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Fonte [3] A estagnação do rio é uma estagnação doente, de loucura ou desengano de vida que se arrasta pelas ruas e pelos caminhos. O rio absorve então toda a miséria, toda a pobreza da região, mas absorve também os detritos dos ricos, que são produzidos nas salas de jantar pernambucanas. Ao final, ele é comparado a uma fruta, produto de alguma árvore, que amadureceu, e chegou à podridão, para recreio das moscas, e fica no ar a pergunta: com tanta sujeira e impureza, por que o rio é representado nos mapas com a cor azul, como os olhos dos fidalgos alheios à miséria? § Ele tinha algo, então, da estagnação de um louco. Algo da estagnação do hospital, da penitenciária, dos asilos, da vida suja e abafada (de roupa suja e abafada) por onde se veio arrastando. § Algo da estagnação dos palácios cariados, comidos de mofo e erva-de-passarinho. Algo da estagnação das árvores obesas pingando os mil açúcares das salas de jantar pernambucanas, por onde se veio arrastando. § (É nelas, mas de costas para o rio, que "as grandes famílias espirituais" da cidade chocam os ovos gordos de sua prosa. Na paz redonda das cozinhas, ei-Ias a revolver viciosamente seus caldeirões de preguiça viscosa.) § Seria a água daquele rio fruta de alguma árvore? Por que parecia aquela uma água madura? Por que sobre ela, sempre, como que iam pousar moscas? § Aquele rio saltou alegre em alguma parte? Foi canção ou fonte em alguma parte? Por que então seus olhos vinham pintados de azul nos mapas? A segunda parte tem o mesmo título da primeira. A segunda paisagem do Capibaribe contempla agora o elemento humano, que é rio e é cão, também sem plumas, que está arraigado na sujeira e na miséria, e com elas se identifica. A definição de um cão sem plumas ultrapassa a própria vida, é mais que a própria morte, é mais do que as palavras podem dizer. A desarticulação sintática da segunda estrofe acima reflete o caos da trilogia rio/cão/homem, todos eles seres violentados, todos eles cães sem plumas. 135