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–– Eu nasci em Moçambique, de pais humil- des provim, a cor negra que eles tinham é a cor que te- nho em mim: [...] CAMPOS D’OLIVEIRA. In: APA, L.; BARBEITOS, A.; DÁSKALOS, M. A. (Orgs.). Poesia africana de língua portuguesa: antologia. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 191. (Fragmento). Como aconteceu em Angola, a formação da literatura moçambicana tem origem nas zonas urbanas, principalmente nas cidades da Beira e de Lourenço Marques (atual Maputo). Ali se concentrava uma elite intelectual que, em alguns casos muito influenciada pela cultura europeia, lutava para definir os índices da “moçambicanidade”. A poesia da “angolanidade” ganha força e influencia poetas comprome- tidos com o processo de conscientização do povo. A esperança emerge como grande tema literário: nesse momento, dor e otimismo são presenças constantes nos textos. Na década de 1970, três novos autores serão responsáveis por uma sig- nificativa mudança estética e temática na poesia angolana: David Mestre, Ruy Duarte de Carvalho e Arlindo Barbeitos. O tom panfletário é deixado de lado, em um esforço para aprimorar a forma literária e encontrar uma linguagem poética mais universal, que encontrasse novas imagens para abordar os temas políticos do passado. Como afirma Arlindo Barbeitos: “amada / minha amada / a revolução / não é um conto / e / uma borboleta / não é um elefante”. a sul do sonho a norte da esperança a minha pátria é um órfão baloiçando de muletas ao tambor das bombas a sul do sonho a norte da esperança BARBEITOS, Arlindo. In: APA, L.; BARBEITOS, A.; DÁSKALOS, M. A. (Orgs.). Poesia africana de língua portuguesa: antologia. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 82. Os anos 1980 viram surgir uma nova geração de poetas angolanos que têm como característica principal o ecletismo. Como o país que começa a su- perar as marcas da opressão colonialista e tenta curar as feridas profundas deixadas por anos de guerra civil, também a poesia angolana tenta encontrar uma nova voz, capaz de expressar a face desse novo país, pacificado, que deseja trilhar um caminho menos doloroso. Moçambique: versos à beira do Índico Entrada do Mercado Central, em Maputo, Moçambique, 7 maio 2005. 736 S eç ão e sp ec ia l R ep ro du •‹ o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C —d ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_especial1_D.indd 736 11/12/10 6:45 PM Os primeiros passos da literatura coincidem com o momento posterior à independência, em que a ex-colônia portuguesa precisava também aprender a ser uma nação autônoma. Superada a questão da língua, como vimos, com a contribuição dos moder- nistas brasileiros, era hora de os poetas ajudarem seus irmãos a refletirem sobre as verdadeiras questões africanas. A negritude é um dos temas a serem enfrentados. Observe, por exemplo, como Noémia de Sousa fala sobre o con- tato entre negros e brancos, africanos e europeus, em descoberta mútua. Descobrimento (Ao J. Mendes) Quando a tua mão macia e serena de branco se estendeu fraternalmente para mim e através Índicos de preconceito apertou com carinho meus dedos mulatos enclavinhados; quando teus olhos inchados de compreensão pousaram no mapa doloroso do meu rosto de África; quando a piroga do teu amor se fez ao mar e veio aportar ao meu peito ensanguentado e céptico; ah, quando a tua voz doce e fresca como um lanho me trouxe a bandeira branca da palavra “IRMÔ, é que eu senti, profunda como um selo em brasa verrumando a carne, a força terrível e única do nosso abraço fraterno, a inquebrável cadeia das nossas mãos enfim juntas, a indestrutível resistência da muralha erguida por nossas maravilhosas juventudes unidas. Ah, amigo, quando a tua mão certa e serena de branco procurou o desespero da minha mão sem rumo... SOUSA, Noémia de. In: APA, L.; BARBEITOS, A.; DÁSKALOS, M. A. (Orgs.). Poesia africana de língua portuguesa: antologia. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 199. Entre todas, porém, eleva-se mais alta a voz de José Craveirinha. “Profeta da identidade nacional”, como foi chamado, Craveirinha é considerado o poe- ta maior de Moçambique. Seus textos falam da negritude e do sofrimento dos presos políticos, incorporando as marcas da tradição oral. Torna-se, por- tanto, o porta-voz de um povo que buscava um intérprete para sua dor. A minha dor Dói a mesmíssima angústia nas almas dos nossos corpos perto e à distância. E o preto que gritou é a dor que se não vendeu nem na hora do sol perdido nos muros da cadeia. CRAVEIRINHA, José. In: APA, L.; BARBEITOS, A.; DÁSKALOS, M. A. (Orgs.). Poesia africana de língua portuguesa: antologia. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 203. Piroga: barco a remo, cavado a fogo em tronco de árvore. Céptico (cético): descrente. Verrumando: furando com uma verruma (broca; instrumento de aço, com ponta em espiral, para abrir furos). Em sentido figurado, perfurando a carne. Pintura em mural sobre a Revolução de 1974, em Maputo, Moçambique, 10 maio 2005. 737 A p o es ia a fr ic an a d e lín g u a p o rt u g u es a R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_especial1_C.indd 737 11/11/10 5:29:57 PM Passado o momento inicial de definição dos rumos poéticos, novos te- mas começam a ser incorporados por escritores como Carlos Cardoso, que revela, no retrato fiel da pobreza e da miséria, a face do verdadeiro herói de Moçambique. Observe. Cidade 1985Cidade 1985 De manhã quando acordo em Maputo o almoço é uma esperança. Mãe tenho fome marido tenho bicha e mil malárias me disputando a vontade. De manhã quando acordo em Maputo o jantar é uma incerteza o serviço uma militância política do outro lado do sono incompleto [...] Mas ao anoitecer quando me percorro em Maputo enfio ominosamente o cérebro numa competentíssima paciência desembainho felinamente mais uma mentira diplomática e aguardo a lucidez companheira me leia nas acácias em sangue nos jacarandás estalando sob a sola epidérmica do povo que este é ainda o eco estridente do Chai até que Botha seja farmeiro e Mandela presidente. Então, com a raiva intacta resgatada à dor danço no coração um xigubo guerreiro e clandestinamente soletro a utopia invicta. À noite quando me deito em Maputo não preciso de rezar. Já sou herói. CARDOSO, Carlos. In: APA, L.; BARBEITOS, A.; DÁSKALOS, M. A. (Orgs.). Poesia africana de língua portuguesa: antologia. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 238-239. (Fragmento). Bicha: verme, lombriga. Ominosamente: de modo abominável, execrável. Chai: descrente. Botha: Pieter Willem Botha, primeiro-ministro da África do Sul entre 1978 e 1984, durante os anos mais duros do regime segregacionista (apartheid). Presidente de Estado, com poder executivo, entre 1984 e 1989. Farmeiro: regionalismo utilizado em Moçambique para designar o trabalhador de fazenda. Mandela: líder rebelde que se insurgiu contra a política segregacionista da África do Sul e foi condenado à prisão perpétua por suas atividades políticas. Após anos de grande pressão internacional, Mandela foi libertado e chegou à presidência de seu país (1994-1999), pondo fim ao apartheid racial. Xigubo: dança de guerra, em Moçambique. Pescadores com rede no mar, em Maputo, Moçambique, 7 maio 2005. 738 S eç ão e sp ec ia l R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_especial1_C.indd 738 11/11/10 5:30:00 PM