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PRISIONEIRO DAS PALAVRAS A ALIENAÇÃO ATRAVÉS DA LINGUAGEM EM O SHOW DE TRUMAN

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” - FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS, CÂMPUS ASSIS
 
 
 
CHARLIE KRAUSKOPH RODRIGUES
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
PRISIONEIRO DAS PALAVRAS: A ALIENAÇÃO ATRAVÉS DA LINGUAGEM EM “O SHOW DE TRUMAN”
 
 
 
 
 
 
 
ASSIS
2022
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo tratar do filme “O show de Truman” à luz do Mito da Caverna de Platão, explorando a relação entre a obra cinematográfica e a alegoria platônica. O objetivo é demonstrar como as sombras que aprisionam o personagem principal e o fazem acreditar na realidade em que está inserido são resultado direto da linguagem. Para isso utilizando-se das teorias da linguagem de Mikhail Bakhtin e a Retórica de Aristóteles.
Ademais, busca-se demonstrar como o cinema e a televisão se enquadram no conceito de cavernas modernas, explorando a técnica de mise en abyme, que consiste em representar um objeto dentro de si mesmo. Essa abordagem revelará que o filme "O Show de Truman" vai além da alienação do personagem em sua cidade cenográfica, envolvendo também a alienação das pessoas que acompanham seu reality show diariamente, assim como dos próprios telespectadores do filme.
Uma vez que a linguagem desempenha um papel crucial na construção da realidade de Truman, baseando-nos nas teorias de Mikhail Bakhtin, são abordados os conceitos de signo linguístico e signo ideológico. Além disso, é examinada a aplicação dos conceitos retóricos de logos, ethos e pathos desenvolvidos por Aristóteles, e como esses elementos são utilizados para convencer e persuadir Truman a permanecer em sua realidade simulada. 
2. O MITO DA CAVERNA
O Mito da Caverna, também conhecido como Alegoria da Caverna, é uma metáfora elaborada pelo filósofo Platão em sua obra mais complexa, A República. O trecho que narra essa alegoria consiste em um diálogo entre Sócrates, mentor de Platão e personagem principal, e Glauco, interlocutor e irmão de Platão. Sócrates propõe a Glauco que imagine uma situação passada no interior de uma caverna, na qual prisioneiros com seus braços e pernas acorrentados desde o nascimento, são forçados a olhar apenas para a parede à sua frente. Por trás dessas pessoas, há uma fogueira, e outras pessoas que passam, transportando objetos, projetam suas sombras na parede da caverna, as quais os prisioneiros observam. Estando presos, os prisioneiros só podem enxergar as sombras das imagens e consideram essas projeções como a própria realidade.
O filme "O Show de Truman", uma comédia dramática de 1998, ilustra com precisão a alegoria de Platão. Truman, interpretado por Jim Carrey, foi adotado por uma rede televisiva quando era apenas um bebê. No entanto, ele não tem conhecimento de que está vivendo em uma realidade simulada, sendo o protagonista de um programa de televisão, onde sua vida aparentemente privada é transmitida para milhares de pessoas através de mais de cinco mil câmeras escondidas, sem interrupções. Durante trinta anos, Truman vive sem saber que sua vida é completamente falsa, que a cidade em que reside é um gigantesco cenário criado exclusivamente para ele e que sua esposa, amigos e vizinhos são atores contratados. Isso ocorre devido à razão apontada pelo próprio criador do programa em uma entrevista: "Nós aceitamos a realidade do mundo com o qual nos defrontamos." É por isso que Truman leva tempo para descobrir a verdadeira natureza do mundo ao seu redor, uma vez que é tudo o que ele conhece.
Tanto os prisioneiros do mito da caverna quanto Truman estão aprisionados em uma realidade ilusória. Enquanto os prisioneiros têm correntes físicas, Truman é mantido cativo por correntes mentais, alimentadas por discursos que o fazem acreditar que o mundo fabricado ao seu redor é a realidade. Ambos estão privados do conhecimento de um vasto mundo além de suas limitadas percepções.
3. AS CAVERNAS MODERNAS
São inegáveis as relações que podem ser estabelecidas entre a alegoria de Platão e o cinema. A começar pelo aspecto físico da experiência na sala de cinema, em que os indivíduos se sentam voltados para uma tela, enquanto um projetor posicionado atrás deles incide imagens em movimento na tela para serem assistidas. O mesmo acontece com a televisão, em que as imagens presentes são as sombras refletidas e os telespectadores, entretidos com diferentes programas, assemelham-se aos prisioneiros.
No contexto de “O show de Truman”, os telespectadores do programa de televisão são semelhantes aos prisioneiros da caverna. Eles estão imersos em uma realidade fabricada, na qual acompanham 24 horas a vida de Truman Burbank, uma vida que não lhes diz respeito. Esses telespectadores estão alienados da verdadeira realidade, assim como os espectadores do próprio filme no cinema, que se isolam da realidade exterior e preferem, durante a experiência cinematográfica, o mundo de ilusão ali apresentado.
Perceba que há um encadeamento de alienações proporcionado pelo filme, que pode ser relacionado ao conceito francês de mise en abyme, que se traduz literalmente como "colocar-se dentro do abismo". Essa técnica consiste em representar um objeto dentro de si mesmo, criando uma repetição em escala menor. Dessa forma, o programa de televisão dentro do filme, a caverna dentro da caverna, estabelece essa estrutura em abismo.
Assim, a relação entre os telespectadores do reality show, os espectadores do filme e o mito da caverna destaca a alienação presente tanto na experiência dos personagens dentro do filme quanto na audiência do filme em si. Essa abordagem mise en abyme convida o público a refletir sobre a natureza da realidade e a possibilidade de estar alienado de uma verdade mais profunda, assim como os personagens do mito da caverna.
4. A ALIENAÇÃO ATRAVÉS DOS SIGNOS 
A linguagem desempenha um papel crucial na alienação de Truman dentro de sua realidade simulada. Para entender melhor esse fenômeno, é importante explorar os conceitos de signos linguísticos propostos por Saussure e os signos ideológicos discutidos por Bakhtin/Volochínov.
Saussure estabeleceu que os signos linguísticos são a associação entre um conceito (significado) e uma representação acústica (significante). No entanto, a linguagem vai além dos signos linguísticos e inclui também os signos ideológicos e estes são indissociáveis. Sendo assim, onde quer que um signo esteja presente, também está presente a ideologia. 
De acordo com Bakhtin, os signos ideológicos são construídos e transmitidos por meio da linguagem, uma vez que a linguagem é utilizada para interação verbal, envolvendo um emissor com um propósito de comunicação social em relação a um receptor. Esses signos ideológicos influenciam a maneira como percebemos e interpretamos os discursos, pois a linguagem não é neutra, e os discursos podem estar repletos de juízo de valor. É a ideologia que molda nossa consciência, atitudes e comportamentos, adaptando-nos às condições de nossa existência social.
No filme "O Show de Truman", os signos, carregando um valor ideológico, são utilizados para alienar o personagem principal. Christof, o criador do programa e espécie de detentor e locutor do discurso, cria uma realidade ilusória, um reflexo da sociedade de acordo com sua própria ideologia, pretensões e valores. Cada um dos atores contratados dentro da trama, a serviço de Christof tenta transmitir a Truman, por meio da linguagem, a ideia de que nada está errado em Seahaven, a cidade fictícia onde ele mora.
No entanto, Truman, como interlocutor dessas informações alienantes, começa a questioná-las e a desconfiar desses signos repletos de valorações. Ele se torna um interlocutor mais atento, que presta atenção ativamente ao que o cerca todos os dias.
5. CONVENCIMENTO E PERSUASÃO: LOGOS, ETHOS E PATHOS
A Retórica de Aristóteles nada mais é do que a arte de persuadir e convencer por meio da linguagem. Ela se baseia em três pilares fundamentais: ethos, pathos e logos. O ethos está relacionado à credibilidade do orador, o pathos busca persuadir emocionalmente,enquanto o logos se baseia na lógica dos argumentos apresentados. No filme, esses três pilares estão presentes. 
O ethos da trama recai sobre o idealizador do programa e sua habilidade em convencer Truman e a audiência de que a realidade por ele construída é genuína e atraente. Christof busca transmitir uma imagem de autoridade, confiança e credibilidade, com o intuito de garantir que o personagem do programa de televisão continue acreditando na ilusão em que vive. Para alcançar esse objetivo, ele utiliza uma variedade de recursos discursivos.
Dentre esses recursos, destaca-se o constante desencorajamento que Truman sofre em relação aos seus desejos e ambições. Ele sempre demonstrou um espírito aventureiro, desejando sair da cidade e embarcar em uma viagem até Fiji. No entanto, é constantemente confrontado com discursos que buscam diminuir sua vontade. Sua esposa minimiza seu desejo, afirmando que sua vontade de viajar é passageira. Seu amigo declara nunca ter sentido o desejo de deixar a cidade, já que tudo é perfeito lá. Além disso, uma matéria de capa do jornal local exalta Seahaven como o melhor lugar do planeta. Todos esses discursos visavam moldar a mentalidade de Truman, fazendo com que ele se conformasse com sua vida na cidade e não alimentasse o desejo de partir.
Há estratégias retóricas também no que diz respeito à audiência. Eles utilizam momentos emocionantes e fazem uso do jogo de aproximação e afastamentos de quadros, seguidos por uma trilha triste, para gerar cenas tocantes e atingir o pathos, buscando criar empatia e simpatia com o show e seu personagem principal.
Por fim, quando Truman relata ter visto seu pai, lhe afirmam ser impossível e oferecem uma explicação para o mesmo, alegando que seu pai já morreu, portanto só pode ter sido um equívoco. Nesse momento, é evidente o uso do logos. ao recorrer à realidade concreta e a fatos comprováveis, procuram manter Truman distante de qualquer questionamento sobre a veracidade de sua vida em Seahaven.
6. CONCLUSÃO
Em suma, ao unir conceitos de Bakhtin e a Retórica de Aristóteles, é possível compreender como o protagonista de "O Show de Truman" é envolvido em um ambiente onde signos ideológicos e elementos da retórica são empregados para aliená-lo. A linguagem desempenha um papel importante ao manter o personagem imerso em uma realidade fabricada. Essa forma de alienação estabelece uma relação direta com o mito da caverna de Platão, onde Truman se assemelha aos prisioneiros que conhecem apenas uma realidade ilusória.
Além disso, os telespectadores do programa também podem ser interpretados como prisioneiros, uma vez que dedicam uma parte significativa de suas vidas - no caso dos personagens do filme, por um longo período de tempo, e no caso dos espectadores do filme, durante a duração da projeção - para se imergirem na experiência de assistir a Truman. Nesse sentido, a televisão e o cinema se assemelham muito ao mito da caverna, pois criam um ambiente de aprisionamento e afastamento da realidade.
REFERENCIAS
Casaqui, V. (2008). O homem nas teias da comunicação midiática: uma análise de O Show de Truman. Comunicação & Educação, 13(1), 71-76. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9125.v13i1p71-76 Acesso em: 20 jun. 2023.
MOLON, Newton Duarte; VIANNA, Rodolfo. O Círculo de Bakhtin e a Linguística Aplicada. Scielo, 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bak/a/SKstZ8JH7M66mxQ7RnncZ7j/?lang=pt#. Acesso em: 20 jun. 2023.
DE LIMA, Marcos Aurélio . A retórica em Aristóteles: da orientação das paixões ao aprimoramento da eupraxia. Natal: IFRN, 2011.
PORFÍRIO, Francisco;. Mito da Caverna. História do Mundo. Disponível em: https://www.historiadomundo.com.br/curiosidades/mito-da-caverna.htm. Acesso em: 20 jun. 2023.
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