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0405 Manual de Prescrição Racional CEMBE da FMUL 2009

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Manual de Prescrição Farmacológica Racional - CEMBE da FML
MANUAL DE PRESCRIÇÃO
FARMACOLÓGICA RACIONAL
Raquel Ascenção
Miguel Julião
Filipa Fareleira
António Vaz Carneiro
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Manual de Prescrição Farmacológica Racional - CEMBE da FML
CONTACTOS:
CEMBE
Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência
Faculdade de Medicina de Lisboa - Pisos 3/6
Av. Prof. Egas Moniz
1649-028 Lisboa
Tel.: 217 940 424 ou 217 985 135
Fax.: 217 940 424
Email: cembe@fm.ul.pt
Web: www.cembe.org
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Manual de Prescrição Farmacológica Racional - CEMBE da FML
ÍNDICE
1 Introdução 3
1.1 Definição de prescrição racional 3
1.2 Prescrição racional. Porquê? 4
1.3 Âmbito da prescrição racional 5
2 Causalidade em medicina e a importância da prova científica 8
2.1 Introdução 8
2.2 Conceito de factor de causalidade 10
2.3 Determinação de causalidade 11
2.4 Tipo de estudos de prova de causalidade 11
3 Pesquisa e avaliação crítica da literatura biomédica 14
3.1 Métodos de pesquisa da evidência sobre terapêutica 14
3.2 A investigação sobre resultados em saúde (Health Outcomes Research) 21
3.3 As Normas de Orientação Clínica 22
3.4 Métodos de avaliação crítica da evidência terapêutica 25
3.4.1 Avaliação crítica de um ensaio clínico aleatorizado 25
3.4.2 Avaliação crítica de uma revisão sistemática 31
4 Balanço risco/benefício da terapêutica 35
5 Construção de um formulário para uso pessoal 37
5.1 Construção do Formulário Pessoal (FP) 37
5.1.1 Introdução. O que é um FP? 37
5.1.2 Como escolher o FP? 38
6 Decisão sobre a aplicabilidade da terapêutica ao doente individual 46
6.1 Introdução 46
6.2 Aplicação ao doente individual dos resultados dos ensaios clínicos:
regras práticas essenciais 54
7 Considerações sobre adesão terapêutica e preferências individuais 59
8 Conclusões e recomendações baseadas na evidência 62
9 Bibliografia 63
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Manual de Prescrição Farmacológica Racional - CEMBE da FML
1 Introdução
1.1 Definição de prescrição racional
A prescrição (ou acto de prescrever) pode ser definida como uma ordem escrita que
inclui instruções detalhadas sobre o fármaco a ser administrado a uma determinada
pessoa e respectiva formulação, dose e via, bem como a hora, frequência e duração de
administração.
Esta atitude inicia um processo experimental no qual o prescritor discute o tratamento
com o doente e investiga e monitoriza os efeitos do fármaco, com o objectivo de alcan-
çar a dosagem que maximize os efeitos benéficos e minimize o risco de efeitos adversos1.
Na literatura internacional é feita referência a diversos adjectivos para caracterizar a
melhor forma de prescrição: segura, adequada, racional, equilibrada. As expressões uti-
lizadas mais frequentemente são as de prescrição racional (rational prescribing) e prescri-
ção adequada (good prescribing).
Quando se discute o adjectivo "adequado" em cuidados de saúde admite-se que caracte-
rize o resultado de um processo de decisão que maximiza os ganhos individuais de
saúde face aos recursos disponíveis. Deste modo, distingue-se prescrição racional como
sendo o processo e a prescrição adequada como sendo o resultado2.
Em consequência, entendemos por prescrição racional o acto de ponderação que se
centra em quatro componentes principais:
1. maximizar a efectividade
2. minimizar os riscos
3. minimizar os custos, e
4. respeitar a escolha do doente.
Todo este processo culmina na determinação de cinco parâmetros: dose adequada, se-
lecção do fármaco correcto, para um diagnóstico preciso de um doente, com o tempo e
via de administração apropriados3.
Para a concretização de uma prescrição racional é necessário o conhecimento detalha-
do da fisiopatologia da doença em causa, bem como a farmacodinâmica e farmacociné-
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tica do fármaco escolhido. Este não é um processo estático, já que diferentes razões em
diferentes situações necessitarão de respostas diferentes. No quadro 1.1.1 estão descri-
tos os componentes da prescrição racional.
Quadro 1.1.1 Componentes da prescrição racional
Evidência Científica
Fiabilidade (o gold standard é o ensaio clínico controlado e
aleatorizado, e/ou revisões sistematizadas de ensaios clínicos),
disponibilidade, avaliação crítica, número de doentes que é
necessário tratar/lesar (number needed to treat/harm)
Alternativas e
Classe igual ou distinta, modalidades terapêuticas diferentes
respectiva eficácia
Contra-indicações Hipersensibilidade, grupos etários (crianças, idosos), grávidas,
aleitamento materno, insuficiência renal ou hepática
Interacções Mecanismos de acção ou efeitos adversos semelhantes, indutores
medicamentosas e ou inibidores enzimáticos, janela terapêutica estreita, farmaco-
características cinética/farmacodinâmica, via de administração, peso e superfície
farmacológicas, dose corporal do doente, semi-vida plasmática do fármaco, erros de
e duração óptimas cálculo (corrigir unidades)
Formulação ou via Alvo terapêutico, rapidez de início de acção, biodisponibilidade,
de administração frequência da administração, aceitação pelo doente
Polimedicação, frequência da administração, efeitos adversos
Adesão potenciais, capacidade do doente, crenças do doente, aconse-
lhamento adequado
Efeitos adversos Interpretação e comunicação do risco aos doentes
Monitorização
Objectiva ou subjectiva, eficácia (sintomas, marcadores de doença,
níveis sanguíneos), toxicidade
Disponibilidade
Custo (medicamento genérico vs de marca), formulários,
normas de orientação clínica
Adaptado de 3
1.2 Prescrição racional. Porquê?
Os fármacos são a espinha dorsal da maior parte das intervenções terapêuticas, seja
para patologias agudas ou crónicas. De facto, na maior parte das patologias crónicas -
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como a hipertensão arterial, por exemplo - o tratamento é necessário por longos perío-
dos de tempo ou mesmo para sempre.
O recurso a tratamentos farmacológicos traduz-se em custos avassaladores para os servi-
ços de saúde. Nos seis primeiros meses de 2008 (Janeiro a Junho) foram gastos, em
encargos com medicamentos no âmbito do SNS, 974.903.202 euros 1.
À medida que os doentes envelhecem multiplicam-se os problemas de saúde e conse-
quentemente as abordagens terapêuticas farmacológicas. Num estudo realizado em 2001
nos E.U.A., verificou-se que os indivíduos com idade inferior a 65 anos adquiriram em
média 10,8 fármacos de prescrição médica obrigatória por ano enquanto os com idade
igual ou superior a 65 anos adquiriram 26,5 fármacos4. Num recente artigo5, em que se
discutiam as dificuldades de aplicação das Normas de Orientação Clínica (NOCs) à
prática diária, foi apresentado o caso de uma doente-tipo (imaginária, mas muito seme-
lhante às doentes reais...) com 79 anos, padecendo de osteoporose, osteoartrose, diabe-
tes mellitus tipo 2, hipertensão arterial e doença pulmonar obstrutiva crónica (todas de
gravidade média). Se as NOCs relevantes fossem aplicadas a esta doente, a paciente
teria de tomar 12 medicamentos diários (para além de um complexo regime não farma-
cológico), com diversos problemas de iatrogenia e de interacção medicamentosas e com
um custo de US $ 406.00 (€ 302) por mês.
Esta realidade obriga a que os sistemas de saúde e os seus actores envolvidos com a
prescrição medicamentosa adoptem regras racionais, numa perspectiva não só de sus-
tentabilidade do sistema como de normas éticas a respeitar. Por exemplo: os agentes
individuais das classes farmacológicas anti-hipertensivas apresentam globalmente uma
eficácia relativa (medida pela baixa da TA sistólica e diastólica) e um perfil de segurança
(calculado pelo tipo e frequência de efeitos secundários) muito sobreponível entre eles;
quando um medicamento anti-hipertensivo de uma nova classe terapêutica atinge o 1º
lugar de vendas no SNS após um ano de lançamento no mercado (por ex.), esta prescri-
ção não deve ser classificada necessariamente como errada (o fármaco consegue contro-
lar omesmo número - de resto insuficiente... - de doentes); o que esta prescrição não
pode é ser classificada como racional, já que existem no mercado medicamentos anti-
hipertensivos com o mesmo perfil de benefício e risco que são muito mais baratos. É
esta racionalidade que se procura definir neste manual.
 http://www.infarmed.pt/portal/page/portal/INFARMED/MONITORIZACAO_DO_MERCADO/OBSERVATORIO/
ANALISE_MENSAL_MERCADO/MEDICAMENTOS_SNS_MESES_ANTERIORES/2008/Rel-SNS-200808_Correct_Net.pdf
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1.3 Âmbito da prescrição racional
O diagnóstico é imprescindível para a definição do objectivo terapêutico - factor deter-
minante para a prescrição. O objectivo terapêutico pode ser o alívio de sintomas, o
colmatar de deficiências, a prevenção ou a cura da doença. Ocasionalmente, a razão
para o tratamento prende-se com outros factores, como ganhar tempo enquanto se
aguarda por outra intervenção ou a realização de ensaios clínicos3. Por outro lado, em
determinadas situações clínicas a prescrição racional poderá implicar pura e simples-
mente a ausência de prescrição.
Assiste-se actualmente na literatura internacional à discussão acerca da definição de
doença, um dos mais importantes alvos terapêuticos da prescrição. Nomeadamente,
importa definir-se doença, "não-doença" e opinar acerca da validade da medicalização
crescente de sintomas e factores de risco.
Procurando num dicionário médico a definição de doença esta surge-nos como ..."qual-
quer alteração do estado de saúde, mais precisamente, conjunto de sinais e sintomas anormais e
relacionados com perturbações funcionais ou lesões, em geral devidos a causas internas ou exter-
nas bem conhecidas na sua maioria"6. O modelo biomédico, por outro lado, interpreta a
doença como um distúrbio físico que poderá ser corrigido por um fármaco (ou qual-
quer outra intervenção). Sabe-se, porém, que a complexidade do que envolve doença
ultrapassa claramente a sua definição. Por isso, cada dia se torna maior a necessidade de
"pensar" o que é uma doença.
A Medicina tem sido tradicionalmente considerada como uma profissão de cura e a
Medicina moderna legitimou este processo através do conhecimento científico. O "ca-
samento" entre Medicina e Ciência permitiu aos médicos uma intervenção activa na
história natural da doença, através da terapêutica, da prevenção e da erradicação de
eventos desfavoráveis. No auge deste sucesso, o médico treinado numa raiz biomédi-
ca foca a sua acção principalmente em quatro componentes: diagnóstico, tratamento,
prognostico e prevenção.
Grandes mudanças têm ocorrido nos padrões de morbilidade e mortalidade com os
quais a Medicina se confronta. Muita da necessidade actual de cuidados médicos espe-
cializados surge do crescente número de doenças crónicas e degenerativas, neoplasias,
doenças psiquiátricas e doenças incapacitantes resultantes de condições ambientais.
Perante esta realidade, a prevenção pode ser tão importante como o tratamento e os
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cuidados globais tão importantes como a cura. Nesta linha de raciocínio, muitos auto-
res têm sublinhado a necessidade de healing rather than curing, ou seja, numa adaptação
possível para o português cuidar ou recuperar mais do que curar7. Eric Cassell avança que se
pode cuidar/recuperar uma pessoa, sendo completo no processo, sem que se faça muita
diferença na doença orgânica.
Deste modo, a doença assume actualmente uma perspectiva mais abrangente: a ques-
tão não é tratar ou não tratar, mas sim determinar qual o tratamento mais apropria-
do em função das perspectivas biológicas e das circunstâncias pessoais e sociais do
doente.
Em suma, independentemente da definição operacional da doença ou do âmbito em
que se pretenda utilizar um fármaco, por ex., é imprescindível que cada prescritor deter-
mine o objectivo da prescrição antes da concretização da mesma. O objectivo determi-
nará não só o fármaco escolhido mas também o modo como será realizada a monitori-
zação da terapêutica.
2 Causalidade em medicina e a importância da prova
científica2
2.1 Introdução
A maior parte dos estudos de investigação biomédica tentam provar uma relação entre
uma causa específica (que pode ser um factor de risco ou um tratamento curativo) e um
efeito determinado (que é um resultado - outcome - que se deseja medir)8, 9.
A determinação da causalidade em medicina é essencial, seja qual for o contexto da
prática clínica. Por exemplo, quando um médico se decide por um esquema tera-
pêutico determinado, assume que aquele causará uma melhoria no estado clínico
do doente. Do mesmo modo, quando o clínico identifica um qualquer factor de
risco e se propõe modulá-lo ou eliminá-lo, é porque está persuadido que este está
relacionado com o aparecimento da doença, ou que a poderá causar directamente. A
questão central é, uma vez mais, definir se a associação observada entre um factor
causal (intervenção ou exposição) e um determinado resultado/efeito (outcome) cons-
titui uma relação causa-efeito: no caso afirmativo, poder-se-á agir em conformidade10.
2 Este capítulo é baseado num artigo recentemente publicado (Carneiro AV. Causalidade em medicina. Revista Portuguesa de
Cardiologia 2005;24:443-449), devidamente actualizado
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A determinação de causalidade em medicina pode apoiar-se nas duas abordagens para
definição de uma referência causal:
• os postulados de A. Bradford Hill11 e
• a chamada causa contributiva9, 12.
Os postulados de B. Hill definem um grupo de princípios de causalidade, que se encon-
tram descritos na quadro 2.1.18.
Quadro 2.1.1 - Evidência de causalidade entre factor
e efeito - critérios de Bradford Hill
 Critério Comentários
Temporalidade a causa precede sempre o efeito
Força uma associação causa-efeito consistente (por ex. o tabagismo
aumenta 30 vezes a probabilidade de cancro do pulmão)
Dose-resposta quanto maior for a dimensão do factor causal, maior será o
efeito produzido (nº de cigarros fumados e incidência de doença
coronária)
Reversibilidade a remoção do factor causal diminui o risco da doença (após 36
meses, a cessação tabágica reduz o risco de enfarte até ao nível
dos não fumadores)
Consistência resultados análogos em estudos diferentes (de preferência com
diferentes desenhos, com diferentes amostras e em alturas
temporais diferentes)
Plausibilidade consistente com o conhecimento biomédico mais actual e com
biológica uma base conceptual lógica e coerente
Especificidade uma causa, um efeito; por ex. a hipercolesterolémia familiar é
provocada por um erro inato do metabolismo
Analogia causas idênticas para doenças semelhantes; por ex. hipercoles-
terolémia na doença coronária e no acidente vascular cerebral
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Uma segunda abordagem conceptual na definição das relações causa-efeito é a chama-
da causa contributiva9, 12. Esta é particularmente útil em doenças complexas ou multi-
factoriais e, embora sendo menos rigorosa do que os postulados de Bradford Hill, reco-
nhece a dificuldade de por vezes se identificar um efeito causal realmente responsável
pela doença. Este sistema define 4 tipos de relações causa-efeito:
1. Necessária se o resultado (doença) ocorre apenas se se tiver verificado a operação do
factor causal;
2. Suficiente, se a acção do factor resultar sempre na doença;
3. Necessária e suficiente, se o factor causal e a doença tiverem uma relação fixa, isto
é, se nenhum ocorrer sem o outro;
4. Nenhuma, se a acção do factor causal aumentar a frequência da doença, mas este
nem sempre se verificar, ou se verificar na ausência do factor causal.
A maior parte das situações em medicina não caem debaixo da definição de causalida-
de necessária ou suficiente isoladas. De facto, a maioria dos fenómenos biológicos ca-
racteriza-se pela última definição (nenhuma): a hipertensão arterial (HTA) é um factorde risco conhecido para o acidente vascular cerebral (AVC), mas a maior parte dos
doentes com HTA não vão ter um AVC e a maior parte dos doentes com AVC são
normotensos13. Outro exemplo: o facto de o nosso avô estar vivo e de boa saúde aos 85
anos, tendo fumado dois maços de tabaco durante 70 anos, não permite afirmar que o
tabagismo é inócuo para a saúde: apenas nos diz que fumar não é uma causa suficiente
de morte ou doença antes dos 85 anos. Assumir, baseado neste exemplo, que não existe
nenhuma relação entre o fumo e certas doenças seria análogo a afirmar que as guerras
não matam pessoas porque existem veteranos de guerra vivos...
Todas as considerações anteriores podem aplicar-se aos ensaios clínicos, em que o fac-
tor causal é a intervenção (medicamentosa, cirúrgica, psicológica, etc.) e o efeito é o
resultado (outcome) medido (mortalidade, morbilidade, etc.).
2.2 Conceito de factor de causalidade
Podemos então começar por definir o que se considera uma causa: um factor é conside-
rado causal se a sua operação aumentar a frequência de um resultado/efeito. É impor-
tante aqui lembrar que um factor preventivo é também causal, mas opera de maneira
inversa, diminuindo a frequência de um resultado/efeito10.
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O conceito médico de causalidade é complexo, porque habitualmente uma doença é
causada não por um, mas por vários factores operando em conjunto: o tabaco provoca
cancro do pulmão e da bexiga, doença pulmonar crónica obstrutiva, úlcera péptica e
doença coronária (DC), mas esta tem várias causas para além do tabaco (hipercolestero-
lémia, diabetes, hipertensão, carga genética). Definir e identificar um factor causal de
doença pode ser deste modo bastante difícil, sendo possível obter um impacto impor-
tante na saúde do doente intervindo apenas num ou dois (pedir ao doente para deixar
de fumar, por ex.).
Quando dois ou mais factores causais actuam em conjunto, o risco resultante pode
ser superior à simples soma dos efeitos individuais - dizendo-se, neste caso, que existe
uma sinergia. Um exemplo típico deste conceito é o sistema de estratificação de risco
de Framingham, referente à doença coronária e ao AVC, cujos factores preditivos
incluem a idade, a pressão arterial sistólica, o colesterol total e o HDL, o género, a
presença de diabetes ou de tabagismo e a hipertrofia ventricular esquerda no ECG14.
Estes factores individuais, só por si, têm um efeito menor que a sua simples soma
permitiria supor.
2.3 Determinação de causalidade
A determinação de causalidade em medicina é muito difícil. De facto, ela é mesmo
impossível: o melhor que se pode conseguir é aumentar a nossa convicção num fenó-
meno de causa-efeito quando existem dados empíricos de experimentação de alta qua-
lidade que o suportem. Deste modo, uma vez convencidos da qualidade da evidência
de base, passamos a acreditar na causalidade do factor estudado. Claro que também
poderemos assumir o processo contrário, isto é, tentar obter evidência de que um factor
não é causa de um efeito determinado - o raciocínio é semelhante.
Um dos primeiros problemas no estabelecimento de uma relação causa-efeito é diferen-
ciar entre associação e causalidade. É óbvio que o factor e o efeito devem estar associados
se houver entre eles uma relação causal, mas nem todas as associações são causais: existe
uma associação entre o porte de isqueiro e a doença coronária, por ex., mas esta não é
provocada por aquele; a associação existe porque os fumadores necessitam de isqueiros,
sendo o tabagismo - esse sim - uma causa de DC.
Se este exemplo é fácil de compreender, muito mais difícil se revela o estabeleci-
mento de causalidade inequívoca em muitas outras situações em medicina15. Em
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primeiro lugar, é fundamental determinar se uma associação entre um determina-
do factor e um efeito é de facto real, ou se provém de um qualquer viés (dos quais o
mais frequentes são o de selecção3 e o de medição) ou ainda de uma variação alea-
tória (provocada pelo acaso). Em segundo lugar, dever-se-á assegurar a exclusão de
um qualquer factor de confundimento que possa estar presente (e que, estando
associado, não é causal - o exemplo do isqueiro na DC). Só então se assume a
causalidade.
2.4 Tipo de estudos de prova de causalidade
A definição acima indicada de factor causal (um factor é considerado causal se a sua
operação aumentar a frequência de um resultado/efeito) permite seleccionar o tipo de
estudos que provam causalidade. Com efeito, a definição implica que: 1) os doentes afec-
tados pelo agente causal apresentarão uma frequência aumentada do resultado (outcome);
e 2) os indivíduos que apresentam o resultado deverão ter uma frequência mais elevada
de exposição passada ao agente causal10.
Assim sendo, os estudos comparativos podem ser de dois tipos: os que testam a implica-
ção nº 1 comparando um grupo de doentes expostos ao factor putativo com outro
grupo de doentes não-expostos (estudo de coorte); e os que testam a implicação nº 2,
comparando um grupo de doentes que já experimentaram o resultado com um outro
grupo em que os doentes não experimentaram um resultado, identificando retrospecti-
vamente o factor causal (estudo caso-controlo). É claro que o que se procura aqui é o
estabelecimento da relação quantitativa de causalidade, em que o factor não é nem
necessário nem suficiente para o aparecimento do efeito - com os resultados expressa-
dos em riscos, rácios, etc.
Os estudos de coorte podem ser descritivos (quando se limitam a descrever a incidência
de certos resultados durante um intervalo de tempo) e analíticos (quando analisam as
associações entre factores preditivos e resultados); prospectivos, quando se iniciam com
a exposição ao factor e estabelecem um seguimento futuro durante um determinado
período de tempo ou retrospectivos, quando utilizam informação do passado para iden-
tificar a exposição ao factor e providenciar a informação de seguimento desde essa
altura.
3 viés de selecção (selection bias): é um erro sistemático devido à existência de diferenças nas características dos sujeitos seleccionados
para um estudo, versus os não seleccionados; por exemplo, voluntários seleccionados por se encontrarem num determinado lugar
a determinada hora (serviço de urgência à noite), esquecendo os outros potenciais candidatos (consulta de dia)
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Nos estudos de coorte de intervenção (experimentais) - dos quais o ensaio aleatorizado
prospectivo e controlado (randomized controlled trial - RCT) constitui o paradigma - os
investigadores controlam de modo aleatório (estudo aleatorizado) a exposição dos sujei-
tos ao factor causal putativo (estudo controlado), definindo a possível relação causal
entre os dois. Nos estudos observacionais de coorte os investigadores não influenciam
as variáveis em presença, limitando-se a analisar os resultados obtidos.
Cada tipo de estudos tem as suas vantagens e desvantagens - quadro 2.4.1 - pelo que será
baseada nestas que os investigadores decidirão que desenho de estudo adoptar para
cada questão individual.
Quadro 2.4.1 - Vantagens e desvantagens de diferentes tipos de estudos
Tipo de estudo Atributos Comentários
De coorte, Vantagens definição da incidência da doença
prospectivo investigação da etiologia da doença
definição de factores de risco de doença
estudo de antecedentes de doenças fatais
Desvantagens formato dispendioso e ineficiente para estudo de
resultados (outcomes) raros
De coorte, Vantagens mesmos do que os estudos prospectivos
retrospectivo menos dispendiosos e mais rápidos que os estudos
prospectivos
Desvantagens difícil selecção da amostra de doentes
impossibilidade de definir a natureza e qualidade
dos factores preditivos de doença
Caso-controlo Vantagens eficiente para resultados (outcomes) raros
úteis na geração de hipóteses
Desvantagens informação limitada (não é possível saber da
incidênciaou prevalência da doença)
apenas se pode estudar um resultado (outcome)
aumento da probabilidade de viéses (de selecção
e de medição, por ex.)
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3 Pesquisa e avaliação crítica da literatura biomédica
A prática clínica da Medicina é caracterizada pela permanente necessidade de resolução
dos confrontos com problemas de conhecimento e de informação médica. Nos dias
que correm, a velocidade à qual se produz conhecimento é vertiginosa, tornando a
actualização do conhecimento uma tarefa hercúlea. No entanto, a selecção da infor-
mação científica válida, importante e aplicável à situação (e ao doente) individual é
imprescindível se quisermos garantir a qualidade da prática clínica.
No início dos anos 90 do século passado, a Medicina Baseada na Evidência surgiu
como resposta à necessidade de utilizar de forma consciente, explícita e criteriosa, a
evidência (prova científica) disponibilizada pela literatura biomédica na tomada de de-
cisões acerca do tratamento individual dos doentes16.
A prática da medicina baseada na evidência requer quatro passos metodológicos16, 17:
1. formular questões clínicas a partir do problema do doente;
2. pesquisar a literatura para selecção de artigos/estudo relevantes, identificando a
melhor evidência científica existente;
3. avaliar criticamente a evidência - validade, importância e utilidade práticas; e
4. implementar a evidência em doentes específicos.
De seguida, debruçar-nos-emos sobre os aspectos relacionados com os métodos de pes-
quisa e avaliação crítica da avaliação terapêutica.
3.1 Métodos de pesquisa da evidência sobre terapêutica
A pesquisa da evidência científica permitirá a avaliação crítica e posteriormente a selec-
ção da informação que melhor responde à questão clínica inicialmente colocada. As
questões clínicas são habitualmente classificadas como avançadas, ou de perito
(foreground question: por exemplo, qual é a opção mais correcta de prevenir um AVC,
anticoagulação ou antiagregação?) ou de base, ou de noviço (background question: quais
são as complicações mais frequente da pancreatite aguda?).
As questões de perito obedecem, na sua resposta, ao formato PICO (Paciente, Interven-
ção, Comparação e resultadO). Como é natural, a classificação "de perito" ou "de novi-
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ço" é apenas aproximativa, já que apenas procura demonstrar a diversa complexidade
das questões que se deparam ao clínico (é óbvio que um perito tem também questões
de noviço e vice-versa).
As fontes potenciais de informação incluem a experiência pessoal ou de peritos,
livros de texto, artigos originais publicados em periódicos, revisões sistemáticas da
literatura e normas de orientação clínica baseadas nas anteriores. As três últimas
serão as que mais servem para classificar uma actuação de "baseada na evidência
científica" e são as que formam a base de decisão em clínica, por outras palavras, as
mais importantes.
Se aceitamos esta classificação, então o passo seguinte será responder à questão
"Quais são os critérios de selecção de fontes de informação para apoio à prática
clínica?". Estes devem ter em conta quatro factores18: 1) a sua base científica (qual a
validade dos estudos? a evidência está hierarquizada em termos da sua força? pode
aceder-se às fontes primárias?); 2) a sua abrangência e especificidade (a área de inte-
resse está efectivamente coberta e responde às questões importantes sobre diagnós-
tico, tratamento, prognóstico?); 3) facilidade de utilização (resumos bem estrutura-
dos? motor de busca eficaz?) e 4) disponibilidade (encontra-se facilmente? é dispen-
dioso?).
Mas é necessário mais um passo: a categorização das fontes de informação. O texto que
se segue, nesta secção, deve muito ao trabalho de Brian Haynes e do grupo da McMas-
ter University e os interessados podem referir-se aos textos clássicos publicados por estes
investigadores18-20.
O modelo que adoptamos é designado como "5S" devido às iniciais inglesas dos seus
constituintes - systems, summaries, synopses, synthesis e studies - e está graficamente represen-
tado na figura 3.1.1.
17
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Figura 3.1.1 - O sistema 5S para organização da evidência de apoio à prática
As categorias informacionais definem-se através da maneira como a evidência científica
de base é processada, assim como a facilidade da sua utilização:
1. ESTUDOS (Studies) - são os estudos primários de base (ensaios clínicos, estudos
diagnósticos e prognósticos, etc.), que se encontram nas bases de dados mais conhe-
cidas (Medline, EMBASE, etc.), sem qualquer processamento específico; os utiliza-
dores têm de analisar cada artigo per si, pelo que são algo difíceis de utilizar devido
às aptidões necessárias para seleccionar (ie. construção de filtros de pesquisa) e
avaliar (grelhas de avaliação crítica) os estudos. Existem literalmente milhões.
2. SÍNTESES (Synthesis) - são os estudos secundários (dos quais os paradigmas são as
revisões sistemáticas da literatura) que sintetizam a evidência cuidadosamente avali-
ada segundo critérios explícitos previamente definidos; são relativamente simples
de utilizar e existem milhares publicadas. Exemplos: Cochrane Database of Syste-
matic Reviews, DARE.
3. SINOPSES (Synopsis) - são descrições sucintas de um estudo ou de uma revisão
individual incorporando guias ou aconselhamento de aplicação por peritos clíni-
cos; a evidência é avaliada externamente, com descrição das suas forças e fraquezas
no contexto da sua aplicação; são de fácil utilização e o seu número anda pelos
milhares. Exemplos: Evidence Based Medicine, ACP Journal Club, Essential Evi-
dence Plus.
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4. SUMÁRIOS (Summaries) - são livros de texto totalmente baseados na evidência,
com actualizações periódicas de curta duração e que procuram integrar a informa-
ção dos níveis inferiores, de modo a fornecer uma abordagem prática; apresentam
integração avançada da evidência e constituem uma fonte de apoio à decisão muito
útil; existe um número reduzido destes instrumentos. Exemplos: UpToDate, Dyna-
Med, EBM Guidelines, Clinical Evidence.
5. SISTEMAS (Systems) - estes são os instrumentos mais avançados que existem, inte-
grando dados do doente individual com os da investigação clínica relevante ao caso
individual, através de sistemas informáticos; o seu número é escasso. Exemplos:
software de apoio à decisão de internar o doente com dor retroesternal no serviço
de urgência ou de estratificação de risco do doente coronário (QRISK, Framin-
gham scores, Euroscore).
Para além da imposição imediata de procurar responder às questões clínicas no contex-
to assistencial directo, existe naturalmente a necessidade da actualização permanente
do clínico prático. A abordagem habitual implica o scanning das revistas que este con-
sidera mais relevantes, com leitura de todos os resumos e retenção dos que ele conside-
ra mais importantes. Esta técnica tem vários problemas, a maior das quais será o facto
de o clínico ter de ter acesso às revistas - fácil se estiver num hospital universitário,
difícil se não for esse o caso. Para além disso, o tempo necessário para investir nesta
actualização é enorme e a selecção das revistas algo aleatória.
Estes problemas são solucionados por um conjunto de serviços de alerta que, gratuita-
mente, enviam por correio electrónico diversos resumos de artigos que todos os dias
vão sendo publicados e que são considerados os mais importantes por um conjunto de
peritos internacionais (um dos autores deste manual - AVC - recebe periodicamente da
parte do BmjUpdates + um artigo para classificar em relação à sua relevância e novida-
de, que classifica de acordo com uma grelha previamente definida; esta classificação é
tida em conta na divulgação dos estudos disponibilizados). No quadro 3.1.1 estão exem-
plificados os serviços de alerta mais utilizados.
19
Manual de PrescriçãoFarmacológica Racional - CEMBE da FML
Quadro 3.1.1 - Serviços de actualização e alerta
Serviço Morada electrónica Descrição
BmjUpdates+ www.bmjupdates.mcmaster.ca/index.asp Alerta para estudos e
revisões sistemáticas
avaliadas pela sua relevância.
Tem tabela de conteúdos
enviada periodicamente
Essential www.essentialevidenceplus.com/index.cfm Alertas para estudos rele-
Evidence Plus vantes que vão saindo dia-
riamente
Journal Watch www.jwatch.org/issues_by_date.shtml Produzido pelo NEJM, tem
resumos e comentários.
Não é baseado na evidência.
DynaMed http://www.ebscohost.com/dynamed/ Comentários detalhados
sobre os artigos mais
importantes
As bases de dados electrónicas biomédicas são fontes de informação com "motores de
busca" que permitem a consulta rápida de dados com qualidade e aplicabilidade imedi-
atas. Estas bases de dados podem ser classificadas em dois grupos. O primeiro grupo é
constituído pelas fontes bibliográficas tradicionais, em que os artigos originais estão
indexados para fácil acesso e selecção. O segundo grupo inclui artigos seleccionados de
investigação primária ou secundária. Os representantes de cada um dos grupos podem
ser encontrados no Quadro 3.1.2 (a lista não é exaustiva).
Finalmente, colocar-se-á regularmente a questão de saber, perante um conjunto de estu-
dos ou outras fontes de informação sobre o mesmo problema clínico, qual deverá ser a
hierarquia da evidência científica sobre intervenções terapêuticas ou preventivas a esco-
lher num caso específico. Como ilustrado no Quadro 3.1.3, e por ordem decrescente, a
decisão deve apoiar-se nos resultados de revisões sistematizadas e meta-análises, seguida
de ensaios clínicos aleatorizados (caso não existam as anteriores), ou estudos prospectivos,
ou estudos retrospectivos, ou em casos clínicos ou, finalmente, em opinião de peritos.
20
Manual de Prescrição Farmacológica Racional - CEMBE da FML
Quadro 3.1.2 - Exemplos de bases de dados/programas electrónicos
 Tipo Representantes Acesso Endereço electrónico
Medline
(base de dados principal da Livre http://www.ncbi.nlm.nih.gov/PubMed/
National Library of Medicine)
EMBASE
(base de dados biomédica Pago http://www.embase.com/
e farmacêutica)
Convencional IndexRMP Livre
(indexação de (Base de dados de literatura (com http://www.indexrmp.com/
artigos originais) e teses médicas nacionais) registo)
SumSearch
(motor de busca em várias bases Livre http://sumsearch.uthscsa.edu/
de dados simultaneamente)
TRIP
(motor de busca em várias Livre http://www.tripdatabase.com
bases de dados simultaneamente)
Cochrane Library
(inclui uma biblioteca de revisões
sistematizadas; edição online Pago http://www.thecochranelibrary.org
e em papel)
Evidence-Based Medicine
(revista de investigação secundária; Pago http://ebm.bmj.com/
edição online e em papel)
Bandolier
Programas (selecção de revisões sistematizadas Livre
seleccionados e meta-análises; edição online - (online) http://www.jr2.ox.ac.uk/Bandolier/
6 meses após a publicação em papel)
UpToDate
(sistema de informação médica
disponibilizado online, Pago http://www.uptodate.com/
computador ou PDA)
DynaMed
(sistema de informação médica
disponibilizado online, Pago http://www.ebscohost.com/dynamed/
computador ou PDA)
21
Manual de Prescrição Farmacológica Racional - CEMBE da FML
Quadro 3.1.3 - Hierarquização da evidência científica terapêutica/preventiva17
Tipo de estudo Definição
Revisão bibliográfica e científica sobre um determinado
tema, em que os viéses se encontram reduzidos ao máxi-
mo. A característica fundamental de uma revisão sistema-
tizada é a explicitação clara e não ambígua dos critérios
utilizados para a selecção, avaliação crítica e inclusão da
evidência científica naquela. Deste modo, uma revisão sis-
tematizada apresenta objectivos formais e precisos e os cri-
térios de inclusão (e exclusão) dos estudos são explicitados
detalhadamente.
Técnica estatística que permite a combinação de resulta-
dos de diferentes estudos (habitualmente RCTs) duma re-
visão sistematizada. A racionalidade desta abordagem jus-
tifica-se pelo facto da maior parte dos ensaios não possuír
poder suficiente per si para responder eficazmente à ques-
tão colocada. As meta-análises possuem dois tipos de com-
ponentes estruturais: 1) qualitativos, com aplicação de crité-
rios metodológicos de qualidade pré-definidos (ausência de
viéses, grau de disponibilidade dos dados, por ex.) e 2) quan-
titativos, que é a integração da informação numérica. As meta-
análises têm normalmente uma representação gráfica típica.
Uma meta-análise pode ser considerada uma revisão sistema-
tizada com informação estatística formal.
Experiência epidemiológica na qual os sujeitos em estudo
(amostra), seleccionados através de métodos explícitos de um
grupo mais vasto (a população), são aleatoriamente distribuí-
dos (pelo menos) entre dois grupos: o experimental, sobre o
qual vai incidir o tratamento (ou medida preventiva, ou in-
tervenção) e o controlo. Os resultados são avaliados rigoro-
samente, comparando entre os dois grupos taxas de doença,
de recuperação, de mortalidade, de morbilidade ou qual-
quer outro resultado (outcome) que se revele de interesse.
Revisões sistematizadas
(systematic reviews)
Meta-análises
(meta-analyses)
Ensaios clínicos
aleatorizados
e controlados
(randomized controlled
trials - RCTs)
22
Manual de Prescrição Farmacológica Racional - CEMBE da FML
RCTs cujos resultados não atingiram a significância esta-
tística.
Tipo de estudo em que os sujeitos são recrutados e segui-
dos para a frente no tempo, durante um determinado perí-
odo. É um desenho particularmente utilizado para defini-
ção de risco e prognóstico. Neste caso, a comparação, no
final do período de followup, da incidência da doença em
determinados subgrupos permite o estabelecimento da for-
ça da relação entre o factor de risco e a respectiva doença.
Estudo com um desenho que permite testar a etiologia de
uma doença. O conceito em que assenta este tipo de estu-
do aceita que o esclarecimento da relação entre uma expo-
sição a factores que se acreditam poder estar na origem de
uma determinada doença (factores putativos/causais) e essa
doença, possa ser conseguido através de dados relaciona-
dos com as características individuais dos sujeitos de estu-
do, assim como a identificação de eventos/acontecimen-
tos por estes experimentados no passado. O ponto essenci-
al é o de que alguns sujeitos sob estudo apresentam a do-
ença (ou outro resultado de interesse) e outros não, permi-
tindo a comparação dos dois grupos em termos de even-
tos/acontecimentos passados.
Descrição do caso de um doente individual e do tratamen-
to escolhido e respectiva monitorização.
A opinião de um profissional com conhecimento ou habi-
lidade extensa numa determinada área pode ser particu-
larmente importante no caso de doenças raras ou quando
não estão disponíveis outros tipos de evidência.
Ensaios clínicos
aleatorizados e controlados
sem resultados
significativos/definitivos
Estudos prospectivos
(estudos de coorte)
(cohort studies)
Estudos retrospectivos
(case-control studies)
Casos clínicos
Opinião de peritos
 Tipo de estudo Definição
23
Manual de Prescrição Farmacológica Racional - CEMBE da FML
Os estudos secundários (revisões sistematizadas e meta-análises) e os ensaios clínicos
aleatorizados fornecem, portanto, informação de maior qualidade e validade e devem
por isso ser pesquisados em primeiro lugar. Caso não estejam disponíveis, utilizam-se as
fontes imediatamente a seguir na hierarquia da evidência clínica.
3.2 A investigação sobre resultados em saúde (Health Outcomes Research)
A utilização criteriosa dos recursos de saúde implica o conhecimento do impacto das
intervenções dos sistemas de saúde nas populações. Por outras palavras, as intervenções
classificadas como positivas em termos de benefício/riscocom base em resultados de
ensaios clínicos (metodologia experimental) necessitam de ser analisadas após generali-
zação no quotidiano prático.
A investigação sobre resultados em saúde (health outcomes research - HOR) procura com-
preender e caracterizar os resultados finais de uma intervenção específica21. Estes resul-
tados incluem efeitos que os doentes apresentam e que são para eles clinicamente rele-
vantes (capacidade de função, qualidade de vida, morbilidades, etc.).
A investigação sobre resultados em saúde estuda o efeito dos cuidados de saúde prestados
na saúde e bem-estar do doente individual e da população http://www.ahrq.gov/clinic/
outfact.htm. Este tipo de abordagem define o sucesso através dos efeitos de um trata-
mento em diferentes áreas da vida do doente. Os resultados são medidos em termos do
estado funcional, bem-estar e satisfação do doente, os quais completam os resultados
fisiológicos tradicionais (resultados de testes laboratoriais, taxas de complicações ou
mortalidade). Deste modo, a avaliação tem em conta outros aspectos para além do
sucesso ou insucesso clínicos de uma intervenção.
Esta abordagem é particularmente útil nas doenças crónicas ou incuráveis e, ao conec-
tar os cuidados que os doentes recebem com os resultados obtidos, a HOR permite
desenvolver melhores maneiras de monitorizar e melhorar os cuidados de saúde. O
quadro 3.2.1 demonstra alguns exemplos de resultados em saúde (health outcomes).
24
Manual de Prescrição Farmacológica Racional - CEMBE da FML
Quadro 3.2.1 - Alguns resultados em saúde
 Resultado (outcome) Exemplo
Mortalidade Taxa de mortalidade infantil
Medidas fisiológicas Pressão arterial
Eventos clínicos Acidente vascular cerebral
Sintomas Dispneia
Medidas funcionais SF-36, ADL
Experiências dos doentes Escalas de avaliação
Fonte: http://www.ahrq.gov/clinic/outfact.htm 21
A investigação sobre resultados em saúde avalia todos os aspectos do fornecimento de
cuidados de saúde, desde o encontro com o prestador de cuidados médicos até ques-
tões relacionadas com a organização, financiamento e regulação dos sistemas de saúde.
Ao avaliar os resultados de uma intervenção no contexto real da prática clínica, obtêm-
se dados de efectividade, em contraposição aos dados obtidos nos ensaios clínicos alea-
torizados e controlados que permitem a obtenção de dados de eficácia.
3.3 As Normas de Orientação Clínica
As normas de orientação clínica (NOCs) (guidelines na designação inglesa) podem ser
definidas como ..."um conjunto de recomendações desenvolvidas de forma sistematizada que se
destinam a apoiar o médico e o doente na tomada de decisões acerca dos cuidados de saúde em
situações clínicas específicas"22.
As NOCs são um instrumento importante para - entre outras tarefas - permitir a disse-
minação dos resultados da investigação sobre resultados em saúde. A importância das
NOC como método de apoio à decisão clínica tem crescido ao longo das últimas déca-
das e presentemente as NOCs constituem um instrumento de qualidade de prestação
de serviços pelos profissionais de saúde, contribuindo, igualmente, para a melhoria dos
sistemas de saúde.
Como princípios gerais orientadores, com eficácia reconhecida, e que devem ser perfei-
tamente reconhecidos por todos contam-se "10 mandamentos":
1. O principal objectivo de uma NOC é o da melhoria da qualidade em saúde centra-
da em objectivos claros, válidos e relevantes (sobrevivência, qualidade de vida, etc.)
25
Manual de Prescrição Farmacológica Racional - CEMBE da FML
2. A criação de NOCs deve ter origem numa equipa multidisciplinar, com colabora-
ção de médicos, associações profissionais, pessoal de saúde em geral e representan-
tes dos doentes/utentes/pacientes sobre as quais incidirão as recomendações
3. Previamente à elaboração de NOCs devem sempre ser explicitados os seus objecti-
vos, os critérios metodológicos aplicados, os potenciais utilizadores finais, os con-
textos de aplicação, os processos de prioritização e a garantia, à partida, dos recur-
sos necessários para a sua criação, distribuição, implementação e revisão
4. As NOCs devem basear-se e sintetizar a melhor evidência científica disponível,
devendo ser organizadas e publicadas sob a forma de resumos estruturados
5. As recomendações emitidas de forma clara e concisa, graduadas de acordo com a
sua importância/força, devem ser suficientemente flexíveis para que, tanto os mé-
dicos como os doentes, possam exercer um julgamento objectivo e seja possível
implementá-las e adaptá-las a uma população-alvo
6. As NOCs devem servir de base a uma decisão informada por parte dos profissio-
nais de saúde e dos doentes, melhorando a aprendizagem profissional, a educação
do doente e a comunicação entre ambos
7. As NOCs devem ser revistas por peritos e utilizadores antes da respectiva imple-
mentação e, se possível, testadas em condições piloto nos contextos respectivos
8. As NOCs devem incluir instruções e estratégias adaptativas eficazes para a respecti-
va implementação (de preferência voluntária), enfatizando o envolvimento dos do-
entes, médicos e outros agentes de saúde
9. As NOCs devem ser avaliadas em termos da sua eficácia, com recurso a instrumen-
tos de medida rigorosos
10. As NOCs devem sofrer um processo de revisão e actualização regular e programa-
da, cuja periodicidade está dependente do avanço dos conhecimentos na área res-
pectiva
26
Manual de Prescrição Farmacológica Racional - CEMBE da FML
As recomendações são elaboradas de acordo com diferentes níveis de evidência, o que
permite a caracterização da força relativa de cada uma delas. Deste modo, de acordo
com a qualidade da evidência subjacente a cada uma das recomendações é estabelecido
o grau da mesma (quadro 3.1.1).
Quadro 3.3.1. Níveis de evidência e graus de recomendação terapêutica
Grau de Nível de Análise metodológica
Recomendação evidência
A 1a RS (com homogeneidade interna) de RCTs
1b RCTs individuais (com IC curtos)
1c Todos ou nenhuns *
B 2a RS (com homogeneidade interna) de estudos de coorte
2b Estudos de coorte individuais (incluindo RCTs de
baixa qualidade, por exemplo <80% de follow-up)
2c Investigação sobre resultados (outcomes research)
3a RS (com homogeneidade interna) de estudos caso-controlo
3b Estudos caso-controlo individuais
C 4 Estudos de séries de casos (e também estudos coorte e
caso-controlo de baixa qualidade**)
D 5 Opinião de peritos sem explicação prévia da metodologia
de avaliação crítica de evidência, ou baseada em inves-
tigação básica (extrapolação) ou em princípios primários
* quando todos os doentes faleciam antes do tratamento estar disponível mas alguns
agora sobrevivem; ou quando alguns doentes faleciam antes do tratamento estar dispo-
nível mas nenhum agora morre quando a ele é sujeito
** os estudos de coorte de baixa qualidade são os que não definiram claramente os grupos
em comparação; e/ou não mediram as exposições e resultados (outcomes) de maneira objec-
tiva (de preferência em ocultação) em ambos os grupos (expostos e não-expostos); e/ou não
identificaram ou controlaram apropriadamente os factores de confusão (confounders); e/ou
não levaram a cabo um seguimento (follow-up) suficientemente longo e completo. Os estu-
dos caso-controlo de baixa qualidade são aqueles que não definiram claramente os grupos
em comparação; e/ou não mediram as exposições e resultados (outcomes) de maneira objec-
tiva (de preferência em ocultação) em ambos os grupos (casos e controlos); e/ou não identi-
ficaram ou controlaram apropriadamente os factores de confusão (confounders).
Adaptado de 17
27
Manual de Prescrição Farmacológica Racional - CEMBE da FML
Um dos sistemas presentemente mais utilizados é o Grades of Recommendation, Assess-
ment, Development and Evaluation (GRADE), que apresenta uma abordagem diferente.
Os interessados em conhecer o sistema em pormenor podem recorrer ao website da
organização respectiva (http://www.gradeworkinggroup.org/).
As NOCs constituem, pela sua organização, disponibilidadee conteúdo, uma das fon-
tes mais válidas de informação sobre opções terapêuticas, mas apenas deverão ser consi-
deradas as que forem baseadas, explicitamente, na evidência científica.
3.4 Métodos de avaliação crítica da evidência terapêutica
O passo seguinte após a selecção da evidência publicada é a avaliação crítica em termos
metodológicos, para definição da sua validade (se o seu desenho permite responder à ques-
tão colocada inicialmente), importância (se os resultados são clinicamente relevantes e esta-
tisticamente significativos) e aplicabilidade (aos doentes encontrados na prática clínica).
A necessidade da utilização de um critério de avaliação rigoroso advém do facto da
maior parte da investigação publicada possuir pouco rigor metodológico e por vezes ser
também pouco relevante em termos de utilidade prática.
3.4.1 Avaliação crítica de um ensaio clínico aleatorizado
As questões metodológicas enunciadas no quadro 3.4.1 pretendem analisar os parâme-
tros de validade, importância e aplicabilidade dos estudos clínicos de terapêutica, enun-
ciados anteriormente.
28
Manual de Prescrição Farmacológica Racional - CEMBE da FML
Quadro 3.4.1 - Grelha para avaliação
crítica de um artigo descrevendo um ensaio clínico
 VALIDADE DOS RESULTADOS S ? N n/a
A gama de doentes foi bem definida? 2 1 0 n/a
O diagnóstico da doença estava bem caracterizado? 2 1 0 n/a
Os critérios de inclusão e exclusão são lógicos e claros? 2 1 0 n/a
Os doentes foram aleatorizados? 2 1 0 n/a
A aleatorização foi ocultada? 2 1 0 n/a
Os doentes foram analisados nos grupos para os quais tinham
sido aleatorizados inicialmente (intenção-de-tratar)? 2 1 0 n/a
O método de aleatorização foi explicado? 2 1 0 n/a
A dimensão da amostra foi estatisticamente calculada 2 1 0 n/a
Os doentes nos grupos em comparação eram semelhantes
em termos dos seus factores de prognóstico conhecidos? 2 1 0 n/a
Com excepção do tratamento em estudo, todos
os doentes foram tratados da mesma maneira? 2 1 0 n/a
Foi ocultado aos doentes o grupo a que pertenciam? 2 1 0 n/a
Foram ocultados aos investigadores os grupos em estudo? 2 1 0 n/a
Foram ocultados aos analisadores dos dados os grupos em estudo? 2 1 0 n/a
O seguimento (followup) final foi superior a 80%? 2 1 0 n/a
IMPORTÂNCIA DOS RESULTADOS
A dimensão do efeito terapêutico (RRR, RRA, NNT) foi importante? 2 1 0 n/a
A estimativa do efeito é suficientemente precisa (IC)? 2 1 0 n/a
Esse efeito tem importância clínica? 2 1 0 n/a
APLICABILIDADE DOS RESULTADOS
Os doentes do estudo são semelhantes aos da prática clínica
do médico individual? 2 1 0 n/a
Foram considerados todos os resultados clínicos importantes? 2 1 0 n/a
Os benefícios do tratamento sobrepõem-se aos potenciais
riscos e custos da sua implementação? 2 1 0 n/a
Em termos práticos, cada questão é classificada em 4 hipóteses:
• resposta afirmativa = sim (codificada com 2)
• pouco claro/possivelmente (codificada com 1)
• resposta negativa = não (codificada com 0)
• não aplicável
29
Manual de Prescrição Farmacológica Racional - CEMBE da FML
No final de responder às 20 questões, obtém-se a soma de todas as questões individuais
e calcula-se um score final, segundo o esquema:
• Score total (soma dos scores atribuídos) ________ [A]
• Nº de questões aplicáveis (máx. 20) ___________ [B]
• Score máximo possível (2 x B) _______________ [C]
Os ensaios clínicos classificados com uma pontuação de 75% ou mais do total são
considerados de boa qualidade e reúnem condições para serem considerados evidência
de boa qualidade. Todos os outros são, em princípio, excluídos, não devendo ser utiliza-
dos na prática clínica.
De seguida, será feita uma descrição breve de alguns dos tópicos que devem ser cumpridos23.
Os resultados do estudo são válidos?
Esta questão está relacionada com a credibilidade dos resultados e tem por objectivo
averiguar se a avaliação do efeito do tratamento representa de um modo fidedigno a
direcção e magnitude do verdadeiro efeito subjacente.
A gama de doentes e o diagnóstico da doença estava bem caracterizado? Os critérios
de inclusão e exclusão são lógicos e claros? Apenas deste modo será possível perceber o
âmbito do estudo e reconhecer a população para a qual os resultados são válidos, isto é,
a definição da doença em causa.
Os doentes foram aleatorizados? A aleatorização permite que os doentes dos dois gru-
pos (experimental e controlo) tenham uma maior probabilidade de apresentarem carac-
terísticas semelhantes relativamente aos determinantes conhecidos (e desconhecidos)
dos resultados em estudo.
A aleatorização foi ocultada? Se a aleatorização não for ocultada, o seu princípio inicial
é posto em causa, já que os intervenientes do estudo podem falsear os resultados (pode
ocorrer um viés quando por exemplo os investigadores têm acesso ao braço do estudo
em que o doente vai ser colocado e gerem a admissão dos doentes, colocando por
exemplo, os doentes menos graves no grupo controlo).
Os doentes foram analisados nos grupos para os quais tinham sido aleatorizados ini-
cialmente (intenção-de-tratar)? Os investigadores podem falsear a aleatorização ao omi-
30
Manual de Prescrição Farmacológica Racional - CEMBE da FML
tirem sistematicamente os doentes que não cumprem o tratamento que lhes foi destina-
do ab initio. A estratégia da análise pela intenção-de-tratar (avaliação dos resultados
baseada na distribuição dos doentes pelo tipo de tratamento para o qual foram aleato-
rizados, ao invés do tratamento que na verdade receberam) preserva o valor da aleatori-
zação, já que os factores prognósticos (que conhecemos e desconhecemos) estarão equi-
tativamente presentes em ambos os grupos de estudo (experimental e controlo) e o
resultado advirá unicamente do tratamento realizado.
Os doentes nos grupos em comparação eram semelhantes em termos dos seus facto-
res de prognóstico conhecidos? A aleatorização pretende gerar grupos com prognóstico
semelhante relativamente ao resultado em estudo. No entanto, o processo de aleatoriza-
ção pode não ser bem-sucedido por obra do acaso. Quanto mais pequena a amostra,
maior a probabilidade de ocorrer um desequilíbrio prognóstico entre os grupos. Todos
os ensaios devem apresentar as características basais dos grupos controlo e experimen-
tal. Deste modo obter-se-á a distribuição dos factores prognósticos (aqueles possivel-
mente relacionados com os resultados em estudo) nos grupos controlo e experimental.
Pretende-se acautelar que as características são o mais semelhante possível entre os gru-
pos (apesar de não ser possível conhecer a distribuição dos factores prognósticos desco-
nhecidos, a distribuição equitativa dos factores conhecidos garante uma maior confian-
ça no estudo). Não se pretende estudar se as diferenças entre os grupos, à entrada no
estudo, são estatísticamente significativas mas sim se a sua dimensão é importante.
Com excepção do tratamento em estudo, todos os doentes foram tratados da mesma
maneira? Qual a terapêutica standard realizada pelos doentes em estudo - ela é seme-
lhante? Co-medicações de base podem alterar os resultados de um estudo.
Foram ocultados aos investigadores os grupos em estudo? A ocultação eficaz elimina a
possibilidade da administração preferencial (consciente ou inconsciente) de terapêuti-
cas adjuvantes ao grupo controlo ou experimental.
Foram ocultados aos analisadores dos dados os grupos em estudo? A proveniência dos
dados em avaliação deve ser também ocultada do grupo de investigadores encarregue
do tratamento dos dados já que nesta fase do processo também podem ser introduzidos
viéses. Quanto maior julgamento crítico for necessário para a determinação da ocorrên-
cia ou de um resultado, maior a necessidade de ocultação.
31
Manual de Prescrição Farmacológica Racional - CEMBE da FML
Foi ocultado aos doentes o grupo a que pertenciam? Os doentes que realizam um
tratamento que acreditam ser eficaz podem sentir-se e desempenhar funções melhor do
que aqueles que não acreditam na validade do tratamento, mesmo que estenão seja
biologicamente activo. É possível que este efeito placebo possa interferir na determina-
ção do impacto biológico de uma determinada terapêutica farmacológica.
O seguimento (followup) foi completo? Quanto maior o número de doentes perdidos
durante o período de seguimento, maior a probabilidade da validade do estudo estar
comprometida. A importância deste aspecto prende-se com o facto de os doentes "per-
didos" apresentarem geralmente prognósticos diferentes daqueles que se mantêm em
estudo (quer no sentido da melhoria ou do agravamento). Esta é uma situação análoga
à importância da análise segundo a intenção-de-tratar.
Quais são os resultados?
Esta questão considera a amplitude e precisão do efeito do tratamento.
A dimensão do efeito terapêutico (RRR, RRA, NNT) foi importante? Geralmente,
os ensaios clínicos monitorizam a frequência com que os doentes apresentam resulta-
dos positivos ou adversos (ocorrência de resultados, como por exemplo, morte). Podem
ser usados vários métodos para demonstrá-los24. É possível demonstrar a extensão do
benefício em comparação com o risco inicial, calculando a redução do risco relativo
(RRR). A RRR não reflecte o risco do evento sem terapêutica (risco basal) não podendo
por isso diferenciar entre diversas dimensões do tratamento. A redução do risco absolu-
to (RRA) é a diferença aritmética entre a taxa de eventos no grupo controlo e a taxa de
eventos no grupo experimental. A RRA é uma medida mais significativa dos efeitos do
tratamento do que a RRR porque leva em conta o risco basal. O número que é necessá-
rio tratar (NNT) é o recíproco da RRA; é sempre referido a um intervalo de tempo, a
um resultado e um comparador específicos. O NNT reflecte o número de doentes que
terão de ser tratados com a intervenção em questão, para que um doente adicional
atinja o resultado definido naquele período de tempo. Assim, o NNT reflecte o núme-
ro de doentes que será tratado desnecessariamente. Quanto maior o NNT, maior o
esforço que a intervenção em causa implica. O cálculo destas medidas de associação
consegue-se através da construção das chamadas tabelas de contingência 2 x 2:
32
Manual de Prescrição Farmacológica Racional - CEMBE da FML
Quadro 3.4.2 - Tabela de contingência
para cálculos de medidas de associação em RCTs
 Resultado (outcome)
SIM NÃO
Exposição SIM a b
NÃO c d
Risco Relativo. RR = [a / (a + b)] / [c / (c + d)]
Redução do Risco Relativo. RRR = [c / (c + d)] - [a / (a + b)] / [c / (c + d)]
Redução do Risco Absoluto. RRA = [c / (c + d)] - [a / (a + b)]
Número Necessário Tratar. NNT = 1 / RRA
Odds Ratio. OR = [(a/b) / (c/d)] = ad / cb
A estimativa do efeito é suficientemente precisa (IC)? Na realidade, a verdadeira esti-
mativa da redução do risco nunca é conhecida. Todavia, através de RCTs é possível
obter a melhor estimativa para o efeito de uma intervenção. Este é um valor que estará
próximo do "real" mas não será certamente o "correcto". Podemos considerar o interva-
lo de confiança a 95% como o intervalo de valores que inclui o valor "real" em 95% das
vezes. Isto faz com que se relaciona estritamente com o nível convencional de significân-
cia estatística, habitualmente P<0,05.
Estes resultados são aplicáveis ao meu doente?
Esta questão tem duas partes: em primeiro lugar, é necessário saber se os resultados são
generalizáveis ao doente concreto, ou se o doente é demasiado diferentes dos que parti-
ciparam no ensaio para haver dúvidas quanto ao interesse do tratamento específico; em
segundo lugar, se os resultados são aplicáveis, qual é o impacto do tratamento.
Os doentes do estudo são semelhantes aos da prática clínica do médico individual? Na
prática clínica diária lidamos com doentes individuais que, regra geral, é difícil adequar
completamente aos critérios de inclusão e exclusão estabelecidos nos ensaios clínicos.
Parece sensato, e preferível, perguntar se existe alguma razão pertinente e importante para
que os resultados de um determinado estudo não possam ser aplicados a um doente "real"
ao invés de o encaixar em critérios "irreais". Caso a primeira premissa se cumpra, é ainda
necessário avaliar se o doente tem capacidade para aceitar as recomendações e aderir ao
33
Manual de Prescrição Farmacológica Racional - CEMBE da FML
esquema terapêutico. Por outro lado, convém frisar que os ensaios clínicos aleatorizados
demonstram o efeito médio verificado numa amostra de doentes, pelo que um doente
particular pode não apresentar benefícios com a intervenção (e sofrerá, no entanto, o
custo e a eventual toxicidade do tratamento). Podemos obviar esta vicissitude realizando
um ensaio aleatorizado e controlado num doente individual (Ensaio aleatorizado e controla-
do N de 1). Neste caso, o doente particular inicia uma ronda de dois períodos de tratamen-
to: um em que recebe o tratamento, e outro em que recebe o placebo. Nesta intervenção
são mantidas todas as condições necessárias à validade de um ensaio clínico aleatorizado
e controlado convencional. No entanto, nem sempre é exequível uma intervenção deste
tipo. Quando um doente particular pertence a um subgrupo avaliado por um ensaio
clínico, é prudente avaliar cuidadosamente as condições do estudo. O tratamento só
beneficia realmente (positiva ou negativamente) o subgrupo quando a diferença entre os
efeitos é de grande dimensão e difícil de ocorrer por acaso. Todavia, mesmo quando estas
premissas se cumprem, os resultados podem ser enganadores se os investigadores não
especificaram as premissas no início do ensaio, se estipularam um grande número de
hipóteses ou se outros estudos não forem capazes de demonstrar o mesmo efeito23.
Foram considerados todos os resultados clínicos importantes? É necessário que a evi-
dência demonstre não só que a terapêutica melhora resultados importantes para os
doentes como também que não interfere negativamente noutros resultados.
Os benefícios do tratamento sobrepõem-se aos potenciais riscos e custos da sua imple-
mentação? O impacto de uma terapêutica está relacionado não só com a RRR como
também com o risco do resultado adverso cuja ocorrência pretende prevenir. Para uma
dada RRR, quanto maior a probabilidade da ocorrência do resultado adverso se não
tratado e quanto maior a probabilidade de que o doente beneficie do tratamento, quanto
menos doentes será necessário tratar para prevenir uma ocorrência do resultado adver-
so. O conhecimento do NNT auxilia no balanço dos benefícios e riscos associados às
opções terapêuticas. O balanço do risco/benefício deve ser também suportado pelo
conhecimento dos efeitos adversos associados ao tratamento em questão. No entanto,
em última análise, são as preferências ou valores do doente que determinam a escolha
face aos riscos e benefícios da terapêutica23.
3.4.2 Avaliação crítica de uma revisão sistemática
Uma revisão sistemática (RS) pode ser definida como a resposta a uma questão clíni-
ca, utilizando métodos que reduzam a probabilidade de viéses. O termo meta-análise
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descreve as revisões que utilizam métodos quantitativos para sumariar os resultados.
A realização de uma RS passa por diferentes etapas: definir o tema; identificar, selecci-
onar e avaliar de forma crítica os estudos relevantes (designados por estudos primários);
reunir e resumir a informação relevante (de forma qualitativa ou quantitativa) e tirar
conclusões.
As RS constituem sínteses concisas da melhor evidência disponível, que abordam ques-
tões clínicas relevantes cuidadosamente elaboradas. Ao contrário das revisões narrati-
vas, isto é, as que classicamente são pedidas a um ou mais autores que as escrevem
livremente (sem justificação prévia sobre que artigos irão discorrer e porquê), as RS
utilizam métodos rigorosos e explícitos para identificar, criticar e sintetizar estudos rele-
vantes, procurando agregar e examinar toda a evidência de alta qualidade acessível que
diga respeito à pergunta em questão. No quadro 3.4.2.1 estão resumidas algumas dife-renças entre as revisões narrativas e as sistemáticas.
Quadro 3.4.2.1 - Diferenças entre as revisões narrativas e as sistemáticas
REVISÃO NARRATIVA REVISÃO SISTEMATIZADA
Questão alargada focalizada
Fontes e pesquisa não especificadas e enviesadas pré-especificadas e abrangentes,
com uma estratégia explícita
Selecção dos estudos não especificada e enviesada baseada em critérios
e uniformemente aplicada
Avaliação crítica variável rigorosa e completa
Síntese sumário qualitativo sumário quantitativo
Inferências por vezes baseadas na evidência sempre baseadas
científica na evidência científica
As bases de avaliação crítica de uma revisão sistemática empregam as mesmas guias
gerais dos ensaios clínicos, mas com questões específicas diferentes. No quadro 3.4.2.2
estão descritos os passos para uma avaliação crítica de uma RS, que são detalhados nas
secções seguintes.
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Quadro 3.4.2.2 - Grelha para avaliação de estudos de revisão
 VALIDADE DOS RESULTADOS S ? N n/a
A revisão aborda de forma explícita uma questão clínica sensível? 2 1 0 n/a
A pesquisa dos estudos relevantes foi detalhada e exaustiva? 2 1 0 n/a
Os estudos primários têm elevada qualidade metodológica? 2 1 0 n/a
A interpretação dos estudos é reprodutível? 2 1 0 n/a
 IMPORTÂNCIA DOS RESULTADOS 2 1 0 n/a
Os resultados foram semelhantes entre os estudos? 2 1 0 n/a
Quais são os resultados gerais dos estudos? 2 1 0 n/a
Quão precisos são os resultados? 2 1 0 n/a
 APLICABILIDADE DOS RESULTADOS 2 1 0 n/a
Qual é a melhor forma de interpretar os resultados
para aplicá-los na prática clínica? 2 1 0 n/a
Foram considerados todos os outcomes clinicamente importantes? 2 1 0 n/a
Os benefícios do tratamento sobrepõem-se aos potenciais riscos
e custos da sua implementação? 2 1 0 n/a
Os resultados são válidos?
A revisão aborda de forma explícita uma questão clínica sensível? Para se verificar que
a questão clínica é sensível, a biologia subjacente ao problema deve permitir o mesmo
efeito terapêutico em todos os doentes. Para que este ponto seja correctamente avalia-
do, a revisão sistematizada deve apresentar de forma explícita quais os critérios de inclu-
são dos estudos que foram utilizados.
A pesquisa dos estudos relevantes foi detalhada e exaustiva? A pesquisa dos estudos
deve ser feita em bases de dados bibliográficas (como a MEDLINE, EMBASE, Registo
de Ensaios Clínicos da Cochrane, etc.) e nas que contenham estudos em curso, bem
como a partir das listas de referências dos artigos seleccionados e através do contacto
pessoal com peritos na área em causa. Pode ser importante consultar resumos de reuni-
ões científicas bem como bases de dados consultadas com menos frequência (que inclu-
am por exemplo teses de doutoramento).
Os estudos primários têm elevada qualidade metodológica? As diferentes metodologi-
as utilizadas no desenho dos estudos podem explicar as diferenças encontradas nos
resultados dos mesmos. Por outro lado, a determinação da validade é também impor-
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tante quando os resultados de diferentes estudos são consistentes já que as conclusões
serão mais apelativas caso resultem dos estudos com qualidade superior.
A interpretação dos estudos é reprodutível? A revisão dos artigos (critérios de inclu-
são, avaliação da validade, extracção de dados) quando realizada por um grupo de 2 ou
mais pessoas, previne melhor a ocorrência de erros.
Quais são os resultados?
Os resultados foram semelhantes entre os estudos? Na avaliação da semelhança entre
os resultados dos estudos deve atentar-se a duas questões: (1) as melhores estimativas
(point estimates) do efeito do tratamento em cada estudo são semelhantes? (2) as diferen-
ças entre os resultados dos estudos individuais são maiores do que aquelas esperadas
pelo acaso? Em relação ao segundo ponto, pode ser feita uma avaliação inicial pela
avaliação dos intervalos de confiança - quanto mais próximos uns dos outros, maior a
segurança no agrupamento dos resultados. Por outro lado, a análise estatística formal
através dos testes de heterogeneidade fornece também pistas importantes. Quanto o
valor P associado com o teste de heterogeneidade é baixo (por exemplo P<0,05) a expli-
cação da magnitude do efeito simplesmente pelo acaso torna-se menos plausível. As
revisões sistematizadas devem incluir hipóteses para a variabilidade encontrada entre
os estudos.
Quais são os resultados gerais dos estudos? Na revisão sistematizada de uma questão
terapêutica deve-se avaliar, tal como num estudo primário, o risco relativo e a redução
do risco relativo ou o odds ratio.
Quão precisos são os resultados? A avaliação da precisão dos resultados deve ser feita
através da avaliação do intervalo de confiança (lista de valores com uma probabilidade
específica, geralmente 95%, de incluir o verdadeiro resultado) do efeito médio estima-
do entre os estudos.
Como posso aplicar os resultados ao doente individual?
Qual é a melhor forma de interpretar os resultados para aplicá-los na minha prática
clínica? Os critérios que tornam a diferença entre subgrupos mais credível são: conclu-
sões retiradas dentro de cada estudo, ao invés da comparação entre estudos; diferença
marcada no efeito do tratamento entre os subgrupos; diferença estatisticamente signifi-
cativa no efeito do tratamento; hipótese levantada antes do início do estudo (e uma das
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poucas estudadas) e existência de evidência indirecta que explique a diferença. Se estes
critérios não forem cumpridos deve assumir-se que os resultados da análise de subgru-
pos não são credíveis e que o efeito global entre todos os doentes e tratamentos se aplica
ao doente em questão e ao tratamento em análise.
Foram considerados todos os outcomes clinicamente importantes? As revisões siste-
matizadas geralmente não incluem dados acerca dos efeitos adversos e dos custos ine-
rentes à terapêutica.
Os benefícios do tratamento sobrepõem-se aos potenciais riscos e custos da sua imple-
mentação? Apesar das revisões sistematizadas fornecerem a melhor forma de quantifi-
car os resultados esperados para uma determinada intervenção, estes devem ser sempre
considerados face aos valores e preocupações do doente em questão.
4 Balanço risco/benefício da terapêutica
Os fármacos são prescritos pelo seu potencial benefício, mas desde sempre é conhecido
que associado a cada um deles existe o risco de efeitos adversos. Antes de qualquer
prescrição ou acto terapêutico devem ser ponderados os seguintes factores25:
• características clínicas da doença a tratar;
• gravidade e frequência dos possíveis efeitos adversos;
• eficácia do fármaco a ser utilizado;
• perfil de segurança e a eficácia de fármacos alternativos.
O balanço risco/benefício deverá ser avaliado considerando dois aspectos distintos do
espectro de decisão: ele será favorável/alto quando a doença constitui risco iminente de
vida, o fármaco é eficaz e um dos poucos disponíveis e se o risco de efeitos adversos é
desprezível e desfavorável/baixo quando a doença é comum, o fármaco é pouco eficaz,
existem outros medicamentos alternativos e os efeitos adversos são elevados (quadro 4.1).
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Quadro 4.1 - Quadro resumo do balanço benefício/risco
FACTOR FAVORÁVEL DESFAVORÁVEL
Gravidade da doença de base Muito grave/mortal Trivial
Eficácia do medicamento seleccionado Elevada Baixa
Gravidade dos efeitos adversos Trivial Elevada
Frequência dos efeitos adversos Rara Frequente
Eficácia das alternativas terapêuticas Má Boa
Segurança das alternativas terapêuticas Má Boa
Para melhor ilustrar o que foi dito, consideremos o exemplo da fenilbutazona, um anti-
inflamatório não-esteróide (AINE) usado no tratamento de muitos estados inflamatórios
como a crise gotosa, artrite reumatóide e a espondilite anquilosante. A incidência de
aplasiamedular durante o tratamento com este fármaco varia entre 1:30.000 e 1:100.000,
podendo atingir valores mais elevados em indivíduos idosos ou submetidos a tratamento
crónico. Enquanto não existia nenhum outro AINE disponível com semelhante eficácia,
o balanço risco/benefício era considerado suficientemente alto para ultrapassar o risco de
aplasia medular. Contudo, assim que outros fármacos com menos efeitos adversos fica-
ram disponíveis o risco associado à fenilbutazona excedia claramente o possível benefício.
Foi então decidido que não seria mais prescrito como AINE de primeira linha, estando
hoje disponível apenas para tratamento dirigido na espondilite anquilosante.
Deste modo, torna-se claro que a escolha de um determinado agente não se centra só
no seu benefício absoluto, mas antes na relação entre a gravidade da doença e o benefí-
cio de outros agentes terapêuticos alternativos.
Nem sempre se torna possível conhecer os benefícios de determinada terapêutica antes
de esta ser administrada a um doente. Por exemplo, é possível que não existam dados
publicados acerca da dimensão do risco, pelo que diferentes doentes podem apresentar
diferentes graus de risco para o mesmo efeito adverso, como é o exemplo dos determi-
nados geneticamente. Por outro lado, o benefício terapêutico (por exemplo no que
concerne a alívio de sintomas) varia entre doentes e só pode ser calculado após iniciado
o tratamento e avaliados os seus efeitos.
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O seguinte exemplo ilustra os problemas na análise do balanço risco/benefício:
Será benéfico tratar uma doente idosa com prednisolona para uma arterite de células
gigantes, com risco de agravamento da osteoporose, da diabetes mellitus 2 ou da insuficiên-
cia cardíaca com retenção de fluidos que esta doente também apresenta? À parte da dor
associada a esta patologia, uma das complicações nefastas da doença é a amaurose resul-
tante do envolvimento dos vasos retinianos. Assim, a decisão de iniciar tratamento deve
ponderar a globalidade da situação: a gravidade da doença e os vasos que afecta, mas
também as suas complicações.
Até que estudos apropriados de risco/benefício sejam efectuados, cada caso deve ser
decidido de acordo com esta ponderação racional, investigando os factores envolventes
ao doente e à doença, ponderando-os cuidadosamente. É através deste processo que se
podem diminuir os riscos, mantendo a eficácia terapêutica.
5 Construção de um formulário para uso pessoal
A abordagem da construção de um formulário pessoal, com selecção e uso preferencial
de determinados medicamentos, tem-se tornado uma das mais eficazes bases para uma
terapêutica racional. Diversos manuais incluem detalhes mais ou menos aprofunda-
dos, mas optámos, pela sua qualidade, seguir o modelo da OMS26.
5.1 Construção do Formulário Pessoal (FP)
5.1.1 Introdução. O que é um FP?
A prática clínica diária imprime um ritmo, por vezes demasiado rápido, às decisões que
o clínico tem de continuamente tomar. A dicotomia entre o tempo de consulta e o
número de doentes apresenta-se como um dos factores que interfere com uma prescri-
ção racional centrada no doente, na sua doença e no seu bem-estar.
O desafio que se coloca actualmente a todos os médicos, principalmente aos mais jo-
vens, é que fármaco escolher de entre a longa e exaustiva lista de medicamentos que
habitualmente compõem o formulário terapêutico existente em cada país.
O processo de selecção e prescrição de tratamento parece fácil e rápido quando obser-
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vamos o médico experiente (ou perito), mas a tentativa de mimetizar o comportamento
daquele no início da formação do jovem médico pode originar erros. Além disso, os
peritos variam substancialmente nas selecções terapêuticas que fazem, deixando o jo-
vem clínico na dúvida sobre as bases de decisão de cada um deles (qual das opções será
a mais correcta?).
A selecção do tratamento correcto é mais difícil do que possa parecer e para adquirir
experiência é preciso trabalhar de forma sistematizada. Para tal existem dois passos a
seguir:
1. Reflectir sobre o tratamento de primeira escolha
2. Verificar a adequação do tratamento ao doente individual.
Para solucionar este desafio, existe o conceito de Formulário Pessoal (FP), que consiste
numa lista organizada de fármacos eficazes que o clínico prescreve regularmente, com
características de boa tolerância e (se possível) baixo custo, construída de forma racio-
nal, baseada em evidência científica de boa qualidade e aplicada ao doente ideal. Este
conceito engloba não só a substância activa, mas também a dosagem e posologia do
medicamento.
A construção do FP deverá ser fruto de um processo posto em prática anteriormente ao
momento da prescrição, podendo ser realizado idealmente aquando da formação pré-gradu-
ada do médico, sendo continuamente actualizado ao longo da carreira deste. Ao utilizar
metodicamente o FP, o médico conhece particularmente bem as principais vantagens e
efeitos secundários de cada medicamento, retirando daí os lógicos benefícios para o doente.
5.1.2 Como escolher o FP?
Como já foi referido, a constituição do FP deverá ser um processo racional e baseado
em dados científicos válidos. É aceite que, tradicionalmente, a forma mais popular de
construir o FP se baseia na transmissão oral a partir de colegas ou professores. Esta
abordagem possui indiscutível validade mas existem algumas razões pelas quais os mé-
dicos não devem seguir exclusivamente este caminho:
1. a responsabilidade do tratamento e bem-estar do doente pertence a cada profissio-
nal médico e não deve ser imputada aos colegas que cederam a informação (que
pode estar completamente correcta, mas também pode ser errada...)
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2. ao construir e utilizar o FP aprender-se-á a lidar mais profundamente com determi-
nados fármacos e suas características clínicas, permitindo uma distinção mais clara
acerca da sua utilização e potencial terapêutico
3. a utilização e revisão dos fármacos que compõem o seu FP permitirá ao médico famili-
arizar-se, com o correr do tempo, com fármacos alternativos mais recentes.
A construção do FP deverá seguir os seguintes cinco passos:
1. definição do diagnóstico correcto do doente
2. estabelecimento do objectivo terapêutico para o doente específico
3. construção de um inventário pessoal dos grupos farmacológicos eficazes
4. eleição de um grupo farmacológico a utilizar
5. selecção de um medicamento individual do FP.
PASSO 1: DEFINIR O DIAGNÓSTICO
A correcta formulação do diagnóstico é a base racional que conduz ao início de um
correcto tratamento. Para tal, deverá o clínico reunir os diversos elementos, como a
história clínica orientada às queixas do doente, os antecedentes pessoais, o exame ob-
jectivo e os resultados de exames complementares. Os dados relevantes obtidos devem
ser integrados com a fisiopatologia da doença ou dos sintomas apresentados na fase
inicial, sendo verdade que o conhecimento dos seus mecanismos básicos ajudará ao
estabelecimento de hipóteses credíveis.
No processo do diagnóstico diferencial existem classicamente várias estimativas proba-
bilísticas de doença (as chamadas listas)18:
1. a lista de possibilidades, quando se consideram vários diagnósticos igualmente pos-
síveis e se testam simultaneamente (com eventual nº excessivo de testes)
2. a lista de probabilidades, quando se seleccionam as doenças mais prováveis
3. a lista prognóstica, quando as doenças consideradas são as que, se não tratadas,
apresentam pior prognóstico; e
4. a lista pragmática, que são as doenças mais facilmente tratáveis.
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Tomemos como exemplo a angina de peito, que constitui um sintoma, mais do que um
diagnóstico. Esta pode ser dividida em angina estável, instável e de Prinzmetal. Sendo a
etiologia das duas primeiras a existência de ateromas luminais e a última

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