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DEDICATORIA A minha dedicada esposa Tânia, cujo fervor e persistência foram a base de minha restauração. A meus filhos amados Israel, Davi e André herança e promessa do Senhor. PREFACIO Na vida de milhares de pessoas existe um vazio que na maioria das vezes elas tentam em vão preencher. Dominadas por essa realidade são presas de insatisfações e conflitos. Ninguém deseja que isto lhe aconteça; no entanto o preenchimento de vazios e a resposta à sede e à fome são necessidades inatas que acompanham o homem do nascer ao morrer, provocando nele maior ou menor ansiedade -que pode ser normal e até mesmo saudável, ou desgovernada e doentia ao ponto de inclusive poder levá-lo à loucura. Criado num lar onde os esforços pelo equilíbrio familiar e o aprimoramento do espírito eram uma constante, só se podia esperar que não me sentisse frustrado ou carente. No entanto –apesar de reconhecer hoje terem sido inúteis, em certo sentido, os esforços da família, visto estarem envolvidos com entidades fictícias ou diabólicas-, mesmo com toda a dedicação de meus pais fui vítima desse vazio insano. Assim, seguindo o exemplo de milhões de jovens, saí em busca das mesmas fontes às quais eles loucamente se entregavam. Tendo rejeitado os ensinamentos que diziam respeito à disciplina e integridade de caráter, recebidos de meus pais e observados em famílias decentes que nos rodeavam, rebelado contra tudo e contra todos, procurei como louco preencher meus vazios nunca satisfeitos. Desinteressado completamente de Deus e do meu próximo, lancei-me com avidez à vida desregrada dos companheiros de bairro - que aliás não eram companheiros, apenas ímãs que me atraíam a seus caminhos de devassidão e vício, sendo muitas vezes por eles rejeitados, já que viam em mim uma pessoa diferente do grupo, por isso mesmo incômoda. Forçando no entanto as circunstâncias, acabei obrigando-os a me aceitarem como um deles. E quase me tornei pior que todos - se é que isso não aconteceu... As experiências por que passei, eu mesmo as fui cosendo dia-a-dia, tecendo-as palmo a palmo, sem que ninguém a isso me coagisse, me forçasse a avançar pelo caminho da marginalização. O tremendo, dentro de todo esse panorama de afogamento, de morte em vida, são os desvios e quedas provocados em vítimas inocentes. Sei de muitos rapazes e moças que foram arrastados ao vício, ao homossexualismo, à bebida, à prostituição, ao roubo, ao assalto e ao crime por elementos interessados em usá-los para proveito próprio. Existe literatura substanciosa - nacional e internacional - revelando a criminalidade como resultado da atividade de elementos perniciosos, traficantes de toda espécie de drogas que buscam extrair o máximo de lucro através do induzimento e da arregimentação de jovens ao exército de forças malignas do tráfico. É terrível confessar, mas a verdade é que minha atividade com tóxicos não foi motivada por ninguém. Eu mesmo procurei esse caminho; eu mesmo saí à cata de pessoas que consumissem ou vendessem drogas. Foi por mim próprio, por livre e espontânea vontade/que desgraçadamente me fiz usuário delas. As agruras que sofri não posso debitá- las à conta de quem quer que seja, senão à minha. Altaneiro, ignorei os conselhos paternos e os avisos - através da palavra falada ou escrita - de quantos me advertiram, lembrando-me o tremendo mal que milhões de jovens fazem a si e a tantos, pelo consumo de drogas. Existe no entanto, e felizmente, um "mas": mas eu fui um dos que - pela misericórdia de Deus – encontraram o caminho de volta. Embora envolvido até a raiz dos cabelos, lançado no mais fundo poço, desgastado e cauterizado, alcancei finalmente a liberdade; empreendi a fuga com a mesma afoiteza do trágico começo. E respirei aliviado, como quem vê o céu após soterrado, ou enxerga o sol depois de preso à mais dramática escuridão. É esta a razão de ter autoridade para falar de um mundo cão - eu que estive nele afundado até os olhos. Sei o que é descer a ladeira empinada do mundo do vício. Por isso posso avisar aos que por este são dominados, ou nele estão ingressando: Fuja! Saia daí enquanto é tempo! Renato Maduro A fumaça do cigarro de maconha, aspirada pelo viciado, ou por quem começa a viciar-se transporta mais de 400 venenos diferentes para o interior do organismo. Não se conhece todo o mal por ela provocado, mas sabe-se o suficiente para apavorar. De todo o lixo que existe na maconha, uma substância química é que produz o chamado embalo (o delta 9 - tetrahidrocanabino 1 ou THC). Logo que penetra no organismo esse elemento vai para o tecido adiposo, invadindo as células do cérebro, fígado, rins, glândulas e sistema reprodutor. O THC contido num único cigarro de maconha permanece no organismo de três semanas a cerca de dois meses, perturbando toda a atividade normal do corpo e acabando por destruir a memória, arrasando a capacidade de aprender, assimilar e compreender. O usuário não mais consegue acompanhar nenhuma idéia mais completa, nem elaborar pensamentos lógicos e acertados. A droga é tão forte que um único cigarro mantém o organismo envenenado durante as 24 horas do dia. Neste período, uma experiência isolada pode, portanto, transformar-se em sério risco de vida. A literatura diversificada que denuncia o perigo do uso dessa droga seria suficiente para dissuadir aqueles que pensam em ingressar nessa miserável carreira. Mas somente os que estiveram ou estão envolvidos com ela podem provar o quanto é perniciosa e até fatal. O usuário da maconha começa com um trago inocente entre os colegas de ajuntamento. Logo passa a experimentar uma necessidade maior, indo de trago em trago até chegar à marginalidade, entregando-se à inatividade, ao roubo e ao crime para atender às necessidades de viciado. Sua vida então se transforma num verdadeiro inferno, sempre procurando enganar e iludir as pessoas, e até mesmo fugindo da polícia, uma vez que tem que -dar contas a ela do uso da droga e das fontes onde a adquire. No caso de vir a se transformar num arquivo - ou seja, um conhecedor de fontes e usuários - é bem possível que acabe morrendo nas mãos dos próprios fornecedores, se não morrer nas mãos da polícia... EU ERA ASSIM DROGAS POR MIM CONSUMIDAS ENTRE OS 13 E OS 22 ANOS, E ALGUMAS DE SUAS CONSEQUENCIAS: Maconha -fuga à realidade. Cocaína -paranóia (mania de perseguição), insuficiência cardíaca. LSD - alucinações. Anfetamina - fraqueza, emagrecimento violento. Barbitúricos - vertigens, calafrios, angústia. Mescalina - delírios. Sonorífero - desânimo. Cogumelos - visões monstruosas. RUMO AS DROGAS Uma grande tormenta tomava conta de mim, diante do enorme vazio que me dominava a alma. Dava-me conta de que havia à minha frente muitos caminhos, múltiplas opções. Eram tantos, que em meu interior explodiu uma grande batalha. Entregue a ela fui ficando endoidecido, como o alcoólatra insaciável, sempre em busca da última dose. Caminhando de bar em bar ele tenta satisfazer a sede, mas chega o momento em que as portas se fecham e ele termina caído por aí, prostrado em sono profundo, até que lhe passe a bebedeira - quando então o sol nasce e lhe aquece o rosto. Assustado, põe-se de pé e cheio de vergonha começa a conjecturar sobre sua vida inútil e desgraçada. Diz-se mais uma vez que precisa regenerar-se, abandonar a bebida. Chega inclusive a consolar-se timidamente com o provérbio tão verdadeiro "Enquanto há vida há esperança" - parece que sem valia nenhuma em seu caso. Caminha ao azar, imaginando-se renovado, uma pessoa limpa e equilibrada... até que encontra o primeiro boteco; e aí começa tudo de novo! Também assim corre a vida desregrada de muitos jovens, criados em família decente, sem nada que Lhes falte, e nenhum motivo de revolta e de reclamo Lhes justificaria a entrada na marginalidade. Foi por volta dos treze anos que minha rotina de viciado começou. Vinha sentindo um profundo desprezo pela vida em família. Não via nenhuma motivação entre os parentes, e embora manifestassem apego e solicitude para comigo, vivia enojado detodos, como se me estivessem roubando o direito à vida. Na realidade não encontrava entre os que me rodeavam nada que me satisfizesse. Não suportando mais essa situação – talvez influenciado pela literatura, ou como resultado de minha reação aos sermões e conselhos condenando asperamente a droga -, parti à procura do que eu mesmo chamei de A DOSE MAIS FORTE. Devo ter sido despertado por uma aguda curiosidade, e assim instigado a uma contra-reação, como e em lugar de prejudicado pudesse ser beneficiado por aquilo que tantos amaldiçoavam. Contudo o que havia por detrás, na minha história, era o exemplo de um lar no qual superabundavam o carinho e as atenções. Meu pai todas as manhãs reunia a família e fazia uma prece ao "astral superior". Segundo ele, esse dia nos traria paz completa. O racionalismo cristão - uma espécie de espiritismo - fora a religião transmitida a ele por meu avô. Um tio era versado como pai-de-santo e umbandista, e sempre pedia "proteção" aos orixás em favor de todos. Contudo, apesar de todo esse esforço (e possivelmente à raiz disso) nada me satisfazia - espiritual, física ou financeiramente. Havia em mim um fogo ardente de incontentamento me consumindo por dentro. Ansiava por algo que não conseguia de maneira nenhuma identificar -talvez meu próprio eu, sensível e nebuloso, me perturbando a alma. Foi assim que aos 13 anos resolvi partir em busca desse eu indefinido e conflitante -o eu nascituro, ou o bebê ainda não revelado aos olhos de quem o esconde no útero. Saí afoito, sem nem de longe imaginar que me estava deixando escorregar por uma trilha perigosa e traiçoeira. Apesar de saber que o caminho pelo qual outros haviam enveredado os conduzira à marginalidade, e inclusive à morte, uma força maior me impelia às mesmas experiências. O que mais ambicionava - e lutaria sem entraves por alcançar - era minha própria satisfação, o desejo e o prazer atendidos. Dominado pela paixão dessa procura, acreditava que comigo a experiência seria diferente da dos demais. Foi assim que entre tantos caminhos à escolha optei justamente por aquele do qual recebera as mais dramáticas referências, e contra o qual fora severamente advertido -o da maconha. Ouvira falar tão mal da chamada erva maldita que comecei a desconfiar do que diziam, julgando haver muito exagero, muito de lenda no que propalavam. Tomado de intensa curiosidade desejei conhecer de perto seu efeito real. Em razão disso procurei me aproximar dos que dela faziam uso. Alimentava a tresloucada esperança de que através de uma experiência pessoal - e não pelo que via ou me informavam - alcançaria preencher pelo menos um pouco do meu vazio interior. Era de se estranhar tal atitude, visto que no meu lar - como já disse - não havia motivos, pelo menos aparentes, que me levassem à autodestruição. Não fora criado entre gritos, agressões, desrespeito, mentiras, traições, egoísmo e desamor - como acontece em tantos lares onde a paranóia substitui o diálogo, a alegria, a honestidade e a paz. Mais tarde Iria reconhecer que a revolta e o vazio que me consumiam eram, sobretudo fabricação minha. Eram talvez produto de uma inexplicável insatisfação e tristeza me corroendo a alma, me matando aos poucos, me atiçando o desejo irrefreável de desvincular- me de quaisquer laços que me impedissem de viver completamente livre e sem governo. ENTRE A RUA E A FAMILIA Nasci no Méier, um bairro da zona norte do Rio de Janeiro. Meu pai, hoje aposentado, foi por longo tempo gerente das Lojas Ducal-Bemoreira. Muito dedicado ao lar, era chefe de família exemplar, sem nenhum vício, responsável no trabalho, impecável nos negócios. Seu grande entretenimento era levar a família, nos fins de semana, ao Nevada Praia Clube, na Av. Sernambetiba, na Barra da Tijuca. Quanto à parte espiritual, professava a fé no Centro Eucarístico Cristão, um ramo de espiritismo de mesa branca. Minha mãe, Rita, já falecida, era totalmente voltada para os problemas do lar, sempre preocupada com a saúde, a educação e o bem-estar dos filhos. Comecei a estudar aos 7 anos de idade. Recordo ainda hoje, com muita saudade, vários coleguinhas com os quais me entrosava muito bem, até mesmo em relação aos brinquedos, que partilhávamos sem qualquer discriminação. É que entre nós não havia nenhum tipo de egoísmo. Guardo na lembrança, com profunda saudade, nossos folguedos de criança. Vivíamos absolutamente sem preconceitos e sem rancor. Fico muito comovido, cada vez que paro e volto o pensamento para esse tempo de memória eterna, repleto de instantes de indizível candura. Quando menino enfrentei um grave problema de saúde, uma convulsão, que me debilitou demais, trazendo grandes preocupações para a família, especialmente minha mãe. Lembro que uma madrugada, depois de lutar horas para que a febre baixasse, enrolando-me num cobertor ela desceu apressadamente a ladeira junto à qual morávamos, e muito aflita e preocupada me levou para o hospital. Era muito aplicado no colégio e recebia boas notas, sendo por isso apreciado e elogiado pelos professores; com tão boa fama, naturalmente fazia jus a novos brinquedos, entre eles uma bicicleta, que veio a ser a minha grande companheira. Com ela passeava, fazia compras, me divertia. Era tão ligado a ela que "conversávamos" como se para mim ela fosse gente de verdade. Sendo bastante precoce, com o passar do tempo fui perdendo o prazer de brincar com os garotos de pouca idade. O que me satisfazia mesmo era conviver com oS mais velhos e mais experientes. Com 8 anos, só queria estar na companhia de meninos entre 13 e 15. Observava-lhes os hábitos, as manias, as habilidades e com eles aprendia muitas coisas. Durante um certo período assim foi transcorrendo a minha vida, cheia de coisas adoráveis para um garoto vivo e ambicioso, estranhamente frustrado, apesar de tantas experiências agradáveis e inesquecíveis. Deixaria contudo para trás todo esse mundo inocente e puro - invejado por tantos meninos ricos que nunca souberam o que é experimentar a alegria limpa e linda de moleques de rua, sem maldade e sem ambição, a não ser a de correr, brincar, jogar bola, empinar papagaio, construir pipas, ser feliz ao-deus-dará. Como foi lindo esse tempo! Se pudesse trancá-lo-ia numa redoma, para ingressar nele de vez em quando, sempre que a saudade apertasse... Afastando-me desse universo inesquecível, segui minha vertiginosa viagem rumo à escuridão do túnel das drogas. Aos 11 anos fui estudar no Colégio Republicano. Os diretores eram muito rigorosos com a apresentação dos alunos e a disciplina, não lhes permitindo cabelos compridos nem calças apertadas, mantendo a ordem como num quartel. Sem dúvida aprendi muito ali; futuramente lições preciosas desse tempo seriam retomadas, talvez uma maneira de o destino provar-me que nem tudo fora em vão. Entre os colegas mais próximos havia um do tipo "avançado", que fumava muito. Irresponsável demais, matava muita aula. Aprendi um mundo de coisas erradas com ele. Escondido da professora, íamos fumar no banheiro. Éramos inseparáveis nesse vício; quando ele não tinha cigarros fumava os meus, e vice-versa. Certa vez passamos por uma situação de grande aperto. A diretora, sabendo que fumávamos no banheiro, ficou atenta, até que nos surpreendeu em flagrante. Foi um Deus nos acuda! Como não tivéssemos conseguido sumir com os cigarros, de posse deles ela prometeu mostrá-los aos nossos pais. Ficamos muito tensos, sem saber o que haveria de acontecer. Dias depois ela Ihes comunicou o fato. A repercussão foi terrível. Em frente ao edifício onde eu morava havia um clube que funcionava à noite durante a semana e em tempo integral nos sábados e domingos. Eu e os outros garotos do local, aproveitando as ocasiões em que estava fechado, pulávamos o muro da cantina e roubávamos algumas pilhas de pacotes de cigarros, que consumíamos ou vendíamos. Era deles que fumávamos no banheiro do colégio. A essa altura eu já estava virando um tremendo moleque. Tinha 13 anos, matava aulas, e perdia rapidamente o interesse pelos estudos, trocandoos livros pelo cinema e o encontro com garotinhas. Muito em voga na ocasião a música pop, os Rolling Stones, os Beatles e os filmes de iê, iê, iô, deixei-me influenciar profundamente por eles. Marcaram fundo a minha vida; faziam a minha cabeça, exercendo muita influência sobre minha personalidade inclinada às coisas loucas, às músicas barulhentas, cheias de vibração e paixão. Aquelas vozes retumbantes e doidas mexiam demais comigo, me agitavam o sangue, me faziam a alma quase saltar pela boca. Entre essas músicas barulhentas lembro- me especialmente de uma, Satisfaction. Já não experimentava nenhuma motivação para continuar os estudos; tampouco me atraíam os passeios com a família nos fins de semana. Meu interesse tinha se voltado completamente para os divertimentos de rua. Via grupos aqui e ali, e deles destacava especialmente os fumantes de maconha. Curioso, excitado, acompanhava-lhes as idas e vindas súbitas, o ar misterioso, enchendo-me de vontade de provar a droga. Ouvia sempre referências as piores possíveis aos maconheiros, como pessoas de alta periculosidade, que assaltavam à mão armada e matavam sem piedade. Passei então a observá-los mais de perto: queria saber se aquilo que diziam da maconha era lenda, exagero, ou verdade mesmo. Ao fazê-lo não vi nada que justificasse tal julgamento. Para mim eram rapazes do mesmo bairro, de boa família, que fumavam a droga exclusivamente para divertir-se. Mais tarde vim a saber que na verdade eles ignoravam o mal tremendo que tal hábito poderia causar-lhes à mente, ao corpo e à alma. E havia um agravante: como fumavam abertamente, acarretavam sérios problemas não só para seus pais, como para os pais dos não viciados, como foi o meu caso. Eu ficava olhando de longe aquele grupo de rapazes reunidos em torno da droga, divertindo- se, descontraídos, rindo-se muito e às vezes até mesmo cantando. Sentia-me violentamente desejoso de descobrir o que estavam sentindo. Para conseguir isso, só me restava experimentar. Ouvia dizer que os fumantes ficavam tontos, e viam fantasmas. Não os surpreendia empunhando revólver nem batendo com a cabeça nas paredes, como certa vez me dissera meu pai que o faziam. Punha-me a imaginar se a maconha era realmente coisa de bandidos, ou divertimento inocente. Começou então acrescer, até agigantar-se em mim uma vontade enorme de descobrir o porquê de tamanha atração. Todo lugar que freqüentava parecia ter seu grupo de maconheiros. Acabei achando isso muito natural. Eles sempre fumavam quando estava em sua companhia; parecia de propósito! Enfrentava um momento crucial; um perigo tremendo! O desejo crescia, e a vontade de penetrar o mistério, de saber exatamente o que acontecia no corpo e na alma de quem se drogava me perturbava, me deixava, aflito. Era justamente esta ânsia de penetrar o desconhecido o que mais atraía os menos avisados. Após a primeira experiência eles são possuídos de um desejo incontrolável e insaciável. Se pensam que vão apenas experimentar, nada mais, estão muito enganados! Não vão parar nunca no primeiro trago, nem nos tragos seguintes. De trago em trago irão rapidamente se envolvendo, até atingir o último grau do vício. Foi dessa maneira que comecei a fumar maconha: deixei-me afinal seduzir completamente pelo desejo de conhecer a sensação ou o prazer que ela iria me proporcionar, e pela curiosidade de saber como ficaria depois de usá-la. Foi a constatação de que aqueles viciados muito se divertiam que criou dentro de mim essa expectativa que não podia dominar. Era como um caminhão sem freios, rodando inexoravelmente estrada abaixo. Pobre de mim! Foi nesta ansiedade, alimentada em grande sofrimento durante um tempo, que ao caminhar um dia por uma das ruas do meu bairro avistei dois rapazes fumando maconha. Um deles – nestes "acasos" malditos - era irmão da minha namorada. Como soubesse que ele era viciado, senti-me um pouco mais à vontade para me aproximar e pedir-lhe que me deixasse dar uma puxada. Pensando na minha pouca idade ele negou, mas o outro o persuadiu: - Ah! Não tem problema. Ele quer, não quer?.. E passou à minha mão o cigarro (baseado) que fumava. Esse foi o instante fatal: meu primeiro passo (sem volta) em direção ao vício. Foi assim, num movimento de pêndulo, simples e rápido, que entrei no desgraçado mundo dos tóxicos. A porta se abriu fácil, mas o portão de saída foi trancado a sete chaves. Dificilmente conseguiria escapar. Só mesmo um milagre. Daí a bem pouco estava rodando, me sentindo estranho, como se eu já não fosse eu. Segui caminho de casa, mas se alguém cruzava comigo, pensava logo que tinha conhecimento de que eu fumara maconha. A droga me estava fazendo um cerco à mente, aos sentidos e às emoções normais. Tinha a cabeça leve, e o corpo como que levitava, se erguera acima do chão, narcotizado. De repente senti uma fome tremenda. Pus-me a caminhar ao léu, abstrato, sem saber aonde estava indo. As luzes dos postes e dos carros pareciam reluzir ante meus olhos com maior intensidade. Debaixo dos focos as pessoas davam a impressão de mais serenas, menos antipáticas. De repente todos os pensamentos negativos, a ansiedade, o vazio, o medo e a timidez como por encanto evaporaram. Finalmente sentia encher-se aquele buraco enorme dentro do peito. Estava calmo, quase anestesiado. DELIRIO DE DECEPCAO Passara o efeito da maconha. Subitamente caí numa realidade terrível; uma dor de cabeça alucinante estava a ponto de explodir-me o cérebro. Senti-me aflito e esfomeado. Em minha casa havia um horário certo para as refeições. Nesse dia cheguei tarde; todos já haviam jantado. Minha mãe então me avisou que a comida estava quente, sobre o fogão. A fome era tamanha que devorei quase tudo que encontrei. Espantada, ela me perguntou: -Renato, você comeu tudo aquilo? Que está acontecendo com você? Você nunca foi de comer muito... Nada lhe respondi, e ela também silenciou. Jamais passaria pela cabeça de minha mãe que o filho a quem amava tanto comera daquele jeito porque estava drogado. Mas apesar de me haver empanturrado, de haver comido como um leão, sentia-me mole, sem forças, moído, como se um trator houvesse passado por cima de mim. Tinha a sensação de haver saído de uma febre altíssima. Preocupado, a cabeça oca, pensava no que lhe diria se ela voltasse a inquirir-me sobre meu apetite voraz. Além disso, meu estado físico – o corpo cansado, cheio de sono, dormindo em pé, no bode - chamava muito a atenção. Tinha consciência disso, e a expectativa de uma descoberta brusca de minha mãe me deixava cada vez mais nervoso. Aflito, saí de casa, para que ninguém desconfiasse que fumara maconha. Logo dei com alguns colegas, entre os quais deveria sentir-me à vontade, continuando no entanto extremamente tenso, pelo medo de que notassem algo esquisito em mim. Felizmente - creio que por serem bastante caretas - de nada desconfiaram. Voltei então para casa. Acontece que eu dera a primeira puxada, e a partir daí não teria mais sossego. Aliás, essa primeira vez foi a causa principal de meu ingresso no mundo dos tóxicos. Depois disso passei a fazer uso dela apenas nos fins de semana, ou quando havia algum "motivo especial" - uma festa, uma ida ao cinema ou à praia, um jogo de futebol. Acreditava que para estar bem, com ânimo condizente com a curtição, tinha obrigatoriamente que excitar-me, puxando o fumo. Dessa maneira entrava cada vez mais fundo no vício. O acesso à maconha era muito fácil; em todo lugar aonde ia havia sempre um portador da droga. Cada vez consumia mais; logo estava me entrosando não só com os parceiros de vício, mas também com os passadores. Entre meus parceiros constantes havia um que fora em outro tempo um excelente jogador de futebol, mas seus reflexos e sua grande capacidade no esporte tinham sido completamente bloqueados. Nosso principal divertimento era fumar maconha e depois curtir um som numa discoteca, acompanhados de uma mocinha despreocupada - uma namoradinha. Eu me apaixonava com a maior facilidade, e chorava muito quando perdia a namorada. Caía numa fossaprofunda, enterrando-me em casa, sem nenhum interesse pelas diversões. Só saía para ir ao colégio, mais nada. Meu único entretenimento era ouvir música romântica, enquanto minh'alma vagava na maior casmurrice e abulia - uma apatia doentia, depressiva e esmagadora. Ausente da realidade da vida, deixava-me afundar em paixões violentas, delas emergindo cheio de humilhação e revolta, com manchas horríveis no coração adolescente, que não aceitava a traição da garota amada, nem a hipótese de meus sentimentos mais profundos serem atraiçoados. Quando descobri a venda, a troca e a traição imperando à minha volta, me senti fraco e sem reação. Não podia crer que as pessoas fossem tão ruins -muito embora eu fosse uma delas, se bem que num jeito diferente... Hoje reconheço que o maior problema meu - como de todo viciado - era uma profunda carência afetiva. Embora não enfrentasse grandes problemas em casa, sofri desde cedo a influência de meu próprio temperamento, inquieto, ansioso, intranqüilo por natureza, em razão de uma sensibilidade exacerbada. Eu queria abraçar o mundo, penetrar o mistério da própria vida, da alma das pessoas, entender seus arroubos, suas loucuras e insatisfações. Mas se nem ao menos me entendia... Enquanto milhares de jovens e adolescentes são induzidos ao vício em razão da loucura, a imaturidade, o desapego e o desamor dos pais, outros se deixam contagiar por ele porque andam à procura de algo que lhes preencha o vazio da alma, que os faça vibrar, sentir-se gente. Ao experimentarem a droga ficam desligados das pessoas e de seus problemas. Perdem a identidade, escapam às cadeias que lhes proíbem o vôo e a alegria de viver e se entregam sem medo e sem medida a seus impulsos. Longe dos laços afetivos familiares caí no meio de pessoas sem nenhum compromisso real e definitivo com o verdadeiro amor e a verdadeira amizade. A tendência ali é a neurose existencial, a prostituição e o homossexualismo. E foi nessa ribanceira que eu mesmo me deixei escorregar, até chegar ao vale da mais atroz-amargura. Sem base afetiva equilibrada, a vida entre parceiros dentro desse mundo foi para mim uma verdadeira agonia. Passando de parceiro em parceiro, não tendo a quem apegar-me, acabei entrando em parafuso. Desorientado, buscava na droga a auto-afirmação. O vício foi crescendo em forma alarmante, conduzindo-me rapidamente à destruição. Não me conformava com a rotina e a vida regrada do lar; ansiava por sensações violentas. Como não dispusesse de dinheiro suficiente para fugir em várias direções, segui o caminho mais fácil e rápido. Recordo perfeitamente o dia em que fumei pela primeira vez um cigarro de maconha. Era uma noite de verão. A lua resplandecia no céu com toda a sua pujante beleza, iluminando amorosamente a t.erra. Contrastando com ela, lá estava eu – um mísero, um tresloucado, sem rumo e sem nenhuma inspiração que me levasse de volta ao sonho. Parecia alheio ao que deveria provocar em mim alegria e alumbramento. Não me deixava tocar, sensibilizar pelo que via; cego, nada enxergava. Não percebia que a praça estava iluminada, e os bancos convidavam ao romance e à ternura. Tampouco percebia as árvores frondosas soltando seucanto, enquanto o vento lhes assanhava os galhos e com eles brincava, afoito. Não conseguia desviar meu pensamento de uma idéia fixa, resoluta e louca - fumar maconha. Não abriria mão dela, por nada deste mundo! Nada me impediria. E de fato não impediu. A partir dali não poderia mais ficar sem a droga. Ela era um imperativo afirmativo, absoluto; sempre que ia a algum lugar especial, jogava futebol ou participava de um acontecimento fora da rotina, tinha que fazer a cabeça. Foi assim que aos 14 anos abandonei o lar. Não tinha absolutamente condições de conviver com meus pais e irmãos. Tornara-me um aleijão em seu seio. É isso que faz o tóxico; ele começa quebrando, dilapidando os elos que unem pais e filhos. Já não resta possibilidade de convivência pois a mente do viciado está completamente corrompida pela ligação com os parceiros. Iludido peja ânsia de liberdade, troquei com a droga a dependência à família. Pensei realmente tê-la encontrado, mas o que achei foi a mais degradante escravidão. É possível um viciado de repente reconhecer sua culpa e querer voltar à casa dos pais. contudo, mesmo convencido de seu erro e sua miséria, não tem coragem de procurá-los e pedir-lhes que o aceitem de volta, que lhe perdoem e o ajudem. Foi isso que aconteceu comigo. Em razão de muito medo e covardia acabei consumido em fraqueza e inércia, cada vez mais incapaz de levar adiante meus planos e votos de filho pródigo. CIDADAO DE SEGUNDA CLASSE Nos primeiros tempos minha vida não mudou muito. Continuava cursando o 1º grau e mantinha mesma roda de amigos. Sentava-me à mesa para almoçar e jantar com meus pais e irmãos, e os filais de semana passava com a família, sem que eles nem de longe desconfiassem de meu envolvimento. Só ousava fumar maconha em ocasiões “especiais", quando sentia a urgente necessidade de entrar no embalo. Gradativamente, porém, fui me tornando dependente, e meu relacionamento em casa começou a mudar. Logo a saúde manifestava os efeitos da droga: ficava trêmulo, nervoso e abatido. Os contato; com a família passaram a ser muito tensos, pois já não me sentia à vontade perto deles. Tornara- me um adolescente escravizado, grupo de estudantes com os quais me reunia. Como novato tinha que estar sempre junto deles, a fim de assimilar-lhes os hábitos, truques e manhas para conseguir a droga. Evidentemente as gazetas apareciam nos boletins, e meus pais só podiam estar muito apreensivos. Eles me admoestavam, mas era como se falassem a um surdo- mudo, pois eu me tornara amora! e insensível como uma pedra. Entrei para a roda dos cabeludos, e os professores várias vezes me advertiram sobre isso. Reclamavam também contra minhas longas permanências no banheiro, onde freqüentemente me escondia para fumar. Enfim, meu comportamento virou pelo avesso. Considerado exemplar, um modelo para todos, fui me tornando dia-a-dia mais desrespeitoso e agressivo, ofendendo os colegas não só com palavras, mas também fisicamente. E isto chegou a acontecer dentro da própria sala de aula! O pior de tudo foi o desrespeito com que passei a tratar inclusive os professores e diretores da escola. Não foram raras as ocasiões em que provoquei um tumulto geral, envolvendo colegas e principalmente baderneiros e arruaceiros atrevidos como eu. Dia Fatídico Aconteceram várias prisões, mas vou referir-me a apenas uma. Evidentemente que diante de minha vida tão dissoluta, regrada pelas más companhias e debaixo do comando maldito das drogas, as prisões tinham que acontecer. Nem poderia jamais advogar a meu favor nenhum tipo de injustiça por parte das autoridades. Não me entregara à vida desregrada e imoral por imposição de condições miseráveis no lar ou induzido por quem quer que fosse. O caminho que trilhava era escolha minha; portanto, os resultados dessa opção eram responsabilidade totalmente minha. Crescendo numa família equilibrada, fizera ouvidos surdos a todos os conselhos, mergulhando de cabeça no mar da maldição. Logicamente teria que colher os frutos dessa escolha. E eles foram azedos como fel, como absinto. Levado a princípio pela curiosidade, prossegui depois sem nada que me sustasse os passos em direção ao abismo. A primeira prisão não aconteceu nos meus primeiros dias de vício. Até ali não era conhecido como um viciado irreversível. Levou tempo para que o estopim explodisse. Encontrava-me uma noite sentado numa escada, em pleno asfalto e movimento do comércio, dando cobertura ao passador. Viciados se aproximavam, sentavam ao nosso lado e se afastavam. A agitação e o burburinho à volta eram intensos: motocicletas, carros, play-boys e garotas com casaco de couro mascando chicletes misturavam-se ao corre-corre do lugar - todos fazendo uso de drogas, aliás muito à vontade... A maior parte eram estudantes. Ninguém trabalhava. Andavam por ali soltos, inquietos como pombos nas calçadas,à cata de milho. Como o dinheiro fosse escasso, em troca de um baseado ofereciam toca-fitas, discos, rádios de pilha, relógios de pulso, cordões de ouro, jóias, óculos ray-ban etc. Ou empenhavam objetos de valor, até conseguirem a importância para pagar a droga. Valiam-se de qualquer meio para adquiri-Ia, mesmo tendo que comerciar a alma e os pertences dos pais e dos irmãos. Sema maconha é que ninguém ficava. Esse dia fatídico, ao aproximar-se a hora do almoço o rapaz que traficava resolveu ir até sua casa; pediu-me então que vigiasse os pacotes de cigarros de maconha que estavam escondidos nos jardins dos edifícios. E mais: prometeu-me que se continuasse vendendo me recompensaria com uma comissão, tanto em droga como em dinheiro. Fiquei um pouco temeroso e acovardado, mas ao pensar na recompensa me animei. Então assumi o posto de venda. Mal servira uns poucos viciados quando de repente surgiu uma viatura da polícia com policiais armados de rifles e metralhadoras. Fiquei gelado! Pareciam estar enfrentando um perigoso grupo de bandidos muito bem armados. Caminhando em minha direção deram- me voz de prisão. Agarrando-me pelo braço me algemaram e me levaram para a delegacia com as sirenas dos carros a pleno vapor. Ao chegar diante do delegado de plantão os policiais me acusaram de ser traficante! Entre eles destacava-se um apelidado de Zorro, por vestir-se sempre de preto. Ao ouvir minhas respostas atrevidas, só faltava me engolir com os olhos. Eu alegava que estava à porta do meu prédio tomando sol quando fora preso sem saber a razão. Ao dizer isso o Zorro, num lance de crueldade, fez um Z no meu rosto com o revólver. O delegado, ao ser surpreendido com o tumulto na sala, deu ordem para que eu fosse encerrado numa cela, avisando que mais tarde resolveria a situação. Foi aí que pela primeira vez na minha vida experimentei uma cadeia. Preso junto com marginais, não demonstrei nenhum medo. Pelo contrário: fingi ser um bandido de alta periculosidade. Ouvira dizer, entre meus colegas de vício, que na cadeia os presos mais antigos eram considerados xerifes, e sempre tentavam intimidar os inexperientes. Mas isso não aconteceu comigo. Temendo que eu fosse de fato um delinqüente profissional, eles me respeitaram. Depois de permanecer na cela durante algumas horas, fui conduzido a uma sala de reconhecimento. Após isso seria de volta um garotão livre ou um pobre infeliz, com um processo nas costas. Na sala havia um espelho, para o qual tinha que olhar; do outro lado viciados fariam meu reconhecimento, sem que eu os pudesse ver (podia apenas ouvi-los). A finalidade era saber se fora eu quem lhes vendera a droga encontrada com eles. O policial perguntava: - Foi esse aí que transou a droga pra você? Um a um os marginais respondiam que não, ou que não tinham certeza. Alguns eram brutalmente espancados, quando se mostravam hesitantes. Houve um momento em-que me senti aterrorizado. Foi quando reconheci a voz de um viciado que comprara a droga de mim. Ele decidiria a minha sorte... Quando o policial lhe perguntou se eu lhe vendera maconha, eu que absolutamente não me importava com Deus, naquele instante clamei a ele por socorro. Então o rapaz respondeu que não, sendo barbaramente espancado. - Você não disse que o passador de drogas era alto, magro, cabeludo, moreno, de olhos verdes, vestindo jeans e blusa esporte rosa? - indagou. Era evidente que ele estava forçando uma identificação, colocando as palavras na boca do rapaz. Embora levando muita pancada, continuava negando que houvesse sido eu. Só lhe ouvia os gritos lancinantes: - Eu me enganei! Não me bata! Depois de algumas horas de tensão e suplício, finalmente me tiraram da sala de identificação e me levaram até o delegado. Ao chegar lá fui surpreendido pela presença dos meus familiares. Minha mãe então gritou para mim: - Eu sabia que um dia isso iria acontecer! Logo depois ouvi um longo e severo sermão policial e familiar. E fui solto. Surpreendido em Flagrante Antes de iniciarmos uma partida de futebol, eu e os colegas de bairro costumávamos fumar alguns cigarros de maconha. Era uma espécie de preparo físico e psicológico... Nesse dia eu me excedi; fumei tanto que terminei enxergando duas bolas no campo, em lugar de uma. Era uma tarde de sábado. Ao término da partida fui para casa tomar banho. No short levava escondidos alguns gramas de maconha. Antes de abrir o chuveiro enrolei mais um cigarro e coloquei o baseado na pia. Entrei então debaixo do chuveiro. Pouco depois me enxagüei e abri a porta enrolado na toalha. O imprevisível acabara de acontecer: esquecera o baseado na pia... Logo depois minha irmã entrava no banheiro e se punha a gritar muito nervosa: ela achara a maconha... Não contente com isso dava a notícia a todos da sua descoberta. No mesmo instante se aproximaram meu pai e meu irmão mais velho, indignados e cheios de acusações. Enquanto era ameaçado por meus irmãos com expressões de revolta, meu pai, impotente, envergonhado e entristecido, pôs-se a chorar a um canto, como se houvesse acabado de receber a notícia de um desastre ou da minha morte. Sua dor era realmente a dor de um pai que reconhecia o filho como um caso perdido. A partir desse dia "azarado" passei a ser tratado pela família com a maior indiferença. Sentindo-me como estrangeiro, alguém que sobrava, o pária, o indesejado, um forte espírito de revolta e agressividade contra minha irmã, que tão fria e escandalosamente me delatara, avultou dentro de mim. Depois da minha prisão a vida começou a me pisar, a me violentar. A barra ficou pesada demais. Varrera a adolescência inteira fumando maconha pelos cantos dos edifícios do meu bairro, nas esquinas, praças, praias, cinemas, campos de futebol; enfim, onde desse jeito. Um complexo de sensações, emoções, desejos e estruturas inconscientes me empurravam a uma busca que nem sabia definir, tal a complexidade de meu eu atribulado. Um vazio impreenchível me provocava uma lancinante dor no peito; Nada me aliviava a aflição: faltava-me A DOSE MAIS FORTE. Vinha arruinando o corpo e a alma desde os 13 anos de idade; agora, aos 18, estava com perturbações emocionais, fortes dores de cabeça, tonteiras e nervosismo agressivo. Deixara entrar a maconha em minha vida por mera curiosidade: ingenuamente imaginara que me levaria a me encontrar comigo mesmo, ou me traria satisfação pessoal. O resultado foi a maior decepção: a maconha, afinal, não era aquilo com que sonhara. No entanto deveria ter previsto isso, já que tudo quanto lera ou ouvira sobre que assunto lembrava de resultados funestos, pela destruição que ela causava. Eu mesmo tinha esta experiência, pois após ter fumado só me sobrevinham transtornos, prejuízos, fraqueza, inércia, destruição e doença. Comecei então a raciocinar: que hei de fazer para alcançar satisfação? Caía em lágrimas, desesperado, pois não obtinha resposta. O pior é que não sabia com quem desabafar: ninguém me entenderia! Às vezes sentia o impulso de procurar meus pais e contar-lhes tudo que me acontecia; pedir-lhes ajuda e orientação. Talvez tivessem meios de resolver meu problema. Ao mesmo tempo algo me dizia que não devia incomodá-los: iria entristecê-los, ou quem sabe não me compreenderiam. Uma voz contrária ao meu anelo de regeneração parecia sussurrar-me: "Tente de novo! Procure outros, meios!" Perdido, sem saber que rumo tomar, comecei a entregar-me à bebida e a freqüentar os bares para afogar as mágoas. Logo aos primeiros goles experimentava uma onda de calor, uma injeção de ânimo e humor. De repente ás problemas pareciam assumir proporções menores, e me sentia até capaz de esmagá-los com os pés. Eles viravam pó, enquanto eu crescia, me tornava um gigante imbatível, pronto para qualquer decisão e aventura. A compulsão à liberdade se tornou tão violenta que cheguei a beber cachaça pura várias vezes por dia, chegando ao extremo de ser encontrado caído em plena rua, alcoolizado. No entanto, nem a maconha nem o álcool me valeram. Procurei então minha mãe. Contei-lhe tudo, mas não sentinela nenhuma reação de surpresa, apenas melancolia profunda, ao perceber-me o sofrimento. Ela já sabia que eu era um viciado, em razão das mudanças de comportamento. Fora muita ingenuidade de minha parte pensar que estava alheia ao que me acontecia. Àquela altura, com meu egoísmo e loucura não percebia o sofrimento, a sensibilidade e o profundo amor de meus pais. Imaginava que eles não me conheciam, seriam incapazes de me entender. Como estava enganado! Por mais que fingisse, mudasse as aparências, inventasse fantasias, não adiantava: eles me conheciam a fundo. Além do mais talvez houvessem enfrentado lutas e sofrimentos grandes em sua juventude. Mas eu fechara meus olhos, impedindo-me assim de lhes perceber o interior, a alma, a sensibilidade. JUNTO AS BOCAS DE FUMO A Anfetamina e a Cocaína Foram dois meus contatos de maior impacto com os passadores de droga, e neles como em outros de menores conseqüências, por pouco não perdi a vida nas mãos da polícia. Certa vez, depois de adquirir um cartucho, descia o morro por uma escada ladeada de barracos quando de repente surgiram quatro mulheres grandonas e atrevidas. Fazia um calor terrível, e elas suavam em bica. Exalavam um mau cheiro insuportável. Avançaram contra mim, tentando me agarrar, e quando quis desviar-me cercaram a descida, e num bote me seguraram com toda a força, gritando: - Chega mais, garotão! Vamos nessa! Entra aqui no barraco e vamos transar numa boa!... Perplexo e assustado tentei fugir, mas elas eram 4, e bem fortes, robustas. Empurravam-me de uma para outra e me beijavam à força. Estive a ponto de agredi-Ias, mas caí em mim: me ganhariam de longe! Eram valentonas, parecendo feras açuladas. Então perguntei-lhes: - Qual é a de vocês? Estão a fim de quê? - Somente puxar um fumo - disse uma delas-; depois vamos pra cama fazer neném. Nessa altura, com o barulho, muita gente se aproximara, curiosa. Todos queriam assistir ao desfecho da confusão. Alguns marginais começaram a provocar-me: - Como é, moleque? Você é esperto ou não? Vai nessa, otário! Fingindo aceitar a insinuação, olhei para um lado e para outro, procurando espaço para fugir. Quando me soltaram, achando que realmente eu ia com elas, saí disparado como um louco. Elas não fizeram por menos: voaram no meu encalço, e o morro quase em peso atrás. - Pega ele! Pega ele! - gritavam. As quatro corriam atrás de mim, como cadelas no cio, gritando: - Vem cá! Vem cá, garotão ! Felizmente consegui escapar. Então segui meu rumo. Uma outra ocasião adquiri meio quilo de maconha. Vinha descendo o morro com o pacote debaixo do braço, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Como era grande, procurava disfarçar, para não chamar a atenção. Ao chegar à metade do caminho, próximo a uma vila de casas iguais, fui surpreendido por uma turma de policiais. Vinham armados até os dentes, com metralhadoras, revólveres, pistolas, etc. A uns 100 metros de distância um deles bradou para mim: - Pare, ou eu atiro, moleque! Apavorado, gritei-lhe: - Não vou parar! Atire, se quiser! Dei-lhe as costas e subi o morro correndo. Mesmo se dando conta de que eu era uma criança, ele atirou. Chorando de medo, gritei com toda a alma: - Meu Deus, me ajude! Não quero morrer! As balas ricocheteavam entre meus pés. Como se não bastasse, quando o policial que me perseguia me viu ultrapassar a boca de fumo e gritar alertando os bandidos e traficantes para que fugissem, abriu fogo com a metralhadora. Em pânico, sem saber onde me enfiar, entrava por um barraco e saía por outro. Enquanto isso as balas passavam de raspão por mim, arrancando lascas da madeira dos barracos. Eu corria como um louco, em ziguezague, gritando: - Meu Deus, me ajude! Não quero morrer! Não sei como pude passar de um morro para o outro, e chegar a salvo ao asfalto. Apesar de toda a correria, mantive bem segura a maconha. Em comemoração, ao ver-me livre, fumei da noite para o dia a droga toda, escondido com os amigos num apartamento. Consegui assim uma vez mais escapar de prisão e morte. Estive aponto de cair nas malhas da polícia, sofrer tortura e dor, ser enfiado como um animal atrás das grades. Nos momentos de maior pavor pedi quase que alucinatoriamente socorro do céu - um céu que desconhecia - , e recebi um escape de forma absolutamente inesperada. Mas nem o pânico nem o livramento milagroso me trouxeram de volta a consciência de minhas loucuras e meus fracassos. Na verdade eu não queria ser um bonzinho, um certinho; não aceitava doses fracas para viver. Não me interessava nada que fosse inferior ao que eu mais ambicionava na vida: A DOSE MAIS FORTE... A Anfetamina Esta droga é altamente estimulante dos sentidos. Provoca insônia e corta o apetite, causando desnutrição. É multo usada -e ilegalmente – por motoristas de auto-estrada, obrigados a dirigir durante dias seguidos. É geralmente apresentada em comprimidos, quando tem que ser destilada. Feita a mistura e passada para uma seringa, é então aplicada na veia do viciado. Quando em ampolas, seu uso é intravenoso. No momento em que a mistura penetra no sangue a vítima se sente acalorada, com arrepios dos pés à cabeça, os cabelos como que eriçados. A cabeça fica dormente, e de súbito ele se acredita capaz de enfrentar qualquer situação perigosa. A sensação é de um falso despertamento mental e falsa libertação intelectual. Ele parece entender e adivinhar tudo, julgando-se genial e absolutamente seguro nas suas idéias e conclusões. No, entanto, assim que o efeito passa e ele volta ao normal, cai imediatamente em profunda depressão e angústia, sentindo-se amargurado, inútil e inválido. Reage então contra esta sensação, desejando permanecer no estado anterior, de brilhantismo mental. Em pouco tempo passa a injetar-se com mais freqüência, caindo num círculo vicioso que só lhe traz desespero. É então acometido de insônia, violência e periculosidade. Alguns médicos afirmam que o ácido lático nas células do cérebro é responsável por esses sintomas. A partir daí a anfetamina leva o viciado à paranóia - ao complexo de perseguição. Qualquer palavra a mais ou atitude banal pode ser interpretada como agressão, causando o desejo de revide brutal e a conseqüente disputa dos pontos de venda, o que é capaz de provocar desfechos terríveis. Esta foi minha crucial experiência: provei na carne tudo isso, sob as formas as mais violentas possíveis. Foi após o álcool que tive contato com a anfetamina. As primeiras vezes que a injetei foi em comprimidos destilados. Lembro uma ocasião em que me encontrava com outros viciados, preparando a droga numa floresta. Eram muitos os candidatos a furar as veias. Aproximava-se o fim do dia, e eu, naquele lúgubre pôr-de-sol, estava muito impressionado com o que via. O sangue rolava pelo braço de muitos deles. Parecia uma reunião de doentes, todos apressados em tomar ao mesmo tempo um só remédio, para não morrer. De vez em quando um agredia o outro, com medo de perder a vez. A certa altura um calafrio me correu pelo corpo: a agulha; depois de muito usada, ao ser enfiada no braço de um rapaz entortou dentro da veia, quase se partindo. Pior ainda foi quando chegou a minha vez. Anoitecia; e havia dificuldade para se enxergar as veias. O negrume da noite caía rapidamente, e não havia tempo para esperar que o líquido fosse injetado na veia do rapaz que me antecedia, sendo a seguir lavada a seringa, para depois aplicá-la em mim. Assim, com a seringa tendo um resto de líquido misturado ao sangue dele, recebi a aplicação! E aí começou uma nova viagem. Valeria a pena a sensação de gozo e loucura?... Já estava acostumado à anfetamina, quando uma ocasião ela me escasseou. Então subi o morro para comprá-la. Eram ampolas de anfetamina líquida (perventim). Em baixo, no asfalto, um colega me esperava no carro já com a seringa no porta-luvas, pronta para o pico. A boca de fumo onde fui buscá-la era muito famosa, conseqüentemente visada pela polícia. Quando descia o morro com a droga ouvi os pivetes dos barracos gritando:- Olha os hóme lá em cima! Olha os home! Já estava quase na metade do caminho. Ao olhar para o alto avistei um policial apontando na minha direção. Saí correndo, escorreguei e quase caí. Por pouco não perdia as ampolas. Entontecido e desnorteado, mas com firme decisão cheguei finalmente ao asfalto. Tinha que seguir por uma rua até alcançar o carro, mas fui impedido, pois surgiu à minha frente uma viatura da polícia civil, que tentou fechar-me o caminho. Não foi muito difícil fugir, pois conhecendo perfeitamente o lugar consegui desviar a atenção dos guardas e seguir por outra rua. Quando faltavam alguns metros para entrar no carro, olhando para trás avistei uma outra viatura vindo na minha direção, desta vez da polícia militar. Como um raio atravessou-me a mente o pensamento de que ia ser preso, mas antes disso tinha que injetar-me as ampolas. Por nada desse mundo abriria mão disso. Apavorado, entrei no carro e disse ao colega: - Anda logo! Cadê as seringas? Vamos tomar a injeção antes que nos prendam! Minha maior preocupação não era ser preso, e sim ser preso.sem antes me haver injetado o tóxico que trazia comigo. Naquele instante de vida ou morte, quando cada segundo era crucial, houve um verdadeiro pânico, um desespero terrível no carro. Enquanto preparávamos as injeções víamos pelo retrovisor a polícia que se aproximava! Então refleti, rápido como um raio: - Vou ser preso, mas será sob o efeito da droga! Tinha bastante prática na aplicação de injeção. Apliquei-a então em mim mesmo, e depois no colega. Não entendo como uma ação tão tremenda, em meio a um perigo feroz, pôde ser concretizada. Cada segundo ali significava vida ou morte - ou liberdade, ou prisão. Só sei que de maneira fantástica -cinematográfica -saímos dali em disparada. Como, nunca saberei explicar... Uma outra ocasião chovia muito, e precisávamos urgentemente adquirir anfetamina. Tivemos que subir o morro de motocicleta, mesmo correndo o risco de um grave acidente. Ao descermos completamente encharcados, não tínhamos onde preparar a Injeção. Então fomos para uma velha garagem do bairro, abarrotada de ferros velhos, ratos e teias de aranha, e com muitas goteiras. O pior era a escuridão. Éramos um grupo de quatro viciados. Como não havia luz tínhamos de ser criativos. Enquanto um preparava os comprimidos para a destilação, outro providenciava a seringa, e eu e o quarto do grupo acendíamos palitos de fósforo para iluminar. No momento de injetar a droga acendíamos o maior número possível de palitos: era o jeito de enxergar aveia. Quando chegou a minha vez a agulha entupiu, pois já servira a três. Para desentupir tivemos de aquecê-la. A fumaça deixou-a preta e suja, e foi assim mesmo que penetrou na minha veia. Mas eu estava de tal maneira dominado pelo vício, que aceitava qualquer sacrifício, contanto que tivesse a droga disponível para enlouquecer-me. Nessa época me encontrava no auge do vício. Alguns cigarros de maconha já não me satisfaziam. O organismo exigia mais e mais. Resolvi então fazer acampamento em praias e fazendas e retiro em lugares desertos, onde tivesse total liberdade para fumar à vontade, o quanto desejasse. Afinal, tornara-me um autêntico hippie. Numa dessas nossas aventuras, encerrados numa barraca de camping resolvemos lançar um desafio: faríamos enormes cigarros de maconha. Quem preparasse a maior venceria. Quando ficaram prontos, medidos uns pelos outros, o maior tinha dois palmos e quatro dedos - mais ou menos 45cm. Fumamos então todos eles. Ao deixarmos as barracas tivemos de correr para o mar, pois saía fumaça até pelos ouvidos... A Cocaína O pó da cocaína é a droga mais perigosa que existe. Seus efeitos são os mais tenebrosos e agoniantes possíveis. Ela tanto pode ser aspirada penas narinas como injetada nas veias. Ao ser passada na língua sente-se como que anestesia - daquela que é usada pelos dentistas. Seus efeitos são insônia total, depressão, aumento da pulsação, batidas excessivas do coração, dilatação das pupilas, dores de cabeça lancinantes, falta total de apetite e emagrecimento rápido. Usada em excesso dá a sensação de febre alta, provocando arrepios, dores nos ossos, estado de agonia. Foi esta droga mortal, perigosíssima, que me levou a ser internado numa clínica psiquiátrica. Ao iniciar o vício cheirando o pó sentia-me leve e anestesiado no corpo inteiro. Depois, porém, de aspirá-lo por muito tempo passei ame sentir muito angustiado, em estado profundamente depressivo. Houve épocas em que, de tanto aspirar esse terrível pó, comecei a sangrar pelo nariz. Ficava às vezes febril e desnutrido e sofria de anemia e inflamação na mucosa. Mas a fase pior de minha ligação com a cocaína foi quando não podendo mais cheirar o pó tive que injetá-lo na veia. Esta foi uma época de sofrimento inaudito. A primeira vez que isso aconteceu senti-me muito mal; tive vômitos, tonteira e desmaios. No entanto, no dia seguinte lá estava eu aflito, dominado pelo desejo de nova aplicação. Mas para isso teria de enfrentar os passadores. Foi aí que começou o mais terrível e absoluto desespero da minha vida. Essa droga sempre custou muito caro. Se de um lado nunca tinha dinheiro para comprá-la, de outro tinha coragem para envolver-me com as bocas de fumo e adquiri-Ia para algum viciado, que a partilharia comigo. Estávamos uma noite no carro, na estrada Rio-Teresópolis. Havíamos injetado algumas doses de cocaína, contudo queríamos mais. Mas o problema é que faltava água destilada. Que fazer? Era madrugada, e as farmácias estavam fechadas. Até mesmo água comum era difícil conseguir. De repente notamos que das rochas, no alto da serra onde nos encontrávamos escorria água. Paramos então o carro, pegamos daquela água, misturamos ao pó e injetamos nas veias. E seguimos viagem. Adquirir a cocaína no asfalto não era difícil. Bastava sentar à mesa de um bar, subir até um certo apartamento, conversar durante alguns minutos numa esquina, numa praia, praça ou campo de futebol. O pior era ter de subir o morro para comprá-la. Uma vez, quando descia o morro com o papelote na mão, ao entrar no carro de um colega e cruzarmos a esquina da rua principal surgiu subitamente um camburão. Dando-nos uma fechada de surpresa, não tivemos tempo de desviar ou jogar fora o papelote. Os policiais desceram então da viatura com as armas em punho. Um deles me apontou uma metralhadora no vidro, e com a outra mão foi abrindo a porta, certo de dar o flagrante. Nesse momento, nervoso, eu segurava o papelote, sem saber como livrar-me dele; se o colocava na boca e o engolia... Sentindo-me preso em flagrante, comecei a chorar e a pedir a Deus que me ajudasse a sair daquela situação. Amassei então o papelote e em desespero joguei-o no chão do carro, certo de que o policial logo o acharia e eu seria autuado. Dois policiais entraram então abruptamente no carro e deram uma geral. Seguros por outros policiais, eu e meu colega, estáticos, a tudo assistíamos, convencidos de que achariam o pó. Mas depois de alguns minutos de tensão e pânico o comandante da patrulha, irado, gritou: - Está bem... Um a zero pra vocês. Não encontramos nada, mas da próxima vez vocês não escapam! Deram-nos então ordem de irmos embora. Confesso que fiquei sem entender nada. Perplexo, perguntei a mim mesmo: Onde foi parar o pó?... Fomos direto para o bairro onde morávamos. Ao pararmos em frente ao edifício procuramos nos acalmar, avaliando os acontecimentos. Não tínhamos a menor idéia de como o envelope desaparecera. Aquilo era um mistério! Confesso que estava impressionadíssimo. Tinha absoluta certeza de que o jogara no chão do carro, bem na direção dos meus pés. Depois de muito refletir, sem ter chegado a nenhuma conclusão resolvi procurar o papelote no automóvel. Abri a porta e comecei a busca. Olhei então distraidamente para o extintor de incêndio. Por incrível que pareça lá estava ele, muito bem equilibrado entre os ferros que o prendiam, como se alguém o houvesse cuidadosamente colocado ali. Eu e meu colega ficamos tão impressionados com ofato que aspiramos todo o pó, em questão de segundos. UM ENCONTRO NAO MARCADO COM O LSD As características que passo a descrever foram vivenciadas por mim, o que Ihes confere, logicamente, o valor de um testemunho pessoal que espero passar ao leitor como alerta, não só em relação a si próprio, como aos filhos, ao namorado, à namorada, à família em si ou a um amigo ou amiga, talvez enfrentando problemas semelhantes. O toxicômano tem geralmente um comportamento muito estranho. Com total desinteresse pela aparência - quanto pior, melhor -, usa óculos escuros mesmo em lugares mal iluminados, veste camisas e blusas de mangas longas em dias de calor, tendo o maior desrespeito pela saúde e a higiene. Anda com roupas sujas, sandálias em péssimo estado, e não tem o menor trato com cabelos, dentes e unhas. É encontrado na maioria das vezes junto a pessoas com iguais características, revoltadas, insubmissas e cheias de problemas. Aliás, seu traço predominante é a insubordinação e a rebeldia. Ele está sempre questionando os limites, o controle e a subjugação aos pais e a qualquer tipo de autoridade, opondo-se a tudo quanto normalmente dele se espera e rompendo com os valores da família, da sociedade, e mesmo da época. E a melhor maneira de demonstrar essa rebeldia é seu envolvimento com as drogas. Não aceita qualquer .tipo de conselho ou crítica. Cheio de ódio infundado, de contradições, preconceitos, desejos de mudanças -não sabe como nem de quê -acha que os pontos de vista alheios estão todos errados, só os seus é que estão corretos. Na verdade o toxicômano é sua grande vítima, pois é uma pessoa profundamente frustrada e instável, ansiosa, medrosa e infeliz, cheia de conflitos e de dúvidas. Tal instabilidade pode ser anterior a seu uso de drogas, resultado de uma convivência neurótica e dolorosa com pais problemáticos e complexados, que trouxeram para o casamento suas enfermidades e traumas psicológicos e emocionais, carregados desde a infância e mal ou nunca resolvidos. Incapazes, despreparados e ineptos pa ra a educação dos fi lhos, transmitem a eles suas próprias revoltas e inseguranças, fazendo deflagrar neles um espírito igualmente infeliz e insubordinado (ou talvez pior!). Sem o companheirismo e a compreensão fundamentais no lar buscam uma falsa identificação com elementos ligados, por exemplo, à maconha. Daí passam facilmente aos barbitúricos, que lhes afrouxam as inibições; aos alucinógenos, que lhes aumentam as reações sensitivas; e aos narcóticos, que resultam em falso alívio e falso escape. o abuso de drogas não está absolutamente restrito às classes mais pobres e com fortes problemas sociais; ele se espalha cada dia mais rapidamente, sem levar em conta cor, sexo, cultura; classe, inteligência ou credo. Chamo a atenção aqui para o fato de que o problema se encontra prioritariamente entre os adolescentes – inclusive crianças -que se transformam freqüentemente nos maiores atravessador'es de drogas. Sendo a aceitação pelos colegas condição básica de vida, e conseqüentemente trágica a não aceitação, experimenta ao mesmo tempo o adolescente um alto grau de inadequação pessoal, incerteza e apatia, o que muito lhe dificulta esse intercâmbio, ameaçando-o com a solidão e o abandono. Mesmo assim sua luta por ver-se rodeado (e falsamente amparado, ainda que por curta duração) é uma constante. O fato é que o que ele mais teme é o estar só, o encontrar-se frente a frente consigo mesmo - e é impressionante como uma imensa maioria de pais vivem alheios a essa realidade tremenda! Outra característica que pode levar o indivíduo às drogas é a incerteza do amanhã - sempre adiado -, e o obsessivo medo da morte, ao mesmo tempo temida e constantemente desafiada. Quanto ao LSD, foi resultado de uma descoberta totalmente casual por um pesquisador suíço, Hoffmann, em 1938, durante uma experiência em que ficara intoxicado por vapores, que nele provocaram um forte e estranho torpor alucinatório. Após inúmeros trabalhos científicos, chegaram os americanos à conclusão de que esta poderia ser uma droga miraculosa, que possibilitaria análises psicanalíticas mais aceleradas. De fato, o LSD - droga tremenda, diabólica! - provoca fenômenos de rememoração extremamente intensos, de tal modo que sob sua influência o passado explode na consciência de maneira Calidoscópica, desmascarando por exemplo a dimensão incestuosa das relações familiares e, concentrando, com uma legibilidade exemplar e quase rude medos, angústias e fantasmas. Distinguem-se três fases na ação dos alucinógenos. Inicialmente a droga vai se apoderando dos reflexos físicos e mentais. Sem abandonar a consciência da própria transformação o viciado vai se distanciando das outras pessoas. Vem então a fase da sensação, quando acontecem fenômenos curiosos: por exemplo, em relação à noção do tempo, justapondo-se acelerações e desacelerações - o instante vivido vai se encompridando, e um minuto se torna a uma eternidade; depois. inversamente, a eternidade se contrai, parecendo um segundo. Há uma visão panorâmica do passado, o que provoca abreviações de tempo impressionantes. E estas terminam por misturar-se numa visão profética do futuro. Por outro lado, a percepção das coisas se altera, ficando mais aguçada: o que antes parecia verdadeiro parece falso, e vice-versa. As pessoas parecem deformadas, e ao mesmo tempo com uma dimensão de profundidade, como se fossem vistas através de um prisma. Inclusive as qualidades e os defeitos ficam exacerbados, e elas como que se tornam palco de sua fantasmagoria. Parecem usar máscara, mostrando o rosto descaveirado, como cadáveres em compasso de espera, deixando ver suas agonias, carências, sadismo e pressões sexuais. Além disso a noção do outro, superexcitado; não é exclusivamente visual; o corpo inteiro reage, vibra positiva e negativamente. Temos finalmente o fenômeno alucinatório propriamente dito, quando as sensações, principalmente as visuais, se confundem; os objetos se entrechocam, se enroscam, e vão se deformando: O que é curto fica comprido, e vice-versa; o teto se abaixa e o chão se levanta. O impressionante e que este universo em metamorfose está impregnado de uma "festa radiosa", sempre em movimento: as cores giram, compõem-se e se decompõem, como se passassem através de instrumentos óticos. Ofuscantes e transparentes, elas se projetam em auréolas de uma luminosidade diversa do normalmente observado, notando-se em quase todas a forma de um ser vivo. Cada cor é um êxtase único, diferente. O mesmo acontece com as percepções auditivas: de cada nota, sobretudo na música pop, depreende-se uma espécie de intensidade individual desesperante. Passei por essas experiências todas, em minha maldita caminhada de viciado. Sei portanto o que é ter contato com o mundo tenebroso de sensações indescritíveis, quando os sentidos como que trocam totalmente de cara e endereço. No entretanto lembro aqui que apesar do aspecto de experiência atribuído a um grupo - o dos viciados em drogas como a maconha, a cocaína, o LSD, a anfetamina, os barbitúricos, a mescalina, os soníferos e cogumelos -, muitos em nossa sociedade, considerados inocentes, ou "quase", são igualmente viciados como esses. São por exemplo viciados em droga não apenas os declaradamente alcoólatras, ou os que morrem debaixo da ponte, na calçada ou atropelados no meio da rua. Também são viciados os chamados bêbados sociais, que tomam regularmente seu aperitivo, suas champanhas, litros de vinho às refeições, o uísque, a vodca ou o chope, nos fins de semana ou feriados. Todos esses são também drogados, pois não conseguem passar sem o vinho, a caipirinha, o uísque ou a cerveja, tão propalada como inocente e que de inocente não tem nada -pelo contrário, é uma das grandes provocadoras de acidentes de carro, brigas, discussões, deterioração da saúde e empobrecimento da estética. Ainda os consumidores de cigarro, que fumam dois ou três maços por dia - ou menos, - são exemplos de toxicomania. Por outro lado, pessoas que abusam de produtos farmacêuticos, como pílulaspara dor de cabeça, insônia, desânimo, peso excessivo (ou não) podem também ser consideradas dependentes. Muitos não vão para a cama sem antes tomar um sonífero, nem enfrentam o dia sem um alertante; e se engordam uns dois quilos logo se entregam a remédios para emagrecer. Hoje estou convencido de que a única saída para uma vida saudável, equilibrada e sem vícios é antes de tudo o temor a Deus e a dependência total a ele; depois, uma existência desligada de artifícios, fumo, álcool, remédios em excesso, sem falar logicamente em drogas. Nada como ter comunhão com Deus, andar a pé, alimentar-se de produtos saudáveis, fazer exercícios, beber bastante água no correr do dia, longe das refeições, dormir suficientemente e não guardar mágoa ou ressentimentos no coração. São as iras, os ciúmes, as mágoas, a inveja, a crítica exacerbada, as lamúrias e queixas, a contínua e cultivada insatisfação com a vida e suas situações a razão de muita doença súbita ou crônica, que leva tantos à destruição, à fraqueza, inclusive ao álcool, à droga e à morte. A primeira vez que usei o LSD fiquei realmente alucinado; perdido, desvairado. Encontrei bastante dificuldade para adquirir esta terrível droga: ela é muito rara no Brasil, e por isso se torna tão cara quando encontrada. Um dia um amigo de vício a conseguiu e me convidou afazer uma experiência. Quando olhei o tamanho do comprimido não acreditei que fosse a mesma droga da qual tanto falavam; não conseguia identificá-la com seu propalado e famoso poder alucinatório. Do tamanho - de um pouco mais de uma cabeça de alfinete, ainda tinha que ser partido, pois inteiro era demasiado forte para ser experimentado por primeira vez. Coloquei a minha parte na língua para dissolvê-lo. O tempo que levei entre a Zona Sul (Rio de Janeiro) onde me encontrava, até a minha casa, na Zona Norte, foi o suficiente para que a droga começasse a produzir em mim seus desastrosos efeitos. Os primeiros sintomas foram febre, fraqueza, arrepios, calafrios e suor. Minutos depois eles desapareceram. Fui então tomado de um profundo torpor, como -se houvesse sido despertado de uma longa noite de sono. A partir daí fiquei como que sonhando acordado. Tudo me parecia risível, digno de zombaria. Era um humor sem fundamento, mas impossível de reprimir. Eu parecia um débil mental. Mais tarde, quando já anoitecia, senti fome. Fui então com o companheiro a um restaurante. Sentados ao ar livre, meus olhos se perdiam nas imagens que passavam à minha frente. Disse então ao meu colega que estava perdendo o controle. Apesar de sentir o mesmo que eu, como fosse mais experiente, procurou me tranqüilizar. Aí apareceu o garçom. Ao olhar para ele levei um choque! Sua cabeça estava grande, inchada, e o corpo encolhera. Parecia um louco das estórias em quadrinhos. Desandei a rir, a bandeiras despregadas, como se zombasse dele, sem poder me controlar. Mas esta não era a minha intenção. Para mim aquela situação estrambótica só me podia levar à hilaridade, ao riso desenfreado. Daí a pouco ele trouxe os sanduíches que pedimos, e quando peguei um e o levei à boca tive a sensação de que era de borracha. O pior é que nem conseguia mastigá-lo, de tanto que ria. Afinal, angustiado, levantei-me e saí a respirar, pois me sentia mal, abafado, inquieto. Ao tentar depois atravessar a rua e pegar um táxi corri grande perigo, pois quando desci do meio-fio dei com os automóveis se. Deformando como se fossem elásticos. Pareciam de brinquedo. Diminuíam e aumentavam, ficando às vezes gigantescos, Ao mesmo tempo que me sentia agoniado, dava muitas gargalhadas, como se estivesse assistindo a uma fantástica comédia. O mesmo aconteceu no táxi: ríamos tanto do rosto deformado do motorista, que não sei como ele não parou e nos empurrou porta afora. Chegando a casa encontrei toda a família reunida na sala. Passei direto, sem dizer uma única palavra, pois me sentia intimidado, sem saber como os enfrentaria. Enfiei-me imediatamente no banheiro, na esperança de que uma chuveirada me acalmasse. Quando no entanto liguei o chuveiro e olhei a água batendo em baixo, o que vi foi uma multidão de bolinhas coloridas espalhando-se pelo chão e pelas paredes. Daí a pouco, porém, tudo parecia ter voltado ao normal. No entanto, 80 fechar os olhos para espalhar sabão na cabeça fui tomado de um horrível pesadelo, do qual só despertei com as fortes batidas na porta e o grito de alguém: "Como é? Morreu aí dentro?" Alucinado, desliguei o chuveiro. Vesti-me rapidamente e saí à procura dos amigos do bar. Na rua a visão fantasmagórica das pessoas, todas deformadas, me provocou riso e ao mesmo tempo pavor. Ria desbragadamente, tal um doido. O final da tarde passei com os amigos, entretido com bobagens, rindo igual a um parvo, de todos e de mim mesmo. E quando ia caindo a noite, embevecido, olhava as estrelas no céu. Era um deslumbramento: minha alma inquieta e machucada contemplava um universo diferente, irreal, como se estivesse diante de desenhos a as estórias em quadrinhos, ou de pinturas surrealistas. Passei a noite em claro, muito perturbado com as alucinações inexplicáveis. Até que o efeito da droga completou 24 horas. Ao final desse dia, na praia do Arpoador, sentei-me na areia para descansar, diante de algumas pedras. De repente, ao fixar os olhos nas ondas que as golpeavam com ímpeto, tive uma visão horrível: as rochas tomavam a forma de monstros marinhos, abrindo e fechando a bocarra em minha direção, como se quisessem devorar-me. Saí correndo, apavorado! Aliás, essas alucinações e paranóias aconteciam sempre, por efeito da cocaína. Uma ocasião fugia dos policiais que me perseguiam desde o alto do morro, onde a injetara nas veias, quando subitamente fiquei tão aterrorizado - pouco antes de enfiar-me em casa - que em vez de me sentir seguro tive um verdadeiro ataque de loucura, vendo todas as pessoas que passavam, mesmo as mais inocentes, como ferozes perseguidores. Parecia um batalhão vindo no meu encalço. Lembro que chovia, e os guarda-chuvas se abrindo me pareciam revólveres, rifles e metralhadoras em posição de ataque. Fiquei tão alucinado que ao chegar me tranquei no quarto, fechei as janelas, e de olhos cerrados me encolhi debaixo das cobertas, tomado de pânico. O ASSALTO QUE NAO CHEGOU A ACONTECER Na adolescência não precisei trabalhar, pois estava sob as expensas da família. Em razão disso não tinha dificuldades para sustentar-me o vício. Mas um dia essa facilidade perniciosa acabou. Desligado da minha gente, vivendo ao-deus-dará, zanzando pelas ruas, becos e ruelas, ou me ocultando entre os edifícios, praias e morros, dentro dos carroS ou nas bocas de fumo, amarrado dia e noite a maus elementos e traficantes, como conseguir dinheiro? Não tinha a menor possibilidade de empregar-me, não só devido à condição física e psíquica, como ao aspecto de capacidade e preparo. Aliás, seria totalmente impossível inspirar confiança em quem me observasse. Transparecia ao mesmo tempo intrepidez e insegurança, calma e loucura, ingenuidade e arrogância -algo muito enrolado e difícil de destrinçar. Quem haveria de querer-me? ... Que situação! As drogas custavam caríssimo. Aflito, contei meu drama a uni colega, que aliás vivia em idênticas condições. - O único jeito é um assalto - disse ele. Não tem caminho melhor, e eu sempre me dou bem, toda vez que roubo. Em situação tão crítica, só tinha mesmo é que concordar com ele: não havia outra saída. Então entreguei-me sem discussão à nova loucura. Se antes olhava as lojas como válidas para o sustento das pessoas, agora, cheio de rancor e dureza, ávido por conseguir dinheiro, contemplava com olhos maus aquelas mesmas lojas, refletindo sobre qual seria mais apropriada a um assalto. Estava tão cego e enlouquecido, que achava que devia assaltar justamente ali, onde tinha sido criado e todos me conheciam, sendo portanto muito fácil ser reconhecido e preso. Num sábado, o dia em que mais me drogava, como estivesse completamente sem dinheiro resolvi dar curso ao assalto. O problema é que não tínhamosrevólver. Depois de pensarmos em facas, canivetes ou pedaços de pau, e concordamos que nada disso serviria, lembrei que meu pai tinha na gaveta uma arma sem uso, talvez até esquecida. Era por volta do meio-dia. Ele costumava descansar após o almoço, para em seguida voltar ao trabalho. Tinha pois que aguardar que passasse no seu Carro para só então buscar a arma. Estava tão cego que queria realizar o assalto durante o dia; não suportaria esperar que anoitecesse. Sentia-me aflito, sedento por dinheiro. Postei-me na esquina à espera de meu pai, e quando ele passou fui rapidamente a casa. Daí a pouco estava de posse da arma. Apanhei algumas balas, pois ela se encontrava vazia, e coloquei-as no tambor. Era inexperiente; pela primeira vez tinha em mãos uma arma de fogo. Foi aí que fiquei sabendo quantas balas eram necessárias para carregá-la. Como estivesse de short era difícil escondê-la dentro da roupa. Dei porém um jeito, pois era muito ágil em disfarçar e ocultar qualquer coisa. E saí de fininho, sem que ninguém desconfiasse de nada. Passando rapidamente por minha mãe, nem lhe respondi à pergunta sobre almoçar ou não. Desci como um foguete a ladeira e fui ter com meu parceiro. Agora só faltava escolher o estabelecimento a ser assaltado. Estava tão aflito em razão de dinheiro, que mesmo não tendo nenhuma experiência de assalto queria comandar tudo sozinho. Tinha tal certeza de que tudo correria bem que já fazia planos de como gastá-lo: compraria maconha, cocaína, alugaria um automóvel... Ansiava desfrutar de tudo ao mesmo tempo: droga, mulheres, bebidas, boates -enfim, um mundo de loucuras, e por muitos dias. Ao pensar em tantas "maravilhas" acendia-se meu desejo de roubar: quem sabe a loja em frente? Não podia esperar mais um minuto. Possuído pelo espírito do roubo, perdi totalmente o controle e disse ao colega: - Vamos logo! Vamos entrar nesta loja d ferramentas ou ali na padaria; ou talvez no açougue... Estava um tanto indecido. Ele, mais experiente, tentava me acalmar: - Vamos devagar! Não é assim que se assalta! Calma! Felizmente aquela não era a hora de me tornar assaltante à mão armada, pondo em perigo a minha vida, a vida de meu colega e a de alguém que abrira um pequeno negócio para dali tirar - talvez até honestamente -o sustento da família. No momento em que finalmente nos decidimos a entrar numa loja -por incrível que pareça - um carro cruzou o nosso caminho, e antes que atravessássemos a rua sua buzina disparou várias vezes, enquanto as mãos do motorista acenavam com ira, como se ele, sabendo de minhas intenções, planejasse me prender. Apavorado, tremia feito vara verde. Minha estrutura psicológica desabara. Fiquei petrificado, sem saber o que fazer - se permanecia ali ou corria. Assustadíssimo, acreditava que o motorista era um policial. Contudo, ao firmar os olhos no carro, verifiquei tratar-se de meu bendito pai... Fiquei mais amedrontado ainda: não podia ir ao seu encontro com sua arma na mão! Voltando-me para o outro lado da calçada, sentei-me no muro que beirava os edifícios, convencido de que ele percebera o furto de sua arma. Ele continuava acenando, com gestos irados. Mas como atendê-lo, se tinha a arma na cintura? Minha sorte é que de tanto tremer, ela começou a escorregar roupa abaixo. Pensei comigo: "Que azar!" É que eu imaginei que ao cair no chão ela me denunciaria (ainda que estivesse do outro lado da rua). Num golpe rápido, aproveitando a oportunidade deixei que deslizasse até os pés, e então me voltei para o outro lado do muro. Virando-me, indiquei cautelosamente ao rapaz que a segurasse. Meu pai continuava me chamando, irritadíssimo; não parava de buzinar. Acreditando que me falaria com a maior agressividade, em razão da arma, preparei-me para o que desse e viesse. Ao chegar perto dele, com incrível cinismo tomei-lhe a bênção. Ele me perguntou o que estava fazendo ali, e porque não fora almoçar, deixando minha mãe tão preocupada. - Volte logo para casa -me disse. Não quero você perdendo tempo pelas esquinas, com maconheiros. Respondi-lhe "sim", mas logo que: ele se afastou voltei para junto do colega. Só que perdera totalmente o impulso de assaltar. O susto fora maior que a valentia, e eu me negava a arriscar uma segunda vez. Logo que me senti mais calmo fui para casa. Chegando lá tive o cuidado de colocar a arma no mesmo lugar. Entretanto, depois desse assalto frustrado o espírito do roubo várias vezes tomou conta de mim. Embora não tenha chegado a assaltar, tinha a semente do furto plantada no coração. Vivia nervoso, inquieto, agitado, arquitetando uma maneira de ganhar dinheiro fácil, para sustentar-me o vício. Planejava mil coisas, e com o mesmo arroubo e intrepidez com que assumia determinado plano, prostrava-me ansioso e cheio de dúvidas. A coisa mais fácil era vender e trocar objetos. Era o que muitos faziam, e eu lhes segui o exemplo, vendendo e trocando coisas de minha casa - o que fiz por bastante tempo. No guarda-roupa de minha mãe, por exemplo, havia uma caixa de jóias. Dali fui aos poucos tirando cordões, anéis, brincos, medalhas. Uma ocasião, sem conseguir vender um cordão arrebentado subi o morro, procurei o vapor (vendedor de drogas) e lhe ofereci o cordão em troca de um baseado. Percebendo minha aflição, e sabendo que eu não era um simples garotão de família que curtia drogas, mas um dependente escravizado, concordou finalmente em me atender. Vender ou trocar coisas de minha casa não era nada digno, mas pior ainda era o hábito de retirar dinheiro do bolso de meu pai, sempre que ele se descuidava. Ele almoçava diariamente em casa, e após a refeição ia descansar. Antes do repouso trocava-se e pendurava a roupa atrás da porta do banheiro. Eu então entrava e mexia nos seus bolsos. Para não despertar a atenção, surripiava pequenas quantias de cada vez. E como "de grão em grão a galinha enche o papo" -como diz o ditado -, o que subtraía diariamente, ou quando me era possível, dava para adquirir drogas e às vezes inclusive sobrava para a bebida e as mulheres. Meu pai parecia não a perceber-se de minhas artimanhas e astúcias. Mas sempre que precisava verificar seu dinheiro fazia um gesto intrigado, como se notasse algo de errado com ele. Algumas vezes reclamava, mas sem nenhuma segurança. E assim continuei eu por muito tempo, sem que meus ardis me dessem dor de cabeça. O viciado é capaz de vender qualquer coisa - mesmo de grande valor -, quando instigado pela ânsia da droga. Evidentemente a coisa vendida é tremendamente desvalorizada, mas nem isso importa; tudo que interessa é ter a droga na mão para consumir. E era assim que eu ia vivendo... PRESOS NUMA REDOMA Havia uma floresta próxima a Vista Alegre, que eu e um grupo de jovens viciados freqüentávamos. Era um lugar bucólico, onde tudo levava ao romantismo, ao êxtase e à imaginação. No silêncio do ermo podíamos ouvir o canto dos passarinhos e contemplar os raios do sol penetrando nas árvores e iluminando o rosto de cada um. O vento embalava suavemente os galhos e ramarias, envolvendo o lugar com sua doce magia. Tudo tão perfeito! No entanto a droga punha tudo a perder. Já não parecíamos de carne, mas de pedra: Imunes ao doce envolvimento da floresta, não tínhamos olhos para enxergar a beleza, nem ouvidos para ouvir os doces ruídos e o silêncio noturno. Embriagados de droga, não percebíamos nada, a não ser nossas alucinações. Estávamos como que envolvidos por material isolante, curtindo numa grande redoma nossa própria loucura e desgraça. O mundo ali fora, tão lindo, não chegava até nós. Toda beleza, antes de atingir-nos, era esfacelada em meio ao caminho. Afinal de contas não estávamos ali para curtir um cenário de romance, mas para enroscar-nos em nosso delírio coletivo. Logicamente eu não podia ver nada de bonito à volta. Não estava no meu estado físico natural; sendo assim, tocado pelo psicotrópico só podia ter visões estranhas, macabras, semblantes destorcidos, inclusive eu mesmo um monstro. Lembro um colega que ao almoçar, drogado por cogumelos, viu em seu prato num
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