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q Copyright © 2020 Brasil Paralelo Os direitos desta edição pertencem a Brasil Paralelo Editor Responsável: Equipe Brasil Paralelo Revisão ortográfica e gramatical: Equipe Brasil Paralelo Projeto de capa: Equipe Brasil Paralelo Produção editorial: Equipe Brasil Paralelo Morgenstern, Flávio Mito, linguagem e mídia: Aula1 ISBN: 1. Mito 2. Linguagem 3. Mídia CDD 400 __________________________________________ Todos os direitos dessa obra são reservados a Brasil Paralelo. Proibida toda e qualquer reprodução integral desta edição por qualquer meio ou forma, seja eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução sem permissão expressa do editor. Contato: www.brasilparalelo.com.br contato@brasilparalelo.com.br http://www.brasilparalelo.com.br/ mailto:contato@brasilparalelo.com.br SINOPSE: Neste e-book, primeiro dentre quatro do curso "Mito, Linguagem e Mídia", com Flávio Morgenstern, retornamos à Grécia Antiga e à Idade Média para explorarmos o nascimento e o desenvolvimento da filosofia. Nessa parte inicial de nossa jornada, somos instigados a refletir sobre um tema fundamental que não nos é familiar: a importância de definir conceitos para as palavras e as severas consequências a que o esfacelamento destes pode nos levar. OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM: Ao final deste e-book, pretende-se que você saiba identificar: o que é o método socrático; o que é o mundo sofístico e como este nos impacta na modernidade; a importância da definição de conceitos para as palavras; os problemas ocasionados devido à perda dos conceitos. OS ANTECESSORES Durante muito tempo, as sociedades foram mitológicas. Elas se caracterizavam pelo fato de cada indivíduo possuir uma função laboral específica. A discussão intelectual, neste contexto, não estava disseminada entre a população. Em vez disso, estava reduzida ao núcleo daqueles que conseguiam estabelecer uma relação com o mito e que, por isso, tinham uma possibilidade de alcançar a verdade. Os demais estavam restritos à mera opinião, uma forma de pensamento muito baixa, em que não há rigor a orientar a produção de conclusões. Essa situação começou a se modificar nas Cidades-Estado gregas, principalmente em Atenas, à medida que uma rigidez na maneira de pensar ia tomando forma. O desenvolvimento desse modo de pensar mais elevado do que a opinião culminou, posteriormente, no surgimento da filosofia. Os primeiros pensadores foram os pré-socráticos, responsáveis por suscitar uma série de indagações acerca do fundamento dos objetos. Eles queriam identificar, por exemplo, qual é o fundamento da vida. No entanto, apresentavam uma interpretação mais simbólica da realidade, pois ainda orbitavam em um reino mais poético, mitológico. O QUESTIONAMENTO Sócrates foi o precursor da filosofia, conquanto o termo filósofo não tenha sido utilizado precipuamente por ele. A diferenciação entre as palavras sofista, sábio e filósofo viriam a ocorrer somente depois. Tanto é que, nos diálogos platônicos, nos quais a figura de Sócrates é proeminente, esses termos foram usados indiscriminadamente. Hoje, o vocábulo sofista é associado a uma pessoa que emprega uma técnica de pensamento para ludibriar os outros. Essa significação, entretanto, não reflete quem eram os sofistas da Antiga Grécia. Os sofistas eram homens ricos que compunham tanto a elite da intelectualidade quanto da sociedade grega e, em parte, estavam ligados aos pensadores pré-socráticos. Seus expoentes desempenhavam, principalmente, duas profissões: o reino do direito e o reino da poesia. A relação com o reino do direito se deve ao fato de muitos sofistas terem sido grandes oradores e pensadores, com um manejo da língua que os permitia convencer aos outros por meio de um discurso muito sofisticado 1. Na época, não havia um código escrito de leis e tais habilidades eram essenciais aos bons advogados, que garantiam a vitória de suas causas a partir do uso da poética. Esse cenário nos possibilita memorar um aspecto importante: no reino da sofística, não é possível diferenciar verdade de opinião. Ou seja, estava-se em um nível de desenvolvimento da língua e do pensamento em que a opinião e a verdade não estavam separadas. Quando Sócrates fez a primeira pergunta fundamental da filosofia - o que é isso? - desferiu um golpe nos sofistas2. Para vencê-los, reiteradamente impôs esse questionamento. Os sofistas tinham um discurso sofisticado, um domínio do código, da linguagem. Na época, estes predicados eram mais importantes do que lidar com o fato em si, pois eram usados para convencer os juízes em prol de seu pleito, não necessariamente compatível com o que era justo3. Com isso, somos capazes de entender, em alguma medida, qual era o trabalho do sofista e por que, apesar dessa 1 Este termo, inclusive, deriva de sofista. 2 A maioria dos títulos dos diálogos platônicos são em referência ao sofista com quem Sócrates está debatendo, na obra. 3 Até hoje, uma parte considerável do trabalho dos advogados é sofístico: a culpabilidade do cliente tem importância menor, para persuadir o juiz da inocência do réu. palavra ser usada exclusivamente com conotação negativa, não é forçosamente uma atribuição pejorativa. Ao perguntar aos sofistas “o que é justiça?”, “o que é o bem?”, Sócrates os desestabilizou, porque estavam acostumados a confundir exemplos de bondade ou de justiça com a própria justiça e com a própria bondade. Assim, suas respostas eram similares a “este caso, em que acabei de livrar meu cliente da prisão”. Nessas circunstâncias, Sócrates contra-argumentava que, a partir de um caso, não era possível determinar o que é justiça de fato. Como não conseguiam responder à indagação, os sofistas elencavam novamente mais exemplos do que julgavam justo. Sócrates, no entanto, queria saber o que é justiça e não conhecer casos de justiça. Seus questionamentos, aparentemente banais, como “o que é movimento”, se mostraram, na verdade, bastante complexos. Afinal, todos nós sabemos o que é o movimento, o que é o tempo, mas expô-los em palavras é uma tarefa difícil4. A grande nata da intelectualidade, os sofistas, quando interpelados, se viram inaptos para explicar muitos fenômenos facilmente observáveis. CONCEITOS: UMA IMPORTÂNCIA VITAL Incrivelmente, esse contexto resume muito do problema que estamos enfrentando no século 21. A dificuldade em explicar o óbvio propicia que os indivíduos sejam manipulados pelo discurso sofista presente no reino jurídico, na mídia e no debate público. Apesar de o discurso sofístico ter existido em todas as sociedades, durante todos os tempos, é somente com o advento da ideologia, na modernidade, que se forma como um conjunto de valores. A ideologia pode ser resumida justamente no reino da palavra, do discurso sofisticado, que não apresenta conteúdo, que não determina o que é justiça, correto ou verdade. Retomemos o caso do sofista da modernidade, o advogado. Digamos que ele esteja defendendo uma causa nociva ou um cliente que é culpado. Para vencer, ele faz uso do discurso, sobretudo, ideológico. Isso evidencia como Sócrates fez algo fundamental para a história ao buscar definir conceitos. A filosofia latina, em especial a medieval-cristã, posteriormente atenuou obsessivamente o que são conceitos, o que são estruturas, o que são os 4 Futuramente, essa discussão originou a física. conteúdos das palavras, entre outros aspectos. Mas a gênese desse movimento está no desejo que Sócrates teve de definir, pela primeira vez, o que é justiça de fato, a partir da criação de conceitos mais abstratos. Vamos detalhar a situação, paraque se torne compreensível. Em nossa mente, nós apresentamos uma série de conceitos que não estão bem trabalhados. Sabemos, por exemplo, o que é uma mesa e estamos cientes das variedades estéticas que este objeto pode apresentar - mesa de centro, de jantar, de ping-pong, de negócios, etc.. Todas estas formas serem identificadas como mesa significa que há algo que une todas as diversas mesas possíveis. Por isso, ao dizer “pense em uma mesa”, as pessoas visualizam objetos que, embora diferentes, estão englobados nesse conceito. Pensar no conceito de mesa é extremamente fácil. Mas é precisamente isso que Sócrates está instigando tendo por alvo fenômenos mais complexos como a beleza, a justiça, a ética. Esses termos estão em um nível muito mais abstrato, não apresentam contornos claros, não são definidos com uma precisão absoluta. Até hoje, é um empreendimento desafiador definir as bases conceituais do que é o belo, do que é o justo, do que é ético. Por isso, o trabalho socrático é inesgotável e precisa ser continuamente replicado, sempre, o tempo todo. Com esse método, Sócrates promove pequenos exercícios espirituais, pois, ao ter diante de si, a ideia do que é justiça, o ser humano tenta se adequar. Apesar da relação com o conceito não ser direta, uma vez que os homens apresentam paixões, instintos, perdas, etc., as definições servem de inspiração. É mais ou menos como entendemos o mundo das ideias platônicas: o belo, o justo, o verdadeiro, são elevados. Não conseguimos viver seguindo estritamente a perfeição desses ideais, mas a própria ideia de ter em face de si algo que seja verdadeiro, belo, justo, tal como um ímã, inspira os seres a trilharem esse caminho. Uma pessoa não se tornará santa simplesmente lendo um diálogo platônico, mas seu contato com a filosofia necessariamente modificará seu comportamento e guiará seu espírito em concordância com aquelas ideias. A filosofia, ao contrário das demais profissões, não é somente um ofício temporário, do qual se possa abdicar em alguns momentos. Por isso, sendo o filósofo aquele que está diante e é amante do elevado, todo o seu ser, todo o seu comportamento, toda a sua vida, inclusive a mais íntima, devem estar ligados, pelo menos de alguma forma, a esses conceitos. Essa peculiaridade torna espantoso o fato de que, na modernidade, a maioria dos filósofos apresenta um comportamento absurdo. Isso significa que, cada vez mais, está-se chamando de filosofia o reino daquilo que não tem nada de mais elevado, não tem nada de verdadeiro, justo ou belo. Estamos denominando por reino filosófico o reino da ideologia. O DESENVOLVIMENTO DA FILOSOFIA Sócrates foi pioneiro no trabalho com conceitos, ao buscar definir o que é justiça moral, verdade, beleza. Vale ressaltar que essas palavras sempre foram usadas, não foram inventadas por ele. Aliás, os sofistas apresentavam um uso mais refinado do vocabulário do que ele. Por possuírem o domínio da linguagem, conseguiam embasbacar sua plateia, com emprego de um discurso labiríntico, que as pessoas sequer entendiam. Grosseiramente, esse é o resumo do princípio da filosofia. Conceitos abstratos, que não podem ser visualizados, como beleza, justiça, acabaram constituindo a discussão filosófica. Enquanto, paulatinamente, os conceitos do mundo físico, como o movimento, tornaram-se as ciências modernas. A filosofia sempre lida com a linguagem, com a ideia do que é um conceito em relação ao que é o mundo e, também, o mundo das ideias. Portanto, na filosofia, há uma relação obrigatória entre o que é a palavra e o que é o objeto/ser. A filosofia da linguagem, desenvolvida modernamente, é a área de estudo responsável por analisar, socraticamente, o que é a linguagem, o que é a palavra, o que é a retórica. Na Idade Média, utilizando-se do método socrático, Santo Agostinho desenvolveu as artes liberais - a lógica, a retórica, a gramática. Também chamadas de Trivium, estas possibilitaram o pensar de forma mais correta e melhor que, por sua vez, permitiu a obtenção de um desenvolvimento intelectual mais elevado do que a mera opinião. As artes liberais provavelmente são a filosofia mais rigorosa já inventada pelo homem. Mais severa, inclusive, do que o método socrático, por debater as premissas do próprio falante. A compreensão de tais disciplinas apresenta um grave problema: os termos lógica, retórica e gramática foram utilizados de forma completamente caótica na história da filosofia. O que era denominado lógica em um momento, em outro, era retórica. Devido ao tempo exíguo, não nos embrenharemos no esclarecimento histórico de tais disciplinas, mas é oportuno sublinhar que a gramática desse período nada tem a ver com o que hoje entendemos por gramática. O desenvolvimento da própria ideia de filosofia desembocou, obrigatoriamente, nesta relação entre palavra e objeto, anteriormente mencionada: palavra e justiça. Palavra e Deus. Para pensar filosoficamente, a priori, era preciso um bom uso das palavras. Isso significa que era preciso partilhar uma mesma imagem mental, tal qual no caso da mesa. O PROBLEMA DA UNICIDADE DAS PALAVRAS Na Idade Média, todo o exercício filosófico foi realizado em latim. Apesar de parecer uma simples curiosidade, esse fato é extremamente sério para o estudo que estamos perfazendo. Na Alemanha, escrevia-se em latim. Santo Agostinho, que era de Cartago, escrevia em latim. São Jerônimo, que traduziu a bíblia do hebraico para o latim, e que vivia no que hoje conhecemos por República Tcheca, também escrevia em latim. Em diversos lugares, com diferentes línguas que não apresentavam muita proximidade entre si, os sujeitos estavam pensando em latim. Há uma razão específica para isso: quando todos estão pensando em latim, você facilita que todos pensem na mesma imagem mental. As línguas não apresentam traduções perfeitas, principalmente para termos abstratos. Pense como seria complicado se cada um pensasse em sua língua. Imagine a perda na tradução quando se está pensando filosoficamente. Um exemplo disso está presente no livro “A República” de Platão. O título original, “Politeia”, foi traduzido como res publica para o latim. Entretanto, politeia e res publica não são a mesma coisa. Isso gera uma grande complicação, pois já não estamos mais pensando simplesmente na palavra, estamos pensando em línguas. Estamos refletindo sobre a palavra dentro de um código linguístico. Uma palavra, dentro de um determinado código linguístico, pode apresentar certa interseção com o significado de outra palavra, dentro de outro código linguístico, mas elas não têm uma igualdade. É quase impossível você achar um sinônimo perfeito dentro de uma mesma língua, que dirá entre duas línguas diferentes. A gramática, para eles - exposta anteriormente -, era justamente pensar as palavras corretas entre dois falantes. No entanto, a filosofia medieval não lidou com esse problema, não refletiu sobre a questão das línguas, porque todos estavam o tempo todo pensando em latim. Há uma razão para dizer que o grego, o latim e o alemão são as línguas da filosofia. Tentar pensar nos conceitos de Hegel em português é extremamente trabalhoso. Devido a peculiaridades próprias de sua língua, os filósofos alemães rotineiramente inventaram formas novas para dizer uma determinada palavra, a fim de chegar a um conceito perfeito, que não estivesse contaminado pelo uso cotidiano das palavras. Historicamente, como foram três os grandes momentos da filosofia, você vai ter esse problema linguístico. O RISCO DO ESFACELAMENTO CONCEITUAL Voltemos ao caso da politeia e da res publica platônica, que causa um problema seríssimo para o discurso político da modernidade, o qual é preciso desnudar. Platão dividiu o sistema político em três tipos: se um manda; se poucos mandam; se muitos mandam. Além disso, dividiu essessistemas entre aqueles em que se está pensando no bem geral e aqueles em que se está pensando em si próprio - entre o sistema bom e o sistema corrompido, portanto. Se um manda e pensa no bem geral, há uma monarquia. Se esse sistema se corrompe, torna-se uma tirania. Se poucos mandam e pensam no bem geral, trata-se de uma aristocracia. Se esse sistema se corrompe e os governantes só pensam em beneficiar a si próprios, o sistema se converte em uma oligarquia. Até esse momento da explicação, a tradução não implicou muitas perdas. Contudo, Platão chamou de politeia o sistema em que muitos mandam e pensam no bem geral. E de democracia o sistema em que muitos mandam e só pensam em si próprios. Por isso, para Platão, a democracia é necessariamente negativa. A existência da democracia exige que haja a corrupção de um sistema. Isso significa que Platão é antidemocrático. Em muitas traduções, que gozam de um extremo respeito, consta a observação de que a politeia é, atualmente, denominada de democracia. O sistema corrompido, por sua vez, é chamado de demagogia. Ocorre que demagogia sequer é uma forma de governo; é uma forma de se obter o poder. Percebe-se que a busca do tradutor por promover uma correção engendrou problemas mais amplos e graves que o original. Pior: há, ainda, outro problema linguístico. O iluminismo escocês resgatou o termo “democracia” de forma distorcida, como se correspondesse a algo bom. Como consequência, quando se configura um cenário em que muitos mandam, mas em que o sistema está corrompido, especialistas afirmam que é a própria democracia que está em crise. Isso revela que sequer há o conceito de que, com muitos mandando, o sistema pode ser corrompido. Tente lembrar quantas vezes você leu ou ouviu que “a democracia está em crise”, desde que Donald Trump foi eleito. Geralmente atribuída a Norberto Bobbio, existe uma frase que diz: “Todos os problemas da democracia se resolvem com mais democracia”. Percebe-se, portanto, o quanto o entendimento da modernidade está distante do entendimento de Platão, que perdurou por vinte e três séculos. Devido à unidade do latim, qualquer autor, quando discutia formas de governo, sobretudo na vigência do sistema monárquico da época, utilizava a mesma acepção que Platão. Uma espécie de erro de tradução, cometido de maneira motivada, causou toda essa confusão que temos na modernidade. Esse é o impacto de apenas uma palavra. Hoje, é difícil responder se democracia é um conceito, tendo em vista que cada pessoa apresenta seu próprio conceito de democracia. Cada político que perde a disputa eleitoral acusa a crise da democracia. Ou seja, não há um conceito claro e unânime do que ela é. A divisão de poderes, por exemplo, foi proposta por Montesquieu quando a monarquia ainda existia e constrangia a esse compartilhamento. Em uma democracia, ao contrário do que seria suposto, não há quaisquer obrigações em relação à divisão de poderes. Tanto é que as pessoas votam nos candidatos de um mesmo partido para ser Chefe do Executivo e para as vagas do Poder Legislativo. Além disso, o executivo ainda indica alguém, que também pertence ao mesmo partido, para ocupar o judiciário. Pode ser, inclusive, um advogado desse partido que nunca conseguiu passar no concurso para a magistratura. Ou seja, em pouquíssimo tempo, a democracia solapou a divisão de poderes. Por isso, da perspectiva filosófica, não podemos afirmar que a democracia corresponde à divisão de poderes. Contudo, o uso corrente do termo é justamente este. Normalmente, também é atribuída à democracia a liberdade de expressão. Entretanto, esta foi criada pelas monarquias. O próprio Voltaire, considerado um gênio da liberdade de expressão, tinha como maior amigo político um suposto déspota, um monarca da Prússia. Os conceitos que foram formados se perderam historicamente. Perderam-se no desenvolvimento da humanidade. No entanto, as palavras ficaram, sem manter a correlação que observamos na Idade Média. Elas nos foram legadas sem estarem embebidas no método socrático, sem ter a gramática, ou seja, a palavra mais correta. Durante todos os mil anos de Idade Média, no campo filosófico, buscou-se definir o que é a palavra mais correta. Tanto que a escolástica tardia, existente no final do período, intensamente criticada para que venha o renascimento, apresentava o que se chama de discussão bizantina: debatia-se sobre a brancura do branco. E há textos sobre isso. Na tentativa de analisar algumas parábolas bíblicas, chegaram a discutir se o renascimento do corpo místico de Jesus incluía a roupa. Eles desciam a minudências. Usava-se algo extremamente poderoso como a filosofia para uma discussão completamente infrutífera. Entretanto, nós perdemos a gramática, não no sentido das normativas de um código linguístico específico, mas no sentido do estabelecimento da boa palavra. Isso está intimamente relacionado à atividade desempenhada por Sócrates, o qual salientou que aquilo que os outros chamavam de justo não perfazia a justiça. Ele ressaltou a imprescindibilidade de definir conceitos e de não os confundir com meros exemplos. Apenas para ilustrar o meio em que estava envolto: em um dos debates platônicos, Sócrates perguntou “o que é justiça?”. Um de seus interlocutores, com toda sinceridade, respondeu que “justiça é favorecer os amigos e prejudicar os inimigos”. Ou seja, empregava-se uma palavra extremamente elevada para designar atos reles. ONDE ESTAMOS? Atualmente, precisamos lidar com o problema de ter um pensamento filosófico em um mundo em que as palavras já não são conceitos perfeitos. Um conceito do mundo físico, como o caso da mesa, possibilita que facilmente façamos uma analogia. No entanto, quando estamos falando em conceitos abstratos, como democracia, é muito difícil atingir uma unanimidade. Há muito tempo eu estudo o que é democracia. Entretanto, ainda não localizei dois autores que pensem a mesma coisa quando empregam o termo, pois cada um fabrica seu próprio conceito. Como podemos utilizar uma palavra de forma deliberada e particular, isso nos conduz novamente ao reino da sofística, ao reino do convencimento que não está atrelado à verdade. Por isso, em um debate político entre duas pessoas, uma sempre tenta acusar a outra de ser antidemocrática5. Justamente por esses problemas polissêmicos, o latim se tornou a língua da ciência e da filosofia, uma vez que seu uso corrente estava morto. Além dos já mencionados, a linguística moderna nos impõe um novo problema seríssimo, que é o fato de as palavras variarem de língua para língua e, também, historicamente. Sobretudo a partir da Revolução Industrial, a linguística moderna começou a perceber alguns problemas urgentes, ainda mais em um mundo que estava se globalizando rapidamente. Dentre estes, está o fato de não termos uma gramática filosófica, pela própria constituição do tempo, que nos permita falar exatamente a mesma coisa. Quer dizer, há o Deus para Sócrates, o Deus para os Judeus. Há o Deus filosófico de Descartes e do idealismo alemão. Está-se usando a mesma palavra “Deus”, que pode apresentar grandes intersecções entre si, para fazer menção a objetos distintos. Não há, portanto, a formação de conceitos claros a respeito do que se discute. Essa situação se torna ainda mais perigosa quando identificamos que a filosofia medieval discutia assuntos, atos ou objetos considerados heréticos, pecaminosos, tabus, de forma muito mais séria do que se discute hoje nas universidades. Hoje, é difícil encontrar um livro que defenda a monarquia sendo debatido na Academia. Não há a possibilidade de debater um livro que prega que o feminismo não funciona. E o feminismo é o que chamamos de ideologia. É uma palavra que dificilmente pode ser definida. Mesmo entre as feministas, não é possível encontrar duas que atribuema mesma definição para o termo. Feminismo não é um conceito. Ele não é algo que pode ser determinado. A linguística ficará com o restolho que fica disso. Não sabemos o que é democracia nem feminismo, mas essas palavras causam uma extrema impressão. Esse será o tema do próximo e-book. PERGUNTAS 1) Durante a aula, falamos sobre a corrosão dos conceitos e como esse processo dificulta o acesso à verdade. Há algum movimento hoje que está buscando retomar os significados originários das palavras, que foram completamente distorcidos? 5 Tal situação nos permite concluir que praticamente ninguém leu corretamente Platão, no Brasil. Resposta: eu, infelizmente, não vejo. Além disso, eu vejo certo agravamento do problema de ambos os lados. Por exemplo: após a eleição do Trump, foi necessário que grandes intelectuais parassem e se confrontassem com uma nova situação que ainda não havia ocorrido e que estava completamente fora do horizonte de possibilidades, pois todos, em uníssono, haviam afirmado que não havia chance de Trump ser eleito e isso aconteceu. Menos de um mês depois da eleição do Trump, apareceu uma série de explicações, utilizando novos termos ou retomando antigos termos horrendos do passado, como nacionalismo e populismo. Ninguém falava em fake news antes. A análise do google mostra que, três semanas após Trump ser eleito, o Washington Post produziu uma reportagem em que atribuía a vitória de Trump a um conluio de fake news. Postada em dezembro, essa publicação levou a um aumento exponencial de pesquisas envolvendo o termo. O Oxford Dictionary, em 2016, afirmou que fake news era o termo do ano. Como poderia ser o termo de 2016 se, ao longo de todo o ano, esteve ausente do debate público? Depois disso, de fato, o termo passou a ser amplamente empregado. 2) Os sexos apresentam uma relação com a realidade. São palavras que fazem referência a algo real. Por outro lado, as dezenas de gêneros, que surgiram recentemente e se disseminaram rapidamente, não apresentam substrato na realidade. Resposta: essa discussão acerca da ideologia de gênero é bastante interessante. Para explicar linguística, eu sempre uso o exemplo do feminismo, de que não há uma feminista que consiga definir o que é feminismo. Ele é um termo fabricado para não ser definido. A respeito da ideologia de gênero, acontece algo análogo. As pessoas criaram uma série de novos gêneros, mas, eles são usados? Quer dizer, o que é um ser humano não binário? Todo esse movimento da ideologia de gênero é um grande fator do que está acontecendo no mundo hoje. Por isso essa discussão é tão importante. Lembrem-se do que eu estava falando no início, sobre o mundo pré- socrático, quando não havia conceitos; quem determina o que é certo e errado, quem determina o que o tribunal vai definir, é quem tem o discurso mais sofisticado, da doxa, o império da opinião. Se você tem esse monte de gênero, na verdade, é toda uma maquiagem para definir o que é verdade: são seus olhos ou o Estado que definem o que é verdade? Por exemplo: se hoje você postar que o Pablo Vitar é homem, você corre risco de sofrer uma sanção penal bem mais grave do que se você roubar alguém. Ideologia de gênero é uma maquiagem para falar: vale mais o discurso ou a realidade? Valendo mais o discurso, você tem que lembrar que isso é jurídico também. Você perde o mundo da autoridade para entrar no mundo do controle. Quer dizer, quem controla o que pode ser dito ou não dito, tem o controle completo sobre você. Por isso, essa é uma das discussões atuais mais sérias.