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Entre os novos poetas, que surgiram após a independência em 1975, observa- -se a tendência de abandonar a poesia fortemente coletiva para buscar uma linha mais intimista, que já reflete um novo momento de Moçambique. José Carlos Patraquim e Mia Couto são dois nomes que revelam o desejo de dar vida nova à linguagem poética. E, embora Mia Couto seja, hoje, um nome fortemente associado à prosa, seus versos já evidenciavam sua capacidade de explorar o potencial lírico da língua portuguesa. Poema mestiço escrevo mediterrâneo na serena voz do Índico sangro norte em coração do sul na praia do oriente sou areia náufraga de nenhum mundo hei de começar mais tarde por ora sou a pegada do passo por acontecer Janeiro 1985 COUTO, Mia. Raiz de orvalho e outros poemas. 2. ed. Lisboa: Caminho, 1999. p. 58. Guiné-Bissau: a fome e a miséria como complementos Quando te propus um amanhecer diferente a terra ainda fervia em lavas e os homens ainda eram bestas ferozes Quando te propus a conquista do futuro vazias eram as mãos negras como breu o silêncio da resposta [...] PROENÇA, Helder. In: APA, L.; BARBEITOS, A.; DÁSKALOS, M. A. (Orgs.). Poesia africana de língua portuguesa: antologia. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 187. (Fragmento). Por ter sido uma colônia de exploração e não de po- voamento, o desenvolvimento cultural da Guiné-Bissau ocorreu tardiamente em relação aos demais países afri- canos lusófonos. Pobreza extrema e analfabetismo são duras chagas sociais que ainda não foram superadas. Criança de vila nômade em Ilha Meio, parte do Arquipélago dos Bijagos, Guiné-Bissau, 10 abr. 1986. 739 A p o es ia a fr ic an a d e lín g u a p o rt u g u es a R ep ro du •‹ o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C —d ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_especial1_D.indd 739 11/12/10 6:46 PM No período entre 1945 e 1970, teve início a produção poética na Guiné- -Bissau. Vasco Cabral, António Baticã Ferreira e Amilcar Cabral escrevem os versos de combate tão característicos do momento inicial de denúncia da dominação portuguesa como etapa necessária para a libertação. A conquista da independência política trouxe a necessidade, como acon- teceu nas demais ex-colônias portuguesas, de refletir sobre a identidade. Tudo ainda está por ser feito e o trabalho de construção do país caberá ao povo. Canto à Guiné Guiné sou eu até depois da esperança Guiné és tu camponês de Bedanda teimosamente procurando a bianda na bolanha que só encontra água na mágoa da tua lágrima Guiné és tu criança sem tempo de ser menino Guiné és tu mulher-bideira em filas de insónia noites di kumpra pon (mafé di aos) Guiné é um grito saído de mil ais que se acolhe n calcanhar da terra adormecida Mas Guiné somos todos mesmo depois da esperança TCHEKA, Tony (António Soares Lopes). Disponível em: <http://www.didinho.org/tony_tchekapoesiaemportugues.htm>. Acesso em: 11 fev. 2010. Helder Proença, Francisco Couto de Pina, José Carlos Schwartz e Félix Sigá são alguns dos poetas que, a partir da década de 1970, escreveram sobre a identidade africana, mas também se aventuraram por outros rumos poéticos, deslocando os temas do povo-nação para o indivíduo. Aos poucos, os autores guineenses começam a explorar a riqueza cultural de um país onde muito ainda há por ser feito e escrito. Bianda: comida. Bolanha (reg. Guiné-Bissau, Cabo Verde): terreno alagado, geralmente na beira de um rio, em que se cultiva arroz. Mulher-bideira: revendedora. Kumpra pon: noites de comprar o pão. Mafé di aos: a única alimentação; conduto. 740 S eç ão e sp ec ia l R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_especial1_C.indd 740 11/11/10 5:30:04 PM O texto a seguir refere-se às questões de 1 a 4. Mamã Negra (Canto de esperança) Neste poema, o eu lírico se dirige à sua interlocutora para falar dos sofrimen- tos do povo angolano ao longo dos séculos. Tua presença, minha Mãe — drama vivo duma Raça drama de carne e sangue que a Vida escreveu com a pena de séculos. [...] Pelo teu regaço, minha Mãe Outras gentes embaladas à voz da ternura ninadas do teu leite alimentadas de bondade e poesia de música ritmo e graça... santos poetas e sábios... Outras gentes... não teus filhos, que estes nascendo alimárias semoventes, coisas várias mais são filhos da desgraça a enxada é o seu brinquedo trabalho escravo — folguedo... Pelos teus olhos, minha Mãe Vejo oceanos de dor claridades de sol posto, paisagens roxas paisagens [...] Mas vejo também (oh, se vejo...) mas vejo também que a luz roubada aos teus olhos, ora esplende demoniacamente tentadora — como a Certeza... cintilantemente firme — como a Esperança... em nós outros teus filhos, gerando, formando, anunciando — o dia da humanidade O DIA DA HUMANIDADE... CRUZ, Viriato da (angolano). In: APA, L.; BARBEITOS, A.; DÁSKALOS, M. A. (Orgs.). Poesia africana de língua portuguesa: antologia. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 56-57. (Fragmento). 1. No poema, o eu lírico se dirige a sua interlocutora por meio do vo- cativo “minha Mãe”. Considerando o contexto do poema, é possível afirmar que o eu lírico faz uso dessa expressão para se dirigir à sua própria pátria? Explique. Regaço: colo. Alimárias: animais, bestas de carga. Semoventes: que se movem por si próprios. Folguedo: brincadeira, divertimento. TEXTO PARA ANÁLISE 741 A p o es ia a fr ic an a d e lín g u a p o rt u g u es a R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_especial1_C.indd 741 11/11/10 5:30:05 PM