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ÉTICA PROFISSIONAL DO SERVIÇO SOCIAL AULA 3 Prof.ª Carla Andréia Alves da Silva Marcelino 2 CONVERSA INICIAL Pelo caminho que percorremos até aqui, já deve ter ficado evidenciado aos alunos que a ética profissional não é o Código de Ética de uma profissão; pensar desta forma seria reduzir este campo a uma visão empobrecida e reduzida sobre o tema. A ética se refere ao modo de ser (ethos) de uma profissão e este modo de ser é perpassado pelos valores que orientam o grupo de profissionais daquela categoria. Tais valores expressam também o rumo para o qual caminham os seus profissionais durante o seu trabalho e onde almejam chegar com suas práxis. Estes valores e essa moral coletiva que orientam a categoria do grupo dos assistentes sociais está expressa em algo do qual se fala muito durante a formação acadêmica, que é o projeto ético-político do Serviço Social. É comum que recebamos a pergunta: “onde encontro escrito o projeto ético-político do Serviço Social?”. Este é o primeiro ponto que nos cabe elucidar já na introdução desta aula: o projeto ético-político não está escrito em nenhum lugar, não se pode encontrar um documento pronto com este nome, pois como citado no parágrafo anterior, ele exprime o ethos, o modo de ser dos assistentes sociais, visão de homem e de mundo destes profissionais, assim como, o compromisso político da categoria. Por ser o pano de fundo que orienta a ação profissional, os valores e os princípios que o norteiam podem ser encontrados em diversos documentos formais que traduzem o projeto ético-político na forma de regulamentos da profissão (normas e leis), na formação acadêmica (por meio dos currículos dos cursos de graduação) e das regras de conduta dos profissionais no exercício da sua atividade (por meio do Código de Ética). Para falarmos do projeto ético-político do Serviço Social iniciaremos apresentando alguns alinhamentos conceituais sobre o que são projetos, projetos societários e projetos profissionais, para então no segundo tema afunilarmos o debate sobre o que é e o que representa um projeto ético-político de uma coletividade, em nosso caso, a de assistentes sociais. No tema três, abordaremos as duas dimensões da ética no Serviço Social: a deontológica e a teleológica, assim como, apresentaremos os componentes que materializam o projeto ético-político e o que ele representa para a própria categoria e para os usuários de seus serviços. No ápice desta aula, falaremos sobre os valores nucleares que orientam o projeto ético-político do Serviço Social, todos eles 3 calcados no ethos trazido pela teoria crítica de Marx e seus intérpretes, que orientam para a ruptura com o sistema vigente e o compromisso intransigente de defesa da classe trabalhadora. Para encerrar a aula, daremos o primeiro passo direcionando nossos estudos para o Código de Ética dos/as Assistentes Sociais, que dá o caráter deontológico do projeto ético-político. Para isso, apresentaremos subsídios para a compreensão do lugar que o Serviço Social ocupa na divisão social e técnica do trabalho como profissão liberal e a relação direta disto com a necessidade de existência de um código de ética. TEMA 1 – PROJETOS SOCIETÁRIOS E PROJETOS PROFISSIONAIS Se retomarmos conteúdos anteriores, iremos lembrar que pela tradição marxista, o homem é um ser social que tem a capacidade de projetar antes em seu imaginário o produto de seu trabalho e agir de forma intencional para transformar a natureza para atender as suas próprias necessidades, produzindo aquilo que antes esteve em sua ideia. A esse processo de pensar – agir – pensar – agir, simultaneamente, chamamos de práxis. Desta forma, podemos afirmar que toda ação humana é dotada de teleologia, ou seja, de uma intenção, de um objetivo, visando a alcançar algum fim. É neste sentido que José Paulo Netto (2006, p. 2) afirma que a ação humana, individual ou coletiva, é sempre dotada de um projeto, que “é uma antecipação ideal da finalidade que se pretende alcançar, com a invocação dos valores que a legitimam e a escolha dos meios para lográ-la.” O mesmo autor explica que existem projetos individuais, projetos coletivos e uma modalidade outra, que mais nos interessa aqui, que são projetos macrossocietários, que além de coletivos, são globais, no sentido de que envolvem uma intenção que abrange toda a sociedade e não apenas um coletivo pequeno de sujeitos. Estamos aqui falando dos projetos societários. E por que nos interessa falar sobre isso? A resposta é porque o projeto ético-político do Serviço Social tem uma confluência direta com um projeto societário específico, como veremos adiante. Ao explicar o que são projetos societários, Netto (2006, p. 2) afirma: Trata-se daqueles projetos que apresentam uma imagem de sociedade a ser construída, que reclamam determinados valores para justificá-la e que privilegiam certos meios (materiais e culturais) para concretizá- la. Os projetos societários são projetos coletivos; mas seu traço peculiar reside no fato de se constituírem como projetos macroscópicos, como propostas para o conjunto da sociedade. 4 Se partirmos da perspectiva marxista, seguindo com Netto (2006), a sociedade está dividida em classes sociais e os projetos societários estão atrelados aos interesses de tais classes, tendo estes um caráter político e econômico, envolvendo diretamente relações de poder. Em uma sociedade democrática, podem existir diversos projetos societários e pessoas adeptas a cada um deles podem ocupar espaços de poder e disseminar suas ideias. Porém, os projetos voltados aos interesses das classes dominadas sempre terão menos chances de prosperar ou de se sobrepor ao projeto dominante, vez que a classe dominante é detentora de grande parte dos espaços decisórios de poder e consegue impor os seus interesses em detrimento da classe trabalhadora. Cardoso (2013) explica que todo projeto que é coletivo tem um caráter ético (valores que o orientam) e um caráter político (finalidade e meios para atingi-la). Neste sentido, um projeto societário, por ser o mais amplo dos projetos coletivos, também é um projeto ético-político, o qual defende e luta por um tipo de sociedade que se quer construir ou consolidar, havendo, na sociedade de classes, espaço para dois grandes projetos: o de conservação do modelo de sociedade em que vivemos, voltado ao capital, ou de ruptura com ele, voltado para a emancipação humana e pelo fim da venda da força de trabalho e exercício livre da capacidade criativa e produtiva do ser social. Tratemos agora dos projetos profissionais, que segundo Cardoso (2013) são projetos coletivos, mas não são macroestruturais como os projetos societários, em que pese sempre estejam atrelados a um deles. Os projetos profissionais explicitarão “a imagem ideal” (p. 78) de uma categoria profissional, construindo possibilidades de respostas ao momento histórico. Estes projetos são constituídos de valores éticos que são fundamentados em opções teórico- metodológicos que confluem para determinado projeto societário e imprimem a direção para a qual a profissão irá caminhar. Valores que legitimam a opção de uma direção social, caminhos para a concretização dessa opção, tendo como finalidade uma forma de sociabilidade. Enquanto projeto direciona a ação cotidiana desses profissionais que, por sua vez, construirão e reconstruirão tal projeto em sua práxis profissional. (CARDOSO, 2013, p. 79, grifos da autora) Netto (2006) complementa que além dos projetos profissionais apresentarem o dever ser e a autoimagem de uma profissão, ou seja, o ethos daquela categoria, ele ainda legitima valores, delimita objetivos e funções da 5 profissão dentro da divisão social e técnica do trabalho, formula quesitos para o exercício profissional, prescreve normas de comportamentopara os profissionais e define os parâmetros que baseiam as relações destes profissionais com os destinatários de seus serviços. TEMA 2 – O QUE É UM PROJETO ÉTICO-POLÍTICO? Já sabemos o que são projetos, projetos societários e projetos profissionais. Agora, vamos correlacionar todos eles com os projetos ético- políticos, especialmente o do Serviço Social. Os projetos ético-políticos são projetos coletivos que exprimem além dos valores que baseiam a ação de um grupo, a direção para a qual segue este grupo na sua ação, ou seja, a posição política e o horizonte para o qual aponta aquele coletivo, do ponto de vista de um projeto societário, envolvendo a visão de mundo e de homem daqueles que o compõe. Neste caso, o projeto profissional dos assistentes sociais é um projeto ético-político. Reforçando tal conceito, Netto (2006) afirma que um projeto ético- político é um projeto coletivo no qual um grupo ou uma categoria, como é o caso, deixa expressa qual a direção a se tomar para concretizar o que ela idealiza. De acordo com Cardoso (2013), o projeto é ético porque expressa a ética profissional, trazendo os valores que orientarão as escolhas dos profissionais durante a sua ação, traduzindo em princípios que vão nortear a teleologia da profissão e as relações destes com a sociedade. O projeto é também político porque traz a dimensão da organização e da ação política daquela coletividade, “pois é no político que se assenta a ação, a prática dos valores expressos pela ética” (p. 80). A política, no caso dos projetos coletivos, irá se referir às estratégias adotadas pela categoria profissional para atingir os objetivos da profissão, calcados nos valores trazidos pela dimensão ética. Além disso, a política também se expressa no compromisso da categoria em organizar-se coletivamente junto a outros setores da sociedade para a luta social e política para a implementação dos ideais do projeto societário ao qual está alinhado e materializar a sua posição ética “diante da conjuntura social e política” (p.81), compreendendo, portanto, a inserção dos profissionais nos movimentos sociais e coletivos, partidos políticos e outros espaços que congreguem do mesmo ethos daquele grupo. Vale ressaltar que um projeto ético-político deve respeitar a pluralidade dentro daquele coletivo, não podendo tornar-se um mecanismo de coerção, repressão ou exclusão daqueles que não compartilham de seus ideais. 6 Ele deve ser um projeto coletivo, que represente a maioria da categoria, e por isso dizemos que um projeto precisa ser HEGEMÔNICO, mas jamais será homogêneo. TEMA 3 – DEONTOLOGIA E TELEOLOGIA DO PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL Vamos agora trazer a questão do projeto ético-político, debatendo-o dentro do Serviço Social, nos aproximando agora do caráter teleológico e deontológico deste projeto da coletividade dos assistentes sociais. Já ficou evidente até aqui que a ética profissional não se expressa apenas no Código de Ética, assim como, o projeto ético-político não se reduz apenas às normas e leis, em que pese elas o componham. Conforme afirma Silva (2012, p. 36) “o projeto ético-político profissional expõe como o Serviço Social se define na especialização do trabalho coletivo.” Justamente por ser um projeto no campo das ideais, Netto (2006) alerta que ele não é estanque e está sempre sendo aprimorado, podendo ser revisto e revisitado a qualquer tempo, o que dá a ele um caráter dinâmico e flexível. Desta feita, Netto (2006) assevera que o projeto ético-político do Serviço Social é dotado de duas dimensões da ética. A dimensão teleológica, que é o projeto em si, que se refere à intencionalidade da profissão, pautada pelos valores que a orientam e a dimensão deontológica, que é dada pelo Código de Ética e demais normativas, que veremos em conteúdos próximos. A deontologia se refere ao conjunto das regras e deveres formais que orientam uma profissão. Neste caso, a teleologia implica diretamente a deontologia, pois como veremos, os princípios que norteiam o projeto ético-político do Serviço Social determinam e estão abertamente expressos nas normativas da profissão de assistente social. Do ponto de vista da teleologia do projeto ético-político do Serviço Social, é consenso, conforme afirma Cardoso (2013), que ele se pauta na apreensão do materialismo-histórico, trazido pela teoria social de Karl Marx e seus intérpretes, estando o modo de ser da profissão vinculado aos valores do ethos socialista ou revolucionário, como veremos no próximo tema. Ademais, o projeto dos assistentes sociais também direciona para o uso da matriz marxista como arcabouço teórico metodológico, usando de suas categorias para compreender a realidade na qual se atua, em especial: práxis, mediação, contradição, luta de classes e dialética. Estas categorias serão estudadas pelos alunos nas 7 disciplinas específicas de fundamentos teórico-metodológicos e por isso não nos ateremos a elas. Isto posto, com base no arcabouço teórico citado acima, o projeto ético- político, segundo Cardoso (2013, p. 209) traz como marca orientadora do trabalho do assistente social: [...] a busca pela coletivização das demandas, a compreensão do indivíduo no contexto da realidade em que está inserido, a vinculação aos espaços de discussão e deliberação das políticas sociais, a efetivação do acesso a direitos sociais, o constante aprimoramento profissional, a realizações de ações refletidas e planejadas buscando prevenir o praticismo e o pragmatismo [...]. Ainda sobre a teleologia do projeto ético-ético político do Serviço Social, importa ressaltar que nele está claro o alinhamento da categoria com um projeto societário emancipador, de aproximação do ser social à sua dimensão humano genérica, opondo-se ao projeto vigente e aos valores que o orientam. Neste sentido, os assistentes sociais, em que pese não sejam os agentes da revolução no aspecto macrossocial, devem direcionar sua ação no caminho de assegurar direitos e garantir da forma como couber, ainda que em aspectos microssociais, alguma emancipação aos sujeitos alvo de seu trabalho. Veremos mais sobre isto em nosso próximo tema. No que se refere ao aspecto deontológico, Silva (2012) afirma que apesar de o projeto ético-político do Serviço Social não estar expresso em um único documento escrito, seus princípios éticos e políticos estão postos em normativas que orientam e regulamentam o exercício da profissão e a formação dos novos profissionais do Serviço Social. O conjunto destes documentos, segundo a mesma autora, é composto pela Lei de Regulamentação da Profissão, pelo Código de Ética dos/as Assistentes Sociais e pelas Diretrizes Curriculares estabelecidas pela Associação Brasileira de Pesquisa e Ensino em Serviço Social – ABEPSS, os quais não possuem hierarquia entre si e fluem de forma simultânea na profissão. O Código de Ética, como veremos em conteúdos próximos, traz o caráter deontológico da profissão em si, com regras, normas e penalidades para os profissionais que as infringir; mais do que isso, o Código também traz explícitos os princípios que norteiam a ação dos profissionais, que traduzem o ethos da profissão nos dias atuais. A Lei de Regulamentação da profissão delimita a função da profissão na divisão social e técnica do trabalho, suas competências e atribuições privativas, todas pautadas também nos mesmos princípios. Por fim, 8 temos as Diretrizes Curriculares, as quais são fundamentais para a consolidação do projeto ético-político, vez que é nela que estão definidas as matrizes de disciplinas e conteúdos mínimos para a formação de novos assistentes sociais, sinalizando desde o início da formação a direção para a qual a profissão segue, do ponto de vista ético-político e teórico-metodológico. Netto (2006) e Silva (2012) pontuam, inclusive, que a revisãodas Diretrizes Curriculares da graduação em Serviço Social foi fundamental, nas décadas de 1980, 1990 e início dos anos 2000, para romper de vez com a visão fragmentada e conservadora que imperava na profissão até a consolidação do Movimento de Reconceituação, fazendo crescer o número de jovens profissionais alinhados a esse novo ethos do Serviço Social. Neste mesmo sentido, Netto (2006) amplia o debate, ponderando ainda que o projeto ético-político possui diversas esferas, simultâneas, voltadas a aspectos diferentes, mas que se interligam. A primeira esfera é a da produção do conhecimento, na qual ocorre a sistematização das modalidades práticas da profissão e se apresentam os processos reflexivos do fazer profissional por meio da pesquisa e da publicação de materiais técnico-científicos na área. A segunda esfera é a político-organizativa da profissão, que engloba a criação e fortalecimento de fóruns de deliberação e entidades representativas da categoria, como o conjunto CFESS/CRESS, ABEPSS e as demais associações político-profissionais, além do movimento estudantil, representado pelo conjunto dos Centros ou Diretórios Acadêmicos e pela Executiva Nacional dos Estudantes de Serviço Social; é nestas instâncias que são tecidos os traços gerais do projeto e são reafirmados (ou não) determinados compromissos e princípios. A terceira esfera abordada pelo autor é a jurídico-política, que traz os códigos e normas já citados anteriormente, mas também todas as leis da sociedade em geral, com as quais o trabalho do assistente social faz interface direta ou indireta, tais como a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, as Leis Orgânicas da Saúde e da Assistência Social, dentre várias outras. Veremos no item a seguir quais são os valores nucleares do projeto ético-político do Serviço social. 9 TEMA 4 – VALORES NUCLEARES DO PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL O projeto ético-político possui um núcleo central que expressa os valores e a moral da profissão e dele derivam princípios que vão orientar o fazer profissional. Insta salientar que conforme afirma Cardoso (2013), neste projeto, que teve seu início de construção nos anos de 1980 e foi consolidado a partir dos anos 1990, assume-se que a matéria-prima do trabalho do assistente social é a questão social e as contradições inerentes a ela, especialmente aquela advinda da relação entre capital X trabalho. De saída, a profissão posiciona-se em favor da classe trabalhadora, no sentido de que atuará de forma solidária a luta desta classe por emancipação e para a garantia de seus direitos fundamentais. Feito tal esclarecimento inicial, seguimos com Netto (2006) que apregoa que o núcleo deste projeto é o reconhecimento da LIBERDADE como valor central da profissão e que isto vai dar o direcionamento aos demais valores. A liberdade defendida em nada tem a ver com o conceito liberal, que defende a liberdade individual e o direito à propriedade, mas a liberdade no sentido da emancipação dos sujeitos sociais, que somente se concretizará, como já afirmamos anteriormente, quando o homem deixar de trabalhar de forma alienada e quando sua força de trabalho deixar de ser mercadoria, permitindo a ruptura com o processo de reificação que coisifica o homem. Seremos livres apenas quando pudermos atingir a nossa capacidade criativa por meio do trabalho e daí decorrem outros processos que gerarão maior grau de verdadeira autonomia, pois deixaremos de sofrer a todo o tempo as determinações do capital e seremos livres para escolher entre alternativas concretas. Neste mesmo sentido, Cardoso (2013, p. 205) explica que esta liberdade implica a “possibilidade de superação da condição de opressão e dominação presente na sociedade de classes diante do trabalho alienado que alija o homem de suas potencialidades enquanto ser social.” Seguindo com Netto (2006) o segundo componente do núcleo central do projeto ético-político do Serviço Social é a vinculação com um novo projeto societário, “que propõe a construção de uma nova ordem social” (p. 15), na qual não haja domínio ou subjugação de um homem por outro, o que denota também o compromisso dos assistentes sociais com os direitos humanos. Neste sentido, 10 o mesmo Netto (2012) afirma que a profissão sinaliza para um processo de transformação social, explicitando que este termo seria a expressão atualizada para o termo revolução, preconizada por Marx em suas obras. No bojo deste componente político do projeto, Netto (2006, p. 16) esclarece: [...] ele se posiciona a favor da equidade e da justiça social, na perspectiva da universalização do acesso a bens e a serviços relativos às políticas e programas sociais; a ampliação e a consolidação da cidadania são explicitamente postas como garantia dos direitos civis, políticos e sociais das classes trabalhadoras. Correspondentemente, o projeto se declara radicalmente democrático – considerada a democratização como socialização da participação política e socialização da riqueza socialmente produzida. Do ponto de vista da formação acadêmica e da qualificação do profissional, o projeto ético-político impõe um compromisso com um constante aperfeiçoamento das matrizes curriculares, da especialização dos assistentes sociais para aprimorar o trabalho, assim como, instiga a categoria à produção de conhecimento por meio da pesquisa visando a dar maiores subsídios a ação e dar visibilidade às práticas do Serviço Social. Netto (2006) assegura que o projeto não deixa de fora a relação dos assistentes sociais com os usuários de seus serviços, trazendo em seu núcleo o compromisso com a oferta de serviços de qualidade à população e a publicização dos recursos institucionais, bem como o constante incentivo e à participação dos usuários nas decisões institucionais e nos espaços de decisão política. O mesmo autor explicita ainda que o projeto ético-político apregoa que os assistentes sociais se articulem com outras categorias profissionais que partilhem de propostas similares e com os movimentos que se solidarizam com a luta geral dos trabalhadores. TEMA 5 – O SERVIÇO SOCIAL COMO PROFISSÃO LIBERAL O Serviço Social é uma profissão inscrita na divisão social e técnica do trabalho. Esta divisão, segundo Cardoso (2013) é social porque estabelece para cada profissão um papel no cumprimento das necessidades dos sujeitos sociais, e é técnica porque existem as diversas especialidades, com necessidades de conhecimento diferentes e que operam no campo material ou no intelectual. Dentro desta divisão sociotécnica, o assistente social se enquadra no campo das profissões liberais, no rol daquelas que trabalham com os elementos da vida, tendo como resultado de seu trabalho “produtos” de natureza imaterial. Hardt e Negri (2005) explicam que existem duas modalidades de trabalho: o material e 11 o imaterial, sendo o segundo aquele que gera produtos imateriais, como a informação, o conhecimento, ideias, imagens, relacionamentos e afetos. Sônia Mansano (2009, não paginado) complementa, afirmando que dentre os trabalhos imateriais, existe o trabalho imaterial-afetivo: O desenvolvimento recente das sociedades capitalistas, particularmente acelerado nas últimas décadas pela produção tecnológica e informacional, colocou em destaque a emergência de todo um conjunto de categorias de trabalhadores cuja produção não pode mais ser caracterizada como exclusivamente material. [...] Trata- se de trabalhos que envolvem outras dimensões da atividade humana, particularmente aquelas voltadas para a educação, a cultura, a geração de conhecimento, a saúde, o afeto e a sociabilidade. A emergência de novas categorias profissionais, cujo centro não se encontra na produção material, afirma-se até os dias de hoje, fazendo surgir novos modos de subjetivação entre os trabalhadores e,acreditamos também, novas relações com o próprio trabalho. (MANSANO, 2009, não paginado). Por um outro viés, Braz e Teixeira (2009, apud CARODOSO, 2013), existem duas modalidades de práxis profissionais, sendo uma voltada à transformação e exploração da natureza e a outra, na qual se inscreve o Serviço Social, voltada a influenciar no comportamento e na ação dos homens, distinguindo que no primeiro caso, os trabalhadores atuam na relação homem- natureza e no segundo, na relação homem-homem, inseridas nos processos de produção e reprodução da vida social. Grande parte das profissões que se inscrevem no campo do trabalho imaterial e que têm como campo de atuação os processos de produção e reprodução da vida social que estão inscritos dentro da divisão do trabalho como profissões liberais. Este termo liberal nada tem a ver com o liberalismo (defesa das liberdades individuais) e tampouco com a ideia de profissional autônomo, como ouve-se no senso comum. Estas profissões levam esta designação porque os profissionais são livres para escolher os instrumentos que utilizará para atingir a finalidade do seu trabalho (SIMÕES, 2012). Por lidar com elementos tão caros referentes à vida dos sujeitos, estas profissões são instrumentalizadas de saberes teórico-metodológicos, técnico-operativos e ético-políticos e possuem LIBERDADE para escolher os caminhos para a realização de seu trabalho. Portanto, o termo liberal, refere-se à autonomia para a escolha das formas de seu fazer profissional. Embora sejam em sua grande maioria trabalhadores assalariados, inseridos no mundo formal do trabalho, o empregador poderá indicar a demanda, a finalidade para a qual o profissional foi contratado. Porém, o profissional tem 12 total e plena autonomia para decidir os meios que utilizará para a intervenção ou estudo/avaliação da realidade posta. Isto posto, versa Simões (2012) que os profissionais liberais não estão subordinados tecnicamente a ninguém e possuem ampla margem de decisão. Em tendo esta autonomia para decidir os meios pelo qual realizará o seu trabalho, é necessário que sejam impostos limites a atuação profissional, vez que o profissional é livre para o exercício da sua atividade, mas precisa respeitar determinados regras que balizem as suas relações com os usuários dos seus serviços, com seus empregadores, com outros profissionais e com a sociedade em geral, e ser responsabilizado caso viole tais regras, assim como, que se tenha estabelecido formas de fiscalização do exercício da profissão e responsabilidade de quem ela será. É neste sentido que Paiva e Sales (2012, p. 213) pontuam a necessidade de que profissões liberais, como a de assistente social, tenham códigos de ética: Mesmo considerando a autonomia do processo de trabalho, característica das profissões liberais como o Serviço Social, é justamente essa peculiaridade que exige a codificação moral de seu exercício, de maneira a garantir um controle, pela sociedade, da qualidade e probidade dessas práticas. Impõe-se então, a necessidade de constituir limites e parâmetros, traduzidos em normas uniformizadas das condutas profissionais, como contratendências à competitividade profissional instigada pelo mercado capitalista. Neste mesmo sentido, Simões (2012) afirma que na sociedade capitalista, permeada pelo ethos burguês que citamos anteriormente, imprime um mundo do trabalho competitivo, individualista, no qual muitos profissionais buscam por prestígio ou status profissional, o que pode os levar a atitudes desleais, à privatização de informações e meios de trabalho, perdendo-se de vista os motivos humanísticos que as profissões devem ter, especialmente o Serviço Social, dotado de compromisso com a emancipação humana e com a classe trabalhadora. Estes motivos também reforçam a necessidade da existência de códigos de ética e normativas que balizem a práxis profissional. Outro motivo para a necessidade da existência de códigos de ética, pensando que estes definem direitos e deveres, é resguardar o profissional liberal dos desmandos de seu empregador, o qual não poderá sujeitar o trabalhador a uma atuação que venha a ferir os valores e princípios da profissão. A exemplo, o Código de Ética dos/as Assistentes Sociais de 1993, traz em seu bojo a autonomia do profissional como algo essencial ao trabalho: 13 Art. 2º Constituem direitos do/a assistente social: [...] h- ampla autonomia no exercício da profissão, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais incompatíveis com as suas atribuições, cargos ou funções; É em razão desta autonomia que eclode a necessidade de que haja limites que sinalizem para o profissional qual caminho seguir quando este colocar-se em contradição entre o seu querer e o seu dever: A ética [...] indaga e norteia sobre as condições objetivas no espaço de trabalho que favorecem ou limitam a concretização dos compromissos coletivos. Nesse momento, a ética argui sobre os meios, e, principalmente, contribui para sua melhor definição frente aos objetivos profissionais. [...] os sujeitos profissionais são, assim, mobilizados e pressionados eticamente, pois compete a eles realizar escolhas entre alternativas [...] donde coloca-se a tensão entre autonomia e o dever. Esta tensão remete ao que eu, enquanto assistente social, posso e quero fazer [...] e por outro lado, àquilo que devo fazer como algo paramentado coletivamente pelo projeto ético-político da categoria. (PAIVA e SALLES, 2012, p. 215) Assim, apesar de a ética profissional não se restringir ao Código de Ética, este é uma das expressões dela, desempenhando papel fundamental de caráter normativo e diretivo, bem como: [...] com mais importância, formativo, no sentido de, ao ser expressão de uma reflexão ética que inclui as duas outras esferas – a filosófico- valorativa e a moral-prática -, propiciar aos profissionais imersos no cotidiano do trabalho profissional novos parâmetros que deem base as suas escolhas diante de ações morais a partir da reflexão crítica desse cotidiano, como sabemos tão saturado de imediaticidade e urgência, conduzindo-os a ações éticas. (CARDOSO, 2012, p. 91) Já deixamos claro aqui também que o Código de Ética, apesar de ser um instrumento deontológico, traz em seu bojo os valores da profissão, traduzidos na forma de princípios orientadores da ação, os quais, no caso do Serviço Social, estão intrinsecamente ligados aos valores nucleares do projeto ético-político da profissão, expressando o ethos dos assistentes sociais brasileiros num determinando contexto histórico, ou seja, o Código de Ética traduz não apenas o dever ser da profissão, mas especialmente, o modo de ser desta perante a sociedade. Sobre os princípios que fundamentam o Código de Ética dos/as Assistentes Sociais vigência, falaremos mais adiante. 14 NA PRÁTICA Considerando os fundamentos do projeto ético-político da profissão de assistente social apresentados nesta aula, analise o caso abaixo e reflita sobre qual seria sua postura e escolha diante da situação posta: Após receber incentivos fiscais da Prefeitura de um município de grande porte, uma empresa multinacional instalou-se na cidade. Inicialmente, a população local compactuou com a ideia, pois havia a promessa da criação de mais de dois mil postos de trabalho na unidade. Tratava-se de uma empresa produtora de insumos agrícolas, tendo como atividade principal a produção de agrotóxicos. O terreno doado pela prefeitura para a instalação da indústria ficava numa área residencial, próxima a mananciais e áreas de preservação ambiental. Após o início das atividades, verificou-se que os melhores postos de trabalho, dentre eles os cargos que exigiam maior qualificação e que, por consequência, eram os mais bem remunerados, foram ocupados por profissionais de fora da cidade e até mesmo estrangeiros. Paraa população local restaram as vagas na área de produção, com os menores salários e condições precarizadas de trabalho. Outra constatação que fez gerar a antipatia da população local com a empresa, foi o fato de esta indústria estar realizando o seu esgotamento sanitário de forma irregular, liberando restos de materiais e produtos altamente tóxicos nas proximidades, contaminando o solo e o leito dos rios e mananciais da região, afetando diretamente a população residente no entorno da empresa. Uma grande mobilização popular foi iniciada na cidade pedindo a saída desta indústria do município e cobrando posições mais firmes das autoridades, em especial as responsáveis pelas fiscalizações de meio ambiente. Em meio a este contexto, esta indústria publicou um anúncio de jornal ofertando uma vaga para assistente social, com um salário bastante atrativo para o mercado da região, com a adição de benefícios como plano de saúde privado para o trabalhador e seus dependentes, vale-refeição, participação anual nos lucros da empresa, dentre outros. Na cidade, há duas universidades com o curso de Serviço Social, as quais disponibilizam ao mundo do trabalho cerca de cento e cinquenta profissionais por ano, tornando as oportunidades de trabalho na região insuficientes para a demanda de trabalhadores da área. 15 Uma assistente social graduada há dois anos e que não conseguiu neste período se colocar no mercado de trabalho na sua área de formação, casada e com um filho ainda criança, foi a selecionada para a vaga. Apesar da inexperiência, ela falava fluentemente inglês e se expressava muito bem oralmente e na forma escrita, o que a habilitou para a vaga. Seus familiares ficaram felizes com a oportunidade conseguida, pois o alto salário e os benefícios melhorariam significativamente as condições de vida da família. Porém, algumas colegas de faculdade desta assistente social disseram a ela que não deveria aceitar a vaga, que ela estava “vendendo-se” aos interesses do grande capital e acusaram-na de estar “traindo” os princípios da profissão. Aflita com a pressão da família, de um lado, e das colegas de profissão, do outro, ela afundou-se em dúvidas, alegando estar entre “a razão” e “o coração”. Ela tinha apenas vinte e quatro horas para dar o retorno à empresa com o aceite da vaga. O que você faria no lugar desta assistente social? FINALIZANDO Nesta aula, vimos sobre o que são projetos, projetos societários, projetos profissionais e projetos ético-políticos, abordando o fato de que os dois últimos são projetos coletivos vinculados a microestruturas e grupos específicos, mas vinculam-se diretamente a um projeto societário, seja de conservação ou de ruptura com o modo de produção e com a forma de funcionamento da sociedade vigente. Apresentou-se que o projeto ético-político de uma profissão expressa uma autoimagem da categoria, fazendo parte desta imagem o ethos da profissão e o dever ser desta, de acordo com os valores que sustentam tal modo de ser do grupo. Destacou-se que o projeto ético-político não existe na forma de um documento formal escrito como muitos pensam, mas ele parte do campo dos saber construído historicamente no trabalho dos assistentes sociais, e a partir disto, forma um conjunto de valores e posições políticas frente ao mundo, os quais direcionarão a ação/práxis profissional. Neste sentido, apontou-se que o Serviço Social atua nas demandas inerentes à contradição entre capital x trabalho, posicionando-se em favor da classe trabalhadora, com vistas a assegurar a eles o aceso aos seus direitos fundamentais com vistas à emancipação. No ápice desta aula, foram apresentados os principais valores que norteiam o projeto ético-político do Serviço Social, sendo a liberdade o principal 16 deles, assim como, o compromisso com a construção de uma nova ordem societária mais justa e democrática do ponto de vista da distribuição da riqueza. A implementação deste projeto não é um processo fácil e se faz no dia a dia da profissão; apresentaremos em nossa videoaula os principais desafios postos na atualidade para a sua consolidação. 17 REFERÊNCIAS CARDOSO, P. Ética e projetos profissionais: os diferentes caminhos do serviço social no Brasil. Campinas/SP: Papel Social, 2013. CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Resolução CFESS n. 273 de 13 de março de 1993.Institui o Código de Ética Profissional do/a assistente social e dá outras providências. Disponível em <http://www.cfess.org.br/arquivos/CEP_CFESS-SITE.pdf>. Acesso em: 10 maio. 2021. FORTI, V. Ética, crime e loucura: reflexões sobre a dimensão ética do trabalho profissional. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. HARDT, M; NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001. _____. Multidão: guerra e democracia na era do império. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005. LAGIOTO, N. Autonomia profissional versus trabalho assalariado: exercício profissional do assistente social. Revista Conexão Geraes. Belo Horizonte, n. 3, segundo semestre 2013, p. 37-42. MANSANO, SO trabalho imaterial afetivo na área da saúde. Revista Perspectivas em Psicologia. Uberlândia, v. 11, Maio 2014, p. 86-92. _____. Transformações da subjetividade no exercício do trabalho imaterial. Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia. 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A materialização do projeto ético-político do Serviço Social: um convite à reflexão sobre o projeto ético-político do Serviço Social. Campinas: Papel Social, 2012.
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