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2 Formulação comportamental ou diagnóstico comportamental: um passo a passo Flávia Nunes Fonseca | Lorena Bezerra Nery A busca pela compreensão do comportamento humano e de suas causas remonta ao período da Antiguidade (ver capítulo de Silva & Bravin, neste livro). Nesse contexto, verifica-se que o investimento no desenvolvimento de classificações para os transtornos mentais também é antigo, tendo como um antecedente histórico significativo a doutrina de Hipócrates (460-377 a.C.), que sugere desequilíbrios corporais como origem para a doença mental. Outro importante marco histórico foi o Tratado Médico-Filosófico sobre a Alienação Mental, de Pinel, o qual defende que são desarranjos na mente que produzem a loucura (Cavalcante & Tourinho, 1998). Segundo Dalgalarrondo (2000), na Medicina e na Psicopatologia, há diferentes critérios de normalidade e anormalidade. Como exemplos, podem-se citar: 1. Normalidade como ausência de doença: ausência de sintomas, de sinais ou de doenças. 2. Normalidade estatística: identifica norma e frequência. Baseia-se na distribuição estatística na população geral. Normal corresponde ao que se observa com mais frequência. 3. Normalidade como bem-estar: a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu saúde como completo bem-estar físico, mental e social. 55 Luiza Macedo Ferreira 4. Normalidade funcional: o fenômeno é considerado patológico a partir do momento em que é disfuncional, provoca sofrimento para o próprio indivíduo ou para seu grupo social. 5. Normalidade operacional: critério assumidamente arbitrário com finalidades pragmáticas explícitas. Define-se a priori o que é normal e o que é patológico e busca-se trabalhar operacionalmente com os referidos conceitos. De acordo com Cavalcante e Tourinho (1998), a construção de sistemas de classificação e diagnóstico encontra sua importância no seu papel de facilitador do diagnóstico clínico, bem como na orientação da intervenção de profissionais da área de saúde. Nesse contexto, os autores destacam o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM) (American Psychiatric Association [APA], 2013/2014), atualmente em sua quinta edição. O manual apresenta categorias diagnósticas derivadas do modelo médico. Observa-se que o DSM tem caráter descritivo: a partir do uso de uma linguagem clara e de critérios concisos, busca identificar sinais e sintomas, facilitando a compreensão da etiologia, do curso e da resposta ao tratamento. Tal sistema de classificação propõe-se a ser ateorético, de forma a ser operado no contexto de diferentes modelos de análise e intervenção. É possível citar diferentes funções para o uso de sistemas de classificação tais como o DSM: facilitam a comunicação entre profissionais de áreas diversas ao trazer uma terminologia padronizada; são um recurso didático e descritivo, servindo como base para a identificação de similaridades e diferenças entre pacientes psiquiátricos; além de servirem como guia para distinguir variáveis importantes a serem investigadas durante a intervenção em um Caso clínico. Contudo, observam-se limitações do sistema para os objetivos de uma intervenção analítico-comportamental (Cavalcante & Tourinho, 1998). Com o objetivo de ilustrar as limitações do uso de sistemas diagnósticos tradicionais sob a perspectiva da Análise do Comportamento, tomar-se-á como exemplo a análise de transtornos alimentares, que são caracterizados por perturbações severas no comportamento alimentar. Tanto no DSM-5 (APA, 2013/2014) quanto na Classificação de transtornos mentais e de comportamento, CID-10 (Organização Mundial da Saúde [OMS], 1993/2008), os transtornos alimentares são basicamente divididos em duas categorias: a anorexia nervosa e a bulimia nervosa. 56 A anorexia nervosa inclui fundamentalmente as seguintes características: recusa a manter o peso corporal em uma faixa normal mínima (peso corporal pelo menos 15% abaixo do esperado) e deliberada perda de peso induzida e/ou mantida pelo próprio paciente. A perda de peso pode ser autoinduzida das seguintes maneiras: por abstenção de alimentos que engordam, vômitos autoinduzidos, purgação autoinduzida, excesso de atividades físicas, autoadministração de anorexígenos e/ou diuréticos. Além disso, costuma ocorrer um transtorno endócrino generalizado, que leva à amenorreia (interrupção do ciclo menstrual), no caso das mulheres, ou à perda de interesse e potência sexuais, no caso dos homens (APA, 2013/2014; OMS, 1993/2008). Por sua vez, a bulimia nervosa é caracterizada por episódios repetidos de compulsão alimentar (consumo de grandes quantidades de alimento em curto período) seguidos de comportamentos compensatórios inadequados, tais como vômitos autoinduzidos; mau uso de laxantes, diuréticos ou outros medicamentos; jejuns ou exercícios excessivos. Portanto, a síndrome é caracterizada por episódios recorrentes de hiperfagia e uma preocupação excessiva com o controle do peso corporal, o que leva o paciente a se engajar em comportamentos que permitam reverter os efeitos engordativos da ingestão excessiva de alimentos. Tanto na anorexia nervosa quanto na bulimia nervosa, há uma perturbação na percepção da forma e do peso corporal, caracterizada pelo pavor de engordar e pela imposição de um baixo limiar de peso a si próprio. Em ambos os casos, pode haver sintomas depressivos ou compulsivos associados. A prevalência dos dois transtornos é mais frequente em pessoas jovens do sexo feminino, embora homens possam ser raramente afetados (proporção de 10 mulheres para um homem). A gravidade dos quadros característicos desses transtornos pode variar enormemente, sendo comuns complicações físicas graves, como problemas cardíacos, problemas renais e/ou gástricos, desnutrição, crises epiléticas, fraqueza muscular, tetania, grave perda de peso, infertilidade, osteoporose, entre outras (APA, 2013/2014; OMS, 1993/2008). Há também comorbidades psiquiátricas associadas à anorexia nervosa e à bulimia nervosa, como transtornos do humor, abuso de substâncias, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), transtornos da ansiedade, transtornos do controle dos impulsos, entre outras (Nascimento et al., 2006). Ao se basear na visão da Análise do Comportamento, questiona-se a utilidade das descrições apresentadas e o que elas dizem sobre as variáveis de controle dos comportamentos considerados “perturbações severas do comportamento alimentar”. Nota-se que o quadro apresentado identifica 57 determinadas topografias como características de um transtorno alimentar, porém, esse dado auxilia pouco na orientação para a intervenção do analista do comportamento, uma vez que a simples descrição de respostas não especifica as variáveis das quais essas respostas são função. Como discutido amplamente no capítulo anterior, a abordagem analítico-comportamental exige que os procedimentos de avaliação e intervenção sejam orientados por análises funcionais, as quais pressupõem uma análise individualizada de cada caso (Cavalcante & Tourinho, 1998; de-Farias, 2010; ver também o capítulo de Naves & Ávila, e o de Quinta, neste livro). Skinner (1953/2003) destaca a importância da análise funcional como um recurso que permite a identificação de relações sistemáticas entre o comportamento (variável dependente) e alterações do ambiente (variáveis independentes) com o qual o indivíduo interage. O estabelecimento de relações funcionais consistentes envolve, portanto, a especificação de relações ou de uma história de interaçõesentre o organismo e o ambiente que permitem que o comportamento atual seja explicado. Dessa maneira, descrições topográficas (i.e., baseadas na forma) não são suficientes para a realização de análises funcionais que possibilitem explicar um comportamento e intervir sobre ele (Skinner, 1974/2004). No caso dos transtornos alimentares, portanto, mais do que descrições topográficas, é fundamental buscar as variáveis de controle que estão funcionalmente relacionadas aos comportamentos que os caracterizam. Nota-se, portanto, que a análise funcional se configura como um instrumento básico de trabalho dos analistas do comportamento (Skinner, 1953/2003). O analista do comportamento busca identificar contingências atuais e inferir sobre contingências que operaram no passado a partir da observação direta ou de relatos de comportamentos (Meyer, 2001). Na perspectiva analítico-comportamental, o comportamento do indivíduo, por mais sem sentido que possa parecer, sempre tem uma função. A realização de análises funcionais permite compreender o fenômeno dos transtornos alimentares, por exemplo, a partir de conceitos como condicionamento respondente, condicionamento operante, esquemas de reforçamento, comportamento adjuntivo, discriminação de estímulos, comportamento governado por regras, entre outros. Esse tipo de análise permite tentativas de prever o controlar o comportamento, público ou privado, de modo que possam ser planejados novos padrões comportamentais, mais adaptativos (Nobre et al., 2010). 58 Luiza Macedo Ferreira Segundo Cirino (2001), para identificar os motivos pelos quais um indivíduo se comporta da forma como se comporta, é preciso investigar tanto as contingências atuais em vigor como as contingências históricas. Sugere-se que a história está diluída no comportamento atual. Dessa maneira, para que haja uma compreensão ampla de um caso, é preciso ir além de uma investigação de determinantes de comportamentos atuais específicos, mas buscar uma análise molar, isto é, uma análise que inclua aspectos ligados à história de vida e ao desenvolvimento de padrões comportamentais (Marçal, 2005). Assim sendo, na perspectiva analítico-comportamental, ainda que um comportamento seja aparentemente inadequado ou socialmente reprovado, ele tem uma função no repertório daquele que o emite e foi selecionado por suas consequências. Logo, é papel do terapeuta investigar em que contingências o comportamento se instalou e se mantém, utilizando, para isso, dados da história de vida do cliente, das contingências atuais e da relação terapêutica (Banaco, 1999; de-Farias, 2010; Delitti, 2001). No entanto, conforme Cavalcante e Tourinho (1998) salientam, é preciso considerar que não há uma padronização de sistemas diagnósticos formulados por terapeutas comportamentais. Contudo, é fato que um sistema de classificação coerente na perspectiva da Análise do Comportamento deveria ter foco na função dos comportamentos e na identificação do tipo de manipulação de variáveis mais indicada para a promoção de novas relações ambiente/indivíduo. Dessa forma, este capítulo tem como objetivo apresentar um modelo de formulação comportamental, o qual está baseado na proposta da terapia molar e de autoconhecimento (TMA), apresentada por Marçal e Dutra (2010), e na psicoterapia comportamental pragmática (PCP), sistematizada por Medeiros (2010). Costa (2011) aponta que o raciocínio clínico da TMA toma a(s) queixa(s) como ponto de partida. Busca-se identificar as contingências atuais relacionadas a ela(s) e reconhecer os padrões comportamentais do cliente, bem como a generalidade dos estímulos atuantes na história do indivíduo. No primeiro caso, a análise é molecular (ou microanálise) e, no segundo, ao abordar os padrões comportamentais, realiza-se uma análise molar (ou macroanálise). Dessa maneira, são delimitados objetivos e intervenções amplos com base nas análises realizadas. Em concordância, a PCP se caracteriza pela delimitação de comportamentos-alvo que serão focos para a intervenção, o que é feito a partir de uma visão ampla do indivíduo, por meio de análises funcionais individuais e não lineares (relações entre os diferentes comportamentos-alvo), considerando as consequências em curto e longo prazo. 59 Luiza Macedo Ferreira Luiza Macedo Ferreira Costa (2011) destaca ainda a contribuição da organização das análises sugeridas por ambas as abordagens. Na TMA, as análises envolvem a) definição de respostas específicas; b) eventos históricos que favoreceram a instalação das respostas; c) condições mantenedoras; d) quando a resposta é funcional; e) quando a resposta não é funcional. A PCP aponta a inclusão na análise de eventos antecedentes (não apenas estímulos discriminativos) e a especificação da resposta e de suas consequências em curto e longo prazo. Para atender ao objetivo do capítulo, será apresentado a seguir um modelo de formulação comportamental, com o passo a passo dos tópicos a serem incluídos, utilizando-se como exemplo o caso de uma cliente cuja queixa está relacionada a um quadro de transtorno alimentar. A proposta apresentada está embasada na compilação de aspectos de diferentes modelos de professores do Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento (IBAC), Ana Karina C. R de-Farias, Andréa Dutra, Carlos Augusto de Medeiros, João Vicente Marçal, Luciana Verneque, Marianna Braga, Lorena Nery e Flávia Fonseca. EMBASAMENTO TEÓRICO Esta formulação comportamental tem como foco a análise do caso de uma cliente com um quadro compatível com o diagnóstico de bulimia nervosa, enfatizando-se uma ótica analítico-comportamental dos transtornos alimentares. Tendo em vista que a Análise do Comportamento se baseia em princípios behavioristas radicais, tem-se que os efeitos desejados sobre uma resposta-alvo só podem ser obtidos por meio da manipulação de contingências. A partir dessas considerações, o objetivo deste trabalho foi analisar alguns dos controles comportamentais envolvidos no quadro de transtorno alimentar apresentado pela cliente, ou seja, como a realização de análises funcionais atuais e históricas pode contribuir para a compreensão desse tipo de diagnóstico e embasar manipulações ambientais favoráveis a uma melhor qualidade de vida para pessoas que apresentam repertórios característicos desses transtornos. De acordo com Skinner (1953/2003), parte significativa dos estímulos discriminativos, motivacionais e reforçadores é provida pelo ambiente social. Corroborando essa perspectiva, Andrade (2003) aponta que existem inúmeras pedagogias que atuam no meio social, de modo a ensinar, desde a mais tenra infância, o que é esperado socialmente em relação aos corpos feminino e masculino, bem como formas de se relacionar com o mundo de modo a obter e manter determinada imagem corporal. Segundo a autora, desde a infância, o 60 Luiza Macedo Ferreira contato social, a cultura e a mídia ensinam a meninas e mulheres técnicas de como lidar com seu corpo. Frequentemente, receitas e dicas para que se atinja o corpo apontado pela mídia como ideal são transmitidas de pessoa para pessoa como algo natural. O corpo da cultura contemporânea extrapola a concepção biológica de um corpo natural, embora a sociedade ocidental se esforce para transmitir a ideia de que mulheres muito magras e em forma são o natural, o padrão, o normal. Outro aspecto relevante destacado por Andrade (2003) é que culturalmente se assume e defende que, para fazer dieta e emagrecer, basta ter força de vontade, autocontrolee disciplina. Assim, a responsabilidade sobre a aparência do corpo seria exclusivamente de seu proprietário. Em concordância, Ades e Kerbauy (2002) apontam que o ideal do corpo magro e esbelto é pregado pela mídia sem levar em consideração características individuais, e aqueles que não conseguem atingir esse padrão são considerados pela sociedade pessoas preguiçosas, relaxadas e incapazes de controlar seus impulsos. Os analistas do comportamento, entretanto, criticam a atribuição de causalidade interna, bem como a atribuição de causa a entidades metafísicas. O Behaviorismo Radical propõe um modelo selecionista de causalidade. De acordo com esse modelo, dentro de uma ampla faixa de possibilidades, os padrões comportamentais de cada indivíduo são selecionados, mantidos e fortalecidos por eventos antecedentes e consequentes. Assim, as explicações causais são dadas em termos de relações interativas entre o indivíduo e o ambiente. Essa visão considera a causalidade ao longo do tempo; ou seja, não há um evento único ou uma causa que produza linear e diretamente um efeito, mas, sim, relações funcionais, de maneira que o comportamento é considerado uma variável dependente em relação aos eventos ambientais, os quais seriam variáveis independentes, que podem ser manipuladas. Conclui-se daí que o comportamento é função de condições ambientais. A probabilidade de ocorrência do comportamento no futuro é, portanto, determinada pelas condições contextuais e consequências do comportamento (Chiesa, 1994/2006; Skinner, 1953/2003, 1981). Há três níveis de seleção do comportamento por suas consequências: o filogenético, o ontogenético e o cultural (Skinner, 1981). Assim, de acordo com essa perspectiva da interação entre as variáveis de seleção nos três níveis, tem-se que o comportamento alimentar atual de uma pessoa é multideterminado, uma vez que é resultante de características genéticas únicas, de uma história única de reforçamento (experiência de vida) e das relações do indivíduo com o ambiente atual e com as práticas culturais da comunidade em que se insere (Abreu & 61 Cardoso, 2008; Appolinário, 2000; Duchesne & Almeida, 2002; Nobre et al., 2010). Os fatores biológicos e genéticos podem contribuir para uma maior vulnerabilidade ao desenvolvimento de comportamentos típicos dos transtornos alimentares (Halford, 2006). Contudo, ao longo da vida, cada pessoa, a partir de uma história única de interação com o mundo, aprende como se comportar diante de inúmeras situações e, no caso do comportamento alimentar, não é diferente. Nas famílias de pessoas com transtornos alimentares, é comum que as aparências sejam privilegiadas e valorizadas. Com frequência, os pais são rígidos, exigentes e resistentes a mudanças (Duchesne, 2006; Nobre et al. , 2010). Assim, no decorrer do seu desenvolvimento, as pessoas aprendem diversos hábitos alimentares. Inicialmente, esse conhecimento se dá a partir da interação com a família, tanto por modelagem quanto por modelação. Por meio dessa interação com o ambiente familiar, a criança começa a aprender quais comportamentos alimentares são valorizados em seu grupo social e quais não são, bem como tem a possibilidade de conhecer os sabores de diversos alimentos, os quais também podem ser reforçadores ou não. À medida que a criança vai crescendo, começa a ter contato com um ambiente social mais ampliado e, especialmente no caso das meninas e jovens, as exigências sociais em relação a um corpo idealizado vão aumentando, o que favorece o desenvolvimento de repertório de fuga-esquiva em relação a alimentos que engordem. Esse repertório de fuga-esquiva, como descrito anteriormente, pode envolver tanto a evitação direta da ingestão de alimentos muito calóricos e a recusa em comer, como também comportamentos compensatórios, como a autoindução de vômito, o abuso de diuréticos e purgativos e a realização de atividades físicas em excesso. Dessa maneira, nota-se que esses padrões alimentares considerados inadequados vão sendo estabelecidos e mantidos tanto pelo reforçamento positivo quanto pelo controle aversivo, por meio da fuga- esquiva de situações que dificultam a conquista do corpo socialmente construído como ideal. No decorrer do processo de aprendizagem de hábitos alimentares, estímulos da história do indivíduo, como determinados alimentos, vão adquirindo propriedades reforçadoras ou aversivas. Ades e Kerbauy (2002) chamam a atenção para as contingências contraditórias que selecionam os hábitos alimentares: ao mesmo em que estímulos antecedentes (discriminativos e motivacionais) e consequências são providos pelo ambiente social contingentemente a um corpo magro e aos comportamentos relacionados à magreza e ao autocontrole, também há 62 contingências que favorecem a impulsividade alimentar, ou seja, o prazer imediato de comer grandes quantidades de alimentos prontos, saborosos e muito calóricos. Esses conflitos entre contingências favorecem o desenvolvimento e a manutenção de quadros como o da bulimia nervosa. A concepção que o indivíduo tem do próprio corpo, portanto, é construída a partir das experiências que tem com esse corpo na interação com diversas situações ao longo da vida e corresponde às aprendizagens do indivíduo nas relações estabelecidas com o ambiente (Nobre et al., 2010). Ademais, desde a infância, a criança aprende, também a partir da interação com outras pessoas, modelos e regras estabelecidas socialmente, bem como começa a formular as próprias regras a partir desse contato com o ambiente físico e social em que se insere (nesse caso, fala-se em autorregras). Regras ou instruções são estímulos verbais que descrevem ou especificam relações de contingência, isto é, relações entre eventos ambientais ou entre eventos ambientais e comportamentos. De modo diferente de contingências de reforço, regras podem estabelecer comportamentos novos antes mesmo de esses comportamentos entrarem em contato direto com suas consequências. O comportamento governado por regras é função de dois grupos de contingências, sendo que uma delas inclui um estímulo verbal antecedente. Assim, no caso do comportamento governado por regras, o comportamento é estabelecido por meio do controle de sentenças verbais em forma de instruções ou regras. Nesse caso, há um predomínio de controle por consequências sociais. A sentença verbal funciona como estímulo antecedente que pode evocar e manter o comportamento antes que haja o contato direto com as contingências. O comportamento governado por regras, portanto, pode ser modificado por meio da alteração do antecedente verbal (regra ou instrução), pela alteração das consequências do comportamento-alvo ou pela alteração de ambos. O comportamento governado por regras tem algumas vantagens em comparação com aquele modelado diretamente pelas contingências, uma vez que permite que etapas sejam puladas, tornando o tempo de aprendizado menor, assim como coloca o comportamento do indivíduo sob controle de consequências atrasadas e pouco prováveis, o que é muito característico do autocontrole, atributo muito valorizado em nossa sociedade (Baum, 1994/2006; Catania, 1999; Nobre et al., 2010; Skinner, 1974/2004). Dessa forma, desde a infância, cada pessoa começa a aprender, a partir de sua interação com familiares e com a sociedade de maneira geral, regras a respeito de como deveriam ser seu corpo e sua aparência e também de como não 63 deveriam ser, ou seja, ela aprende o que é reforçadoou valorizado socialmente no que se refere à imagem corporal. É a partir da maneira como os outros a veem e expressam isso e das regras que lhe são passadas que a criança começa a formar sua própria imagem corporal. Além disso, a criança avalia em que medida sua aparência corporal é coerente com o modelo que lhe é transmitido como socialmente aceito, de modo que aprende a valorizar em seu corpo aquilo que é valorizado pelo grupo em que se insere, bem como a desvalorizar aquilo que o grupo desvaloriza. A autoimagem de uma pessoa é construída a partir de sua interação com o ambiente físico e social (Ingberman & Lohr, 2003). Tendo isso em vista, dadas as fortes pressões sociais em prol da magreza e da boa forma, especialmente na cultura ocidental, pode se tornar grande a discrepância entre o peso corporal real e o desejado, o que favorece o seguimento de regras e modelos que tragam sofrimento. O trabalho de Reis, Teixeira e Paracampo (2005) discute e analisa o papel facilitador das autorregras na emissão de desempenhos autocontrolados no âmbito alimentar. Segundo as autoras, autorregras podem tornar o desempenho insensível às contingências às quais o indivíduo está exposto e facilitar o seu desempenho em situações semelhantes àquela em que as autorregras foram formuladas. Conhecendo as variáveis que controlam seu comportamento, o indivíduo tem a possibilidade de manipular as contingências relacionadas ao próprio comportamento alterando a probabilidade de sua emissão futura. A concepção de autocontrole na perspectiva comportamental pode enfatizar duas características: o conflito entre as consequências positivas e negativas de uma resposta; e a lacuna temporal entre a resposta e sua consequência e a magnitude dos reforçadores/das consequências aversivas tanto em curto como em longo prazo. Dessa maneira, quando uma resposta autocontrolada é bem-sucedida, uma situação semelhante no futuro pode evocar a descrição da contingência passada, contribuindo para a generalização do autocontrole. Essa análise de Reis e colaboradores (2005) permite analisar como as contingências conflitantes anteriormente referidas e as autorregras podem afetar o controle dos hábitos alimentares. Dados gerais Os dados gerais relevantes sobre o cliente devem ser brevemente descritos. Por exemplo: 64 Luiza Macedo Ferreira Luiza Macedo Ferreira a. iniciais ou nome fictício; b. sexo; c. idade; d. escolaridade; e. estado civil; f. profissão/ocupação; g. condição socioeconômica; e h. outros dados gerais relevantes para o caso (como aspectos relacionados à aparência, quando relevante, quantidade de filhos, entre outros). Destaca-se que, nesse momento, os tópicos descritos não devem ser aprofundados nem o histórico da queixa deve ser apresentado. Por exemplo, apontar a escolaridade como “ensino médio incompleto”, sem especificar o histórico de aprovações/reprovações, a qualidade do desempenho, quais os reforçadores e os punidores contingentes aos repertórios apresentados no contexto escolar. Ademais, podem ser acrescentados genogramas da família atual e da família de origem como forma de enriquecer o panorama dos dados gerais sobre o cliente. Vamos ter o seguinte Caso clínico como exemplo: Bianca (nome fictício), sexo feminino, 30 anos, separada há três anos, professora do ensino médio de uma escola particular, condição socioeconômica média. Nasceu em Brasília, onde sempre viveu. No início da terapia, morava com os pais, a filha e o irmão mais novo. É a filha do meio de três irmãos. Fisicamente, é uma mulher bonita. Sua altura é 1,63 m, pesa 55 kg, tem cabelo liso e castanho claro, está sempre bronzeada e bem vestida. Queixas e demandas As queixas são os tópicos trazidos pelo próprio cliente como aspectos centrais a serem trabalhados no processo terapêutico. Trata-se, portanto, do que o cliente diz sobre o que o levou a buscar a terapia, o que o levou a buscar ajuda em um primeiro momento. Destaca-se que as queixas são diferentes das demandas. Enquanto as queixas são os tópicos trazidos por iniciativa do cliente, as demandas são os tópicos relevantes identificados pelo terapeuta, envolvendo déficits comportamentais identificados pelo terapeuta com base em suas observações e análises. Por exemplo, a queixa do cliente pode ser “preciso ficar menos ansioso”, e o terapeuta pode concluir, com base nas análises a partir das 65 Luiza Macedo Ferreira contingências descritas pelo cliente, que ele precisa desenvolver repertórios sociais os quais favorecerão que lide de maneira mais funcional com as situações de convívio social, o que, por sua vez, produzirá efeitos em relação à ansiedade. Em geral, recomenda-se que as queixas, ou seja, os conteúdos trazidos pelo cliente, sejam descritas nesse tópico inicial da formulação comportamental, enquanto as demandas (identificadas pelo terapeuta como aspectos importantes a serem trabalhados) devem ser especificadas mais adiante, no tópico relativo aos objetivos terapêuticos. Ademais, quando já houver dados, recomenda-se que o terapeuta inicie a operacionalização da queixa, compondo as contingências de reforçamento atuais relacionadas às queixas trazidas pelo cliente. Caso clínico A principal queixa de Bianca no início do processo terapêutico era excesso de timidez e grande preocupação com o que as pessoas pensariam a respeito dela, o que limitava suas decisões. De acordo com o relato da cliente, estava sendo difícil tomar decisões importantes em relação ao direcionamento de sua vida profissional e pessoal, pois, desde que havia se separado do ex-marido, ela tinha muito receio das críticas e dos julgamentos que poderiam resultar de suas escolhas. Ademais, com sua postura mais tímida e retraída nos relacionamentos e na tomada de decisões, as amizades e as relações amorosas não se aprofundavam, e ela perdia oportunidades profissionais importantes, o que a incomodava, gerando sentimentos como frustração, ansiedade e tristeza. O Quadro 2.1 mostra a operacionalização da queixa de Bianca. Quadro 2.1 Operacionalização da queixa de Bianca Antecedentes Respostas Consequências Efeitos Interações sociais Convites para situações sociais Demandas por tomada de decisões Problemas a serem resolvidos Novas oportunidades de trabalho Respostas passivas/tímidas (p. ex., fala pouco, diz que vai pensar, adia a decisão, diz que não sabe o que fazer e que tem medo de ser julgada por suas decisões, encerra o assunto) Respondentes: medo e ansiedade Evita conflitos, críticas e julgamentos - R- Alívio Os problemas continuam sem solução - P+ Frustração/ ansiedade Perde oportunidades de aprofundamento dos vínculos afetivos/amorosos - P- Frustração/ tristeza 66 Luiza Macedo Ferreira Perde oportunidades de trabalho - P- Frustração/ tristeza R-, Reforçamento negativo; P+, punição positiva; P-, punição negativa. Mandato terapêutico Trata-se dos objetivos terapêuticos traçados pelo próprio cliente para o processo terapêutico, o que ele espera da terapia. Destaca-se que, inicialmente, ainda que o terapeuta identifique outras demandas relevantes a serem trabalhadas, deve-se ficar sob controle dos objetivos propostos pelo cliente, uma vez que sua motivação para a terapia provavelmente estará relacionada aos tópicos que considera mais relevantes em um momento inicial. Posteriormente, à medida que o vínculo terapêutico estiver fortalecido, os objetivos terapêuticos poderão ser ampliados pelo terapeuta e/ou pelo cliente. Caso clínico Os relatos de Bianca que caracterizavam seus objetivos no início do processo terapêutico foram: “Quero ser menos tímida”, “Quero me preocuparmenos com o que as pessoas pensam sobre mim” e “Quero conseguir me organizar profissional e financeiramente para sair da casa dos meus pais e ter o meu próprio canto, junto com a minha filha”. Repertório e contingências no início da terapia Neste tópico, o terapeuta deve identificar e descrever as contingências atuais de vida do cliente no início do processo terapêutico, bem como as classes de comportamentos relevantes, no contexto das queixas trazidas. É relevante enfatizar que, aqui, o foco envolve as contingências presentes e não as passadas. Trata-se de um retrato de como o cliente está no momento do início da terapia. Algumas questões/perguntas podem ajudar o terapeuta a identificar os tópicos relevantes a serem descritos, por exemplo: a. Descrever as principais contingências de reforçamento em operação (p. ex., fatos, situações e comportamentos). Assim, faz-se relevante analisar: o cliente tem acesso a reforçadores positivos? Quais? Quais são as contingências predominantemente presentes (reforçamento positivo, 67 Luiza Macedo Ferreira Luiza Macedo Ferreira reforçamento negativo, punição positiva, punição negativa ou extinção)? Quais contingências trazem sofrimento ao cliente? b. Como é a rotina do cliente? c. Onde o cliente mora? Com quem? Como são as relações com as pessoas em casa? d. Onde trabalha/estuda? Quais são suas funções? Como são as relações com os colegas? Qual é a sua posição na hierarquia? e. Como são as suas relações sociais? Quem são os amigos mais próximos? Qual é a qualidade das interações? f. Quais são as suas principais atividades de lazer? Quem são as companhias nessas atividades? g. Quais repertórios estão em alta frequência? Quais estão em baixa frequência (prováveis déficits comportamentais)? Quais consequências essas classes de comportamentos produzem no ambiente atual? h. Como o cliente responde diante das contingências em operação? Emite comportamentos de fuga e/ou esquiva eficazes? Emite respostas de contracontrole diante de agentes coercitivos? i. Investigar sentimentos e emoções mais comuns, pois, como foi apresentado no capítulo anterior, os efeitos emocionais podem dar dicas sobre as contingências em vigor. Por exemplo, efeitos característicos de sofrimento, como tristeza, culpa, frustração, raiva e medo, sugerem a presença de contingências coercitivas, enquanto efeitos agradáveis, como alegria, satisfação e prazer, indicam contato com contingências de reforçamento positivo. Destaca-se que o nível de detalhamento a respeito de cada tópico descrito vai depender da queixa e dos objetivos traçados para o processo terapêutico. Caso clínico A cliente Bianca trabalhava em uma escola particular e afirmava sentir-se realizada profissionalmente, embora considerasse que precisava investir mais na profissão para obter um melhor retorno financeiro, pois estava morando com os pais e o irmão caçula, o que a incomodava. Segundo seu relato, lá todos interferiam em sua vida e na criação de sua filha. Por outro lado, sempre havia quem cuidasse da menina, caso Bianca precisasse ou quisesse sair. Ela planejava se organizar para sair da casa dos pais e ir morar sozinha com a filha, mas não se 68 Luiza Macedo Ferreira comprometia com as mudanças de rotina necessárias para conseguir autonomia financeira que lhe permitisse morar em outro lugar. No início da terapia, Bianca havia acabado de começar um namoro com Marcelo (nome fictício). A cliente o descrevia como uma pessoa muito agradável, querida por todos. Além disso, era extrovertido e muito sociável. A cliente disse que ficou encantada com ele desde que o conheceu, pois ele era diferente de seu ex-marido, Ricardo (nome fictício): cresceu na vida e conquistou tudo com o próprio esforço, extremamente bem-sucedido na profissão. Contudo, os dois estavam começando a enfrentar algumas dificuldades devido ao fato de que o namorado demandava muito tempo dela, e Bianca priorizava a filha e tinha dificuldade de se posicionar no relacionamento com o ex-marido. Laura (nome fictício), a filha de Bianca, tinha 7 anos. A cliente a descreveu como um “miniadulto”, uma criança muito inteligente, esperta e comunicativa. Relatou se preocupar muito em passar para a filha a imagem de uma mulher séria. Ademais, ela se culpava por ter se separado do pai de Laura e tentava evitar que a filha passasse por qualquer tipo de frustração. Muitas vezes, deixava de sair com o namorado e as amigas para fazer atividades com a menina. A própria Bianca se caracterizou como uma mãe superprotetora. A relação com o ex-marido era conflituosa. Ao mesmo tempo em que ele fazia inúmeras propostas para que os dois reatassem o relacionamento, também era grosseiro com ela, fazia ameaças e chantagens. Em diversas circunstâncias, colocava a filha contra a cliente, ocasionando intrigas entre mãe e filha, o que deixava Bianca insegura. A cliente tinha receio de que Ricardo entrasse na justiça para pedir a guarda de Laura caso ela não se submetesse às chantagens dele. No que se refere às suas características pessoais, Bianca relatou excesso de timidez, dificuldade de se abrir com as pessoas e de construir vínculos de intimidade. Sempre teve poucos amigos. Seu círculo social era restrito. Em geral, desenvolvia vínculo de amizade com uma única amiga e acabava se tornando dependente da relação. Além disso, costumava evitar situações sociais, especialmente as novas, diferentes daquelas a que se expunha cotidianamente. A cliente relatou que gostaria muito de ter mais amigos e de ser mais natural/espontânea com as pessoas. Sentia que, como era muito fechada, os outros também não se abriam muito com ela, de modo que grande parte de seus relacionamentos eram rasos/superficiais. 69 A partir dos relatos da cliente, nota-se que seu comportamento era excessivamente controlado por regras. As verbalizações de Bianca nas sessões eram marcadas por frases prontas e recorrentes sobre como uma pessoa deve ser/comportar-se. Por exemplo, frequentemente ela repetia os passos que seguia para ser considerada uma boa mãe. Disse que havia muita coisa que só ela mesma sabia fazer para a filha e que não confiava em mais ninguém para realizar essas atividades. Muitas vezes, deixava de sair com as amigas ou com o namorado para ficar com a filha. Relatou medo de ser julgada uma mãe ruim ou negligente. Bianca era admirada por ser uma mãe extremamente cuidadosa. Ainda em relação à dificuldade de fazer coisas diferentes, a cliente recorrentemente afirmava apresentar dificuldade de aceitar o fim do casamento e o desabamento do ideal de família, que se foi com a separação. Apesar de reconhecer que estava extremamente infeliz nos últimos anos do casamento, disse que não se conformava de ter tirado da filha a possibilidade de ter uma família completa, nos moldes tradicionais. Outra queixa da cliente era a dificuldade de mudar, de fazer coisas diferentes. Em relação a essa característica, Bianca mencionou que, quando alguém a chamava para sair ou fazer algo diferente, ela muitas vezes ficava nervosa e inventava desculpas para não ir ou para sair mais cedo da situação. Na terapia, também mereceu atenção o relato da cliente de que apresentava insegurança e excessiva preocupação com o que os outros pensavam sobre ela. Segundo Bianca, às vezes ela deixava de ser quem realmente era por conta do que as pessoas poderiam pensar. Acrescentou que era frequente ficar remoendo ideias como “O que vão pensar de mim?”, “E da minha família, que é muito simples?”, “O que as pessoas vão achar se eu usar essa roupa?”, entreoutros exemplos. Relacionam-se a esses aspectos características denominadas pela cliente de autoestima baixa e perfeccionismo. Bianca afirmou que acreditava que as pessoas a consideravam bonita, mas que isso acontecia porque não a conheciam de verdade. Sempre descrevia que as outras pessoas eram mais bonitas, arrumadas e elegantes do que ela. Além disso, avaliava os trabalhos rea- lizados pelos outros como melhores, mais bem feitos e mais criativos. Nunca considerava que o que fazia estava suficientemente bom. Afirmou ainda que não conseguia entender o que levaria alguém a gostar realmente dela. Ademais, nos relatos da cliente, eram frequentes descrições de comportamentos que sugeriam dependência afetiva. Segundo ela, era muito aversivo estar solteira. Diante de conflitos com o namorado, ela afirmava que, caso o relacionamento dos dois não desse certo, acabaria reatando com o ex- 70 marido. Cabe também comentar que eram frequentes comportamentos dela que indicavam disputa pelo amor da filha com o ex-marido. De acordo com o relato da cliente, Bianca e sua filha eram extremamente apegadas, ambas tinham dificuldade de passar algum tempo separadas. Além disso, Bianca apresentava uma grande preocupação com a aparência física. No início do processo terapêutico, fazia cerca de três anos que ela usava recorrentemente medicamentos para emagrecer. Quando não tomava esses remédios, frequentemente comia doces e alimentos gordurosos e, logo em seguida, provocava vômito. É relevante ressaltar que a cliente afirmou que não sabia se gostaria de uma intervenção sobre esses comportamentos, uma vez que havia um histórico de sofrimento durante a infância/adolescência relacionado ao excesso de peso, já que ela era alvo de críticas e brincadeiras de familiares e colegas da escola. Por fim, outra característica destacada pela cliente era a passividade/inassertividade. Ela relatava grande dificuldade para expressar sentimentos, opiniões e defender seus pontos de vista. Frequentemente, submetia-se às decisões dos outros, evitava dizer “não” e se esquivava de qualquer tipo de conflito. Relatou que foi submissa em todos os seus relacionamentos, principalmente os amorosos. Contudo, esse padrão passivo também ocorria nas amizades e na área profissional. Por exemplo, Bianca reclamava por ter de morar na casa dos pais e se queixava de que seu salário não era suficiente para ter a própria casa, entretanto, quando os pais dos seus alunos a procuravam solicitando aulas particulares para os filhos, a cliente recusava, argumentando que não tinha com quem deixar a filha (ainda que seus pais se disponibilizassem para ajudá-la). Outra queixa era de que o ex-marido não lhe ajudava em nada (e ela também não lhe solicitava qualquer participação dele nos cuidados da filha). Controle instrucional1 Este tópico envolve uma análise de como está a balança entre comportamentos modelados diretamente pelas contingências e os governados por regras. Algumas questões relevantes para a realização da análise relativa ao controle instrucional são: a. Quais são as principais regras e/ou autorregras seguidas pelo cliente? Como ele formulou ou aprendeu essas regras? Quem emite as regras que o cliente 71 Luiza Macedo Ferreira costuma seguir? b. Há sinais de insensibilidade do comportamento às contingências em vigor? História de vida Descrição das contingências de reforçamento passadas, que marcaram a história de vida do cliente, especialmente aquelas relacionadas às queixas. Diferentes contextos da vida do cliente devem ser investigados para que se obtenha uma formulação mais rica e completa. Histórico familiar Algumas questões que podem contribuir para a identificação de contingências históricas significativas no que se refere ao histórico familiar são: a. Quais acontecimentos históricos relacionados à família foram mais marcantes para o cliente? b. Quais repertórios foram selecionados a partir desses acontecimentos? c. Quais mudanças familiares aconteceram ao longo do desenvolvimento do cliente (p. ex., separação ou união dos pais, nascimento de irmãos, mudança de cidade, adoecimento/falecimento de um ente querido, convivência com padrasto/madrasta, entre outras possibilidades)? d. Quem eram as pessoas mais significativas para o cliente na infância (pais, tios, avós, irmãos, primos, etc.)? Quais eram as principais características dessas pessoas? Como era o relacionamento delas com o cliente? Caso clínico Bianca era a filha do meio de três irmãos. O irmão mais velho era casado e tinha uma filha. O mais novo, por sua vez, não estudava nem trabalhava, era usuário de drogas ilícitas. De acordo com o relato da cliente, o caçula era o queridinho dos pais, que davam tudo o que ele queria. Bianca sempre estudou e trabalhou muito, desde a adolescência. Ela afirmou que os dois irmãos deram muito trabalho para os pais. Como a cliente sempre fez “tudo certinho”, acabou sendo deixada de lado. De acordo com ela, os pais não são tão carinhosos com ela quanto com seus irmãos, bem como ela não é muito carinhosa com os pais. Bianca relatou que sempre gostou muito de comer, principalmente alimentos calóricos. Aos 8 anos, viajou para a casa da avó para passar as férias. Estava 72 Luiza Macedo Ferreira Luiza Macedo Ferreira muito chateada com a mãe, que havia mandado uma boneca Barbie para a prima dela, sendo que Bianca sempre pedia uma boneca dessas, mas nunca ganhou, pois os pais alegavam não ter dinheiro para comprá-la. Segundo a cliente, era um sonho simples, mas que nunca se realizou. A frustração por não ganhar dos pais uma Barbie como a da prima a deixou extremamente ansiosa e triste durante a viagem, o que ela considera ter contribuído para que acabasse “descontando” na comida. Durante a viagem, os encontros sociais com os familiares sempre envolviam refeições. Além disso, a avó comprava guloseimas, chocolates e balinhas para agradá-la. Com tudo isso, a cliente engordou 10 kg em um mês. Quando voltou das férias, a reação da família pelo aumento de peso foi extremamente aversiva para a cliente. Bianca disse que nunca se esqueceria da expressão de seu pai ao buscá-la no aeroporto. Lembra-se de que ele comentou com a mãe dela: “Como deixamos isso acontecer?”. As pessoas faziam comentários, como “Nossa, como você engordou!”. Contudo, ela não teve problemas para emagrecer dessa vez. Como cresceu bastante em um curto período e praticava esportes na escola, voltou ao seu peso padrão naturalmente. Na adolescência, Bianca passou novamente por fases em que ganhou peso por comer compulsivamente. Uma delas começou depois que um namorado de quem ela gostava muito foi embora da cidade devido à transferência do pai no trabalho, o que ocasionou a sua separação. Com o fim do namoro, ela voltou a ganhar peso rapidamente. Os irmãos a chamavam de “gorda” e lhe deram vários apelidos. A mãe cobrava muito que ela emagrecesse. Dizia que não ia mais comprar roupas para ela no estado em que estava. Certa vez, a cliente tirou uma foto 3x4. Quando chegou à sua casa, havia um pôster com a foto exposta na estante. A mãe dela falou: “Você já viu a sua foto? O tamanho que você está? Não vou mais comprar roupas para você enquanto estiver assim”. Quando Bianca tinha 17 anos, o pai foi com ela ao endocrinologista, que prescreveu uma dieta. Quando saíram da consulta, ele a levou à lanchonete de que ela mais gostava e deixou que ela comesse tudo que queria. Depois, comprou todos os alimentos que o médico havia prescrito para a dieta e separava cada refeição para a filha todos os dias. Bianca disse que foi um período sofrido, ela até chorava de vontadede comer outras coisas, mas conseguiu emagrecer mais de 10 kg. Além da dieta, começou a praticar atividades físicas na academia em excesso. Alguns instrutores chegaram a chamar a atenção da cliente, que passava um longo período do dia malhando. Devido ao engajamento na dieta e nas atividades físicas, a cliente voltou ao seu peso padrão novamente. 73 No que se refere ao casamento dos pais, Bianca definiu o relacionamento dos dois como superficial. Segundo ela, o pai e a mãe realizavam poucas atividades juntos. A mãe da cliente chegou a comentar que manteve o casamento por tantos anos devido aos filhos, que eram prioridade na vida dela. O pai foi descrito pela cliente como seu melhor amigo e a pessoa mais próxima a ela no núcleo familiar. Também havia proximidade na relação com a mãe, mas Bianca a descrevia como uma pessoa extremamente crítica. A relação com os irmãos era definida como tranquila, mas superficial. Histórico acadêmico-profissional Questões que podem contribuir para a identificação de contingências históricas no que se refere ao histórico acadêmico e/ou profissional são: a. Quais foram os acontecimentos históricos relacionados mais relevantes para o cliente no âmbito acadêmico/profissional? b. Como foi o histórico escolar? Predominaram sucessos ou insucessos? Como as pessoas reagiam ao bom/mau desempenho escolar do cliente? O que os professores costumavam falar sobre ele? Quais eram suas habilidades no contexto escolar? Quais eram suas dificuldades? c. Como foram feitas as escolhas profissionais? Quais foram as fontes de influência dessas escolhas? Caso clínico Bianca graduou-se em História e fez pós-graduação na mesma área. Relatou sempre ter sido uma boa aluna, com desempenho acima da média dos colegas da escola. Desde o fim do casamento, voltou a trabalhar como professora de ensino médio em uma escola particular. Dizia que nasceu para ser professora e que se sentia realizada na profissão. Sempre gostou muito de estudar e relatava interesse de continuar se especializando e investindo no aprimoramento profissional. No trabalho, sua forma de ensinar, os recursos que desenvolvia e a maneira como lidava com os estudantes eram extremamente valorizados pelos chefes, e ela assumia posição de destaque e liderança entre os colegas, que recorriam a ela sempre que precisavam de ajuda ou ideias novas para as aulas/atividades escolares. Os pais da cliente valorizavam o estudo e destacavam para a filha a importância de investir na vida profissional e se tornar independente 74 Luiza Macedo Ferreira financeiramente. Ambos trabalharam fora de casa e serviram de modelo profissional para Bianca por seu comprometimento com as atividades de trabalho. Histórico social e afetivo Questões que podem favorecer a descrição de contingências históricas no que se refere ao histórico social e afetivo são: a. Quais foram os acontecimentos históricos envolvendo relacionamentos sociais e/ou afetivos mais significativos para o cliente? b. Quais repertórios o cliente apresentava nos contextos social/afetivo? c. Quem eram as pessoas com quem o cliente convivia em situações sociais/afetivas? Quem eram seus amigos/namorados? Quais eram as principais características dessas pessoas? Qual era a qualidade dessas relações? O que o cliente costumava fazer quando estava com eles? d. Houve situações de decepção nas interações sociais ou amorosas? Quem foram as pessoas que o decepcionaram? Caso clínico Um dos principais motivos que levaram Bianca à terapia foi uma separação conjugal mal resolvida. Em 2003, a cliente engravidou do namorado quando os dois tinham dois meses de namoro. Não sabia se queria realmente se casar ou se tinha medo do preconceito que sofreria por ser mãe solteira. Assim, embora só tenham se casado oficialmente quando estavam juntos há três anos, ela e o namorado foram morar juntos após poucos meses de namoro. Havia uma diferença social entre os dois, o que incomodava a cliente. Ele era, nas palavras dela, o típico “filhinho de papai”: vinha de família rica, morava em um bairro nobre, trabalhava na empresa dos pais, e seus gastos com saídas, compras e alimentação em restaurantes de luxo eram pagos com o cartão de crédito deles. Já a família de Bianca era mais simples, morava em uma casa pequena e pagava com dificuldade as contas do mês. Assim, a cliente disse que se sentia inferior à família do ex-marido. Após o casamento, o marido não quis mais que Bianca trabalhasse, sob o argumento de que ela deveria se dedicar integralmente à família. A contragosto, a cliente deixou o trabalho. Segundo ela, isso contribuiu para que se tornasse uma mãe “um pouco superprotetora”, pois os cuidados com a filha se tornaram o 75 Luiza Macedo Ferreira único foco de sua vida. De acordo com o relato de Bianca, o marido ficou no controle da relação, pois ela dependia dele, inclusive financeiramente. Ademais, Bianca afirmou que nunca soube fazer as coisas de casa. O marido reclamava, dizia que ela tinha de dar conta das tarefas domésticas e dos cuidados da filha. A cliente disse que sempre foi submissa ao marido, desde o início até o fim do relacionamento. Bianca e ele viviam um para o outro. Só saíam juntos e não tinham amigos. Ele tinha muito ciúme da cliente. Bianca relatou que o grande problema de seu casamento foi que ela e o marido se conheciam muito pouco quando começaram a morar juntos. Algum tempo depois que se mudaram para o apartamento deles, ela descobriu que ele consumia drogas ilícitas dentro de casa. Isso a incomodava muito. Ela tentava proteger a filha da situação, ficando sempre com ela no quarto, enquanto o marido fumava maconha, com a irmã dele, na sala. Quando fumava ou bebia, ele ficava mais agressivo. A cliente pressionava o marido para que parasse de fumar, e ele ameaçava se separar dela. Bianca tinha vergonha das coisas que o marido fazia e se afastou dos amigos e da família. Com isso, isolou-se das amigas e até da própria família. Escondia de todos o que acontecia com ela. Durante o período em que esteve casada, Bianca voltou a engordar. Como foi gordinha na adolescência, no início da fase adulta tinha de se esforçar para manter o peso. Sempre foi uma pessoa muito ativa: praticava esportes, exercitava-se na academia, trabalhava e estudava. Depois do casamento, com a exigência do marido para que deixasse de trabalhar, ficava grande parte do tempo ociosa em casa e ganhou peso. Bianca queria voltar a trabalhar, ter contato com pessoas, conversar, mas tinha receio da forma como o marido reagiria se ela o contrariasse. Segundo seu relato, a família dele era machista e também não apoiava a ideia de que a cliente trabalhasse. A mãe dele não trabalhava e defendia que a mulher deveria se dedicar exclusivamente à família. Apesar de não concordar, a cliente aceitava as imposições do marido e da família dele. Sempre evitou entrar em conflito com as pessoas. Bianca contou ainda que as relações sexuais com o marido eram aversivas para ela, pois ele impunha o momento e a posição, sem respeitar o que era importante para ela. Ela fazia de tudo para evitar contato sexual com ele, o que gerava frequentes conflitos entre os dois. Em 2007, depois de muita discussão, Bianca voltou a trabalhar na escola em que a filha estudava. Com o retorno ao trabalho, começou a reparar que as pessoas ainda se interessavam por ela, que era capaz de fazer novas amizades e que os chefes valorizavam e elogiavam seu trabalho. A volta da cliente ao 76 trabalho levou o marido a ter cada vez mais ciúmes. Ele controlava as mensagens, os e-mails e as ligações dela. Nesse mesmoano, no dia do aniversário do marido, ele bebeu em excesso no almoço comemorativo em família. Quando voltaram para casa, ele ficou extremamente agressivo, xingou Bianca na frente dos vizinhos, começou a quebrar objetos em casa e ameaçou matá-la, enquanto batia na cliente e jogava objetos nela. Desesperada, ela se trancou com a filha no quarto. O marido arrombou a porta. A cliente não sabia o que fazer, tinha receio do que poderia acontecer ao marido caso ela chamasse a polícia. Ela, então, trancou-se com a filha no banheiro e ligou para o pai dele, dizendo que o marido estava quebrando toda a casa e que iria matá-la. A família dele foi até lá e o levou para a casa deles. No outro dia, a cliente foi conversar com o marido, disse que esperava que, no mínimo, ele se desculpasse. Ao contrário, ele disse que jamais a perdoaria por ter recorrido ao pai dele, que estava muito doente, para resolver uma briga dos dois. Ela argumentou que fez o que achou melhor na hora: ou ligava para a família dele ou teria de chamar a polícia. Como o relacionamento com o marido depois dessa briga se tornou cada dia mais difícil, Bianca decidiu se separar e voltou para a casa dos pais em 2008. Ela disse que o dia da separação foi o mais triste de sua vida. Devido aos episódios de violência que Bianca viveu, seus pais apoiaram a separação e a acolheram em sua casa. Entretanto, a cliente descrevia a convivência com a família como difícil para ela, uma vez que os pais eram extremamente exigentes em relação às atribuições dela em casa, enquanto o irmão caçula passava o dia inteiro ocioso. Ademais, ela não concordava com a maneira como os pais lidavam com a dependência química do irmão, disponibilizando sempre o dinheiro que ele pedia sem cobrar qualquer comprometimento dele com a manutenção da casa. Depois da separação, Bianca manteve o hábito de sair com o ex-marido e a filha. Na visão da cliente, ela e o ex-marido não moravam mais juntos havia três anos, mas nunca se separaram completamente. No que se refere às amizades, o círculo social da cliente era extremamente restrito. Ela considerava que tinha duas amigas verdadeiras, com quem compartilhava grande parte do que lhe acontecia. Bianca relatou que gostaria muito de ter mais amizades. Entretanto, investia pouco em situações sociais que favorecessem o estabelecimento de vínculos com pessoas novas. Histórico médico-psicológico 77 Em relação ao histórico médico-psicológico, é relevante descrever: a. Como foram as experiências do cliente com tratamentos psicológicos e/ou médicos anteriores? b. Como eram as condições de saúde do cliente ao longo da vida? c. Histórico em relação ao uso de medicamentos. Caso clínico Em maio de 2008, depois de ter voltado a ganhar peso após o casamento, Bianca foi a uma endocrinologista, que a prescreveu remédios (anfetaminas) para emagrecer. Em decorrência da administração desses remédios, ela começou a apresentar dificuldade para dormir e a sentir inquietação nas pernas, mas continuou tomando a medicação. A cliente relatou sentir-se dependente da medicação para emagrecer. Disse que já toma o remédio há tanto tempo que já não percebe tanto o efeito sobre o apetite, mas tem muita energia e disposição. Quando não toma o remédio, come maior quantidade de doces e alimentos calóricos, bem como provoca vômito com mais frequência. Quando começou o processo terapêutico, ela ia à endocrinologista a cada dois meses, apenas para renovar os pedidos da medicação. Formulação comportamental Após a descrição dos repertórios e das contingências atuais e históricas, é hora de começar a integrar os dados coletados por meio da realização de análises funcionais. Dessa maneira, o terapeuta estabelecerá as prováveis relações entre as variáveis ambientais históricas e atuais e os repertórios do cliente (presentes e ausentes). Para facilitar a visualização das relações funcionais entre as respostas e suas variáveis de controle, é possível a utilização de quadros e esquemas. O terapeuta deve ser criativo para facilitar a compreensão das relações entre os eventos analisados, uma vez que, como destacado anteriormente, não há um padrão restrito sobre como são realizadas as análises funcionais. O modelo básico para a realização de análises moleculares deve incluir antecedentes, respostas e consequências, conforme apresentado no Quadro 2.2. Ademais, podem ser incluídos efeitos emocionais e/ou de frequência, uma diferenciação entre consequências em curto, médio e longo prazos, um destaque para as consequências que provavelmente estão exercendo mais controle da resposta em análise, entre outros recursos. As análises também podem ser separadas por 78 Luiza Macedo Ferreira Luiza Macedo Ferreira Luiza Macedo Ferreira Luiza Macedo Ferreira classes de comportamentos, como assertivos-passivos-agressivos, desejáveis ou indesejáveis, nos contextos familiar-profissional-social. Entretanto, as categorias não são fixas, devendo ser ajustadas a cada caso. Quadro 2.2 Modelo básico para a realização de análises funcionais moleculares Antecedentes Respostas Consequências Efeitos Note que, na parte das análises moleculares, trata-se de respostas pontuais/específicas do cliente. Ainda assim, é importante lembrar que uma mesma resposta pode ter mais de um antecedente e/ou mais de uma consequência. Para mais informações a respeito do passo a passo da realização de análises funcionais, ver o Capítulo 1 deste livro (Nery & Fonseca). Caso clínico A partir das contingências e dos repertórios históricos e atuais descritos nessa formulação, foi possível compor as seguintes análises funcionais moleculares relativas ao caso de Bianca: Análises funcionais moleculares de comportamentos indesejáveis2 Quadro 2.3 Análise funcional do comportamento de Bianca de assumir a responsabilidade pela solução das questões da filha e de abrir mão de outras atividades importantes para ela Antecedentes Respostas/ frequência Consequências em curto prazo Demandas relacionadas aos cuidados da filha Demandas pessoais e de trabalho (em conflito com as atividades da filha) Assumir responsabilidade pela resolução de todas as questões relacionadas à filha Desmarcar compromissos de trabalho Desmarcar atividades de lazer (Alta frequência) É considerada por todos uma boa mãe – R+5 Todos os problemas da filha são resolvidos – R- Perde oportunidades de lazer – P- Sobrecarga – P+ Consequências em longo prazo Desgaste do relacionamento amoroso – P- Ausência de vínculos significativos com outras pessoas – P- R-, reforçamento negativo; R+, reforçamento positivo; P-, punição negativa; P+, punição positiva. 79 Luiza Macedo Ferreira Quadro 2.4 Análise funcional do comportamento de Bianca de tomar anfetaminas e provocar vômito (comportamentos compatíveis com um quadro de bulimia nervosa) Antecedentes Respostas/ frequência Consequências em curto prazo Ganho de peso Privação social Críticas e cobranças da mãe Pouco tempo livre para cuidar de si Toma remédios (perigosos!) para emagrecer Provoca vômito (Alta frequência) Evita ganho de peso/perde peso – R- Recebe elogios – R+ Evita estimulação aversiva da prática de atividades físicas – R- Acesso a alimentos saborosos – R+ Críticas do namorado/marido e da mãe – P+ Consequências em longo prazo Surgimento, manutenção e agravamento de problemas de saúde – P+ R-, reforçamento negativo; R+, reforçamento positivo; P+, punição positiva. Quadro 2.5 Análise funcional do comportamento passivo de Bianca Antecedentes Respostas/ frequência Consequências em curto prazo Pedidos e solicitações Situações de conflito Passividade: Sacrifica-se para atenderaos pedidos É gentil e educada Aceita as imposições dos outros, mesmo sem concordar (Alta frequência) Evita conflitos – R- É considerada uma pessoa boa e meiga – R+ Sobrecarga, pessoas se aproveitam dela – P+ Pouco tempo para atividades de seu interesse – P- Consequências em longo prazo Manutenção de relações “exploratórias” – P+ R-, reforçamento negativo; R+, reforçamento positivo; P-, punição negativa; P+, punição positiva. Quadro 2.6 Análise funcional de comportamentos queixosos ou controlados por regras Antecedentes Respostas/ frequência Consequências em curto prazo Problemas nos relacionamentos interpessoais: conflitos, cobranças, críticas Demandas de trabalho/ dificuldades financeiras/ demandas por tomadas de decisão Racionalizações (intraverbais)/regras prontas (“Eu tirei da minha filha o sonho da família completa”) Comportamento queixoso: Relatar conflitos, dificuldades, problemas Relatar insegurança, confusão, dúvidas Relatar contato com estímulos aversivos Relatar somatizações Atribuir culpa/responsabilidade Atenção/pena/compreensão das pessoas – R+ Esquiva de responsabilidade na manutenção dos problemas – R- Consequências em longo prazo Manutenção dos problemas – P+ Pessoas se afastam/ausência de relações de intimidade – P- 80 aos outros (Alta frequência) R-, reforçamento negativo; R+, reforçamento positivo; P-, punição negativa; P+, punição positiva. Quadro 2.7 Análise funcional do comportamento de Bianca de engajar-se em atividades diferentes daquelas que envolviam os cuidados com a filha Antecedentes Respostas/ frequência Consequências em curto prazo Convites do namorado para viajar Convites de amigos e colegas de trabalho para sair Propostas de trabalho Problemas de saúde Demandas relativas aos cuidados da filha Aceitar convites para sair/ fazer atividades diferentes Aceitar novas propostas de trabalho Pedir ajuda nos cuidados da filha/dividir responsabilidades Cuidar da saúde: Alimentar-se bem Ir a médicos adequados Praticar atividades físicas (Baixa frequência) Estimulação aversiva/riscos de se expor a situações novas e desafiadoras – P+ Críticas à sua postura como mãe – P+ Contato com novos reforçadores – R+ Consequências em médio/longo prazo Formação de vínculos de intimidade – R+ Melhora da situação financeira / desenvolvimento profissional – R+ Melhora da saúde – R+ R+, reforçamento positivo; P+, punição positiva. Análises funcionais moleculares de comportamentos desejáveis3 Quadro 2.8 Análise funcional do comportamento assertivo de Bianca Antecedentes Respostas/ frequência Consequências em curto prazo Pedidos e solicitações Situações de conflito Assertividade: Argumentar Expressar opiniões e sentimentos Recusar pedidos de forma direta (Baixa frequência) Críticas e chateação das pessoas – P+ Evita sobrecarga em atividades que não a interessam – R- Mais tempo para se engajar em atividades que a interessam – R+ Consequências em longo prazo Melhora da qualidade dos relacionamentos/ respeito das pessoas – R+ R+, reforçamento positivo; R-, reforçamento negativo; P+, punição positiva. Quadro 2.9 Análise funcional do comportamento de Bianca de assumir a responsabilidade pela solução das questões da filha e de abrir mão de outras atividades importantes para ela Antecedentes Respostas/ frequência Consequências em curto prazo Problemas nos Buscar soluções Vulnerabilização/Risco de fracassar – P+ 81 relacionamentos interpessoais: conflitos, cobranças, críticas Demandas de trabalho/ Dificuldades financeiras/ Demandas por tomadas de decisão Solicitar ajuda Fazer pedidos diretos Envolver-se com novas oportunidades de trabalho Tomar decisões Expressar sentimentos e necessidades de maneira clara (Baixa frequência) Risco de que as pessoas recusem seus pedidos – P+ Contato com atividades difíceis/desafiadoras – P+ Atenção/ajuda das pessoas – R+ Solução dos problemas – R- Consequências em longo prazo Maior autonomia – R+ Maior independência financeira – R+ Melhora da qualidade relacionamentos interpessoais – R+ R-, reforçamento negativo; R+, reforçamento positivo; P+, punição positiva. Análises funcionais molares Após a realização das análises moleculares, o terapeuta deve integrar aspectos históricos e atuais na composição das análises molares, ou seja, análises de padrões comportamentais. Novamente, podem ser utilizados quadros e esquemas com o objetivo de facilitar a compreensão das relações funcionais. O modelo básico para a realização de análises molares deve incluir a identificação do padrão comportamental, as respostas que caracterizam o padrão (operacionalização), a história de aquisição, os contextos atuais mantenedores, as consequências que favorecem a manutenção do padrão (no modelo descrito por Marçal (2005) “quando o comportamento é funcional”) e as consequências que enfraquecem o padrão (“quando não é funcional”), conforme apresentado no Quadro 2.10. Quadro 2.10 Modelo básico para a realização de análises funcionais molares Respostas que caracterizam História de aquisição Contextos atuais mantenedores Consequências que fortalecem Consequências que enfraquecem Padrão comportamental: Caso clínico 82 Luiza Macedo Ferreira Observou-se, no repertório de Bianca, a presença de dois padrões comportamentais que se destacavam, o Controle por Regras (Quadros 2.11 e 2.12) e o Autoexigente/Perfeccionista (Quadros 2.13 e 2.14). Quadro 2.11 Análise funcional molar do padrão de controle por regras de Bianca (primeira parte) Respostas que caracterizam o padrão História de aquisição Contextos atuais mantenedores Justifica seus comportamentos com base em regras e nas orientações de outras pessoas Diversas regras prontas sobre como deve ser uma “boa mãe” e a “família completa” Relatos frequentes sobre o que terceiros consideram que ela deve fazer Pergunta frequentemente às pessoas o que fazer Pergunta à terapeuta o que deve fazer Mãe: modelo de mulher que se sacrificou pelos filhos e pela manutenção da família Mãe e pai: muitas regras sobre família e o papel da mulher Família crítica: punição para o não seguimento dos valores da família (p. ex., pai parou de falar com ela durante toda a gravidez porque “não criou a filha para ser ‘mãe solteira’”) Ex-marido controlador e machista Regras machistas da família do ex-marido, com funções específicas determinadas para o homem e a mulher Trabalho como professora de crianças/adolescentes: muitas regras sobre como devem se comportar (certo x errado, adequado x inadequado) e realizar as atividades Convivência diária com as regras dos pais desde que voltou a morar com eles Namorado muito bem- sucedido: fonte de conselhos e regras Quadro 2.12 Análise funcional molar do padrão de controle por regras de Bianca (segunda parte) Consequências que fortalecem o padrão (quando é funcional) Consequências que enfraquecem o padrão (quando não é funcional) Evita responsabilidades pelas decisões tomadas, atribui a responsabilidade a terceiros Esquiva-se de críticas e julgamentos das pessoas pelas consequências negativas de suas decisões Acesso a reforçadores e economia de tempo quando a regra é acurada Cobranças das pessoas quando não consegue cumprir as regras (o que lhe gera, como efeitos, sentimentos de frustração e culpa) Dependência em relação a outras pessoas Seguimento frequente de regras e instruções inadequadas, incompatíveis com seus interesses Falta de autonomia Insensibilidade às contingências: permanece em contato com contingências aversivas por um longo período e perde oportunidades de contato com novos reforçadores Quadro 2.13 Análise funcional molar do padrão autoexigente/perfeccionista de Bianca (primeira parte) Respostas que caracterizam o padrão História de aquisição Contextos atuais mantenedores Grande preocupação e Pais mais exigentes com Convívio diário com a mãe 83 cuidado com a aparência física: consome anfetaminas, provoca vômito, exigente com as roupas, pesquisa sobre cirurgiasplásticas Grande comprometimento e dedicação com as atividades de trabalho Resolve problemas dos colegas no trabalho Resolve problemas da filha Abre mão de atividades reforçadoras para cumprir obrigações Bianca do que com seus irmãos durante a infância/adolescência Modelo: mãe muito preocupada com a opinião dos outros, resolve problemas do filho Mãe: exemplo de profissional Família crítica e punitiva Alvo de chacotas por ter sido obesa na infância/adolescência Competitividade e instabilidade no trabalho (professores demitidos com frequência na escola em que ela trabalhava) Disputa com o ex-marido pela guarda da filha (o que a deixava insegura) Muito valorizada pela aparência física em diferentes contextos Quadro 2.14 Análise funcional molar do padrão autoexigente/perfeccionista de Bianca (segunda parte) Consequências que fortalecem o padrão (quando é funcional) Consequências que enfraquecem o padrão (quando não é funcional) Considerada uma excelente mãe por todos Modelo de pessoa “boazinha” Reconhecida como uma excelente profissional Esquiva-se de críticas e julgamentos a respeito de sua aparência e de sua postura como mãe e profissional Atenção das pessoas por sua beleza e elegância Sobrecarga de atividades Riscos à saúde Perde tempo/oportunidades de contato com reforçadores pessoais ao resolver problemas dos outros Desgaste do relacionamento amoroso Pouco tempo para lazer e cuidados com a saúde Padrão comportamental: Controle por Regras4 Padrão comportamental: Autoexigente/Perfeccionista Análise motivacional A análise motivacional inclui uma avaliação do equilíbrio entre as consequências que fortalecem e as que enfraquecem o padrão, como é possível observar nos Quadros 2.12 e 2.14. Ademais, o terapeuta deve avaliar: a. Existem operações motivadoras/estabelecedoras (p. ex., privações, saciações e estimulação aversiva) presentes? b. Qual é o custo das respostas analisadas? c. Quais são as reais condições favoráveis à mudança? d. Há condições desfavoráveis ao engajamento e progresso na terapia? Quais? Caso clínico 84 Luiza Macedo Ferreira Luiza Macedo Ferreira Os Quadros 2.12 e 2.14 mostram a relação entre as consequências que fortalecem versus as que enfraquecem os padrões comportamentais de controle por regras e de autoexigência. A partir da análise desses dois quadros, observa-se que havia perdas importantes, bem como contato com estimulação aversiva, o que contribuía para a mudança. Entretanto, havia também reforçadores significativos mantendo os padrões e, além disso, o custo de respostas alternativas era alto. Relação terapêutica Nesta parte, o terapeuta deve fazer uma análise funcional da relação terapêutica, identificando a função de determinadas respostas do cliente e dele mesmo em relação ao cliente (como se sente na presença do cliente, como reage às suas respostas, como lida com as questões trazidas). Assim, de acordo com a proposta da psicoterapia analítica funcional (FAP), de Kohlenberg e Tsai (1991/2001), o terapeuta deve identificar e consequenciar de forma adequada os comportamentos clinicamente relevantes (comportamentos-problema, CRBs1, comportamentos de melhora observados na sessão, CRBs2, e comportamentos autodescritivos, CRBs3) apresentados pelo cliente no contexto terapêutico. Destaca-se a importância de que o terapeuta se atente ao CRBs1, que frequentemente acontecem nas primeiras sessões. Assim, faz-se relevante observar como o cliente o cumprimenta, como é a sua postura ao longo das sessões (p. ex., se parece mais à vontade ou mais retraído; se é mais tímido, assertivo ou agressivo; se apresenta comportamentos de controle na sessão). Caso clínico CRBs1: especialmente no início da terapia, Bianca apresentava, no contexto da relação terapêutica, comportamentos característicos de suas dificuldades cotidianas, como timidez, dificuldade de tomar iniciativa em relação aos assuntos que seriam abordados nas sessões, dificuldade de fazer pedidos diretos à terapeuta, perguntava à terapeuta sua opinião a respeito das decisões que deveria tomar (na tentativa de responsabilizar a terapeuta por suas escolhas) e, por vezes, perguntava o que a terapeuta iria pensar dela ao fazer certas revelações (demonstrando, assim, preocupação com o que a terapeuta pensaria a respeito dela). 85 Luiza Macedo Ferreira CRBs2: ao longo do processo terapêutico, o vínculo entre a terapeuta e a cliente foi fortalecido, e Bianca começou a apresentar alguns progressos: passou a expressar sentimentos e opiniões com mais frequência, solicitou diretamente à terapeuta que mudasse seu horário quando começou a dar aulas particulares como forma de complementar sua renda, tomava a iniciativa de trazer para as sessões assuntos que considerava relevantes e, às vezes, enviava mensagens para a terapeuta entre as sessões, com comentários e sugestões de aspectos a serem trabalhados, estabelecendo assim, pouco a pouco, uma relação de intimidade e afeto com a terapeuta. CRBs3: ao longo da terapia, o repertório da cliente de analisar seus comportamentos em função das variáveis de controle foi sendo aprimorado. Alguns exemplos de CRBs3 são descritos a seguir, na seção de resultados. Objetivos terapêuticos Os objetivos terapêuticos devem ser embasados nas análises funcionais realizadas (ver o capítulo de Quinta, neste livro). São estabelecidos pelo terapeuta ou na parceria terapeuta-cliente em termos dos repertórios que o cliente deve aprender para lidar com as contingências em vigor em suas vidas de maneira mais produtiva, fortalecendo as possibilidades de acesso a reforçadores positivos, reduzindo a produção de estimulação aversiva e enriquecendo os recursos para lidar com problemas e frustrações. São os objetivos terapêuticos que norteiam os caminhos que o processo terapêutico deverá seguir, orientando, portanto, o planejamento/estabelecimento das intervenções terapêuticas. A proposta do Questionário Construcional de Goldiamond (Gimenes, Andronis & Laying, 2005; Goldiamond,1974) destaca que os terapeutas devem sempre priorizar o desenvolvimento de novos repertórios, em vez de focar na redução de “comportamentos-problema”. Assim, para descrever os objetivos terapêuticos em suas formulações comportamentais, o terapeuta deve responder basicamente a duas questões: Quais habilidades/repertórios comportamentais o cliente precisa adquirir? Exemplos de repertórios frequentemente descritos como objetivos terapêuticos são: autoconhecimento, assertividade, habilidades sociais, autocontrole, tolerância à frustração e sensibilidade às contingências. Quais classes comportamentais devem ser enfraquecidas? 86 Luiza Macedo Ferreira Luiza Macedo Ferreira Luiza Macedo Ferreira Luiza Macedo Ferreira Caso clínico Com base nas análises funcionais moleculares e molares, foram estabelecidos os seguintes objetivos terapêuticos para o processo de Bianca. Mudança de regras. A partir das análises funcionais, nota-se que o seguimento de algumas regras poderia estar trazendo prejuízos (contato com estimulação aversiva ou perda de oportunidade de reforçamento) para a cliente, como no caso dos seguintes exemplos: “A felicidade da minha filha está acima de tudo”; “Não posso ser feliz sem uma família completa (eu, minha filha e o pai dela)”; “Se meu ex-marido colaborasse mais, minha vida seria diferente”; e “Sempre que posso, tento ser gentil. É importante ser uma boa pessoa”. Assim, foi objetivo da terapia que a cliente elaborasse regras mais eficientes (coerentes com as contingências presentes em sua vida ao longo do processo terapêutico), como: “A minha felicidade também é importante”; “A família completa não garantiu/garante a minha felicidade”; “Existem atitudes