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Como já sabemos, entre aquilo sobre o qual queremos falar e a forma escolhida para textualizar/discursivizar, não se verifica uma relação direta e transparente, porque a língua não espelha o mundo, antes reflete e refrata esse mundo. Assim, a referência, ou o processo de referenciação sobre o qual nos ocuparemos nesta aula, pretende ampliar seus conhecimentos sobre o assunto, no sentido de aprofundar diferentes funções textuais/discursivas que são realizadas ao nos referirmos a referentes/objetos de discurso. Em síntese, estudaremos o modo como nos referimos às coisas utilizando a língua. Antes de tudo, porém, é importante explicitar que esse estudo se ancora em uma concepção de língua considerada como atividade sociointerativa, a qual, de acordo com Marcurchi (2008), pressupõe que os interlocutores, ao interagiram pela linguagem, enunciam conteúdos e sugerem sentidos que devem ser construídos, inferidos, determinados mutuamente. Isso quer dizer que os sentidos são fundados numa relação de interação e coprodução em que os conhecimentos partilhados desempenham papel decisivo. Além disso, sendo a linguagem uma atividade, uma forma de ação; o texto, como vimos na aula anterior, é uma unidade de sentido ou unidade de interação, produzido por sujeitos históricos e sociais e, por isso mesmo, produto de uma interação condicionada por fatores tanto subjetivos quanto sociocognitivos. Essa consideração é muito importante porque, como bem observa Silva (2008), não só as pessoas são diferentes, em função de suas características individuais, de seu ambiente e cultura, mas também mudam seus pontos de vista em relação à forma de ver o mundo, o modo como pensam esse mundo. Tudo isso é levado em conta quando o assunto é Referenciação, já que no modo como nos referimos às coisas importa também quem somos e onde estamos, como se pode conferir no exemplo a seguir, analisado por Ciula e Silva (2008): O ferro em brasa, que a própria mulher do filho trouxe da trempe de tijolos na cozinha. O gemido, contorções do corpo. A pele de fumo voltou a cobrir a ferida. Morreu três horas depois. Longe os vizinhos. Légua e meia o mais próximo. Belarmino teve de ir até lá (o cachorro enrolava-se no chão sob a tipóia do morto). Trouxe outros seres em molambos e grunhidos. E a marcha fúnebre – tipóia oscilante presa à estaca de sabiá – se fez em direção ao distante arruado, onde havia a capela e o telheiro abatido do mercado. No mais, a solidão da noite e dos seres. A viúva-menina, sem lágrimas. Duro mundo, carente de umidades. Muitas lições de renúncia. Tão trabalhados todos como a escarpa fendida e crestada pelo tempo, por onde subiam bodes e cabras. (Moreira Campos, O peregrino) Nesse trecho de conto, quando pela primeira vez temos a expressão a própria mulher do filho, referindo à nora de Belarmino, ocorre uma introdução referencial que é retomada com a viúva-menina, uma expressão anafórica, já que retoma “mulher do filho”. Nessa retomada, temos não só a manutenção do referente, como também sua progressão, na medida em que são acrescentadas as informações de que a mulher era jovem e viúva. Essas escolhas realizadas em expressões referenciais se relacionam, por sua vez, ao ponto de vista do sogro Belarmino, que tem seu sentimento em relação à nora, alterado com a morte de seu filho. Assim, a seleção lexical por ele escolhida revela que o ato de enunciação representa o contexto e as versões intersubjetivas do mundo adequadas a cada contexto. 13