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HISTÓRIA DA ARQUITETURA E URBANISMO VI (PÓS- MODERNISMO E CONTEMPORANEIDADE) Mathias Pereira Sant Anna A crítica ao Modernismo no Brasil Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Descrever o contexto histórico da arquitetura moderna no Brasil. Reconhecer as críticas à arquitetura moderna no mundo e no Brasil, a partir da década de 1960. Explicar como a crítica à arquitetura moderna influenciou a busca de uma nova linguagem arquitetônica. Introdução A partir da visita de Le Corbusier ao país, considerada por muitos como a inauguração do movimento moderno, os arquitetos brasileiros passaram a desenvolver a sua própria linguagem. Esse período é considerado um momento de grande projeção internacional da arquitetura brasileira, com mestres como Oscar Niemeyer, Lúcio Costa, Affonso Reidy e João Batista Vilanova Artigas. À medida que esses arquitetos passaram a re- ceber reconhecimento por suas obras e o movimento se consolidou, também começaram a surgir críticas e questionamentos, principalmente no cenário internacional, a partir do trabalho de arquitetos como Robert Venturi, Philip Johnson e Aldo Rossi. Estes passaram a criticar, informar e modificar os rumos da arquitetura nacional e internacional. Neste capítulo, você vai aprender sobre a evolução do movimento moderno no Brasil, bem como as suas influências, críticas e desdobra- mentos. Além disso, vai estudar as principais vertentes críticas a esse movimento e de que forma elas levaram à busca por um novo modo de fazer arquitetura. Breve história do movimento moderno no Brasil A década de 1930 representa um período de grande transformação no país. A partir da Semana de Arte Moderna de 1922 e do Estado Novo de Getúlio Vargas, o Brasil começou a buscar uma identidade própria, livre dos ideais europeus que há muitos anos vinham sendo importados e infl uenciavam a produção cultural local. Coincidiu também com esse período a disse- minação de inovações técnicas como o uso do aço e do concreto armado, que possibilitaram uma nova forma de pensar e de produzir arquitetura (BRUAND, 1981). Durante esse período, surgiram na Europa diversos arquitetos que, valendo- -se dessas inovações, deram início ao chamado movimento moderno. Entre os profissionais da primeira geração moderna, figuram importantes nomes, como Mies van der Rohe, Walter Gropius, Frank Lloyd Wright e Le Corbusier — este último foi provavelmente a maior influência do movimento no Brasil. O sistema Beaux-Arts, ainda vigente no Brasil nas primeiras décadas do século XX, já apresentava sinais de esgotamento, e os arquitetos locais buscavam a superação desse modelo considerado antiquado. Nesse contexto, ocorreu a primeira visita de Le Corbusier ao país, em 1929, para participar de conferências em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde disseminou as suas ideias entre estudantes e profissionais. Na sua segunda visita, em 1936, colaborou com a equipe de arquitetos que projetou uma das primeiras e mais importantes obras modernas no país: a sede do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro (Figura 1). Essa equipe contava ainda com nomes como Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, entre outros. A clara influência do mestre suíço nessa obra está evidenciada no projeto por meio da linguagem desenvolvida por ele com os seus cinco pontos da arquitetura moderna: pilotis, terraço-jardim, planta livre, janela em fita e fachada livre. Entretanto, é importante destacar que, ao mesmo tempo em que o projeto faz referência à arquitetura de Le Corbusier, ele também já apresenta características e sensibilidades próprias do movimento moderno no Brasil, como a sua preocupação com a implantação e o respeito ao entorno (MONTANER, 2011). A tendência para a intensidade do prisma puro e autônomo, para a regularida- de, ortogonalidade e frontalidade na arquitetura maquinista de Le Corbusier é corrigida no Ministério [...] pela dispersão e o contraste de volumes, pelo caráter poroso, expansivo e transparente dos edifícios, pela posição lateral de entradas que induzem ao movimento. [...] Tudo isso em busca de uma maior expressividade e caráter (MONTANER, 2011, p. 26). A crítica ao Modernismo no Brasil2 Figura 1. Ministério da Educação e Saúde (1936), no Rio de Janeiro. Fonte: CAU/BR (2018, documento on-line). A Escola Carioca A partir das visitas de Le Corbusier, a arquitetura moderna nacional começou a seguir o seu próprio rumo. Assim, passou a assumir os seus próprios riscos e, de certa forma, uma posição crítica, adaptando as ideias modernas ao con- texto brasileiro. Por exemplo, é possível perceber que, ao projetar o conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte, encomendado pelo então prefeito Juscelino Kubitschek, Niemeyer começou a acentuar a vocação escultórica e criativa da sua obra. Isso fi ca visível no projeto da Igreja São Francisco de Assis, a partir do uso plástico do concreto nas suas curvas assimétricas, assim como na preocupação do arquiteto em considerar a paisagem no projeto para a Casa de Baile. Ao mesmo tempo, em ambas as obras ele também lança mão das formas simples e puras defendidas por Le Corbusier (MONTANER, 2011). Em 1943, foi realizada uma exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York, intitulada Brazil Builds, na qual foram expostas obras da produção arquitetônica moderna brasileira. No ano seguinte, em relação a essa exposição, Andrade (2003, p. 175) escreveu: “[...] a primeira escola, o que se pode chamar legitimamente de ‘escola’ de arquitetura moderna 3A crítica ao Modernismo no Brasil no Brasil, foi a do Rio, com Lúcio Costa à frente, e ainda inigualada até hoje [...]”. O termo “Escola Carioca” passou a denominar essa primeira fase da arquitetura moderna brasileira, produzida principalmente entre os anos 1930 e 1950, por arquitetos radicados no Rio de Janeiro, como Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e Affonso Reidy. Além da sede do Ministério da Educação e Saúde e do Conjunto Arqui- tetônico da Pampulha, outras obras de importância significativa atribuídas a essa fase são o Grande Hotel de Ouro Preto (1938) e o Pavilhão do Brasil na Feira Internacional de Nova York (1939), projetados por Niemeyer; o Conjunto Habitacional do Pedregulho (1950) e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1954), projetados por Reidy; o edifício sede da Associação Brasileira de Imprensa (1936), projetado pelos irmãos Roberto; e o Plano Piloto de Brasília (1957), de Lúcio Costa. Este último, embora situado em um momento em que começavam a despontar diferentes rumos para a ar- quitetura moderna, ainda é considerado uma obra pertencente a esse grupo (BRUAND, 1981). Brutalismo e a Escola Paulista À outra parte da produção arquitetônica do país, produzida originalmente por um grupo de arquitetos radicados em São Paulo, atribui-se o nome de Escola Paulista. O grupo foi liderado pelo arquiteto-engenheiro paranaense João Batista Vilanova Artigas, que defendia que a arquitetura brasileira só podia se desenvolver respondendo a problemas brasileiros, sobretudo a questões sociais, como o atraso e a pobreza da população. Artigas era crítico da Escola Carioca e da infl uência de Le Corbusier, defendendo que esta deixava a arquitetura do país dependente de uma visão estrangeira. A partir de projetos realizados no final da década de 1950, passaram a distinguir-se as linhas da escola: uso do concreto aparente, emprego de grandes vãos, uso de rampas, horizontalidade, continuidade espacial e um sentido de predominância de soluções técnicas em relação às soluções estéticas. O edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Uni- versidade de São Paulo (FAU/USP), em 1961, projetado em conjunto com Carlos Cascaldi, marca o ponto alto dessa escola. Essas características revelam a intenção política do arquiteto — fundamental para a compre- ensão do movimento paulista — de que a modernização da construção civil por meio da racionalização e da industrialização doprojeto seriam soluções para a superação do subdesenvolvimento. O projeto de Artigas e Cascaldi tornou-se um paradigma do brutalismo da escola paulista por seu A crítica ao Modernismo no Brasil4 acabamento primitivo, que dependia de baixo nível de habilidade manual para a sua construção, mas altamente sofisticado por sua solução estrutural (ANDREOLI; FORTY, 2004). Além de projetar o edifício que abrigaria a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (Figura 2), Artigas também teve um papel central na organização do currículo do curso, criando espaço (tanto de forma literal quanto abstrata) para a discussão e a propagação das suas ideias (ANDREOLI; FORTY, 2004). Figura 2. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (1961), em São Paulo. Fonte: Corullon (2017, documento on-line). Paulo Mendes da Rocha é outro proeminente arquiteto associado à Escola Paulista. Formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em 1954, ele teve rápida ascensão e reconhecimento profissional. Assim, foi convidado por Artigas, em 1961, a lecionar na FAU/ USP. Mendes da Rocha é um grande defensor das soluções estruturais de grande porte, visíveis em projetos como o Ginásio do Clube Atlético Paulistano (1958), a sede social do Jóquei Clube de Goiás (1962), o Edifício Guaimbê (1964) e, mais tarde, o Museu Brasileiro da Escultura (1986). As características dessas e das demais obras do arquiteto demonstram a chamada “virada brutalista” da arquitetura, em que passam a figurar ao redor do mundo, sobretudo no domínio de edifícios públicos, projetos que fazem uso do concreto armado bruto, evidenciando a sua estrutura (ROCHA, 1999). 5A crítica ao Modernismo no Brasil Acesse o link a seguir e assista ao crítico inglês Kenneth Frampton em entrevista sobre a obra de Paulo Mendes da Rocha. https://qrgo.page.link/RazA4 Também integra essa geração a arquiteta italiana radicada no Brasil Lina Bo Bardi, em cuja obra, entre outras características, destaca-se a ênfase do discurso social no programa da sua arquitetura. Um exemplo disso é o seu projeto para o Museu de Arte de São Paulo (1958), um monumento à alta cultura, em que Bardi abriu espaço para as massas, removendo o programa do andar térreo e dividindo o museu em duas partes. Com esse movimento, a rua passou a fazer parte do museu, abrindo-se para a ocupação e a ma- nifestação da população. A admiração pela cultura popular tornou-se uma das principais influências do seu trabalho, que estabeleceu o diálogo entre o moderno e o popular. Ao mesmo tempo em que muitas dessas obras estavam sendo produzidas no Brasil, começavam a surgir arquitetos e críticos no cenário internacional dispostos a avaliar de forma crítica os sucessos e as falhas do movimento mo- derno. Grande parte das críticas tinham como seu principal alvo a arquitetura racionalista e universal defendida pelo estilo internacional, apontada como redutiva. De forma semelhante, no campo do urbanismo, foi o funcionalismo do planejamento urbano moderno que passou a ser rejeitado. As críticas ao movimento moderno Em 1928, foi fundado o Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), responsável pela organização de uma série de eventos e confe- rências internacionais com o objetivo de promover o debate e a difusão da arquitetura moderna. Na ocasião do quarto CIAM (1933), foram discutidos os princípios da “cidade funcional”, expandindo o escopo da organização ao urbanismo. Nessa ocasião, foram discutidas diretrizes e soluções para os principais problemas enfrentados pelas cidades, os quais poderiam ser resolvidos, entre outras medidas, por meio de uma estrita segregação fun- cional do espaço urbano. A crítica ao Modernismo no Brasil6 Mais tarde, em 1943, Le Corbusier editou e publicou essas diretrizes em sua Carta de Atenas. Na Carta são defendidas a separação das áreas residenciais, de trabalho e de lazer, e a distribuição da população em blocos de apartamen- tos dispersos na paisagem, espaçados em grandes intervalos. Os diferentes setores seriam conectados pela malha viária, reforçando a predominância (ou até mesmo dependência) do automóvel (MONTANER, 2011). A organização dessas conferências foi suspensa pelo período da Segunda Guerra Mundial, sendo retomada após o conflito. Foi nesse período que as CIAMs tiveram um momento de expansão e difusão de suas ideias, oferecendo propostas de reconstrução das cidades europeias afetadas pelo conflito e de desenvolvimento para as cidades norte-americanas. Nesse contexto, surgiram alguns dos paradigmáticos projetos de urbanismo moderno, como Chandigarh (1951), a nova capital do estado indiano Punjab, projetada por Le Corbusier, bem como Brasília (1957), de (JENCKS, 2006). A capital planejada do Brasil é uma ilustração perfeita da forma como essas ideias abstratas podiam gerar um plano físico. Do ar, é possível identificar facilmente as cinco funções purificadas: o domínio público ao sul; o eixo de circulação que determina a forma global; os superblocos de habitação localizados transversalmente ao eixo; o espaço recreativo, aberto, rodeando a cidade; e as áreas de trabalho localizadas ao longo das pontas (JENCKS, 2006). Com a independência da Índia do Reino Unido e a subsequente divisão do estado do Punjab entre a Índia e o Paquistão, fez-se necessária a criação de uma nova capital para a porção indiana, aproveitando a ocasião para promover a noção de uma nova Índia, modernizada, próspera e independente. Com a inesperada morte de um dos arquitetos da primeira equipe contratada para o projeto, contratou-se Le Corbusier, que se dedicou a redesenhar o projeto iniciado previamente de acordo com o seu racional, em vez de apenas completá-lo. O arqui- teto traçou o sistema viário em forma de grid por onde estaria disperso o programa habitacional. O complexo do capitólio, por sua vez, foi posicionado adjacente ao grid, usando um vocabulário distinto, com todos os diferentes edifícios fazendo uso do concreto para a realização de formas escultóricas, elementos de sombreamento e grelhas de brise-soleils fixos. Assim como Brasília e outras cidades planejadas, hoje com o triplo da população inicialmente estimada, Chandigarh enfrenta desafios de planejamento, expansão e adequação da cidade à novas necessidades. Assim, explicitam-se algumas das deficiências do urbanismo moderno (JENCKS, 2006). 7A crítica ao Modernismo no Brasil Esse modelo, no entanto, começou a se esgotar a partir do final da década de 1950. Então, em 1956, a organização do décimo CIAM, em Dubrovnik (ex-Iugoslávia, atual Croácia), passou a defender o “regresso ao lugar” como retomada do sentido mais tradicional de cidade, sem uma clara separação de funções. Essa corrente começou a se opor às noções ortodoxas estabelecidas pelo modernismo. Nesse sentido, defendia a postura de que a separação de funções, muito usada pelos planejadores urbanos modernos, acabava reprodu- zindo a segregação urbana. Ao rejeitar o racionalismo da cidade funcional de Le Corbusier, a Team X, como ficou conhecida a equipe organizadora desse evento, defendia a busca por formas mais eficientes de viabilizar a vida em sociedade, admitindo a necessidade da complexidade oferecida pelo sentido mais tradicional de cidade (MONTANER, 2011). Outro fator apontado como responsável pela crise do objeto moderno, segundo Montaner (2011), é o seu isolamento do contexto. O planejamento utópico e radical defendido pelo movimento moderno muitas vezes ignorava a relação do objeto com o seu contexto e os benefícios de estabelecer esse diálogo. A noção de uma sociedade igualitária e de identidade homogênea inspiradas pela racionalidade da máquina e da produção industrial passou a ser questionada. Esse modelo falhou em levar em consideração a natureza plural da sociedade e a necessidade do encontro, dos espaços de congregação e do reconhecimento da história como parte integrante do cotidiano. No livro Form Follows Fiasco:why Modern Architecture hasn’t worked, Blake (1978) discute as “fantasias” do movimento moderno, criticando muitas das ideias principais do Modernismo. Começando pela determinação de fun- ções específicas para cada espaço, Blake (1978) critica a postura pela sua falta de flexibilidade. “O fato de dispormos espaços programados para o desenvol- vimento de uma determinada função garante a melhoria da qualidade de vida nesses espaços e qualifica sua relação com o usuário?” (PORTOGHESI, 2002, p.48). Admite-se que a modificação do uso original entendido inicialmente para um espaço pode significar uma valorização dele. Blake (1978) também critica a valorização e o uso indiscriminado da planta livre, que se associa à arquitetura japonesa e que, por sua vez, pressupõe uma ordem fundamental baseada na desigualdade. Na sociedade japonesa, usa-se uma extensa criadagem para conservar a ordem imaculada dos espaços despro- vidos de mobília, em que “[...] qualquer elemento fora do lugar constitui uma perturbação visual insuportável [...]” (PORTOGHESI, 2002, p.49). Além disso, o office landscape (cubículos de estações de trabalho feitas com divisórias móveis), muito comum em projetos de escritórios de planta livre, tem comprovado efeitos psicológicos negativos pela ausência de privacidade no ambiente de trabalho. A crítica ao Modernismo no Brasil8 As ideias de minimalismo e pureza das formas também são comentadas nesse livro. A confiança dos arquitetos modernos na tecnologia pressupõe a capacidade da indústria de conceber materiais perfeitos: homogêneos, elásticos e resistentes, mas que em última análise não existem. Ademais, a ausência de elementos da construção tradicional, como caixilhos, beirais e pingadeiras, importantes para promover a resistência contra as intempéries, acaba por provocar a intensificada degradação dos edifícios modernos. Por fim, critica-se a noção de cidade moderna com as suas utopias urbanas e os grandes espaços vazios, como a Ville Radieuse, de Le Corbusier, e a Broadacre City, de Frank Lloyd Wright. Segundo Portoghesi (2002, p.53) “[...] o homem não deseja grandes espaços desertos, mas sim encontrar os seus semelhantes, estar entre eles, e a primeira condição para sentir-se em companhia é perceber-se num recinto [...]”. Blake (1978) critica o zonea- mento da cidade em funções porque essa ideia assume que os problemas da população podem ser resolvidos pelo transporte. Na prática, entende-se que surgem novos problemas, como o tempo e a energia gastos em deslo- camentos desnecessários entre diferentes zonas de habitação e trabalho. Isso, por sua vez, resulta no fato de que essas mesmas zonas acabem tendo usos intermitentes durante os diferentes horários do dia, ficando desertas enquanto não são utilizadas. Por fim, discutem-se alternativas aos fracassos da arquitetura moderna, promovendo diferentes medidas: o fim da política de destruição dos edifícios existentes, tenham eles ou não algum interesse histórico, pois “a política de substituição é um contrassenso num mundo que deve mobilizar todos os seus recursos para enfrentar o problema do crescimento demográfico e não pode mais encarar os problemas econômicos em termos setoriais” (PORTOGHESI, 2002, p. 55); a interrupção da construção das grandes autoestradas, símbolos do desperdício de combustível, materiais e tempo humano; a reformulação da legislação dos materiais de construção de forma a responsabilizar as empresas pelo rendimento dos seus produtos, que muitas vezes colocam em risco a solidez e a durabilidade dos edifícios, assim como a integridade dos usuários; o abandono do zoneamento monofuncional que divide a cidade e destrói o entrelaçamento entre as suas diferentes funções; o planejamento em escala humana com objetivos modestos e concretos como alternativa ao “gigantismo” totalitário dos grandes modelos. 9A crítica ao Modernismo no Brasil A evolução da arquitetura moderna A década de 1960 representou, sobretudo nos Estados Unidos, um período de adoção em grande escala do estilo internacional em projetos comerciais. A estética da racionalidade, da transparência e da austeridade de Mies van der Rohe passou a ser replicada indiscriminadamente ao redor do mundo. A rapidez e a economia das construções, a opção por materiais baratos e a subdivisão do espaço livre em planta denotam uma deturpação dos modelos originais, abrindo mão dos seus méritos. Por esses motivos, pode-se dizer que a arquitetura moderna, principalmente na expressão funcional do estilo internacional, começava gradualmente a se desgastar. Foi nesse contexto que começaram a despontar arquitetos interessados em criticar e propor novas soluções para esse modelo cada vez mais esgotado. A crítica de Venturi ao movimento moderno Em Complexidade e contradição na arquitetura, Venturi (2004) critica o dogmatismo excessivo da arquitetura moderna do pós-guerra, que repetia acriticamente as premissas corbusianas, criando um estilo de caráter reducio- nista, universal e abstrato. Venturi defende uma arquitetura que “[...] aceita os problemas e explora as incertezas [...]” e que procura “[...] riqueza de signifi cado em vez de clareza de signifi cado [...]” (VENTURI, 2004, p.1). Em outras pa- lavras, o arquiteto defende a noção de uma arquitetura comunicativa em que distintos elementos arquitetônicos têm a capacidade de expressar signifi cados e símbolos. Esses signifi cados, por sua vez, podem ser empregados de forma simultânea, assim como os espaços podem ter mais de uma função. Um dos principais alvos dos críticos dessa geração foi o estilo internacional, muito difundido na arquitetura comercial dos Estados Unidos. Arquitetos norte-americanos como Venturi, Philip Johnson e Michael Graves defendiam uma arquitetura que ia de encontro à noção de um estilo único e universal. Opondo-se a essa repetição acrítica do racionalismo, esses arquitetos buscavam recuperar elementos na história, a fim de provocar a reflexão crítica. Você pode ver essa ideia, por exemplo, no projeto de Philip Johnson para o Edifício AT&T, em Nova York (Figura 3). Essa obra utiliza elementos clássicos com a tripartição do edifício em base, fuste e entablamento, além da aplicação de um frontão interrompido no seu topo. Johnson, que no início da sua carreira havia projetado diversas obras alinhados com noções racionalistas, passou a adotar uma postura crítica, valendo-se da ironia e de referências históricas como forma de se opor ao movimento moderno. A crítica ao Modernismo no Brasil10 Figura 3. Edifício AT&T (1978), em Nova York. Fonte: Shankbone (2011, documento on-line). Os arquitetos dessa nova geração — que viriam a ser conhecidos como pós-modernos — retomaram a busca pelo efeito e pela teatralidade na arqui- tetura. Com a declaração “menos é um tédio”, opondo-se à máxima de Mies van der Rohe “menos é mais”, Venturi sugeria a retomada do interesse pela ornamentação e pela referência à história e ao local. Assim, foram readmitidas a simetria, a coluna antiga, a janela com arco. Voltava-se a estudar Vitrúvio, Palladio, Ledoux e os demais arquitetos clássicos. Surgia também a ideia da narrativa em arquitetura, que podia comunicar para arquitetos, conhecedores e o público em geral noções de ironia, citação e efeito por meio da articulação dos seus elementos. No espaço urbano, por sua vez, ocorria uma revalorização da quadra fechada por edifícios, da rua corredor e do sentido urbano da cidade pré-moderna, opondo-se às propostas modernistas “anti-urbanas” da cidade feita por edifícios isolados em meio ao verde. A evolução do movimento moderno no Brasil Diversos críticos e teóricos da arquitetura, como Kenneth Frampton, William Curtis e Josep Maria Montaner (2011) usam o critério de gerações para tratar da 11A crítica ao Modernismo no Brasil arquitetura do século XX. Segundo essa ideia, a evolução do movimento moderno se deu pelo entendimento de que haveria diferentes gerações de arquitetoscom algumas características comuns na sua produção. Assim, a “primeira geração” de arquitetos modernos começou a desenvolver a sua obra no início do século. Segundo Montaner (2011), nomes como Walter Gropius, Mies van der Rohe, Le Corbusier, Gerrit Rietveld e Hannes Meyer fazem parte dessa geração. Já a “segunda geração” é composta pelos discípulos dos mestres da primeira, que começaram a desenvolver a sua obra a partir dos anos 1930. O modernismo brasileiro surgiu nesse contexto, a partir do trabalho de ar- quitetos como Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, que pertencem a essa geração. Os demais arquitetos do movimento moderno brasileiro, como Affonso Eduardo Reidy, João Batista Vilanova Artigas, Lina Bo Bardi e Paulo Mendes da Rocha, passaram a integrar as gerações subsequentes. Segundo Montaner (2011), a principal característica dessas novas gerações é a busca de conciliação entre a continuidade e a renovação das ideias dos mestres do movimento moderno. O destacável exclusivismo do movimento maquinista foi se transformando em um modelo aberto em que o contexto, a natureza, o vernáculo, a expressividade de formas orgânicas e escultóricas, a textura dos próprios materiais, as formas tradicionais e outros fatores passam a predominar (MONTANER, 2011, p. 36). É possível notar essa evolução até mesmo na obra de alguns dos arquitetos da “primeira geração”, como em Le Corbusier, no seu projeto para a expressiva capela de Ronchamp, com suas formas curvas, a expressividade material e os valores simbólicos no seu interior. [...] falou-se da grande influência de Le Corbusier sobre a arquitetura, mas será que Ronchamp teria sido possível sem a contribuição do caráter das formas curvas das obras de Oscar Niemeyer ou do espaço ondulado das obras de Alvar Aalto, arquiteto mais jovens que Le Corbusier? Indubitavelmente não (MONTANER, 2011, p. 46). Podemos perceber, portanto, que de forma geral a arquitetura moderna bra- sileira representa uma evolução crítica das ideias propostas pelos arquitetos da primeira geração. Em seu livro A Modernidade Superada, Montaner (2001) dá o título de “o legado brasileiro” ao valor central da expressão arquitetônica na obra de alguns dos arquitetos modernos do país. Lúcio Costa, por exemplo, acreditava que a arquitetura devia seguir o espírito da época da máquina, sem se esquecer da sua pertinência ao lugar e da relação com a natureza (MONTANER, 2001). A crítica ao Modernismo no Brasil12 Ao compararmos a arquitetura da primeira fase de Le Corbusier aos projetos desenvolvidos por Costa e Niemeyer, fica claro o pensamento crítico na inten- ção dos arquitetos brasileiros em adaptar a arquitetura moderna às condições particulares históricas, culturais e regionais do Brasil. A estética da máquina introduzida por Le Corbusier tem como características os prismas puros e au- tônomos, a frontalidade, o edifício sobre pilotis, a autonomia de cada elemento, a regularidade e a ortogonalidade. Essas noções são superadas pelos brasileiros desde a inauguração do modernismo no país, com o projeto para o Ministério da Educação e Saúde, uma obra “[...] cheia de movimento e itinerários tangenciais, com vistas para a vegetação [...] elegantes e abstratas colunas, entre paredes, evocando a entrada de um templo ou palácio [...]” (MONTANER, 2001, p. 81). Isso é bastante diferente da estética industrial, demonstrando sensibilidades que mais se aproximam a uma reinterpretação da arquitetura colonial brasileira. Nesse sentido, a crítica ao movimento moderno no campo da arquitetura no Brasil se deu principalmente por meio do uso de noções presentes na tradição e no vernacular local, conectado a valores universais da arquitetura moderna ortodoxa. Em outras palavras, adaptavam-se as ideias dos mestres modernos importadas da Europa para o contexto cultural, social e regional do Brasil. Essa intenção — que, conforme apontado por autores como Mon- taner (2001) e Frampton (2003), já pode ser percebida na inauguração do modernismo brasileiro, com a obra de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer — vai se especializar e ganhar força nas gerações seguintes por meio das obras de muitos outros importantes arquitetos brasileiros, como Affonso Reidy, Lina Bo Bardi, Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha. ANDRADE, M. A. Brazil builds (1944). In: ANDRADE, M. A. 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São Paulo: Nobel, 1991. A crítica ao Modernismo no Brasil14
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