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Literatura - Moderna Plus-787-789


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–– Eu nasci em 
Moçambique,
de pais humil-
des provim,
a cor negra que 
eles tinham
é a cor que te-
nho em mim: [...]
CAMPOS D’OLIVEIRA. In: APA, L.; BARBEITOS, 
A.; DÁSKALOS, M. A. (Orgs.). Poesia africana de língua portuguesa: antologia. Rio 
de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 191. (Fragmento).
Como aconteceu em Angola, a formação da literatura 
moçambicana tem origem nas zonas urbanas, principalmente 
nas cidades da Beira e de Lourenço Marques (atual Maputo). 
Ali se concentrava uma elite intelectual que, em alguns casos 
muito influenciada pela cultura europeia, lutava para definir 
os índices da “moçambicanidade”. 
A poesia da “angolanidade” ganha força e influencia poetas comprome-
tidos com o processo de conscientização do povo. A esperança emerge 
como grande tema literário: nesse momento, dor e otimismo são presenças 
constantes nos textos. 
Na década de 1970, três novos autores serão responsáveis por uma sig-
nificativa mudança estética e temática na poesia angolana: David Mestre, 
Ruy Duarte de Carvalho e Arlindo Barbeitos. O tom panfletário é deixado 
de lado, em um esforço para aprimorar a forma literária e encontrar uma 
linguagem poética mais universal, que encontrasse novas imagens para 
abordar os temas políticos do passado. Como afirma Arlindo Barbeitos: 
“amada / minha amada / a revolução / não é um conto / e / uma borboleta / 
não é um elefante”. 
a sul do sonho
a norte da esperança
a minha pátria
é um órfão
baloiçando de muletas
ao tambor das bombas
a sul do sonho
a norte da esperança
BARBEITOS, Arlindo. In: APA, L.; BARBEITOS, A.; DÁSKALOS, M. A. (Orgs.).
Poesia africana de língua portuguesa: antologia. 
Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 82.
Os anos 1980 viram surgir uma nova geração de poetas angolanos que 
têm como característica principal o ecletismo. Como o país que começa a su-
perar as marcas da opressão colonialista e tenta curar as feridas profundas 
deixadas por anos de guerra civil, também a poesia angolana tenta encontrar 
uma nova voz, capaz de expressar a face desse novo país, pacificado, que 
deseja trilhar um caminho menos doloroso.
Moçambique: versos à beira do Índico
 Entrada do Mercado Central, em Maputo, 
Moçambique, 7 maio 2005.
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Os primeiros passos da literatura coincidem com o momento posterior à 
independência, em que a ex-colônia portuguesa precisava também aprender 
a ser uma nação autônoma. 
Superada a questão da língua, como vimos, com a contribuição dos moder-
nistas brasileiros, era hora de os poetas ajudarem seus irmãos a refletirem 
sobre as verdadeiras questões africanas. A negritude é um dos temas a serem 
enfrentados. Observe, por exemplo, como Noémia de Sousa fala sobre o con-
tato entre negros e brancos, africanos e europeus, em descoberta mútua.
Descobrimento
(Ao J. Mendes)
Quando a tua mão macia e serena de branco
se estendeu fraternalmente para mim
e através Índicos de preconceito
apertou com carinho meus dedos mulatos enclavinhados;
quando teus olhos inchados de compreensão
pousaram no mapa doloroso do meu rosto de África;
quando a piroga do teu amor se fez ao mar
e veio aportar ao meu peito ensanguentado e céptico;
ah, quando a tua voz doce e fresca como um lanho
me trouxe a bandeira branca da palavra “IRMÔ,
é que eu senti, profunda como um selo em brasa
verrumando a carne,
a força terrível e única do nosso abraço fraterno,
a inquebrável cadeia das nossas mãos enfim juntas,
a indestrutível resistência da muralha erguida
por nossas maravilhosas juventudes unidas.
Ah, amigo, quando a tua mão certa e serena de branco
procurou o desespero da minha mão sem rumo...
SOUSA, Noémia de. In: APA, L.; BARBEITOS, A.; DÁSKALOS, M. A. (Orgs.).
Poesia africana de língua portuguesa: antologia. 
 Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 199.
Entre todas, porém, eleva-se mais alta a voz de José Craveirinha. “Profeta 
da identidade nacional”, como foi chamado, Craveirinha é considerado o poe-
ta maior de Moçambique. Seus textos falam da negritude e do sofrimento 
dos presos políticos, incorporando as marcas da tradição oral. Torna-se, por-
tanto, o porta-voz de um povo que buscava um intérprete para sua dor. 
A minha dor
Dói
a mesmíssima angústia
nas almas dos nossos corpos
perto e à distância.
E o preto que gritou
é a dor que se não vendeu
nem na hora do sol perdido
nos muros da cadeia.
CRAVEIRINHA, José. In: APA, L.; BARBEITOS, A.; DÁSKALOS, M. A. (Orgs.). 
Poesia africana de língua portuguesa: antologia. 
Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 203.
Piroga: barco a remo, cavado a 
fogo em tronco de árvore.
Céptico (cético): descrente. 
Verrumando: furando com uma 
verruma (broca; instrumento de 
aço, com ponta em espiral, para 
abrir furos). Em sentido figurado, 
perfurando a carne.
 Pintura em mural sobre a 
Revolução de 1974, em Maputo, 
Moçambique, 10 maio 2005.
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Passado o momento inicial de definição dos rumos poéticos, novos te-
mas começam a ser incorporados por escritores como Carlos Cardoso, que 
revela, no retrato fiel da pobreza e da miséria, a face do verdadeiro herói 
de Moçambique. Observe.
Cidade 1985Cidade 1985
De manhã quando acordo
em Maputo
o almoço é uma esperança.
Mãe tenho fome
marido tenho bicha
e mil malárias me disputando a vontade.
De manhã quando acordo
em Maputo
o jantar é uma incerteza
o serviço uma militância política
do outro lado do sono incompleto [...]
Mas ao anoitecer quando me percorro
em Maputo
enfio ominosamente o cérebro numa competentíssima paciência
desembainho felinamente mais uma mentira diplomática
e aguardo a lucidez companheira me leia
nas acácias em sangue
nos jacarandás estalando sob a sola epidérmica do povo
que este é ainda o eco estridente do Chai
até que Botha seja farmeiro e Mandela presidente.
Então, 
com a raiva intacta resgatada à dor
danço no coração um xigubo guerreiro
e clandestinamente soletro a utopia invicta.
À noite quando me deito
em Maputo
não preciso de rezar.
Já sou herói.
CARDOSO, Carlos. In: APA, L.; BARBEITOS, A.; DÁSKALOS, M. A. (Orgs.). 
Poesia africana de língua portuguesa: antologia. 
Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 238-239. 
(Fragmento).
Bicha: verme, lombriga.
Ominosamente: de modo 
abominável, execrável.
Chai: descrente. 
Botha: Pieter Willem Botha, 
primeiro-ministro da África do 
Sul entre 1978 e 1984, durante 
os anos mais duros do regime 
segregacionista (apartheid). 
Presidente de Estado, com poder 
executivo, entre 1984 e 1989. 
Farmeiro: regionalismo utilizado 
em Moçambique para designar o 
trabalhador de fazenda. 
Mandela: líder rebelde que 
se insurgiu contra a política 
segregacionista da África do 
Sul e foi condenado à prisão 
perpétua por suas atividades 
políticas. Após anos de grande 
pressão internacional, Mandela foi 
libertado e chegou à presidência 
de seu país (1994-1999), pondo 
fim ao apartheid racial. 
Xigubo: dança de guerra, em 
Moçambique. 
 Pescadores com rede no mar, em 
Maputo, Moçambique, 
7 maio 2005.
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