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Em continuidade aos estudos de Clínica Ampliada e Compartilhada, seguem três casos atendidos no serviço de atenção básica de saúde: 1. CASOS DE APLICAÇÃO DA CLÍNICA AMPLIADA: CASO 1: Ao olhar o nome no prontuário da próxima paciente que chamaria, veio-lhe à mente o rosto e a história de Andréia, jovem gestante que pedira “um encaixe” para uma consulta de “urgência”. Com 23 anos, ela estava na segunda gestação, porém não no segundo filho. Na primeira vez que engravidara, ela perdera a criança no sexto mês. Estela, obstetra experiente, também fizera o pré-natal na primeira gestação e pôde acompanhar toda a frustração e tristeza da jovem após a perda. Com o prontuário na mão, abriu a porta do consultório e procurou o rosto conhecido. Fez um gesto sutil com a cabeça acompanhado de um sorriso, pensando ou dizendo de forma inaudível: “Vamos?”. Mal fechou a porta e já ouviu Andréia dizer, contendo um choro: “Ele não está se mexendo”. Quase escapou de sua boca uma ordem para que ela se deitasse imediatamente para auscultar o coração do bebê com o sonar. Olhou nos olhos de Andréia e, tendo uma súbita certeza do que estava acontecendo, disse: “Vamos deitar um pouco na maca?”. Enquanto a ajudava a deitar-se, ainda olhou para o sonar, confirmando a convicção de que não o usaria... pelo menos não ainda. Andréia se surpreendeu quando ela disse: “Feche os olhos e respire fundo”. Pegou a mão fria de Andréia, apertou entre as suas e colocou-a sob a sua mão, ambas sobre a barriga. Respirou fundo e procurou se colocar numa postura totalmente atenta, concentrando-se no instante. Agora eram ali duas mulheres, reinventando o antigo compromisso de solidariedade e sabedoria feminina para partejar a vida. Quanto tempo se passou? Não saberia dizer. O suficiente para que ele começasse a se mexer com movimentos fortes e vigorosos dentro da barriga, sacudindo as mãos das mulheres e derrubando lágrimas da mãe. O que aconteceu foi que Estela pôde mediar uma “conexão”, possibilitar uma vivência que estabeleceu uma conversa silenciosa entre mãe e filho e permitiu a Andréia aprender a conhecer e utilizar a sua própria força e lidar com o medo ao atravessar o “aniversário” de uma perda. CASO 2: O Sr. Anésio (nome fictício), 74 anos, conhecido da equipe de Saúde da Família, que era nova, sempre estava lá, com suas queixas múltiplas e vagas. Era hipertenso, tomava corretamente a medicação, PA controlada. Já tomava há tempos um antidepressivo, mas aparentemente ele não melhorara nada após 6 meses de uso. Seu Anésio era aposentado, viúvo e morava sozinho, tinha um filho que morava na cidade vizinha e vinha nos fins de semana visitá-lo. O médico e a enfermagem então resolveram levá-lo para o matriciamento e discutir o caso com a saúde mental, já que ele não parava de ir ao centro de saúde frequentemente. Marcaram uma consulta conjunta (com psiquiatra e psicóloga): O psiquiatra sugeriu aumentar a dose da medicação (que estava correta). Pensou-se em uma terapia de grupo com a psicóloga, dado o humor deprimido e a solidão do paciente, mas este recusou a oferta. Como, por outro lado, os grupos que existiam estavam lotados e com pacientes graves, os profissionais não acharam de todo ruim sua recusa, já que ele não parecia descompensado nem piorando, estava com quadro estável. A orientação da Saúde Mental (serviços substitutivos em Saúde Mental) foi para ter paciência em prestar atenção em sinais de agravamento da depressão e manter acompanhamento. Quando contava suas histórias e mostrava sua obra, seus olhos brilhavam muito. Chamaram os outros da equipe, a psicóloga da saúde mental e compartilharam o que sentiram na semana seguinte na reunião da equipe. Alguém deu uma ideia: estavam num bairro onde havia adolescentes sem desocupados, que ficam vagando. Será que sr. Anésio toparia ensinar o que sabe a alguns meninos? Será que alguns meninos topariam aprender marcenaria? E toparam. E a varandinha da casa de sr. Anésio virou uma escola-marcenaria, cheia de barulho. E sr. Anésio melhorou imediatamente. Precisava de gente? Sentir-se útil? Inserido na sociedade? Contribuindo de alguma maneira? Pode ressignificar sua vida naquele momento? Os agentes comunitários de saúde ajudaram a arranjar sucata de madeira, ferramentas. E logo, por sorte, um familiar de outro usuário do Centro de Saúde ofereceu o maquinário de uma oficina inteira que pertencia a um parente falecido recentemente. A coisa cresceu e virou o Portal das artes – hoje um centro de convivência, bancado pela Saúde Mental, de uma grande cidade. CASO 3 (Exemplo de atendimento médico): Paciente do sexo masculino, setenta anos, branco, casado, pintor, natural de Petrópolis, residente em uma das escadarias da Comunidade Estrada da Saudade do Município de Petrópolis-RJ. Procurou, sob livre demanda, a Unidade de Saúde da Família desta comunidade, após ter comparecido ao Serviço de Emergência do Município, e ter como diagnóstico inicial Artrose de membros inferiores. Não possuía história de acompanhamento médico prévio, visto que a Unidade de Saúde foi implantada há menos de sete meses, e não se recordava sequer ter feito consulta nos últimos 32 anos. Os pais são falecidos (não soube informar a causa das mortes). Mora com uma irmã, de mesma idade e sua esposa reside em Pernambuco com seus dois filhos. Casa de tijolo e sem rede de esgoto. Água proveniente do poço artesiano. Tabagista com carga tabágica de 500 maços/ano. No mesmo dia foi contactada a médica supervisora de Clínica Médica que examinou prontamente o paciente, chegando a hipótese diagnóstica de Insuficiência Arterial em membro inferior direito devido a possível Aneurisma de Aorta abdominal agravado por embolia arterial. Nesse momento foi contactado o Serviço de Cirurgia Vascular do HMSA (RJ), que é tido como referência no caso descrito, uma vez que o Município de Petrópolis não dispõe de tal serviço. Ao mesmo tempo, a Secretaria de Saúde de Petrópolis, ciente de do caso, viabilizou a remoção para internação. Confirmada existência de Aneurisma de Aorta abdominal e artéria ilíaca direita causando insuficiência arterial aguda. Foram realizadas cirurgias de revascularização do membro afetado, amputação do segundo, terceiro e quarto pododáctilos que se encontravam necrosados, e em segunda ocasião, cirurgia para correção de aneurisma de aorta abdominal. Após período de internação, paciente foi contra referenciado para a unidade de origem, onde continuou o acompanhamento pós-operatório e tratamento da hipertensão arterial. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Brasil. Ministério da Saúde. Clínica Ampliada e Compartilhada. EDITORA MS: 2009.