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1 QUESTÃO 1. (2,0) Análise do conto de Machado de Assis, “Um bilhete” gravado por Othon Bastos, postado na sala de Literatura na plataforma, cujo texto está copiado abaixo, na prova. Diz-se que se deve ler poesia em voz alta para se apreciar mais o ritmo. Este é um texto em prosa, mas ganha muito na prosódia deste ator experiente. [Sabemos que Prosódia é parte da gramática tradicional que se dedica às características da emissão dos sons da fala, como o acento e a entonação.] Um bilhete Antes mesmo que acabasse o baile, Maria Adelaide dizia à mãe que não queria ficar um minuto mais que fosse. — Que é isso? disse-lhe a mãe. Deu uma hora agora mesmo. — Não quero saber. Vamo-nos embora. — Ora, meu Deus! — Vamos, vamos. Não havia que dizer, a mãe era governada pela filha, e perderia o lugar no céu, se tanto fosse preciso, para não desgostá-la. Note-se que não cedia pouco desta vez; cedia a ceia, que era excelente, e a boa viúva professava esta filosofia: — que as ceias excelentes são preferíveis às boas, as boas às más e as más às que não têm existência. Sacrificava a melhor parte do baile; mas, enfim, contanto que a filha não padecesse. Padecer, padecia. No carro, logo que as duas entraram, Maria Adelaide começou a ralhar com tudo, com o carro, com a capa, com o calor, com o pó, com a mãe e consigo mesma. A mãe entendeu logo: era algum desgosto que o Chico Alves lhe dera. Realmente, lembrou-se que o Chico Alves, indo despedir-se delas, nem alcançou que Maria Adelaide olhasse para ele. A moça deu-lhe os dedos, a pontinha apenas, e falou- lhe de costas; naturalmente estavam brigados. A viagem foi atribulada. Nunca o mau humor da moça foi tamanho nem tão explosivo. A mãe pagou pelo namorado, mas como era prudente e estava com fome, preferiu não dizer nada. Em casa, continuou o mau humor. A pobre criada da moça padeceu como nunca. Maria Adelaide entrou para os seus aposentos, furiosa, despiu-se às tontas, dizendo coisas duras, rasgando uma das mangas do vestido, atirando as flores ao chão, raivosa e indignada sem causa aparente. No fim, disse à criada que se fosse embora, e ficando só rebentaram-lhe as lágrimas. Assim mesmo sozinha, ia falando, mordendo os lábios, dando punhadas nos joelhos. Depois arrancou da cadeira, foi à secretária e escreveu este bilhete: "Nunca pensei que o senhor fosse tão pérfido. Nunca imaginei que pudesse proceder como fez no baile; creia que não manifestei o meu desgosto, por dois motivos: — o primeiro, porque ainda tive força de me dominar; segundo, porque depois do que o senhor me fez, nada pode 2 haver mais entre nós. Case-se com a viúva, se quer. Mande as minhas cartas e adeus. Esta determinação é irrevogável. Qualquer tentativa de reconciliação obrigar-me-á ao que não quero". Tinha dado expansão à cólera, deitou-se para dormir. O sono não veio logo; a raiva agitou a pobre moça, e só quando começou a madrugada foi que ela pôde dormir um pouco. No dia seguinte, o Chico Alves recebia este bilhete: "Desculpa algumas palavras que te disse ontem no baile. Estava muito zangada. Vem hoje tomar chá, e eu te explico tudo". 1.1 Repare o comportamento do narrador. Conforme a classificação apresentada na Aula 4, em que categoria se enquadraria melhor? Copie a definição e explique com exemplos retirados do texto literário. 1. Vou dizer por que aceitei as respostas que falavam do narrador onisciente testemunha – porque a diferença dele para o intruso é sutil. Na aula 4, sobre o narrador testemunha digo: “Estevão Soares teve de ir à casa de um ministro de Estado para saber de uns papéis relativos a um parente da província, e aí encontrou o deputado Meneses, que acabava de ter uma conferência política. Houve sincero prazer em ambos encontrando-se pela segunda vez; e Meneses arrancou de Estevão a promessa de que iria à casa dele daí a poucos dias [...]. Este é o narrador que observa, testemunha o ocorrido, e vai narrando ao leitor, apenas dá as entradas das falas das personagens, aponta os semitons da história, sobretudo pelo uso dos advérbios e dos adjetivos (Só dois meses depois...sincero prazer em ambos...) No texto de Um bilhete, no entanto, o que o narrador diz vai além da observação da superfície de gestos e conversas, como no exemplo acima. O narrador em Um bilhete, reparem, ele entra na casa, vai para dentro do quarto: Em casa, continuou o mau humor. A pobre criada da moça padeceu como nunca. Maria Adelaide entrou para os seus aposentos, furiosa, despiu-se às tontas, dizendo coisas duras, rasgando uma das mangas do vestido, atirando as flores ao chão, raivosa e indignada sem causa aparente. No fim, disse à criada que se fosse embora, e ficando só rebentaram-lhe as lágrimas. Assim mesmo sozinha, ia falando, mordendo os lábios, dando punhadas nos joelhos. Depois arrancou da cadeira, foi à secretária e escreveu este bilhete: E é ele, nesse mesmo tom de segredo de espionagem, que oferece ao leitor o bilhete que o Chico Alves realmente recebe... Digamos que no exemplo oferecido pela aula, Miss Dollar, houvesse também uma inclinação metalinguística do narrador que fala sobre estar contando uma história: “Para algumas pessoas a qualidade da heroína fará perder o interesse do romance. Erro manifesto. Miss Dollar, apesar de não ser mais que uma 3 cadelinha galga, teve a honra de ver o seu nome nos papéis públicos, antes de entrar para este livro”... O problema, de qualquer maneira, é que a decisão final cabe ao leitor. Cabe ao leitor decidir, depois de ler, qual foi o ponto de vista sobre a história que observou no narrador. Por isso aceitei quem disse testemunha – entendendo que para alguns o narrador testemunha observa para além das aparências. Mas entendam uma coisa: o narrador-testemunha em geral fala em primeira pessoa, conta o que testemunhou. Porém, há escritores que conseguem fazer um narrador testemunhar em terceira pessoa: Vejam o que faz a escritora Margarida Fahel, na abertura de seu livro A casa da esperança não era verde: O menino chega à frente da casa. Que casa seria aquela? Ele caminhara ao longo de toda rua. Quem seria aquele menino anos, não mais que isso. Moreno, embora de um tom pálido, lábios corados, narizinho afilado e incríveis, incríveis e grandes olhos de um castanho incógnito ou pouco visto. Castanho esmaecido? Castanho amarelado? Ou teria nuances de verde clarinho? Cabelos quase pretos como convinha à pele trigueira. Bonito! Como era belo aquele garoto! Parecia dele sair um halo de esperança. Esperança no riso quase escondido e no cintilante daquele olhar. Que casa seria aquela? seria mesmo a casa buscada? (2021, p19) E no nosso conto: Note-se que não cedia pouco desta vez; cedia a ceia, que era excelente, e a boa viúva professava esta filosofia: — que as ceias excelentes são preferíveis às ...... etc. De todo modo, o mais importante é ver: Que é onisciente, porque sendo a voz do escritor na narrativa, sabe tanto quanto ele sabe, naquele momento, da história. Como se nunca soubesse tudo, ficasse alguma coisa que a própria história ensinasse ao narrador à medida que a história fosse sendo contada. Vejam que só pode saber de tudo sobre si e sobre os outros o narrador que volta dos mortos.... quer dizer, rompe o espaço da ficção, como faz, no mesmo romance citado, a narradora de Margarida Fahel: “Decidi eu mesma contar este capítulo. Aliás nem sei se será mesmo o último, pois afinal não sou a dona desta escrita. Pedi licença, apenas. Tão pouco sou a personagem central. A personagem central, o protagonista, é mesmo o meu filho, Olavo. Ao lado dele, sua irmã, minha filha Laura. E todos em torno dele, o menino perguntador. Mas voltando ao assunto. De onde contarei este capítulo? Estarei contando de onde me encontro agora? [...] Não sei. Não tenho certeza. Posso estarnaquela cama de hospital, bem fraca já [...] Penso que talvez ali uma fresta larga de futuro tenha se aberto à minha frente e este capítulo tenha se desenhado diante de mim, colorido, sonoro, como teria que ser, como terá sido e como mesmo foi.” (p.257). 4 Esse é um tópico interessante de busca na pesquisa sobre narrador. Vá à seção de literatura brasileira, numa biblioteca ou livraria, procure contos... e especule. É divertido. 1.2 Por este perfil, em relação ao conjunto de elementos singularizantes da prosa, de que elementos o narrador dá conta, e de que modo? As respostas à segunda parte da questão 1 foram em geral boas, dizendo sobre tudo o que o narrador apresentou sobre o enredo, a ação, os personagens, o tempo e o espaço. QUESTÃO 2. (2,0) Imagine-se na pele do Chico Alves. Crie um bilhete que ele teria enviado a Maria Adelaide, logo após o baile, pedindo-lhe explicações para seu estranho comportamento. As respostas a esta questão foram adoráveis, algumas belas, outras engraçadas... Só perdeu ponto quem esqueceu que o Chico Alves, pela manhã, teria recebido o convite para o chá e fala, no outro dia, como se não tivesse recebido nada. Houve quem apenas dissesse que seria bom conversar, então considerei. QUESTÃO 3.(4,0) Para estudar o maravilhoso, na Aula 5, usamos um conto de Machado de Assis. Agora vamos explorar um texto muito especial, escrito pela não menos especial escritora Marina Colassanti. É “A moça tecelã”, que reproduzimos a seguir: A Moça Tecelã Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear. Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor de luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte. Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca http://4.bp.blogspot.com/_0N4d4ynYN3M/R8dzmWYxf0I/AAAAAAAAALQ/pF5XNWDc5PA/s1600-h/Bordado.JPG 5 acabava. Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos de algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela. Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza. Assim, jogando a lançadeira de um lado para o outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias. Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou como seria bom ter um marido ao seu lado. Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram à porta. Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando na sua vida. Aquela noite, deitada contra o ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade. E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque, descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar. - Uma casa melhor é necessária, -- disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer. Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. – Para que ter casa, se podemos ter palácio? – perguntou. Sem querer resposta, imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata. Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes 6 acompanhando o ritmo da lançadeira. Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre. - É para que ninguém saiba do tapete, -- disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: -- Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos! Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou como seria bom estar sozinha de novo. Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear. Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e, jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer o seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela. A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu. Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte. [de Marina Colassanti. Ilustração: bordado das irmãs Dumont] 3.1 O que você diria do maravilhoso deste conto. Explique e dê exemplos com frases do texto. O único problema nas respostas equivocadas, que eu considero sério, foi tomar “maravilhoso” no sentido adjetivo corrente, quase denotativo, tipo vi um filme maravilhoso, meu amigo é maravilhoso etc. O “maravilhoso” a que refere a questão é uma categoria literária, que supõe características, como está dito na Aula 3, referentes à Literatura infantil. Aí está bem clara a diferença do maravilhoso para o fantástico, por exemplo. Então, indo para a questão (3.4), se a narrativa que enfoca as competências da tecelã para fazer o extraordinário, que alguns chamam erroneamente de sobrenatural, e cria em seu tear um mundo imaginado que ela torna real, estes gestos pertencem ao maravilhoso no 7 seu sentido positivo, de trazer o conforto, o bem-estar, a alegria. Quando ela ultrapassa este limite, e cria um homem, ela adentra o território do estranho – nesse ponto a resposta (3.3) deveria considerar que: a) o maravilhoso é visto no horizonte da “normalidade”,naquele universo das coisas mágicas: criar sol, céu, lua, estrelas, comida, confortos; participar do maravilhoso voltava como paz e alegria para a tecelã; b) até o momento em que ela cria um outro ser, como ela, para ser seu companheiro, um homem – ela é responsável por introduzir o estranhamento no mundo de harmonia, criando um homem que, diferente dela, vê aquela maravilha com outros olhos, com os da ambição; c) aí a narrativa traz os elementos do fantástico (3.4), que desestabilizam a paz, rebocam a exploração, a tirania, o trabalho excessivo para benefício financeiro apenas, sem contrapartida humana, de bem-estar, de companheirismo e amor, como acontecia antes. É neste momento, quando ela cai em si que ela mesma a estava fazendo perder-se do seu ideal, que ela toma consciência da perda do maravilhoso e, num gesto fantástico, conduzido por raiva, infelicidade e desgosto, ela destece. A cena em que ele acorda e se vê pela metade é terrível, na verdade, ao descriar o homem ela o mata, como já tinha feito com criados e animais de serviço. A imagem é forte. Releiam as perguntas agora e vejam como o conjunto das forças do conto é poderoso. 3.3 Você diria que o estranho neste conto se confunde com o maravilhoso? Por quê?/3.4 Você considera que o maravilhoso se transforma em fantástico, neste conto? Como? Em que momento? 3.2 Lido como fábula, qual seria a moral? Essa reposta era sutil. Todos sabem o que é a moral da história: uma frase que resume a lição que a fábula ou a história infantil quer trazer. A maioria acertou e fez frases ótimas. QUESTÃO 4 (2,0) Vamos pensar nas possíveis mudanças de costumes e linguagem para versões do Chapeuzinho Vermelho. Leia uma das traduções do original de Perrault: Era uma vez uma menina que vivia numa aldeia e ela era a coisa mais linda que se podia imaginar! Sua mãe era louca por ela e, a avó, mais louca ainda. A boa velhinha mandou fazer para ela um chapeuzinho vermelho. Esse chapéu assentou-lhe tão bem que a menina passou a ser chamada por todos de Chapeuzinho Vermelho. Um dia, tendo feito alguns bolos, sua mãe disse-lhe: — Vá ver como está passando a sua avó, pois fiquei sabendo que ela está um pouco adoentada. Leve-lhe um bolo e este potinho de manteiga. 8 Chapeuzinho Vermelho partiu logo para a casa da avó, que morava numa aldeia vizinha. Ao atravessar a floresta, ela encontrou o senhor Lobo, que ficou louco de vontade de comê-la. Mas não ousou fazer isso, só por causa da presença de alguns lenhadores na floresta. Perguntou a ela aonde ia, e a pobre menina, que ignorava ser perigoso parar para conversar com um lobo, respondeu: — Vou à casa da minha avó, para levar-lhe um bolo e um potinho de manteiga que mamãe mandou.[...] O Lobo saiu correndo a toda velocidade pelo caminho mais curto, enquanto a menina seguia pelo mais longo, distraindo-se a colher avelãs, a correr atrás das borboletas e a fazer um buquê com as florzinhas que ia encontrando. O Lobo não levou muito tempo para chegar à casa da avó. Ele bate: toc, toc, toc. — Quem é? — pergunta a avó. — É a sua neta, Chapeuzinho Vermelho — falou o Lobo, disfarçando a voz. — Trouxe para a senhora um bolo e um potinho de manteiga que minha mãe mandou. A boa avozinha, que estava acamada porque não se sentia muito bem, gritou-lhe: — Levante a aldraba, que o ferrolho sobe. O Lobo fez isso e a porta se abriu. Ele lançou-se sobre a boa mulher e a devorou num segundo, pois fazia mais de três dias que não comia. Em seguida, fechou a porta e se deitou na cama da avó, à espera de Chapeuzinho Vermelho. Passado algum tempo ela bateu à porta: toc, toc, toc. — Quem é? Chapeuzinho Vermelho, ao ouvir a voz grossa do Lobo, a princípio, ficou com medo; mas, supondo que a avó estivesse rouca, respondeu: — É sua neta, Chapeuzinho Vermelho, que traz para a senhora um bolo e um potinho de manteiga, que minha mamãe mandou. O Lobo gritou-lhe, adoçando um pouco a voz: — Levante a aldraba, que o ferrolho sobe. Chapeuzinho Vermelho fez isso e a porta se abriu. O Lobo, vendo-a entrar, disse-lhe, escondido sob as cobertas: — Ponha o bolo e o potinho de manteiga sobre a mesa e venha deitar aqui comigo. Chapeuzinho Vermelho despiu-se e se meteu na cama, onde ficou muito admirada ao ver como a avó estava esquisita, em seu traje de dormir. Disse, então, a ela: — Vovó, como são grandes os seus braços. — É para melhor te abraçar, minha filha. — Vovó, como são grandes as suas pernas. — É para poder correr melhor, minha netinha. — Vovó, como são grandes as suas orelhas. 9 — É para ouvir melhor, netinha. — Vovó, como são grandes os seus dentes. — É para te comer! E assim dizendo, o malvado lobo se atirou sobre Chapeuzinho Vermelho e a devorou. Agora uma versão contemporânea: Chapeuzinho Vermelho de Raiva, de Mário Prata – Senta aqui mais perto, Chapeuzinho. Fica aqui mais pertinho da vovó, fica. – Mas vovó, que olho vermelho… E grandão… Que que houve? – Ah, minha netinha, estes olhos estão assim de tanto olhar para você. Aliás, está queimada, hein? - Guarujá, vovó. Passei o fim de semana lá. A senhora não me leva a mal, não, mas a senhora está com um nariz tão grande, mas tão grande! Tá tão esquisito, vovó. – Ora, Chapéu, é a poluição. Desde que começou a industrialização do bosque que é um Deus nos acuda. Fico o dia todo respirando este ar horrível. Chegue mais perto, minha netinha, chegue. – Mas em compensação, antes eu levava mais de duas horas para vir de casa até aqui e agora, com a estrada asfaltada, em menos de quinze minutos chego aqui com a minha moto. – Pois é, minha filha. E o que tem aí nesta cesta enorme? – Puxa, já ia me esquecendo: a mamãe mandou umas coisas para a senhora. Olha aí: margarina, Hellman, Danone de frutas e até uns pacotinhos de Knorr, mas é para a senhora comer um só por dia, viu? Lembra da indigestão do carnaval? – Se lembro, se lembro… – Vovó, sem querer ser chata. – Ora, diga. – As orelhas. A orelha da senhora está tão grande. E ainda por cima, peluda. Credo, vovó! – Ah, mas a culpada é você. São estes discos malucos que você me deu. Onde se viu fazer música deste tipo? Um horror! Você me desculpe porque foi você que me deu, mas estas guitarras, é guitarra que diz, não é? Pois é; estas guitarras são muito barulhentas. Não há ouvido que aguente, minha filha. Música é a do meu tempo. Aquilo sim, eu e seu finado avô, dançando valsas… Ah, esta juventude está perdida mesmo. – Por falar em juventude o cabelo da senhora está um barato, hein? Todo desfiado, pra cima, encaracolado. Que qué isso? – Também tenho que entrar na moda, não é, minha filha? Ou você queria que eu fosse domingo ao programa do Chacrinha de coque e com vestido preto com bolinhas brancas? Chapeuzinho pula para trás: – E esta boca imensa???!!! A avó pula da cama e coloca as mãos na cintura, brava: – Escuta aqui, queridinha: você veio aqui hoje para me criticar é?! 10 4.1 O que chama mais atenção do leitor nesta versão atual? A maioria chamou atenção para os novos elementos, pertencentes às culturas urbanas contemporâneas, incluindo a linguagem, que aparecem na história de Mário Prata como o que chama mais atenção. Ponto favorável. 4.2 Quais são os elementos que mais caracterizam o tempo em que cada história foi escrita? Também houve um grande acerto ao falar que a principal diferença entre as histórias sob o ponto de vista da caracterização de temporalidade estava ligada ao cenário: de floresta, com distâncias a serem percorridas a pé num ambiente rústico com portas com aldraba, passou à conglomerado urbano, cidade barulhenta e poluída, onde o deslocamento devia ser feito de moto, para ser mais rápido. A única ambiguidade literária,uma verdadeira pegadinha a que pouquíssimos atinaram foi a esquisitice da avó: avó? Ou lobo disfarçado, como todas malandrices que um “lobo” de verdade num ambiente urbano teria; uma avó com orelhas, dentes e boca de lobo, mas que não admite, como bom malandro, ser criticado, nem quando está no papel de avó. Houve quem acertasse ao dizer que se tratava de uma fábula contemporânea, maliciosa e satírica. Mário Prata é, antes de tudo um gozador...
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