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Professora Ana Paula Quadros Gomes _ 2020-1 _ anpola@gmail.com 29 B.4- A Negação Para a semântica formal, a negação é um operador que inverte o valor de verdade da sentença. Por exemplo, numa situação em que a referência de ‘Está chovendo’ for a verdade, a referência de sua negação (‘Não está chovendo’) será necessariamente a falsidade. Quando, pelo contrário, a referência de ‘Está chovendo’ for a falsidade, a referência de sua negação (‘Não está chovendo’) será a verdade. Mas, como já vimos, o valor de verdade não informa nada sobre a direção argumentativa. Numa perspectiva como a da semântica enunciativa, a negação expressa a discordância de um dos enunciados. Portanto, devemos considerar o tema em debate e a conclusão a que o enunciador quer que seu interlocutor chegue para entender melhor essa operação. Caso 1: negação descritiva Ao sair de casa num dia muito bonito, a caminho do trabalho, João olha para o céu e comenta com o porteiro do seu prédio: (1) Não há nenhuma nuvem no céu. Quem proferiu essa sentença acabou de descobrir essa qualidade do dia. Não há qualquer debate em andamento, não houve nenhum comentário anterior que tenha apresentado um enunciado de que essa pessoa pudesse discordar. Esse tipo de negação é chamado de “negação descritiva”. Em lugar de ‘Não há nenhuma nuvem no céu’, o falante poderia ter dito ‘O céu está azul’. Caso 2: negação metalinguística Ao provar o feijão, o marido diz: (1) O feijão está salgado. Ao que a esposa retruca: (2) O feijão não está salgado. Está como sempre. Você é que está com a boca ruim. Ao enunciar (2), a esposa expressa seu desacordo com o enunciado (1). Esse tipo de negação é chamado de “negação metalinguística”. Observe-se que não é preciso que haja pessoas em carne e osso, distintas, debatendo. Num outro cenário, a cozinheira, preparando o almoço, pode desconfiar de que tenha colocado sal demais da conta, e pensar (1). Ao provar, ela pode descobrir que estava enganada, que a dosagem do sal está correta, e dizer o enunciado (2) em pensamento para expressar que sua suspeita não foi confirmada. A concepção de negação aqui é polifônica, ou seja, há várias vozes presentes em cada pedaço do discurso, e elas nem sempre concordam uma com a outra. Caso 3: negação polêmica – a negação da pressuposição Um enunciado com conteúdo pressuposto é tratado na semântica da enunciação como se desdobrando em vozes ou enunciados distintos. Por exemplo, temos dois enunciados em (1): (1) João parou de fumar. E1 = João fumava. E2 = João parou de fazer isso. Pode haver discordância tanto com o primeiro quanto com o segundo enunciado. Entretanto, essa discordância só pode ser expressa pela negação do enunciado complexo, assim: (2) João não parou de fumar. Em (2), a negação pode estar incidindo tanto sobre E2... E1 = João fumava. E2 = João não parou de fazer isso. Professora Ana Paula Quadros Gomes _ 2020-1 _ anpola@gmail.com 30 ... o que vai gerar uma negação metalinguística, quanto a negação pode incidir sobre E1... (2) João não parou de fumar. E1 = João não fumava. E2 = João parou de fazer isso. ... formando uma negação mais forte, porque, recusando E1, não é possível concordar com E2. Era perfeitamente possível aceitar E1 e recusar E2; mas o contrário não dá. A negação de E1 impede que se efetive a aceitação de E2. Essa negação do conteúdo pressuposto, mais forte, ao impedir a aceitação do outro enunciado, é chamada de “negação polêmica”. B.5 - Escalas argumentativas: Até / Nem mesmo ‘Até’ tem propriedades muito peculiares. Se alguém teve insônia e ficou acordado das 4h até às 7h, a qualquer momento dentro desse intervalo, digamos, por exemplo, às 5h40min, essa pessoa estava acordada. O que vale até às 7h vale continuamente entre 4h e 7h. Mas é possível não mencionar a hora inicial da insônia, bastando dar a hora final da insônia após ‘até’: ‘Eu fiquei acordada até às 7h’. ‘Até’ precede o nome do ponto final de trajetórias não só no tempo, mas também no espaço. Se ‘João empurrou o carro do quilômetro 37 até o quilômetro 39 da estrada’, então ele permaneceu empurrando o carro por cada fração dos 2 quilômetros compreendidos entre o ponto inicial e o final desse trajeto. Posso expressar isso nomeando apenas o ponto final do trajeto imediatamente após ‘até’: ‘João empurrou o carro até o quilômetro 39 da estrada’. A incorporação de toda a trajetória, ainda que apenas o ponto final seja mencionado sem seguida a ‘até’, ocorre também na escala argumentativa. Comparemos as duas sentenças a seguir: (i) Maria faltou à aula. (ii) Até Maria faltou à aula. A sentença (i) fala apenas sobre Maria. Ela seria verdadeira se todos os demais alunos tivessem comparecido àquela aula, e Maria fosse a única ausente. Mas (ii) é diferente: ela nos diz que todos os alunos faltaram, não apenas Maria. E ainda fica subentendido que Maria era a aluna que menos esperávamos que faltasse a aula. Como a inserção de uma palavrinha como ‘até’ na sentença pode fazer tanta diferença? Para a semântica da enunciação, ‘até’ é um operador argumentativo que introduz uma escala. Essa escala é uma ordem contínua, organizada em graus. Por exemplo, digamos que a turma de Maria seja composta por 6 pessoas: João, Pedro, Marcelo, Laura, Maria e Bianca. Até hoje, Maria nunca faltou a uma aula sequer. Por isso, ela é a aluna que o professor menos espera que falte. Maria nunca falta. Pedro é assíduo, mas já faltou certa vez. Laura falta razoavelmente. Então uma véspera de feriado seria propícia para mais uma falta. Porém, Laura vem mais à aula que Marcelo; e Marcelo é mais assíduo que Bianca. João mais falta do que vem. Com esse conhecimento, podemos ordenar os alunos conforme nossa expectativa de que faltassem na aula em questão, que é uma véspera de feriado, chegando ao seguinte arranjo: ao menos provável que falte Maria Pedro Laura Marcelo Bianca do mais provável que falte João A escala acima mostra os alunos da turma ordenados segundo o grau de expectativa de que faltassem à aula. Depois de ‘até’, temos apenas um aluno nomeado, Maria, que é aquela que menos esperamos que faltasse. Dado que mencionamos o ponto final dessa trajetória metafórica, estamos incluindo todos os demais como ausentes da aula, assim como em ‘fiquei acordado até às 7h’ entendemos que a insônia se estendeu das 4h até as 7h, e não ocupou apenas um instante. Em outras palavras, se até o que menos provavelmente faltaria faltou hoje, que dirá daqueles com maior probabilidade de faltar? Professora Ana Paula Quadros Gomes _ 2020-1 _ anpola@gmail.com 31 Outro operador argumentativo escalar é ‘nem mesmo’. Comparemos: (iii) João não faltou à aula. (iv) Nem mesmo João faltou à aula. A sentença (iii) afirma apenas que João estava presente em certo dia do curso. Pode ser que todos os outros alunos tenham faltado. De (iv), porém, entendemos que ninguém faltou: nessa aula, todos estiveram presentes. Como a presença de ‘nem mesmo’’ constrói essa negação tão abrangente? Tomando a mesma escala que construímos para as chances de os alunos da turma faltarem, constatamos que ‘nem mesmo’ precede o nome do aluno com o maior grau de probabilidade de faltar. Ao observarmos que nem ele faltou, implicamos que os alunos com menor probabilidade de faltar também compareceram. Ou seja, ‘nem mesmo’ trabalha na mesma escala de ‘até’, só que na ponta oposta. Exercícios: Crie escalas que expliquem o modo abrangente como compreendemos as seguintes sentenças: (1) Até uma criança saberia a resposta para essa pergunta! (2) Nem mesmo um gênio saberia a resposta para essa pergunta! III- Pragmática A- Implícitos e implicaturas: significado da sentença X significado da enunciação Grice defendeu que se distinguisse entre o conteúdo literal da sentença (semântica) e uma gama de inferências que os ouvintes faziam a partir do uso daquela expressão em dado contexto(pragmática). É preciso distinguir entre acarretamento e pressuposição, de um lado (que são indissociáveis da expressão linguística ou da verdade da sentença), de inferências de outro tipo: os implícitos ou implicaturas conversacionais, que são altamente dependentes do contexto de uso. Pensemos no emprego de uma sentença como A porta está aberta. Dita pela mulher ao marido, durante uma discussão, após ele ter dito que não sabe como consegue conviver com ela, significa Se é assim, vá embora da minha vida. Mas essa ideia de separação conjugal não é um significado do material linguístico da sentença. Ela não está presente, por exemplo, quando o médico, de dentro de seu consultório, a pronuncia para o paciente que aguarda do lado de fora da porta. Nessa outra situação, o enunciado é entendido como um convite para o paciente entrar no consultório. Imaginemos uma terceira cena, em que ladrões estão procurando meios de invadir uma loja inexpugnável, protegida por cadeados, travas, grades, cães bravos, muros... depois de tentar explodir a grossa parede sem sucesso, chamando a atenção da polícia, pouco antes de ser detido, um deles mexe na maçaneta da porta e diz A porta está aberta... Nesse caso, ele está expressando seu desconsolo pelo insucesso da empreitada, ao desconsiderarem processos mais fáceis de entrada. Um chefe que se despede de uma funcionária muito capaz, que decidiu parar de trabalhar para ter um filho, ao dizer A porta está aberta na despedida está comunicando que, se ela decidir voltar a trabalhar, o emprego será dado a ela de volta. Para cada nova situação de uso, teremos um novo significado, e perderemos os demais. O único significado que independe da situação é o de que estamos falando de uma porta (e não de uma mesa), um objeto que, por sua natureza, pode se apresentar aberto ou fechado; a sentença diz que está num desses estados, e não no outro; logo, alguém pode passar pela abertura, ingressando num local interno ou indo para o lado de fora dele. Os demais significados são construídos sobre esse, que é o único permanente, indissociável do material linguístico. É obvio que uma sentença como A mesa está posta não serviria para veicular os significados mencionados. Mas eles não estão sempre ligados à sentença A porta está aberta. Vamos olhar agora para entendimentos que dependem da situação de enunciação, os que variam com o contexto. B - Atos de fala Austin e Searle criticaram a semântica aristotélica. Primeiramente, houve uma distinção entre usar a linguagem para descrever o mundo e usos da linguagem em que não se pode atribuir um valor de verdade à sentença. Como estabelecer se uma sentença no subjuntivo/imperativo é falsa ou verdadeira? Por exemplo, “Saia já daqui” certamente não descreve um acontecimento no mundo. Se o ouvinte atender o falante, ele vai se retirar do recinto; mas o ouvinte pode desobedecer à ordem. Seja como for, quem usa um modo diferente do indicativo em português não descreve um fato ou acontecimento, mas dá instruções que podem ou não resultar num acontecimento futuro. Daí a proposta inicial de que Professora Ana Paula Quadros Gomes _ 2020-1 _ anpola@gmail.com 32 há duas situações gerais de uso da linguagem: uma, correspondente à visão aristotélica, descreve coisas e fatos pré- existentes no mundo (os enunciados são constativos); na outra, a linguagem é que cria novos fatos no mundo (os enunciados são performativos). Por exemplo, os dizeres “Saia já daqui” (caso sua ordem seja obedecida) causam a saída do ouvinte daquele recinto. Para ilustrar essa divisão, vamos imaginar que uma esposa, desconfiada de que seu marido a trai com outra mulher, contrata um detetive para segui-lo o tempo todo. Todos os dias, o detetive entrega à esposa um relatório pormenorizado das atividades do marido. Hoje, a esposa solicitou ao marido que fosse às compras, entregando a ele a seguinte lista, com suas anotações: De posse da lista da esquerda, o marido vai ao supermercado, pega uma cesta, e vai colocando 3 tomates maduros 1 litro de leite 6 ovos 1 kg de café 2 cebolas ali os produtos, à medida que os vai retirando das prateleiras. Nesse caso, as ações desse homem no supermercado foram claramente guiadas por um ato de linguagem, representado pela lista de compras. Antes dessa lista, não havia esses produtos nem na cesta dele nem na dispensa/ geladeira do casal. Conduzido pela lista, o marido produziu uma mudança de estado nos produtos, que, de localizados nas prateleiras da loja, passaram a estar na sua cesta, e, mais tarde, na sua casa. Conduzido pela lista, o marido também mudou a situação de abastecimento de sua casa. Temos aí, então, um ato performativo. Mas o detetive estava seguindo o marido, de uma distância segura para não ser notado, e registrando tudo o que ele fazia, para depois fazer um relatório bem minucioso para a esposa ciumenta. Assim, o detetive também entrou no supermercado, e foi tomando nota de tudo aquilo que o seu alvo de observação colocava no carrinho. A lista produzida pelo detetive, intitulada “coisas coladas no carrinho de supermercado”, está reproduzida aqui à direita. É claro que os dois documentos, a lista produzida pela esposa, com itens a comprar, e a lista produzida pelo detetive, são idênticos. Porém, no caso do detetive, ele estava descrevendo um fato que se desenrolava perante seus olhos. Trata-se, então, de um ato de linguagem constativo. A conclusão é que, em alguns casos, dizer é fazer. 3 tomates maduros 1 litro de leite 6 ovos 1 kg de café 2 cebolas Eu não perco dez quilos quando digo “agora estou perdendo 10 quilos”. Um político não convence quem o ouve a elegê-lo quando profere as palavras: “vocês devem votar em mim”. Mas um documento que diz “nomeio Fulano de Tal meu bastante procurador” torna Fulano capaz de me representar legalmente para as finalidades explicitadas. As palavras apropriadas têm de ser proferidas pela autoridade socialmente reconhecida e autorizada às pessoas que devem ouvi-la/lê-la, no lugar e momento apropriado aos rituais sociais, no suporte certo, para ter validade. Mas sim, a publicação de minha nomeação no D.O.U. muda a minha vida, pois passo de alguém que não é funcionário público, no período anterior à data de publicação, para alguém que é funcionário público, a partir da edição em que aparece minha nomeação. Chamamos a isso agir por meio de palavras, por atos de fala bem-sucedidos ou felizes. Austin: “How to Do Things with Words” – Dizer é fazer (?) Num segundo momento, a teoria dos atos de fala defende que dizer é sempre fazer. Mesmo nos atos que chamávamos de constativos, pois estamos trabalhando para convencer os outros de que essa descrição dos fatos é correta e apropriada. Nesse caso, estamos agindo para persuadir e convencer. Então, podemos dizer que estamos sempre agindo por meio de palavras. C- Independência entre força e conteúdo proposicional - Frege (1879) distinguiu entre o conteúdo de uma proposição assertiva (aquilo que é assertado), e os juízos sobre a veracidade desse conteúdo. Juízos sempre contêm pensamentos ou conceitos, e podem ser complexos. Leis da lógica podem levar a concluir um juízo a partir de outro: Asserção: se Φ então Ψ (sentença condicional) Asserção de Φ conduz à asserção de Ψ - Wittgenstein (1922): uma proposição mostra um possível estado de coisas, aquele que vale caso ela seja verdadeira. - O modo (indicativo, imperativo, interrogativo) é separado do conteúdo proposicional (STENIUS, 1967; SEARLE, 1968): só use o modo indicativo se você se compromete com a verdade do conteúdo proposicional. Paradoxo de Moore: #está chovendo, mas eu não acredito que esteja chovendo. Não é um paradoxo de conteúdo, mas de ação: usar o indicativo viola as regras do Jogo de Reportar.