_1-k_journal-of- peace-research-2015-pettersson-536-50.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2018. THEMNE’R, L.; WALLENSTEEN, P. Armed conflicts, 1946–2012. Journal of Peace Research, v. 50, n. 4, p. 509-521, 2013. THEMNE’R, L.; WALLENSTEEN, P. Armed conflicts, 1946–2013. Journal of Peace Research, v. 51, n. 4, p. 541-554, 2014. UPPSALA UNIVERSITY. Department of Peace and Conflict Research. Charts, Graphs and Maps. [2017?] Disponível em: <http://pcr.uu.se/research/ucdp/charts-graphs-and-maps/>. Acesso em: 18 ago. 2018. 106 106
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