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4 O mundo encoberto de cada um: técnicas que auxiliam o autoconhecimento Katrine Souza Silva | André Amaral Bravin Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses. Sócrates Desde a Grécia Clássica, por volta do século VI a.C., iniciou-se uma acentuada preocupação com o conhecimento, tanto de questões subjetivas do ser humano quanto das relações estabelecidas entre o ser humano e o mundo e entre os próprios seres humanos. Sócrates foi um dos primeiros filósofos a destacar que o conhecimento deveria ter primeiramente um ponto de vista individual para, só então, falar do universal (Chauí, 2000). Nesse sentido, Sócrates instaurou seu pensamento com base no preceito “conhece a ti mesmo” para explicitar a desvinculação do homem em relação à physis universal. O homem deveria se voltar para o conhecimento de si mesmo, com autoconsciência despertada e mantida em vigília. Esses fundamentos sugerem que Sócrates compartilhava do preceito de que o homem era a medida de todas as coisas. Como sugerido por Wolff (1982, p. 32-33), é “revolucionário o sentido inédito que Sócrates lhe dá: não mais sabei que sois apenas homem, mas ao contrário: que cada um, sabendo quem é, saiba o que faz e por que o faz”. Essa mudança instaurada pelo pensamento socrático retira do foco das explicações de um oráculo exterior, em favor de um “oráculo interior”, sendo o homem a única razão de ocorrência de suas ações (Pessanha, 1987; Wolff, 1982). 124 Nesse sentido, o homem passa a agir e pensar com consciência, sendo esse o mais rico conhecimento que se poderia ter. Com essa revolução, Sócrates estava fazendo um convite à racionalidade moral e à tomada de consciência, estimulando a capacidade de olhar para as coisas, para os outros e para si mesmo. Com o passar do tempo, foram surgindo novas apreensões sobre o “autoconhecimento”. Atualmente, na linguagem cotidiana, o temo “autoconhecimento” é descrito como “s.m. conhecimento de si mesmo, das próprias características, sentimentos, inclinações, etc.” (Houaiss, 2009). De modo semelhante aos pensamentos socráticos, o conhecimento de si está relacionado com a percepção de si mesmo. Entretanto, essa definição mantém como centro das explicações o ser humano, fazendo-o refletir sobre suas próprias ações, sua inclinação e seu sentimento. Dito de outra maneira, o termo sugere que a pessoa, por ela mesma, conheça as razões do seu modo de agir, sentir, etc. Implicitamente, o termo “autoconhecimento” tem sido empregado na linguagem cotidiana não só para a descrição da ação de conhecer a si mesmo, mas também como um gerador das ações conhecidas. Isto é, o conhecer sobre algo ou alguém justifica o comportamento final de uma pessoa (Marçal, 2004). Um primeiro esboço para uma interpretação comportamental do uso cotidiano do termo “autoconhecimento” sugere que ele diz respeito ao repertório comportamental do organismo de estabelecer relações funcionais do próprio comportamento. Isto é, que o próprio organismo que se comporta sabe discriminar e descrever as contingências de controle do seu comportamento. Avançando na definição cotidiana, o objeto de conhecimento seriam os “sentimentos” e as “inclinações”, para citar alguns. Em algum sentido, o foco do autoconhecimento – no lugar comum – está no conhecer eventos privados. Enquanto comportamento, eventos privados são compreendidos como um conjunto de relações entre estímulos, respostas e consequências (i.e., a contingência tríplice, em que o comportamento alvo de análise é privado). Tal qual qualquer outro comportamento, é selecionado pelos níveis filogenético, ontogenético e cultural. O autoconhecimento também se refere às condições em que um determinado comportamento ocorreu e a quais variáveis o controlaram. Seria, portanto, o ato de prestar atenção em sentimentos e pensamentos (como quando a pessoa passa a discriminar e/ou descrever eventos e/ou comportamentos com relação a ela mesma e seu meio ou com ela própria), que se dá de forma única para cada um e é inacessível aos outros. Somente a pessoa que se comporta tem acesso ao seu comportamento privado 125 (nesse caso, o prestar atenção, o sentir, o pensar, as percepções e sensações), a não ser que o comportamento se torne público – por meio da verbalização, por exemplo (de Rose, Bezerra, & Lazarin, 2012; Marçal, 2004; Skinner, 1953/2003; Tourinho, 1999). Em síntese, autoconhecimento é a descrição de estados privados, instalados por meio de um comportamento produzido por uma história de reforçamento (contexto no qual o sujeito está inserido). Também está relacionado com as descrições verbais a respeito das contingências que operam ou se mantêm no comportamento de uma pessoa. AUTOCONHECIMENTO Diz-se que uma pessoa tem autoconhecimento quando se torna apta a discriminar e descrever eventos que ocorrem nas relações entre si mesma e seu meio ou seu próprio comportamento. Ou seja, é (a) uma discriminação de eventos privados (sejam eles referentes a eventos públicos ou privados), instalados por uma comunidade verbal por meio de reforçamento; e também é (b) a descrição pública de estados privados (emitida na forma verbal), sob controle de estímulos discriminativos (nesse caso, um tato1). Portanto, autoconhecimento é compreendido como um repertório de se fazer auto- observação e autodescrição2 sobre o próprio comportamento do indivíduo que se comporta (Brandenburg & Weber, 2005; Del Prette & Almeida, 2012; de Rose et al., 2012; Skinner, 1953/2003; Tourinho, 1995). Alguns tratariam “autoconhecimento” por “autoconsciência” (de Rose et al., 2012). Essa descrição não é necessariamente antagônica à já tratada aqui, se for considerado que a consciência deve ser entendida como a descrição do próprio comportamento e não como uma manifestação de algo subjacente, ou algo que promova comportamentos. Consciência está relacionada com a instalação de um repertório verbal descritivo do próprio comportamento (de Rose et al., 2012; Tourinho, 1995); uma metáfora que pode ser mais bem descrita como comportamentos conscientes (Brandenburg & Weber, 2005; Matos, 1995;). Desse modo, quando se diz que um sujeito é consciente do próprio comportamento, significa dizer que existem contingências verbais de reforçamento que dão explicações para aquilo que ele descreve quando sente ou quando observa introspectivamente (Brandenburg & Weber, 2005; de Rose et al., 2012; Del Prette & Almeida, 2012; Skinner, 1953/2003; Tourinho, 1995). 126 É comum acreditar que a pessoa que busca pelo conhecimento de si é o sujeito mais capaz para descrever o que acontece consigo mesmo. Entretanto, esse indivíduo só se reconhece e obtém conhecimento quando há uma importância social para que tal conhecimento seja adquirido. Isto é, o conhecimento é importante, primeiramente, para a comunidade verbal e, depois, para si próprio (Sério, 1999). Conforme apontam Kohlenberg e Tsai (1991/2006, p.6), Todo comportamento verbal, não importa quão privado pareça ser o seu conteúdo, tem as suas origens no ambiente. Embora os fenômenos relacionados ao funcionamento verbal humano possam variar do mais intimamente pessoal ao mais publicamente social, toda linguagem que faça sentido tem a sua forma eficaz modelada pela ação da comunidade verbal. Apesar de ser verdadeiro o fato de que somente nós sabemos o que ocorre no nosso mundo privado, precisamos de uma comunidade verbal que nos possibilite conhecer o nosso mundo e que evoque em nós comportamentos descritivos. O autoconhecimento, portanto, é um produto social. O indivíduo passa a discriminar o que controla o seu comportamento, o que lhe permiteestar em uma melhor posição de prever e controlar seu próprio comportamento. Ou seja, a pessoa que se tornou “consciente de si mesma” tem maior probabilidade de dispor de condições para que seu comportamento seja mais ou menos provável de ocorrer (Sério, 1999; Skinner, 1974/2006). Além disso, ao mesmo tempo em que existem diferentes comunidades, há diferentes formas de autoconhecimento e diversas possibilidades de uma pessoa explicar-se sobre si mesma ou sobre outros (Skinner, 1989/2003). “Algumas comunidades produzem a pessoa profundamente introspectiva, introvertida ou voltada para dentro; outras produzem o extrovertido sociável” (Skinner, 1974/2006, p. 146). É por meio de uma comunidade verbal específica que o indivíduo aprenderá/desenvolverá o repertório autodiscriminativo. O comportamento verbal como meio importante para o autoconhecimento Skinner (1974/2006) apresenta motivos que justificam a importância do comportamento verbal para a instalação de repertórios autodiscriminativos. Em primeiro lugar, o indivíduo só se comporta autodiscriminadamente se houver contingências providas pela comunidade verbal que favoreçam esse treino discriminativo. Ou seja, é preciso haver descrições de comportamentos públicos e privados, produtos de contingências específicas, que sejam verbais e 127 organizadas por uma dada comunidade verbal. Em segundo lugar, porque é por meio do relato verbal que a comunidade consegue acessar os comportamentos privados de uma pessoa (Skinner, 1953/2003; Tourinho, 1995). Os relatos são importantes, pois “são pistas (1) para o comportamento passado e as condições que o afetaram, (2) para o comportamento atual e as condições que o afetam, e (3) para as condições relacionadas com o comportamento futuro” (Skinner, 1974/2006, p. 31). O comportamento verbal é classificado por Skinner em oito tipos distintos: ecoar, copiar, tomar ditado, mandar, ler (pré-textual), intraverbalizar, rearticular e tatear (Matos, 1995; Skinner, 1957/1978). Não cabe aqui discutir todos os operantes verbais, mas será dado foco para aquele que em especial possui relação com o autoconhecimento – o tato. O tato é um operante verbal emitido sob controle de um dado estímulo discriminativo, seja ele externo ou interno ao organismo. Assim, refere-se a descrições/informações de eventos, sejam essas descrições controladas por eventos externos físicos (p. ex., “caneta”), externos sociais (p. ex., “houve um motim”), internos fisiológicos (p. ex., “sinto dor”) ou internos históricos (p. ex., “tendo a solicitar ajuda quando não sei o que fazer”). Isto é, o tato serve à designação tanto de objetos quanto acontecimentos, por exemplo. Por essa razão, esse operante verbal é muito utilizado pela comunidade como meio para ensinar a descrição de comportamentos privados, visto que poderá se referir a descrições sobre comportamentos públicos e/ou privados do próprio indivíduo. Isso pode ser mais bem definido como autotato (Brandenburg & Weber, 2005). Existem quatro estratégias por meio das quais a comunidade verbal poderá auxiliar a pessoa a emitir respostas verbais a respeito de estímulos privados3 (i.e., tatear estímulos privados): 1. por inferência, utilizando-se de estímulos públicos associados ao estímulo privado para reforçar a resposta do indivíduo (p. ex., ver o joelho de uma criança sangrando – correlato público – e nomear/reforçar aquilo que ela sente como “dor”); 2. por reforçamento da resposta verbal ao estímulo privado na presença de outras respostas colaterais (p. ex., sentir dor de dente ao mesmo tempo em que põe a mão na mandíbula); 3. por meio da descrição do próprio comportamento: (a) quando há a emissão de um comportamento público em que a comunidade poderá reforçá-lo 128 diretamente (p. ex., quando uma pessoa machuca o joelho e este sangra, a comunidade poderá dizer que o joelho está sangrando); e (b) quando se refere a um comportamento público que retrocedeu a nível privado, permitindo à comunidade se utilizar do relato e reforçar a resposta aberta tomada como acompanhamento da resposta privada (p. ex., apresentar um cálculo de matemática para o indivíduo e este fazê-lo de cabeça ou relatar um sonho); e 4. por generalização de estímulos com base em propriedades coincidentes/simultâneas (p. ex., a pessoa afirmar que está agitada quando observa que não consegue parar de se mexer ou dizer que está com o estômago embrulhado quando este é acompanhado por barulhos ou a sensação de estar “revirando por dentro”) (Brandenburg & Weber, 2005; Skinner, 1957/1978; Tourinho, 1995). As respostas de auto-observação, no entanto, raramente são reforçadas contingentemente. Por essa razão, necessitam de uma comunidade verbal que utilize procedimentos que envolvam o comportamento verbal para ensinar a pessoa a se auto-observar, discriminar e descrever as contingências que controlam o próprio comportamento. Ou seja, a comunidade verbal deve prover estímulos discriminativos verbais ao indivíduo que evoquem comportamentos de auto-observação e descrição das contingências que o cercam. Uma forma de fazer isso é por meio de perguntas como: “O que você está fazendo?” ou “O que está sentindo?” (Skinner, 1953/2003). Assim, Perguntas da comunidade são SD para → resposta de auto-observação que produz → S do próprio comportamento (e de suas condições e consequências) que são SD para → resposta de autotato [relato sob controle do que é observado – inserção nossa] que produz → S reforçador social (de Rose et al., 2012, p. 200). Assim como ocorre na modelagem, as respostas emitidas pelo organismo podem não ser muito acuradas de início. Tais respostas vão sendo modeladas conforme a descrição de novos correlatos apresentados pela comunidade sobre eventos privados. Desse modo, essas outras exposições passam a reforçar contingentemente e de forma mais acurada uma dada resposta de autotato. Contudo, pode haver casos em que a comunidade verbal não participa diretamente desse processo, como em circunstâncias em que as contingências já arranjadas pela comunidade determinam quais estímulos serão discriminados. Ou seja, quando ocorrem eventos contíguos e, por modelação, o sujeito aprende a descrever certa situação. Apesar de não ter efetiva e diretamente o 129 envolvimento da comunidade, como grupo verbal, o comportamento verbal é obviamente estabelecido (de Rose et al., 2012; Skinner, 1953/2003). Vale ressaltar que o mais importante, segundo Skinner (1974/2006), não é apenas aquilo que a pessoa diz sobre o que faz, pensa ou sente, mas se, em algum momento, houve circunstâncias para que ela se observasse e/ou relatasse seu comportamento. Assim como Skinner (1953/2003) menciona que o autoconhecimento é considerado um repertório especial, de tal modo que o que se torna relevante não é saber se o comportamento que uma pessoa deixa de relatar é realmente observável, mas se, em algum momento, tal pessoa teve razão para observá-lo. E mesmo assim, quando prevalecerem circunstâncias apropriadas, o autoconhecimento poderá não ocorrer. Como pode ser exemplificado na seguinte citação: Não temos necessidade de supor que os eventos que acontecem sob a pele de um organismo tenham, por essa razão, propriedades especiais. Pode-se distinguir um evento privado por sua acessibilidade limitada, mas não, pelo que sabemos, por qualquer estrutura ou natureza especiais. Não temos razão para supor que o efeito estimulador de um dente inflamado seja essencialmente diferente do efeito de um forno quente. (...)Como são tratadas essas variáveis? (Skinner, 1953/2003, p. 281-282). Nesse sentido, o comportamento “expresso” é estritamente limitado pelas contingências que a comunidade verbal dispõe ao sujeito. A comunidade possui restrições ao acesso do comportamento encoberto, assim como também o próprio indivíduo que se comporta, uma vez que este pode por inúmeras vezes e por razões distintas distorcer seu próprio relato para si mesmo. O ambiente, seja ele público ou privado, poderá permanecer indistinto até que a pessoa seja “forçada” a fazer alguma observação (Skinner, 1953/2003). Para que a comunidade verbal contribua para que um indivíduo elabore formulações sobre si mesmo, ela não precisa necessariamente ter acesso direto aos seus eventos privados. Por outro lado, em todas as estratégias cabíveis, há a possibilidade de erro, imprecisão e limitação na sua aplicação. Desse modo, nenhum indivíduo consegue “se conhecer por inteiro” ou “claramente”, no sentido de ter um conhecimento sobre si que se identifica com o comportar-se discriminativamente (Tourinho, 1995). Por mais que haja uma comunidade verbal que evoque esse tipo de comportamento, as pessoas não estão sempre atentas4 ou não estão conscientes do que ocorre a elas enquanto agem. Por esse motivo, frequentemente os indivíduos fazem afirmações erradas, ainda que tenham enfrentado circunstâncias semelhantes no passado, havendo uma tendência de criarem explicações com atribuição à herança genética, como “eu 130 nasci assim” ou “é esse tipo de pessoa que sou” (Brandenburg & Weber, 2005; Skinner, 1974/2006). Podem ainda existir casos de ausência de autoconhecimento. A partir do momento em que isso é identificado, torna-se imprescindível a identificação de quais foram as variáveis que contribuíram para que esse repertório seja “empobrecido”. Uma das possibilidades de identificar e intervir sobre tais variáveis seria ampliando o repertório do indivíduo por meio da psicoterapia, a fim de que o cliente se torne capaz de discriminar seus comportamentos e identificar as variáveis que o influenciam. Assim sendo, psicoterapia é, em última instância, um espaço para aumentar a auto-observação ou “trazer à consciência” aquilo que se encontra “oculto”. Dito de outra maneira, o psicoterapeuta pode servir como comunidade verbal para instalar repertórios de tatos relativos ao autoconhecimento do cliente que não teve oportunidade de treinar tal repertório ao longo de sua história de vida (Brandenburg & Weber, 2005; Sério, 1999; Skinner, 1989/2003). Em síntese, sem uma comunidade verbal e sem condições mínimas para o desenvolvimento de repertórios autodiscriminados, muito dificilmente o sujeito estará apto a fazê-lo. Sem a comunidade verbal, ele não estará estimulado a observar os próprios comportamentos, tendo como efeito uma dificuldade para discriminar as variáveis que o controlam, isto é, desenvolver autoconhecimento e tatos precisos. Questionamentos, perguntas, provocações e/ou manejo de algumas contingências são algumas das estratégias típicas que a comunidade empregará para levar a pessoa a se atentar aos eventos que estão à sua volta. Uma das possibilidades, em psicoterapia, é que o terapeuta assuma esse papel da comunidade verbal com o propósito de estabelecer (modelar) o repertório de autoconhecimento em pessoas que tiveram tal treino empobrecido. O terapeuta como mediador O terapeuta pode atuar como comunidade verbal e social que ajude o cliente a tatear e descrever as relações entre sentimentos, comportamentos públicos e ambientes nos quais ele se encontra, quer sejam esses eventos passados, presentes ou ideações quanto ao futuro. Nesses casos, o objetivo do terapeuta é manejar contingências para o estabelecimento de novos repertórios a fim de minimamente predispor, no sentido de criar condições, para que o sujeito se autoconheça melhor. Estratégias que ampliem o repertório de auto-observação do cliente poderão favorecer relatos com maior precisão quanto aos diferentes 131 sentimentos e estados corporais, consequentes de reforçamento negativo ou punição, ou contribuir para a discriminação de respostas de prazer típicas de contingências de reforçamento positivo (Cunha & Bortoli, 2009). “A função da terapia é, portanto, dar condições para o cliente analisar como e por que ele emite determinados padrões comportamentais (autoconhecimento) e, a partir desse conhecimento, eleger os que aumentem os reforçadores em sua vida cotidiana (autocontrole)” (Delitti & Thomaz, 2004, p. 60). Como efeito desse aprendizado, o cliente terá condições de emitir respostas semelhantes quando, no futuro, surgirem situações parecidas (Madi, 2004). O terapeuta irá auxiliar seu cliente a ter ciência dos estímulos e das variáveis das quais o comportamento é função. Isso o colocará em uma melhor condição de prever e controlar o seu próprio comportamento. No entanto, mesmo que seja de suma importância o trabalho do autoconhecimento na psicoterapia, isso não fará necessariamente o sujeito ter uma postura mais ativa ante os eventos de seu cotidiano, isto é, o autoconhecimento, embora possa predispor a mudança, não é condição suficiente para que ela ocorra (Skinner, 1953/2003). Mesmo após o processo psicoterapêutico, caso o cliente não consiga discriminar as contingências às quais está exposto e não consiga intervir sobre elas, caberá ao terapeuta ensinar, por meio de técnicas e/ou ferramentas, como fazê-lo. Por meio dessas técnicas é que o cliente poderá identificar as consequências que seu comportamento gerou no passado, as consequências que são produzidas atualmente e encontrar novas fontes de reforços positivos para que ele amplie sua variabilidade comportamental (Madi, 2004). Técnicas para o manejo terapêutico do autoconhecimento Enquanto terapeutas, esperamos que as razões que fornecemos aos nossos clientes os auxiliem em seus problemas da vida diária. (Kohlenberg & Tsai, 1991/2001, p. 42) A Análise Comportamental Clínica faz uso de técnicas para instrumentalizar a prática do terapeuta5. Essas técnicas podem variar desde o uso de um arsenal conceitual para fins de intervenção sobre o comportamento (p. ex., identificar um comportamento clinicamente relevante do tipo 1, CRB16) até o emprego específico e focado de alguns manejos para a modificação do comportamento (p. ex., economia de fichas). Isto é, por técnicas comportamentais, compreende-se a sistematização de intervenções orientadas para a finalidade de obter um 132 determinado resultado em uma dada situação. Portanto, para o terapeuta comportamental, as técnicas funcionam como antecedentes verbais (tal qual regras), cujo seguimento produz consequências iguais ou semelhantes àquelas previstas e especificadas pelas técnicas (Del Prette & Almeida, 2012). A intervenção analítico-comportamental clínica amparada por técnicas deve seguir alguns passos, a saber: (a) fazer a análise de contingências: ferramenta teórico-prática que corrobora a identificação de como as contingências estão arranjadas. Essa análise inicial é embrionária, mas proverá ao clínico as “hipóteses” terapêuticas que deverão ser testadas em uma análise funcional; (b) realizar a avaliação funcional: identificar e descrever sistematicamente as relações entre os comportamentos dos indivíduos e suas consequências, ou seja, é a busca pelos determinantes (variáveis de controle) da ocorrência do comportamento. A partir das análises preliminares de contingência, o terapeuta comportamental irá ampliá-la, obtendo mais dados, identificandoos comportamentos que serão fruto de intervenção e operacionalizando esses comportamentos-alvo, vislumbrando variáveis que podem ser manipuladas e prevendo o efeito dessa manipulação sobre o comportamento-alvo (Kohlenberg & Tsai, 1991/2001; Moreira & Medeiros, 2007; Skinner, 1974/2006); (c) programar a intervenção: selecionar instrumentos, ferramentas e ações (do terapeuta) como estratégia para alterar o comportamento do cliente; e, por fim, (d) deliberadamente empregar as técnicas para alcançar os objetivos terapêuticos (Del Prette & Almeida, 2012). Em alguma medida, a reavaliação do emprego da técnica é feita, pois, como dizem Del Prette e Almeida (2012), “toda intervenção (inclusive com uso de técnicas) envolve uma avaliação contínua” (p. 149). Segundo Del Prette e Almeida (2012), as intervenções sobre o comportamento operante podem ser realizadas em qualquer das três variáveis da tríplice contingência (antecedentes, respostas e consequências). Para o propósito deste estudo (i.e., intervenções para promover autoconhecimento), serão mencionadas apenas algumas estratégias que alteraram o controle antecedente. Algumas das possíveis intervenções sobre variáveis antecedentes podem derivar de alterações verbais de controles discriminativos dos comportamentos do cliente. Essas mudanças do controle discriminativo podem ocorrer por regras, autorregras ou ao longo do contato direto com a contingência: 1. A regra funciona como estímulo discriminativo verbal que especifica uma contingência (sejam todos os termos da contingência – regras completas, ou não – regras incompletas). A descrição “você deve acordar diariamente às 7h 133 da manhã para não chegar tarde ao trabalho” especifica o antecedente (horário), a resposta (despertar) e a consequência (não chegar tarde ao trabalho). 2. Autorregras, assim como as regras, são estímulos discriminativos verbais que especificam contingências, porém, são formuladas pela própria pessoa que se comporta. Essas regras podem especificar acuradamente, ou não, contingências às quais as pessoas estão submetidas. Descrições como “quando as pessoas me olham, é porque estão me julgando”, embora descrevam parcialmente uma contingência, é improvável que sejam acuradas em todas as suas ocorrências. 3. O contato com a contingência promoverá, em alguma instância, o próprio autoconhecimento. Uma vez que regras e autorregras podem reduzir a sensibilidade às contingências7, o contato com a contingência e a substituição de controles verbais incompletos ou inacurados por controles mais completos e acurados podem favorecer o autoconhecimento. Em qualquer um desses cenários, o propósito é que o cliente modifique suas descrições acerca do controle das contingências sobre o próprio comportamento, em favor de controles mais acurados. A discriminação e descrição acuradas desses controles será a demonstração, por parte do cliente, da aquisição de um repertório de autoconhecimento. Nesse sentido, Del Prette e Almeida (2012) afirmam que, de modo geral, o objetivo de qualquer processo terapêutico envolve a promoção de autoconhecimento, a fim de que o cliente se torne capaz de observar, descrever e manipular as variáveis que controlam seu comportamento e de fazer novas formulações de prescrições, instruções ou regras. Isso permite que, analisando-se a si mesmo, tenha melhores condições de alterar variáveis aversivas que estão intimamente relacionadas à sua queixa e produzir, em curto ou longo prazo, reforçadores positivos (Kohlenberg & Tsai, 1991/2001). Muitos terapeutas se utilizam de técnicas sistemáticas e comprovadas em sua eficácia clínica para trabalhar o autoconhecimento. Alguns exemplos são o fading, o timeout e o role-play. O primeiro diz respeito à passagem gradativa do controle de um estímulo para outro, de modo que, ao longo de sucessivas repetições, se possam obter respostas semelhantes a partir de um estímulo modificado parcialmente ou mesmo de um novo estímulo. Por exemplo, perguntas mais diretivas podem ser empregadas para direcionar quem não tem 134 autoconhecimento e, à medida que o cliente progride na discriminação e descrição das variáveis ambientais relacionadas ao seu comportamento, o terapeuta pode ser menos diretivo, empregando perguntas mais amplas ou reflexivas (p. ex., o terapeuta, por conhecer o pouco repertório de seu cliente, emite perguntas específicas e diretivas, como “quais pessoas conversaram com você hoje?”). O timeout diz respeito à suspensão discriminada, por um certo período, de uma contingência de reforço (p. ex., o terapeuta encerrar a sessão antes do tempo previsto por apresentação de um comportamento inadequado por parte do cliente – “se você continuar a me atacar verbalmente, terei de encerrar a sessão”). Já o role-play diz respeito ao arranjo de uma situação análoga ao contexto do cliente, em que se avalia o desempenho dele, de forma a modelar, via feedback do terapeuta, comportamentos que se aproximam do objetivo terapêutico (p. ex., o terapeuta dizer “percebo que, diante do que expõe, você para de trabalhar quando seu chefe está por perto” e em seguida solicitar que o cliente represente o papel de seu chefe, para que ele discrimine o que o faz interromper sua resposta diante do chefe) (Del Prette & Almeida, 2012). Em todos esses casos, a finalidade das técnicas é promover uma manipulação direta do ambiente terapêutico de modo a provocar alterações no controle discriminativo do cliente, para que este perceba, discrimine, reflita e relate as relações funcionais que controlam seu comportamento. Em outras palavras, a manipulação do ambiente terapêutico é realizada com o objetivo de que o cliente consiga exibir esses repertórios analíticos naquelas e em outras contingências extraconsultório (Del Prette & Almeida, 2012). Com esse mesmo objetivo, também é possível empregar técnicas não sistemáticas para a promoção do autoconhecimento. Uma das formas de se fazer isso é por meio de questionamentos. O uso adequado de perguntas servirá como SD verbal que estabelece ocasião para respostas de auto-observação, que serão reforçadas socialmente pelo terapeuta quando as autoanálises do cliente se aproximarem daquelas relações funcionais que o terapeuta realizou no momento do diagnóstico comportamental (análise funcional). Esses repertórios verbais do cliente podem ser regras e autorregras acuradas, e sua correta emissão será a demonstração da aquisição de um repertório de autoconhecimento. Para além das perguntas, outras estratégias não sistemáticas poderiam ser empregadas com a mesma finalidade da promoção do autoconhecimento. Desse modo, este trabalho objetiva exemplificar como estratégias não convencionais na Análise do Comportamento, empregadas em um Caso clínico de uma mulher com déficit no repertório de autoconhecimento, podem contribuir 135 para a instalação de comportamentos mais discriminados. Ou, dito de outra forma, de como tais técnicas são importantes para favorecer o desenvolvimento do repertório de autoconhecimento. DESCRIÇÃO DO CASO Rafaela (nome fictício), 51 anos de idade, natural de uma pequena cidade no interior do estado de Goiás. Tem três irmãos, sendo dois deles mais velhos e um mais novo. A cliente teve como grau de instrução ensino médio incompleto e se enquadrou como classe média baixa. Dona de casa, casada há 29 anos, mãe de dois filhos (um casal), sendo o filho já casado. Aos 45 anos de idade, procurou por atendimento psicológico quando ficou cerca de duas semanas sem dormir. Todavia, interrompeu os atendimentos e procuroupor um médico com a queixa de dificuldade para dormir, o qual prescreveu clonazepam (10 mg). A cliente usou o medicamento por cinco anos e interrompeu o uso por conta própria. Ao perceber que os sintomas de ansiedade e de insônia estavam retornando, procurou outro médico, o qual prescreveu alprazolam (2 mg). Nessa ocasião, buscou também atendimento psicológico no Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Federal de Goiás – Regional Jataí. Análise funcional/identificação comportamental Nas entrevistas iniciais, Rafaela apresentou a ansiedade como queixa geral para tratamento, mas, ao longo das sessões, apontou outros objetivos terapêuticos específicos, como fazer uma atividade de cada vez (em oposição a iniciar várias e não terminar nenhuma), falar pausada e calmamente e parar de tomar sua medicação (alprazolam). Como somatizações8, exibia dificuldades para dormir, o que atribuía ao excesso de preocupações com acontecimentos inespecíficos, aperto no peito, dores no estômago e falta de controle da respiração, o que a levava a outras dificuldades, como não conseguir falar apropriadamente. A cliente descreveu que, desde muito nova, cuidou de seu pai, dependente de álcool, por isso dormia muito pouco, uma vez que preparava comida para ele e o colocava para dormir. Somente após o pai pegar no sono, ela conseguia se deitar. Afirmou fazer esse procedimento para se certificar de que ele não sairia novamente para beber ou se envolver em brigas. Nunca teve abertura e liberdade para conversar com seu pai ou sua mãe. 136 Esses fatos podem estar relacionados com a gênese de seu quadro de insônia (ver Quadro 4.1), uma vez que ela aprendeu desde cedo a interromper seu sono para administrar problemas alheios e, nesse caso específico, ficar em vigília cuidando do pai. Então, ela mantinha um maior contato com o pai apenas nesses momentos em que ele chegava bêbado em casa. Esses cuidados que o pai recebia de Rafaela eram por ele reconhecidos, e este a estimava muito por todos os préstimos que fazia quando ele chegava alcoolizado em casa. Em alguma medida, o reconhecimento e o afeto do pai poderiam ser reforço positivo social do comportamento da cliente. Ao mesmo tempo, ela evitava que seu pai saísse novamente, que se envolvesse em brigas. Nesse sentido, parte do cuidado também era empregado para evitar que ele se ferisse, o que pode ser caracterizado como reforço negativo. Como dito, esse pode ter sido um fator na gênese dessa preocupação com problemas de outrem, mas, por outros motivos que serão apresentados a seguir, ela manteve esse comportamento. Quadro 4.1 Análise funcional da insônia Antecedentes Respostas Consequências Pai chega em casa após beber Manter-se em vigília e oferecer cuidados ao pai Só dormir depois do pai R+ provindo do pai (afeto) R- evitar que o pai se envolvesse em brigas R+, reforçamento positivo; R-, reforçamento negativo. O pai era muito agressivo, tanto no contexto familiar como em seu meio social (p. ex., ao relacionar-se com pessoas no bar). Ele preocupava-se muito com a reputação de sua filha e dizia para ela: “se eu souber algo sobre você, eu mato a pessoa”. Apesar de ele nunca a ter agredido fisicamente, exibia padrão de agressividade (p. ex., dizer a Rafaela que, se soubesse algo sobre ela, provavelmente relacionado a sexo, mataria a pessoa com quem ela teria se relacionado, além das brigas dele com sua mãe, repletas de agressões verbais), e ela acreditava que as ameaças poderiam de fato tornarem-se atos. Rafaela julgava-se responsável em alguma medida para que isso não ocorresse e, a fim de evitar qualquer tipo de “abertura” para que seu pai interpretasse seu comportamento como inadequado, exibia um comportamento reservado e passivo. Para além dessa contingência, a mãe de Rafaela também foi um modelo de passividade (ver Quadro 4.2). Diante das agressões do marido, mostrava-se uma dona de casa passiva, que não tomava iniciativas. Ademais, admitia que a filha 137 se responsabilizasse pelos cuidados com o pai quando este estava ébrio. Além desse repertório de passividade, a mãe de Rafaela não dava abertura para que seus filhos conversassem com ela, não havendo, portanto, comunicação entre eles, nem mesmo em situações que exigiam isso (p. ex., a mãe nunca falou sobre menstruação com Rafaela). Quadro 4.2 Análise funcional da passividade e do embotamento Antecedentes Respostas Consequências REGRA Permanecer em silêncio/embotamento R- evitar apanhar do pai e/ou ouvir sermões (esquiva) Modelo: mãe passiva e formulação de autorregra “manter-se em silêncio em situações de conflito” SDs Pai agressivo/brigas verbais entre os pais/irmãos apanhando R-, reforçamento negativo. Em alguma medida, isso explica a dificuldade que Rafaela tinha para expressar seus sentimentos e pensamentos. Essa circunstância pode ser compreendida em parte, pelo fato de que a cliente não teve oportunidade de aprender a nomear sentimentos e pensamentos adequadamente, em razão da pouca disponibilidade de contingências que pudessem reforçar tal comportamento. Além disso, quando conteúdos de cunho aversivo precisavam ser mencionados para ela (p. ex., ter de se expressar ou emitir um mando), a verbalização de seus pensamentos saía de forma acelerada e desconexa de sentido entre uma frase e outra – hiperlalia – de tal forma a atrapalhar-se ainda mais em sua comunicação e na manutenção de sua respiração durante a fala (ver Quadro 4.3). Justamente por essa pouca abertura para falar de si e por sua pouca habilidade em interligar assuntos “difíceis”, Rafaela evitava entrar em contato com estímulos que a fizessem refletir sobre seu comportamento e que consequentemente apontavam para o seu pouco autoconhecimento. Quadro 4.3 Análise funcional da hiperlalia Antecedentes Respostas Consequências Quando precisa solicitar ajuda Hiperlalia Efeito: eliciação de respostas emocionais (raiva) que prejudicam ainda mais a hiperlalia Quando descreve eventos passados sobre si Ora é compreendida pelos ouvintes, ora não. De modo geral, as pessoas demonstram disposição para ajudá- 138 la/compreendê-la e acalmá-la (o reforço é intermitente – resistência à extinção) Outros fatores relevantes de sua história estão relacionados com a sogra. Como Rafaela, em sua juventude, não se ocupou dos afazeres de casa, não tinha muitos conhecimentos sobre culinária ou organização do lar. Quando se casou, sua sogra (já falecida quando iniciou a terapia) disse que ela não seria uma boa esposa ou dona de casa. A partir desse momento, a cliente passou a se dedicar a tarefas domésticas. Esse episódio em particular, junto com a preocupação que já tinha sobre sua reputação, sua passividade e a falta de repertório de contracontrole (p. ex., não conseguiu contra-argumentar a fala da sogra) e a tendência de seguir regras e autorregras (repertório modelado como forma de evitar estimulação aversiva, vinda em grande parte da agressão do pai), trouxeram como efeito uma maior apreensão quanto à sua conduta, à sua moral e aos seus valores como esposa, diante de outras pessoas (ver Quadro 4.4). Quadro 4.4 Análise funcional da preocupação com outros Antecedentes Respostas Consequências Regra do pai: “se eu souber algo sobre você, mato a pessoa” Regra da sogra: “você deve ser uma boa mãe e esposa” Pessoa conhecida necessitando de cuidados/ajuda Priorizar o cuidado com o outro/assumir cuidados com o outro R+ provindo do pai (afeto) R- evitar que o pai se envolvesse em brigas/ferisse alguém R+ social familiar (apreço e reconhecimento) R- esquiva (evita magoar pessoas e perder reforço social) No fundo cinza estão as contingências passadas que podem ter sido gênesedo padrão comportamental. No fundo branco, estão as contingências atuais que provavelmente mantêm o padrão. Assim, desde cedo, a cliente demonstrou um repertório de passividade e embotamento. Esses repertórios, aliados às regras coercitivas (portanto, supressoras de comportamentos) de seu pai, contribuíram para que a cliente não desenvolvesse repertórios de contracontrole (p. ex., negociação/assertividade) em contingências aversivas, tampouco desenvolveu repertórios que poderiam dar acesso a reforçadores positivos para além dos que ela já estava habituada (i.e., reforços sociais). Embora a exposição a novas contingências fosse importante para o desenvolvimento de seu repertório, Rafaela isolava-se cada vez mais e evitava situações de conflito. Dessa forma, esquivava-se do contato com situações aversivas. 139 Outra característica de Rafaela era a preocupação com sua moral e conduta. Para a cliente, era importante ser reconhecida como uma pessoa “boa”, “certinha” e de “bom caráter”, escrupulosa consigo mesma e com os outros. Nesse contexto, havia uma forte contribuição da regra e autorregra que ela descrevia sobre seu modelo familiar. Seu comportamento era governado por um modelo tradicional de família, segundo o qual “família unida não briga”. Essas regras favoreceram para que Rafaela nunca soubesse dizer “não” para solicitações que seus familiares faziam a ela. Aliado a isso, naturalmente, estava seu repertório de evitar situações de conflito (ver Quadro 4.5). Dessa maneira, encontrava-se sempre com excesso de afazeres por tentar ajudar ou solucionar problemas que não estavam diretamente relacionados a ela ou que estavam a ela relacionados, mas que não sabia como negociar naquele momento. Quadro 4.5 Análise funcional quanto à preocupação com sua reputação Antecedentes Respostas Consequências Regras Regra do pai: “se eu souber algo sobre você, mato a pessoa”; “família unida não briga” Autorregras “Sou uma pessoa boa”; “Todos devem gostar de mim” SDs Solicitação de ajuda/favores de amigos/familiares Atender aos pedidos de familiares e amigos/esforçar-se para resolver os problemas dos outros R+ social familiar e do marido (apreço e reconhecimento); familiares sempre solicitam a sua ajuda R+ social de amigos (apreço e reconhecimento: é vista como uma “pessoa boa”); amigos sempre solicitam a sua ajuda R- esquiva (evita magoar pessoas e perder reforço social) Ressalta-se que os respondentes eliciados (p. ex., coração acelerado e respiração descoordenada) e as somatizações (p. ex., sono irregular e dores no estômago) que Rafaela apresentava, embora pudessem relacionar-se a um quadro dito de “ansiedade”, não eram assim denominados pela cliente. Para caracterizar sua ansiedade, ela descrevia somente as respostas de hiperlalia, insônia e seu “atropelo” pelo excesso de atividades a fazer; isto é: todas respostas públicas. Respostas privadas, como o desconforto sentido por ela nessas contingências de conflito aproximação-esquiva, não eram nomeadas pela cliente, embora ela relatasse algum desconforto, o qual pode ter favorecido episódios de insônia e a consequente autoadministração de alprazolam. Por seu turno, as somatizações decorrentes disso eram nomeadas como “cansaço”, “estresse” e “raiva”. Esse contexto de criticidade dos reforços sociais (que são praticamente os únicos que a cliente tem) e o risco de perdê-los caso emitisse respostas mais 140 autênticas e/ou assertivas (ao menos é assim que ela se comporta em função de suas regras) deixavam-na em conflito, o que estava favorecendo a manutenção dos respondentes de “ansiedade”. Por um lado, a emissão de resposta assertiva poderia gerar a perda de reforçadores (p. ex., desaprovação social), por outro, geraria o reforço desejado (p. ex., diminuição da carga de trabalho). E, nesse cenário, um repertório que emergia garantindo o acesso a esse reforçador (diminuição da carga de trabalho), sem gerar a possível perda de reforços (desaprovação social), envolvia justamente as somatizações (p. ex., insônia e preocupações excessivas com coisas cotidianas), que acabam ganhando um componente operante – isto é, passam a ser mantidas por reforçamento negativo. Uma vez que ela mesma e seus familiares valorizam bastante a questão da manutenção da saúde, esse “argumento” é bem aceito nessa comunidade verbal, tornando o repertório da cliente apto a produzir os reforços e evitar as punições. Por esse motivo, ela apresenta grande dificuldade em perceber que seu repertório atual é fruto de efeito de história, o que é muito compreensível, uma vez que ela não teve condições favoráveis, isto é, modelos familiares que estimulassem a expressão de seus sentimentos e pensamentos. De tal modo, uma orientação terapêutica no sentido do autoconhecimento revelou-se fundamental, base para a compreensão de um modelo interacionista do comportamento com o seu meio, o que poderia motivá-la a modificar padrões comportamentais. Rafaela não considerava suas regras e autorregras, bem como sua história, como variáveis que instalaram padrões comportamentais, o que não contribuía para que ela assumisse as rédeas da própria vida, deixando de ser vítima da própria história, e passasse ativamente a construir repertórios mais adequados a seus objetivos e queixas apresentados. Nesse sentido, enquanto Rafaela assumisse suas explicações em relação à causalidade de seus comportamentos ou o engajamento deles como descrições mentalistas e relacionadas à herança genética, isto é, “que é como é porque é”, dificilmente teria motivação para fazer diferente. Intervenção Os atendimentos foram realizados em um dos consultórios do Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Federal de Goiás – Regional Jataí. O consultório padrão possuía uma mesa, duas cadeiras e um sofá. Os atendimentos ocorreram semanalmente e duravam cerca de 50 minutos. Ao todo, foram realizadas 23 sessões. As sessões foram planejadas, conforme os passos descritos por Del Prette e Almeida (2012), no intuito de coletar 141 informações iniciais para (a) realizar a análise de contingências, (b) prover a formulação comportamental, (c) programar as sessões de intervenção e (d) empregar as técnicas a fim de atingir o resultado almejado. As sessões envolviam a entrevista clínica acompanhada de outras técnicas individuais, realizadas dentro e fora do consultório, como principal tônica de intervenção. A partir da formulação comportamental, tornou-se evidente que um dos objetivos do processo terapêutico era promover autoconhecimento. Técnicas utilizadas Como já mencionado, as técnicas visam a alcançar algum objetivo terapêutico (Del Prette & Almeida, 2012). Como um foco inicial dos atendimentos era trabalhar o autoconhecimento, as técnicas utilizadas e aqui descritas visavam a atingir esse objetivo. Assim, o foco inicial do processo terapêutico era o de instalar e aprimorar (modelar) descrições e relatos da cliente sobre seu conhecimento de si; isto é, modelar repertórios de descrições relacionadas aos padrões comportamentais por ela apresentados, à sua origem nas interações passadas e às variáveis presentes e mantenedoras dessas respostas. Esse foco terapêutico ficou evidente pelo fato de que a cliente demonstrou dificuldades para discriminar eventos e condições ambientais que corroboravam na manutenção de seu repertório comportamental (os comportamentos identificados como problemas) e pela pouca destreza em descrever respostas privadas de sentimentos e sensações diante de situações específicas. Ademais, as explicações de seus comportamentos sempreeram internalistas, atribuindo causa do seu comportar-se atual a fatores genéticos (p. ex., “...ou saí puxando minha mãe também, não sei”) ou psíquicos (p. ex., “Eu acho que é assim o meu jeito mesmo...”) (Skinner, 1953/2003). As técnicas aqui empregadas tiveram, em conjunto, o objetivo de aumentar a sensibilidade da cliente às contingências que a cercavam e diminuir o controle por suas autorregras arbitrárias acerca da causalidade de seu comportamento. Para tanto, foram empregadas as tarefas de (a) timeline, (b) pizza da vida, (c) exercício dos quadrantes (Sousa & de-Farias, 20149) e (d) diário dos sentimentos. Timeline 142 Descrição. Junto com a cliente é elaborado um “infográfico”, composto por uma linha horizontal, que representa a passagem do tempo. A marcação inicial da linha (em seu lado esquerdo) representa o nascimento da cliente. À medida que a linha aumenta de tamanho para a direita, representa-se a passagem do tempo, até a idade atual da cliente. De maneira mais clara, esse tipo de técnica é descrito por Bonato, Zorzi e Umiltá (2012) por ser uma elaboração longitudinal de eventos apresentados de forma organizada ao longo da história de vida do indivíduo baseados na interação entre tempo e espaço. Isso faz a pessoa se engajar no processo de relatar suas vivências (Poletto, Kristensen, Grassi- Oliveira, & Boeckel, 2014). Dessa maneira, foi solicitado que Rafaela trouxesse uma foto ou fato que representasse cada um dos anos de sua vida, a iniciar, por exemplo, com a história da escolha de seu nome. Assim, cada ano seria representado por um “marco histórico pessoal”, independentemente do que ele representava do ponto de vista emocional (p. ex., se agradável ou desagradável, engraçado, curioso), mas todos os fatos/fotos deveriam ser subjetivamente importantes no sentido de terem impactado a vida da cliente. Objetivo específico e interpretação comportamental. O principal objetivo dessa atividade é demonstrar a influência dos aspectos contextuais no desenvolvimento de padrões de comportamento por parte da cliente. Assim, padrões comportamentais que ela poderia apresentar no passado (p. ex., ser extrovertida) e que não apresentava mais no presente (p. ex., ser tímida) poderiam ser localizados no tempo e. a partir de então, tentar-se desvendar quais variáveis ambientais contribuíram para essas mudanças comportamentais. Outro exemplo é a história do nome. No caso de uma criança filha de professores que se chama Sophia, por exemplo, é possível hipotetizar uma disposição, por parte dos pais, a reforçar alguns padrões comportamentais (p. ex., o interesse pelos estudos, leitura, conhecimento e erudição) e não outros (p. ex., participação em festas ou eventos de massa). Essa atividade seria um “resumo” que permite ao terapeuta e à cliente a descrição da sua história de vida, em função do tempo. É uma forma mais “lúdica” (e menos vocal, o que pode ser interessante para clientes que não possuem o repertório de auto-observação e autodescrição) de realizar o levantamento de sua história comportamental, viabilizando assim a formulação comportamental (i.e., análise funcional) dos “comportamentos-problema” dos quais a cliente se queixa. Do ponto de vista de causalidade, abre a possibilidade de discutir as interações desses comportamentos com o ambiente histórico (p. 143 ex., a própria experiência da cliente), social (p. ex., disposições familiares) e, em casos em que questões orgânicas são mais óbvias, o ambiente biológico (p. ex., diagnósticos genéticos). Assim, a atividade visa a proporcionar elementos para a análise funcional por parte do terapeuta e da própria cliente. Exemplificação. Foi pedido que Rafaela descrevesse eventos de sua vida de forma a apresentar os dados progressivamente, nesse caso do período atual para o passado, sempre relacionando uma data a uma parte de sua história. Isso a fez emitir o comportamento verbal de autotato, na Sessão 2: Terapeuta (T): Você pode me ajudar a fazer essa linha do tempo? Cliente (C): Uhum. T: Então vamos começar a história. Vamos começar de quando você se casou. C: Eu casei com 21 anos. T: Com quantos anos você começou a tomar o Rivotril? C: Nossa, faz tanto tempo! T: Você tinha me dito que foi antes de se casar. C: Não, foi depois que eu casei. Depois que eu vim pra cá (Jataí), foi quando meu menino tinha 6 anos, ele tem 28 hoje. Foi depois de uns cinco anos ou mais para frente ainda. Eu já tinha mais de 40 anos já. T: Então, agora você está com 51 anos e tem dois anos que você parou de tomar o medicamento? C: Tem dois anos que eu parei de tomar o Rivotril e o mesmo tempo que comecei a tomar o alprazolam. Teve um intervalo de dois a quatro meses sem tomar medicamento algum. T: Eu achei que você tinha começado a tomar o Rivotril muito tempo antes de se casar. C: Não, foi muito depois que eu casei. Foi depois que eu fiquei muito tempo sem dormir por conta da minha ansiedade. Aí eu fiquei tomando ele (o Rivotril). (...) T: Sobre sua mãe, você disse que ela também é ansiosa. C: Não, ela ultimamente está ansiosa. Eu estou achando ela muito ansiosa. T: E o que você notou de diferente? 144 C: Esses últimos anos que meu pai ficou doente. Isso também deixou ela mais sozinha. Então, ela também achava que a gente (os filhos) íamos tirar ela da chácara onde ela mora. T: E o que mudou do comportamento dela? C: Está muito agitada. Ligo pra ela, e ela começa a falar muito rápido (ver que esse é um comportamento que a própria Rafaela emite). Por meio da organização temporal dos relatos de Rafaela, foi possível compreender melhor quando ela começou a ter as primeiras somatizações e o que ela compreendia e nomeava como ansiedade. Possivelmente, sem a organização dos relatos, pouco entenderíamos sobre sua história, uma vez que ela apresentava falas rápidas e desorganizadas. Nesse sentido, por mais que ainda houvesse a atribuição por parte da cliente de causalidade a algo subjacente ao próprio comportamento, a atividade foi de suma importância para o estabelecimento de análises funcionais de seu comportamento. Pizza da vida Descrição. Consiste em elaborar um gráfico de setores (gráfico de pizza) onde cada setor (fatia da pizza) corresponde a um fator crítico na vida das pessoas (ver Fig. 4.1). Via de regra, divide-se o gráfico em oito setores, mas é possível acrescentar ou subtrair setores em função dos objetivos terapêuticos de cada cliente. Os setores são: (a) vida amorosa, (b) saúde, (c) finanças, (d) carreira/trabalho, (e) desenvolvimento pessoal (ou intelectual/estudos), (f) vida familiar, (g) vida social/lazer e (h) vida espiritual. A tarefa do cliente é atribuir valor subjetivo a cada setor, proporcional a quanto cada uma daquelas atividades ocupa de seu tempo e esforço cotidianamente. A escolha por um gráfico de setores (e não de barras, por exemplo) é proposital, pois o acréscimo de área em um dado setor necessariamente refletirá no decréscimo de área de algum ou alguns dos outros setores. 145 Figura 4.1 Gráfico de setores elaborado pela cliente (família, finanças, saúde, espiritual, lazer, relacionamentos amorosos, intelectualidade e trabalho). Objetivo específico e interpretação comportamental. O principal objetivo dessa atividade é demonstrar à cliente como ela divide seu tempo e esforço nos oito “setores críticos” da vida. Tal demonstração gráfica poderá auxiliar no autoconhecimento, em circunstâncias sutis ou obviamente notórias em que existe um desequilíbrio muito grande entre setores (p. ex., a pessoa que se dedica quase que exclusivamente ao trabalho e às finanças e não se ocupa com aspectos do relacionamentoamoroso, familiar, saúde, etc.). Os pressupostos comportamentais que respaldam essa interpretação estão alicerçados nas áreas de “ecologia comportamental” (Fantino, 1991) e comportamento de escolha (Herrnstein,1970; Mazur,1991; Todorov & Hanna 2005). De uma forma geral, trata-se de alocar “respostas” ou “tempo” naquelas contingências que, de uma maneira ou outra, são mais reforçadoras para o sujeito. Uma discussão posterior é quanto ao “tipo de reforço” (p. ex., positivo ou negativo) e de “contingência” (p. ex., controle por regras ou contato com a contingência) que mantém esse controle. Já é sabido que a proporção de respostas em cada alternativa tende a se igualar à frequência, probabilidade, proporção, magnitude e imediaticidade dos reforços programados e é afetada ainda pela “qualidade” do reforço e pela topografia da resposta exigida (Herrnstein, 1970; Mazur, 1991). 146 O uso do gráfico de setores implica que o aumento em um setor corresponde à necessária diminuição de outro setor. Assim, estamos forçando uma interpretação de “escolha concorrente”, o que torna a ferramenta interessante do ponto de vista terapêutico para interpretações comportamentais molares (p. ex., para haver mudança, é preciso haver mudança; não é possível aumentar o tempo em família ou fazer uma aula de dança sem afetar o tempo de outra coisa), porém não necessariamente verdadeira para interpretações comportamentais moleculares (p. ex., é possível que a organização da cozinha após o jantar seja realizada pelos membros da família, o que pode trazer benefícios para os setores de “vida amorosa”, “vida familiar” e “finanças”). O terapeuta deve ajudar o cliente a equilibrar essas interpretações e esses cenários de escolha. Exemplificação. A realização da tarefa “pizza da vida” com Rafaela indicou que três setores (Família, Saúde e Espiritual) equivaliam a mais de 50% do total da área do gráfico (ver Fig. 4.1), isto é, essas três contingências eram as fontes de reforçadores críticos para a cliente. A exposição dessa informação de forma visual é amigável e, mesmo para uma pessoa com baixa instrução formal, teve um primeiro efeito terapêutico que foi o da cliente discriminar o “estreitamento” de repertórios e contingências às quais ela se expunha (“É... está bem desproporcional, né?! Mas, é o que representa minha vida”). Do ponto de vista do terapeuta, essa ferramenta levanta outras questões. Por qual razão o comportamento está em baixa frequência nas outras contingências (setores) da vida da pessoa? Será por falta de repertório? Será pelo fato de elas serem de alguma forma aversivas? Como posso estabelecer intervenções que ampliem o repertório da pessoa para que ela tenha acesso aos reforços das outras contingências, tornando-a mais autônoma e provendo maior desenvolvimento? (Naturalmente, isso tudo feito dentro do interesse do cliente). Quais seriam os comportamentos necessários a serem emitidos por parte da cliente, para que ela ampliasse seus reforçadores? Exercício dos quadrantes Descrição. Consiste em elaborar uma matriz de 2 x 2 (ver Fig. 4.2), em que as colunas listam “faço” e “não faço”, e as linhas listam “gosto” e “não gosto”. O intercruzamento entre as linhas e colunas formarão quatro células no total, sendo elas “faço e gosto”, “faço e não gosto”, “não faço e gosto” e “não faço e não gosto”. Esse exercício já foi descrito como tarefa complementar em uma 147 intervenção fundamentada em terapia de aceitação e compromisso para dor crônica com o objetivo de gerar “discriminação”, isto é, parte do processo de autoconhecimento (Sousa & de-Farias, 2014). Figura 4.2 Matriz 2x2. Objetivo específico e interpretação comportamental. O exercício dos quadrantes é uma atividade complementar, por assim dizer, à pizza da vida. Enquanto a pizza da vida fala sobre contingências de reforço, o exercício dos quadrantes vai qualificar os tipos de reforços a que a pessoa está submetida. O objetivo específico, portanto, era ampliar a descrição dessas contingências de reforço por parte da cliente e tentar, ao mesmo tempo, gerar o efeito de discriminação descrito por Sousa e de-Farias (2014), auxiliando o objetivo terapêutico geral de instalar repertórios de autoconhecimento. Essa atividade é uma aproximação didático-terapêutica em que é possível identificar comportamentos mantidos por reforçamento positivo (faço e gosto) e negativo (faço e não gosto), bem como possíveis comportamentos-alvo para fins terapêuticos que estão em baixa frequência por alguma razão (não faço e gosto). Para o presente caso, essa atividade também era importante para sinalizar à cliente que diferentes contingências estão relacionadas a diferentes respostas 148 emocionais e que as “causas” das respostas emocionais estão relacionadas a essas interações, e não a fatores subjacentes, como o “seu jeito de ser”. Lastro empírico que dá suporte a essa interpretação foi mostrado por Cunha e Borloti (2009). Os pesquisadores delinearam um experimento de tentativa discreta com a finalidade de identificar o efeito de quatro diferentes contingências de reforçamento na emissão de tatos de eventos privados de sentimentos. Para tanto, um delineamento misto foi criado, no qual um grupo de 10 pessoas (idades entre 11 e 14 anos) passava pelas condições “reforço positivo” (R+) e “punição negativa” (P-) e outro grupo de 10 pessoas (mesma idade) passava pelas condições “punição positiva” (P+) e “reforçamento negativo” (R-). Em cada contingência, eram apresentadas 50 telas pré- programadas pelo experimentador, em que uma carta de baralho era apresentada no topo da tela (modelo), e uma entre três cartas na parte inferior da tela deveria ser escolhida pelos participantes. O participante escolhia a carta, e seu comportamento era reforçado ou punido, a depender da condição em que estava. Ao final da apresentação das 50 telas programadas, um questionário aparecia para o participante, perguntando qual dos sentimentos correspondia mais precisamente ao que ele sentiu. Entre 12 alternativas de nomes de sentimentos, o participante deveria escolher somente uma. Na contingência de R+, 70% das respostas correspondiam a “contentamento”, “satisfação” e “alegria”. Na contingência de P-, 90% das respostas correspondiam a “frustração”, “desapontamento” e “tristeza”. Na contingência de P+, 60% das respostas correspondiam a “raiva”, “medo” e “aborrecimento”. Por fim, na contingência de R-, todas as respostas correspondiam a “ansiedade”, “apreensão” e “alívio”. O estudo demonstrou que sentimentos descritos pela nossa comunidade verbal como “bons/agradáveis” estão relacionados a contingências de R+ e que sentimentos descritos como “ruins/desagradáveis” estão relacionados a contingências aversivas (P-; P+; R-). A seguir é possível ver como esses achados empíricos dão suporte à atividade terapêutica proposta. Exemplificação. Rafaela discriminou e descreveu que havia mais comportamentos alocados na célula “não gosto e faço” do que nas outras (i.e., excesso de comportamentos mantidos por reforço negativo em sua rotina). Ela dizia que essas atividades “deviam” ser feitas, pois fazem parte da rotina e dos cuidados com a família, por fazerem parte das “obrigações” de uma mulher. O controle por regra era tão superior ao contato com a contingência que, até mesmo nos quadrantes em que deveriam estar presentes reforços positivos, ela 149 descrevia atividades e situações em que os comportamentos emitidos eram de fuga/esquiva. Isso denota o controle por regra e a falta de contato que esse gerava com acontingência e seu carente repertório de autoconhecimento, a ponto de confundir os sentimentos de “alívio” com os de “satisfação”. O seguinte trecho, da Sessão 5, exemplifica essa situação: T: Qual a diferença ou semelhança entre eles? (Entre os itens dispostos no campo gosto e faço) C: Isso aí que eu saía mais, assim, sei lá! Com a correria do tempo fui afastando disso, porque as pessoas ficavam todas ocupadas, deixei de sair porque não me acostumei a sair sozinha com o marido. Como assim?! Acho que não entendi o que você perguntou. T: Vamos tentar pensar em grupo, por exemplo. As coisas que você gosta, como olhar o neto, fazer almoço e lavar roupa. Vamos juntar elas e pensar: o que tem de igual em todas essas coisas que você faz? Quando você faz essas atividades, o que tem de igual nelas? C: Bom assim, igual... o que eu sinto? T: O que você sente, pensa ou relaciona? C: É uma rotina. É isso que tem que ser feito. T: É verdade, são rotinas. E para quem são destinadas essas atividades? C: O almoço? T: Todas as atividades desse grupo [aponta para a célula dos itens gosto e faço] (R+). C: Uai. É para o meu marido, para os meus filhos, minha nora também. Faço para todo mundo. Para eles, né! Pra falar a verdade, quando ele [o marido] não está em casa, eu nem faço almoço. Fazer comida só para mim não. Então eu faço mesmo para eles. T: Então não me parece adequado colocar nesse lugar [aponta a célula do R+] uma coisa que na verdade você faz por obrigação ou por apenas fazer parte do cotidiano. Estou correta? C: É. É mais pra eles e não pra mim, né!? T: Não seria mais adequado passar esses itens [aponta para o quadrante do gosto e faço] para a parte do não gosto e faço? Não seria melhor? 150 Com o direcionamento da terapeuta e o suporte do exercício dos quadrantes, a cliente passa a discriminar que algumas das atividades que até então ela julgava como “satisfação” são na verdade “alívios” (ver a fala “é isso que tem que ser feito” e o fato de ela não fazer o almoço, quando não há controle social – o marido não está em casa –, por exemplo). Em conjunto, as atividades “pizza da vida” e “exercício dos quadrantes” permitiram à cliente perceber que, durante mais de 50% de seu tempo, ela se dedicava à “Família”, “Saúde” e “Espiritual”, o que, na prática, convertia-se em atividades domésticas de manutenção da casa (R-), preparação da alimentação (R-) e cuidado com o neto (R+ de grande custo de resposta), e o pouco contato social que ela tinha era com os colegas de igreja, uma comunidade verbal que dispunha, ao mesmo tempo, de reforçadores positivos sociais e grande controle por regras, que a colocavam em situação de conflito e contato com estimulação aversiva (p. ex. , o seguimento de algumas regras era reforçada positivamente pela comunidade verbal, mas também gerava estimulação aversiva, como quando o “respeitar as vontades do marido” era estímulo discriminativo verbal para ela não dialogar e colocar em questão o fato de ele sempre chegar em casa, jantar, ir para a cama e ligar a televisão enquanto ela tentava dormir). Em resumo, mais de 50% do tempo da cliente era depositado em relações pouco reforçadas positivamente, e a manutenção de seu quadro “ansioso/depressivo” derivava da baixa quantidade de reforços positivos, do excesso de atividades reforçadas negativamente e do controle de regras que também a colocavam no conflito de perda dos poucos reforços críticos que ela possuía em seu ambiente. Assim, reforços positivos e estimulação aversiva potencial advinham da mesma contingência (família). Justamente essa criticidade dos reforços sociais (eram praticamente os únicos que a cliente tinha) e o risco de perdê-los, caso ela emitisse respostas mais autênticas e/ou assertivas (autorregra da cliente reforçada em alguma medida pela comunidade verbal da igreja), deixavam-na em um conflito. A contingência conflitante (R+/R- e P+) era o que gerava sentimentos de “ansiedade” que ela dizia ter. Diário dos sentimentos Descrição. Em um papel A4, foram nomeados 20 sentimentos “bons” e “ruins”, a saber: tranquila, feliz, orgulhosa, esperançosa, saudosa, amorosa, estressada, cansada, preocupada, confusa, desconfiada, irritada, culpada, ansiosa, amedrontada, desesperada, decepcionada, solitária, envergonhada e triste. Em 151 conjunto com esses sentimentos, era apresentado um diário semanal com os períodos do dia (manhã, tarde e noite) (ver Fig. 4.3). Era solicitado à cliente o monitoramento do sentimento predominante naquele período e da razão pela qual ela estava se sentindo daquela forma. Figura 4.3 Representação da atividade “diário dos sentimentos”. Fonte das imagens: Caminha & Caminha (2011) A recorrente não adesão à tarefa fez a terapeuta optar por sua execução no setting terapêutico. Nesse caso, a atividade foi adaptada, e a terapeuta trazia situações da vida da cliente (previamente relatadas nas sessões). Ela deveria escolher os sentimentos que melhor a representavam naqueles momentos. Ou seja, a atividade foi dirigida para evocar autotatos de sentimentos e as situações de sua rotina que estavam a eles relacionados. Alguns exemplos de situações relatadas previamente em sessão e empregadas nessa atividade eram: se uma pessoa liga a televisão enquanto você dorme, como você se sente? Supondo que você tenha uma colega que fala muito, e você não está muito afim de ouvi-la, o que você sente? Caso uma pessoa querida apareça na sua casa repentinamente sem avisar, o que sentiria? Como 152 uma pessoa se expressaria se ela conseguisse conquistar o que deseja? Supondo que ocorra uma briga entre duas pessoas da família, sendo que uma delas é muito tranquila e querida, que sentimento apareceria? Se uma pessoa se sente triste, confusa, raivosa e irritada, mas não sabe falar qual o sentimento, como esse conjunto poderia ser chamado? Imagine uma pessoa que tenha muito receio de andar de avião, o que ela sentiria? Objetivo específico e interpretação comportamental. O objetivo dessa atividade era (a) evocar repertórios de autotatos de sentimentos, alguns dos quais ainda confundidos pela cliente; (b) estimular a cliente a falar sobre si com os outros; (c) modelar alguns desses repertórios verbais (entonação de voz, cadência das ideias, etc.); e (d) criar contexto para a discriminação e descrição de relações funcionais entre as contingências nas quais a cliente estava envolvida e seus sentimentos. Como dito, a expectativa era de que a cliente realizasse a tarefa de automonitoramento “diário dos Sentimentos” ao longo da semana, mas o sucessivo descumprimento da tarefa e sua importância terapêutica fizeram a terapeuta optar por sua realização no setting (ao que parece, a interpretação para a não realização da tarefa parecia estar relacionada ao custo de resposta, mas, se por alguma razão esse tivesse sido um repertório de esquiva, a estratégia de trazer a tarefa para o setting foi um bloqueio da esquiva). Bohm e Gimenes (2008) apresentam uma breve revisão discutindo a técnica de automonitoramento do ponto de vista avaliativo (diagnóstico) e de intervenção. Em alguma medida, o diário dos Sentimentos visava a essas duas funções, dentro de uma perspectiva não tão verbal, no sentido de que ela poderia escrever e não verbalizar diretamente os seus sentimentos diante da terapeuta na sessão, tendo em vista as limitações de instrução que a cliente apresentou. Essas preocupações por parte da terapeuta estão de acordo com uma boa prática clínica e atendem às sugestões propostas pela literatura (Bohm & Gimenes, 2008), de simplificação do diário e utilização de materialde fácil manipulação para o registro. Exemplificação. A realização da tarefa no setting também foi proveitosa, pois, além de viabilizar os objetivos previamente propostos no momento da escolha da técnica, trouxe alguns elementos que não estariam acessíveis à terapeuta caso a tarefa tivesse sido realizada pela cliente em casa. Por exemplo, foi notória a destreza de Rafaela em relatar comportamentos públicos, sobretudo aqueles relacionados à felicidade. Porém, quando os sentimentos eram “negativos”, a 153 latência para a definição de uma resposta por parte da cliente era longa, e todas as escolhas por ela realizadas eram acompanhadas de um “não sei se é isso”. Foi nesse momento que ficou evidente que Rafaela descrevia como “ansiedade” apenas comportamentos públicos (p. ex., gaguejar e falar rápido) e que não reconhecia os comportamentos privados descritos por ela (p. ex. , ficar indecisa, estar tensa e sentir-se angustiada) como tais, nem mesmo em contingências indutoras que demandava uma especificação acurada (p. ex. , como quando ela fazia uma solicitação e não era atendida). Ela tão somente relatava sentimentos difusos nesses momentos. O seguinte trecho, retirado da Sessão 13, é ilustrativo: C: Fiquei estressada durante a tarde de quinta porque teve o assunto dos papéis do meu sogro. T: Uhum. C: Por mais que eu passei estresse, eu passei a semana mais tranquila do que irritada. Eu não estava tão irritada. Sabe, estou conseguindo e aprendendo. Não estou mais como antes. Meus pensamentos estão mais controlados. Não fico mais pensando naquilo toda a vida. T: Uhum. C: Quando eu coloquei “tranquila”, eu esperava a qualquer momento uma ligação de Goiânia [para levar o pai ao médico], mas eu consegui dizer [para o marido] que eu ia para Goiânia com o meu pai e que alguém teria que se responsabilizar por ele [o sogro]. Então, depois que eu falei isso, que estava me deixando agitada, eu fiquei até mais tranquila. Aí eu anotei aqui. Portanto, nos moldes em que a intervenção foi realizada, ela acabou cumprindo mais a função de “observação” e “avaliação” do que propriamente as funções de “intervenção”. Para a terapeuta, foi importante na medida em que proveu dados que auxiliaram na “análise funcional”, no “estabelecimento de metas terapêuticas” e no “planejamento de ações futuras” (Bohm & Gimenes, 2008). Considerações gerais sobre as técnicas Ressalta-se que o emprego de técnicas terapêuticas descritas aqui foi adjuvante e que nenhuma técnica foi empregada sem ter sido antes amparada pela análise funcional do Caso clínico. Isto é, reconhecemos e reiteramos que a análise 154 funcional é a pedra fundamental de toda e qualquer intervenção comportamental (de-Farias, 2010; Delitti, 1997; Matos, 1999; Skinner, 1974/2006). Como descrito por Del Prette e Almeida (2012), o uso de técnicas é a adoção de uma alternativa para se atingir um objetivo. Assim, foi nosso objetivo no presente capítulo ilustrar um caminho possível para se chegar a um fim (i.e., um método). Outro ponto crítico, e derivado do parágrafo anterior, é a importância de o terapeuta reconhecer a linha de base do cliente, sendo empático e respeitoso quanto às limitações no momento do uso das técnicas. No presente caso, foi observado que Rafaela demonstrava baixa instrução e intercalava momentos de fala confusa e verborrágica com longos silêncios (de falta de assunto). O emprego de técnicas que não exigiam tanto de seus repertórios de escrita e que poderiam ser substituídas por alternativas (p. ex. , colagens, desenhos ou simples palavras) viabilizava a abordagem do conteúdo trazido pela cliente de uma maneira acertada e lúdica. Além disso, possibilitava a organização do conteúdo e de sua própria fala, que ocorria de forma “errática”, isto é, de forma desorganizada. As intervenções também priorizaram o uso de informações visuais e de fácil discriminabilidade para favorecer o entendimento, por parte da cliente, das análises realizadas. Por exemplo, a pizza da vida e o exercício dos quadrantes forneciam informações visuais de fácil compreensão. A proporção de cada setor, no gráfico de pizza, e/ou a quantidade de coisas em cada uma das células, no exercício dos quadrantes, esclareciam quase que por si só a maneira como a cliente se comportava. Parte da função da terapeuta nesse contexto, além de reforçar algumas das interpretações da cliente e modelar outras, era a de relacionar o conteúdo evocado com as duas atividades. Evolução terapêutica Parte da aquisição e do refinamento do repertório de autoconhecimento de Rafaela e da discriminação e descrição de sentimentos foi possibilitada pelas técnicas aqui descritas. Além disso, as sessões em si, em conjunto com as perguntas/pontuações que a terapeuta fazia no setting, alteravam o controle discriminativo de contingências extraconsultório, o que viabilizava a generalização gradual do repertório de autoconhecimento que estava sendo modelado no setting. Esses repertórios ficaram mais evidentes por volta da 13ª sessão, momento em que a cliente passou a perceber e reconhecer algumas das relações funcionais trabalhadas em sessão. Rafaela, que até então não tendia a 155 apresentar muitos relatos de eventos privados, passou a exibir essas experiências subjetivas, relacionando-as com aspectos de sua interação com a filha, por exemplo. Ademais, observou o comportamento de sua filha, identificou as variáveis que a estimulavam e relacionou o controle ambiental do comportamento de sua filha com o controle ambiental de seu próprio comportamento. Esse último exemplo pôde ser visto pela evolução da 13ª sessão. C: Outra coisa que eu até anotei, que você me perguntou, foi de conversar abertamente com a minha mãe. Você me perguntou se eu sou fechada assim, às vezes, por causa da minha vida. T: Uhum. C: Aí eu estava pensando... fui embora pensando e pensando. Eu falei: “não, mas eu converso com a minha filha e tal!”. Mas, aí não, realmente você tem razão, eu acho. Porque eu converso com a minha filha agora, depois de velha. Eu nunca conversei com ela sobre a adolescência dela ou falar dos meus sentimentos ou problemas para ela. E ela, eu percebi isso agora, que ela está fazendo o mesmo comigo. Ela não me conta nada dela, por medo de eu ficar preocupada. Então, faz sentido isso aí [de ter aprendizado ao longo da vida]. Tem um fundo de verdade. Talvez a minha mãe passou isso para mim. Ela [a filha] faz comigo exatamente o que eu fazia com ela [mãe da cliente]. Aí eu percebi que realmente tem sentido nisso. T: Então, eu compreendo quando você diz que não consegue ver relação, pois assim como os seus filhos, você também sabe muito pouco sobre seus pais. Passou 51 anos para você perceber como eram as relações. C: Aí eu pensei: “gente, mas pode ter sido isso mesmo, a criança vê tudo”. T: E eu volto a dizer aquilo que você também me disse, que todo sentimento tem uma causa. C: A gente não pensa e acaba despercebido. (...) T: Então, depois de analisar tudo isso, como você está se sentindo? C: Na realidade, depois daquele dia que você me perguntou, eu falei que não, que não tinha nada a ver. Mas aí eu comecei a pensar no jeito que eu sou e no 156 jeito que minha filha é... Eu fui logo fechando as portas. Esse é o meu jeito de ser, e o dela é assim, e pronto e acabou. Mas “Peraí, opa!”. Aí pensei: “Calma aí que não é bem assim”. A partir da análise do comportamento de sua filha, que se comportava como a própria Rafaela quando mais nova, a cliente passou a admitir que os aprendizados transgeracionais por modelação,