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W JU R0 21 1_ V3 .0 TEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 2 Emerson Ademir Borges de Oliveira São Paulo Platos Soluções Educacionais S.A 2021 TEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 1ª edição 3 2021 Platos Soluções Educacionais S.A Alameda Santos, n° 960 – Cerqueira César CEP: 01418-002— São Paulo — SP Homepage: https://www.platosedu.com.br/ Diretor Presidente Platos Soluções Educacionais S.A Paulo de Tarso Pires de Moraes Conselho Acadêmico Carlos Roberto Pagani Junior Camila Turchetti Bacan Gabiatti Camila Braga de Oliveira Higa Giani Vendramel de Oliveira Gislaine Denisale Ferreira Henrique Salustiano Silva Mariana Gerardi Mello Nirse Ruscheinsky Breternitz Priscila Pereira Silva Tayra Carolina Nascimento Aleixo Coordenador Gislaine Denisale Ferreira Revisor Lais Giovanetti Editorial Alessandra Cristina Fahl Beatriz Meloni Montefusco Carolina Yaly Mariana de Campos Barroso Paola Andressa Machado Leal Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)_____________________________________________________________________________________ Oliveira, Emerson Ademir Borges de O48t Teoria geral dos direitos fundamentais / Emerson Ademir Borges de Oliveira, – São Paulo: Platos Soluções Educacionais S.A., 2021. 50 p. ISBN 978-65-89965-19-0 1. Direitos fundamentais. 2. Direitos humanos. 3. Intervenção do Estado. I. Título. CDD 341.481 ____________________________________________________________________________________________ Evelyn Moraes – CRB - 8 SP-010289/O © 2021 por Platos Soluções Educacionais S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito, da Platos Soluções Educacionais S.A. 4 SUMÁRIO Teoria Geral dos Direitos Fundamentais I: o constitucionalismo brasileiro e os direitos humanos e direitos fundamentais ____ 05 Teoria Geral dos Direitos Fundamentais II: as dimensões de direitos fundamentais ________________________________________ 21 Teoria Geral dos Direitos Fundamentais III: a eficácia dos direitos fundamentais ________________________________________________ 36 Teoria Geral dos Direitos Fundamentais IV: restrições, colisão e limites dos limites ____________________________________________ 52 TEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 5 Teoria Geral dos Direitos Fundamentais I: o constitucionalismo brasileiro e os direitos humanos e direitos fundamentais Autoria: Emerson Ademir Borges de Oliveira Leitura crítica: Lais Giovanetti Objetivos • Compreender a diferenciação terminológica, o conceito e as características dos direitos fundamentais. • Elucidar elementos valorativos e normativos acerca dos direitos fundamentais. • Estudar o desenvolvimento dos direitos fundamentais no constitucionalismo brasileiro. 6 1. Aspectos conceituais dos direitos fundamentais: aproximação e diferenciação dos direitos humanos Nos termos do art. 16 da revolucionária Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, ainda em 1789, na França, a sociedade que não assegura direitos – fundamentais – não possui Constituição. A indelével marca da fundamentalidade dos direitos é, por certo, a proteção da própria dignidade humana que, de um plano universal, passou a ser rascunhada nas Constituições modernas e contemporâneas. Desse modo, não bastará ao constitucionalismo desenhar a organização do Estado e nem a separação de poderes. Antes disso, é preciso se lembrar de proteger seu cidadão, tornando-o não objeto do Estado, mas seu fim. Esta é a primeira Leitura Digital acerca da temática Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. A preocupação inicial é rascunhar uma conceituação acerca dos direitos fundamentais, em especial a partir de uma análise comparativa com termos como direitos do homem e direitos humanos. Em seguida, pretende-se evoluir para um estudo sobre a norma de direitos fundamentais, suas características e o sujeito de proteção de tais direitos. Por derradeiro, esta leitura avança sobre um breve estudo histórico dos direitos fundamentais no constitucionalismo brasileiro, desde a Constituição de 1824 até a Constituição de 1988. Os direitos fundamentais são sinônimos de lutas e oposições aos sofrimentos perpetrados por circunstâncias históricas e regimes totalitários. É contra a legal “banalidade do mal” (ARENDT, 1999, p. 152) e a coisificação do ser humano que os direitos fundamentais se desenvolvem, ainda que, antes, tenham atingido certa conquista. Contudo, ainda, sob o aspecto principiológico e a carga valorativa que carregam, eles são instrumentos contra o mero positivismo legal e contra atentados que busquem sucumbir-lhes. Daí a necessidade premente de estarem inseridos no texto constitucional, uma vez que a 7 posição topológica exigirá, abaixo de si, o respeito da lei, a qual não será suficiente para retirar a proteção humana. Como diria Marmelstein (2018, p. 10), fora o desencantamento com o positivismo ideológico que viria a gerar justamente o pós-positivismo, inserindo “na ciência jurídica os valores éticos indispensáveis para a proteção da dignidade humana”. Neste diapasão que a proteção dos direitos fundamentais avança para um outro patamar, não apenas cingindo-se às regras de direitos fundamentais, mas a princípios que gravitam em torno do postulado da dignidade humana, transformando a teoria dos princípios no “coração das Constituições” (BONAVIDES, 1998, p. 253). Neste constitucionalismo contemporâneo, maximizador das proteções, principiológico e com densa carga valorativa, estabelecem-se algumas premissas: (a) crítica ao legalismo e ao formalismo jurídico; (b) defesa da positivação constitucional dos valores éticos; (c) crença na força normativa da Constituição, inclusive nos seus princípios, ainda que potencialmente contraditórios; (d) compromisso com os valores constitucionais, especialmente com a dignidade humana. (MARMELSTEIN, 2018, p. 12) Assim os direitos fundamentais representam aquilo que se denomina “giro kantiano”, isto é, um resgate da perspectiva filosófica de Kant, segundo a qual o homem deve ser um fim em si mesmo, jamais o objeto para a consecução de determinado fim (BORGES DE OLIVEIRA; RAMOS JÚNIOR, 2019, p. 515). Então, é preciso ter em mente que esse estudo dos direitos fundamentais lidará com esse avanço de perspectiva, perpassando por um momento inaugural pré-positivista, ainda na seara ético-moral, pelo início positivista, tendo os direitos fundamentais mais como regras do que princípios até o avanço principiológico que os reposiciona no contexto normativo, não apenas como partes da Constituição, mas como 8 elementos essenciais do direito constitucional, máximas de otimização, aptos a conformarem o ordenamento abaixo de si. 1.1 Direitos humanos, direitos do homem e direitos fundamentais Não se pode afastar uma raiz comum a todos os direitos que possuam como finalidade a proteção do ser humano a partir de uma cultura antropocentrista e voltados à sua dignidade enquanto pessoa, sejam os direitos mais primitivos no campo estatal (como os civis), sejam os mais modernos (como os difusos e coletivos, ou, ainda, os contemporâneos, como direitos a envolver biotecnologia e eras digitais. Todos eles nascem da concepção humana de autoproteção. Eles se desenvolvem- se historicamente, são absorvidos pela cultura, invadem a esfera internacional e chegam ao direito positivo interno. Contudo, embora os direitos humanos e os direitos fundamentais caminhem quase que em dependência recíproca, há a necessidade de diferenciá-los, assim como a necessidade de diferenciar a terminologia “direitos dohomem”. Inicialmente, a terminologia “direitos do homem” possui uma compreensão ético-valorativa pré-positiva, isto é, são direitos aceitos como válidos antes mesmo de serem inseridos em qualquer ordenamento jurídico, nacional ou internacional. Por essa razão, eles estão mais vinculados ao direito natural. Na história, segundo Marmelstein (2018, p. 24), eles antecedem a ideia de direitos humanos e de direitos fundamentais, por isso, são alcunhados “matéria-prima dos direitos fundamentais” Os direitos humanos, por sua vez, perfazem um destacamento específico do direito internacional, com isso, temos a comum referência enquanto direito internacional dos direitos humanos. Trata-se de direitos inerentes à natureza humana que acabaram positivados na ordem internacional, isto é, em tratados, convenções, protocolos etc. A propósito, e a título de 9 curiosidade, o documento internacional mais conhecido na área sequer é um tratado internacional sob o aspecto formal. Contudo, a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, uma Resolução da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, é considerada como norma jus cogens, isto é, de direito cogente. Mesmo sem a formalidade internacional necessária, é aceita sob o aspecto material e, mais do que isso, sobrepõe-se aos tratados formais. Por sua vez, os direitos fundamentais constituem uma positivação interna de direitos inerentes à natureza humana. Nesse contexto, é importante dizer que, tais direitos passam a ser previstos nas Constituições dos países, ganhando, para eles, o status de direitos fundamentais. Desse modo, note que a característica da fundamentalidade é local, pois aquilo que possa ser direito fundamental a um país pode não o ser para outro. Conforme assevera Marmelstein (2018, p. 18): […] os direitos fundamentais são normas jurídicas, intimamente ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, positivadas no plano constitucional de determinado Estado Democrático de Direito que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitimam todo o ordenamento jurídico. Com isso, é muito comum a confusão, em sentido de paralelismo, entre direitos fundamentais e direitos humanos, em que os mesmos direitos podem assim ser classificados no mesmo momento para um país ou em momentos distintos. Por exemplo, um país pode assinar um tratado internacional reconhecendo determinado direito como um “direito humano” sem que ao mesmo tempo o reconheça como “fundamental”, por não inseri-lo em sua constituição. A Constituição brasileira, embora adote essa distinção, inclusive no cuidado com as terminologias utilizadas, pretendeu buscar uma unificação com a inserção do §3º no art. 5º, por força da Emenda 10 Constitucional 45/2004 (BRASIL, 1988). A partir desse dispositivo, o Brasil pode conferir, de forma consequente, o status de direito fundamental a um direito que tenha reconhecido como humano, mediante análise do Congresso Nacional consoante aos mesmos requisitos de emenda constitucional. Além disso, no desenvolvimento temporal, há certas distinções. A evolução dos direitos humanos não se deu exatamente como a dos direitos fundamentais e suas gerações. Assim, por exemplo, alguns direitos trabalhistas foram reconhecidos na seara humana antes mesmo da criação da ONU e da elevação à condição de direito internacional de alguns direitos civis e políticos – que já eram considerados fundamentais para muitos países antes disso. 1.2 O conteúdo da norma de direitos fundamentais As normas de direitos fundamentais possuem uma inafastável origem valorativa ou ético-moral. Conforme narrado no tópico anterior, a raiz dos direitos fundamentais sempre fora o prévio reconhecimento do mesmo direito inerente ao homem, mesmo não positivado. O conteúdo normativo dos direitos fundamentais, isto é, a sua positivação e transformação em uma norma, na realidade, decorre do processo de evolução do conteúdo material (ético), que atingiu um estágio de reconhecimento apto a transformá-lo em direito escrito ou consuetudinário. Mais do que isso, um reconhecimento a ponto de ser estabelecido a nível constitucional. Nesse aspecto, Alexy (2002), a partir de Böckenförde, ressalta que os direitos fundamentais partem de cinco grandes searas ideológicas: a) liberal-burguesa; b) institucional; c) axiológica; d) democrática- funcional; e) do Estado social; sendo que a primeira e as duas últimas seriam teorias teleológicas gerais ou teorias dos princípios dos direitos fundamentais. De fato, para que os direitos fundamentais possam 11 ser posicionados enquanto instituições precisam ser considerados, simultaneamente, como princípios, o que requer que sobre eles incidam valores da coletividade com fins ideais. Já Andrade (1998, p. 55), por sua vez, ao inserir um sexto modelo – marxista-leninista –, pontualmente observa: Essas teorias expõem, em medida mais ou menos exata, a diversidade de aspectos existente, com suas tensões, permitindo, a partir daí, colocar toda uma série de questões de sentido importantes para a interpretação em geral e para a resolução de problemas concretos de regime. Sob essa lógica, Alexy (2002) ressalta que para serem considerados como instituições, os direitos fundamentais precisam, ao mesmo tempo, ser efetiva e permanentemente invocados pelo maior número possível e possuírem um efeito estabilizador de alto nível no contexto da Constituição e da ordem social. Por isso, pode-se concluir que o conteúdo normativo da teoria institucional dos direitos fundamentais consiste em uma teoria dos princípios e valores. Típico do conteúdo desta teoria dos princípios é que nela exercem uma função todos os princípios em questão, mas, enquanto ao princípio liberal se confere um peso relativamente pequeno, outorga-se um peso relativamente grande aos princípios vinculados com bens coletivos. (ALEXY, 2002, p. 546) A teoria axiológica é a que justifica todas as demais, inclusive a própria teoria dos princípios. Afinal de contas, a base principiológica está intrinsicamente conectada com a ideia de valores. Por evidente, o sistema de valores não se furta aos aspectos ideológicos. A Constituição brasileira (BRASIL, 1988), neste ponto, aproxima-se da concepção de Estado Social, revelando uma amplitude estatal na garantia e efetivação de direitos. 12 De acordo com Andrade (1998), em decorrência, os direitos fundamentais, enquanto categoria jurídica, devem ser visualizados sob dois aspectos: a) objetivo, isto é, uma dimensão valorativa ou estrutural; b) subjetivo, sob o olhar do indivíduo sujeito de direitos fundamentais. No aspecto objetivo, o essencial é o valor da solidariedade. Em outras palavras, devem os indivíduos se considerarem reciprocamente responsáveis pela dimensão social, voltando os olhos para a comunidade como um todo. Além disso, sob o aspecto estrutural, pretende-se conferir força ao elemento subjetivo, estabelecendo o dever ao Estado de proteger os direitos fundamentais, seja por meio da previsão normativa ou por meio de ações materiais. Por outra via, na dimensão subjetiva, o olhar se volta ao indivíduo quanto sujeito receptor de direitos fundamentais, em regra, a partir de prestações estatais. Não obstante, admite-se, amplamente, que os direitos fundamentais possam ser exigidos de outras pessoas privadas – dimensão horizontal. A importância dessa dimensão é a compreensão sobre posicionamento do indivíduo frente à exigibilidade estatal ou de outro indivíduo. Como afirma Alexy (2002, p. 175): “A questão acerca de quando uma norma jurídica confere direitos subjetivos tem importância prática, sobretudo, para os aspectos processuais”. 1.3 Algumas características dos direitos fundamentais Primeiramente, é preciso salientar que o fato de serem os direitos fundamentais positivados em uma Constituição de determinado país lhes concede o status de norma constitucional. Em razão de estarem inseridos em um documento de elevada hierarquianormativa, os direitos fundamentais devem ser concebidos como elementos de supremacia. Outrossim, a partir da concepção tradicional de constitucionalismo, os direitos fundamentais se enquadram como uma das bases 13 das Constituições, a ponto de sua declaração preceder a própria Constituição francesa e ser indicado como um dos fundamentos da Constituição, nos termos do art. 16 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (FRANÇA, 1789). Mais tarde, com o advento do neoconstitucionalismo, além do status constitucional, ainda foram reposicionados dentre os princípios constitucionais, entornando o postulado da dignidade da pessoa humana. Na Constituição (BRASIL, 1988), por força do art. 60, §4º, “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] IV – os direitos e garantias individuais”. Note que, essa é uma opção do constituinte brasileiro, não sendo, portanto, uma característica que possa ser atribuída aos direitos fundamentais em todos os países do mundo. Não obstante, é comum que as Constituições contemporâneas ofereçam uma proteção maior aos direitos fundamentais, como na Constituição Portuguesa (art. 288) e na Constituição da Alemanha (art. 79). No mais, como defende Marmelstein (2018), é preciso ler a disposição brasileira de forma extensiva, para englobar todos os direitos fundamentais previstos na Constituição, não apenas os dispostos no art. 5º e não apenas os individuais. No mais, não se confundindo com os direitos humanos e nem com os direitos do homem, e possuindo sujeitos diferentes em termos de obrigação, é impreciso os classificar como universais. Assim, aceitando limitações, além da possibilidade de conflitos, também não se devem mencioná-los como absolutos (MENDES; BRANCO, 2018). Também é corrente mencionar os direitos humanos como inalienáveis e indisponíveis. Embora essa assertiva possa ser válida para alguns direitos fundamentais, como a integridade física, a vida e as liberdades pessoais, por exemplo, não o são para todos, como a liberdade de expressão diante da necessidade contratual de segredo ou a imagem 14 em vista de um contrato para exposição pública ou mesmo diante de um noticiário informativo (MENDES; BRANCO, 2018). 2. A evolução dos direitos fundamentais no constitucionalismo brasileiro Na história brasileira, os direitos fundamentais nem sempre mereceram a devida atenção constitucional. Desse modo, é fácil concluir que fora durante os hiatos autoritários que esta fundamentalidade esteve mais ameaçada, principalmente nas Constituições de 1937 (Estado Novo) e 1967-1969 (Regime Militar). O desenho que se construíra em 1988 tem como um de seus elementos impulsionadores justamente a reação ao cerceamento de tais direitos por parte do Estado brasileiro. Mas essa história começa bem antes. 2.1 Direitos fundamentais na Constituição de 1824 Tendo conquistado sua independência dois anos antes, a Constituição de 1824 apenas formalizou o regime monárquico imperialista, em um Estado Unitário extremamente centralizador, pessoalizado na figura de Dom Pedro I. Os direitos fundamentais foram inseridos no título 8º (Das Disposições Gerais, e Garantias dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros), de maneira bastante breve, alocados no art. 178, composto de trinta e cinco incisos. A propósito, o próprio artigo prevê a possibilidade de suspensão das garantias, inclusive pelo próprio Governo, por medida provisória, voltadas, neste momento, para os direitos civis e políticos, sendo esses um tanto quanto restritos (BRASIL, 1824). 15 2.2 Direitos fundamentais nas Constituições de 1891, 1934, 1937 e 1946 Com a Constituição de 1891, o Brasil sacramenta a República, além de redesenhar o arranjo federativo. Com isso, seja pela mudança de regime, ou pelo deslinde histórico, a Constituição se dedicou mais ativamente aos direitos fundamentais, prevendo, dentro do Título IV (Dos cidadãos brasileiros), a Seção II (Declaração de Direitos), a qual fora alterada substancialmente pela Emenda 3/1926, que dilatou os direitos e garantias fundamentais. Assim, devem-se fazer duas ponderações: a) novamente, os direitos foram deixados para os últimos artigos da Constituição; b) há uma prevalência clara quanto aos direitos civis e políticos (BRASIL, 1891). Nesse contexto, fruto da profunda instabilidade democrática que reinou durante os anos 1930 e 1940, três Constituições sucederam-se em pouquíssimo tempo, sendo duas promulgadas e uma outorgada. Primeiramente, a Constituição de 1934 é, por muitos constitucionalistas, considerada uma das mais belas Cartas que o Brasil já teve, inspirada sobremaneira na Constituição alemã de Weimar, de 1919, e na Constituição Mexicana, de 1917. Tais origens refletiram em uma maior sensibilidade quanto aos direitos fundamentais. Dessa vez, a Carta dedicou um título ao tema, alcunhado “Da declaração de Direitos”, composta por dois extensos e consideráveis capítulos: I) Dos direitos políticos; II) Dos direitos e garantias individuais. Os direitos de segunda dimensão começaram a permear o texto constitucional, inclusive com um Título sobre a Ordem Econômica e Social, ainda que houvesse predomínio dos civis e políticos. Em termos de posicionamento, os direitos passaram a ser inseridos no meio da Constituição, antes de temas sociais, o que revelava uma mudança de postura estatal (BRASIL, 1934). 16 Contudo, com o golpe de Estado perpetrado por Getúlio Vargas, a Carta de 1934 acabou sendo a que menos durou na história brasileira. Em 1937, é outorgada a “Polaca”, uma Constituição inspirada na sua homônima polonesa, fruto de um regime ditatorial. Como não poderia deixar de ser, a Carta já se inicia apresentando a exceção como forma de justificar medidas restritivas. Embora os “Direitos e Garantias Individuais” tenham merecido um Título, o art. 122 se mostrava bem mais acanhado do que a Constituição anterior, o qual prescrevia, basicamente, parcos direitos civis e políticos, novamente deslocados para o final do texto. O problema maior é que, sob a justificativa de Defesa do Estado, medidas restritivas aos poucos direitos previstos poderiam ser adotadas de maneira bastante flexibilizada pelo Governo Federal, o que efetivamente chegou a ocorrer (BRASIL, 1937). Com a queda de Vargas e o fim do Estado Novo, a ordem democrática é restaurada e a Constituição de 1946 busca se aproximar da Constituição de 1934. O Título IV, compondo a Declaração de Direitos, é reposicionado para o meio do texto, composto de dois capítulos: I – Da nacionalidade e da cidadania; II – Dos direitos e das garantias individuais, ambos extensos e introduzindo a Ordem Econômica e Social (BRASIL, 1946). 2.3 Direitos fundamentais nas Constituições de 1967 e 1969 Com a queda de João Goulart e o golpe de 1964, iniciam-se vinte e um ano de regime militar, que somente terminariam em 1985. Para fazer frente às novas diretrizes, adveio a Constituição de 1967, posteriormente emendada em 1969. Contudo, a marca indelével do período são os atos institucionais, os quais excepcionaram o próprio texto constitucional e restringiram demasiadamente os direitos fundamentais, a exemplo do AI 5, de 1968, e a suspensão de direitos políticos. 17 A Constituição de 1967 trouxe a sua “Declaração de Direitos” entre os arts. 145 e 159, dividida em: I) Da nacionalidade; II) Dos direitos políticos; III) Dos partidos políticos; IV) Dos direitos e garantias individuais; V) Do Estado de Sítio, antecedendo, mais uma vez, a Ordem Econômica e Social. No entanto, perceba que a exceção de restrição aos direitos fora inserida no mesmo título por eles responsáveis (BRASIL, 1967). Apenas dois anos depois e com o agravamento da ditadura, sobretudo com o impedimento de que o Vice-Presidente, o civil Pedro Aleixo assume a Presidência após o adoecimento de Costa Silva, a Junta Militar Provisória outorgou a Emenda Constitucional 1/1969, substituindo todo o texto da Constituição de 1967.A partir disso, costumeiramente, foi constituído um novo texto constitucional. Porém, deixando essa discussão de lado, é inegável que o novo texto trouxe uma austeridade das medidas autoritárias e restritivas, fazendo com que, assim como no texto anterior, os direitos fundamentais acabassem se tornando letra morta. Em específico, fora mantida intacta a estrutura criada pela Constituição de 1967 com seu Título sobre Declaração de Direitos formado pelos cinco mesmos capítulos. Novamente, a exceção restritiva já vinha prevista como último capítulo da própria Declaração, denotando a diretriz da época (BRASIL, 1969). 2.4 Direitos fundamentais na Constituição de 1988 A Constituição de 1988, erigida após 21 anos de regime militar e suspensão e cassação de direitos fundamentais, fora simbolicamente generosa com os direitos fundamentais, baseando-se nas Constituições Portuguesa de 1976 e Espanhola de 1978. Além da extensão e pormenores, a serem abaixo melhor delineados, o constituinte fez questão de incluir os direitos fundamentais logo no início do texto constitucional, a partir do art. 5º, como o fizera o constituinte alemão de Bonn, de forma a elucidar que os direitos 18 fundamentais, enquanto princípios, servem à interpretação de toda a Constituição. Aos direitos fundamentais, dedicou-se o Título II (Dos direitos e garantias fundamentais), composto por cinco capítulos: I) Dos direitos e garantias individuais e coletivos (art. 5º); II) Dos direitos sociais (arts. 6º a 11); III) Da nacionalidade (arts. 12 e 13); IV) Dos direitos políticos (arts. 14 a 16); V) Dos partidos políticos (art. 17) (BRASIL, 1988). Apenas o art. 5º, base do sistema de direitos fundamentais, possui setenta e oito incisos, além de quatro parágrafos, ao passo que o art. 7º, destinado aos direitos trabalhistas, que possui outros trinta e quatro incisos. Pela primeira vez, os direitos trabalhistas aparecem expressamente inseridos no contexto dos Direitos Fundamentais. Ademais, conforme já reconhecera o STF em diversas ocasiões, existem direitos fundamentais fora do Título II, isto é, “fora do catálogo”, elemento imprescindível para elucidar direitos de terceira e até quarta dimensões (SARLET, 2001). Além disso, o próprio art. 5º vai além, ao prever, no §2º, que os “direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, bem como, no §3º, a possibilidade de constitucionalização de tratados internacionais de direitos humanos aprovados com quórum especial (BRASIL, 1988). Em outras palavras, a Constituição de 1988 admite até direitos fundamentais fora do texto constitucional. Nesse contexto, Sarlet (2001, p. 69-76) afirma com propriedade ímpar: O pluralismo da Constituição advém basicamente do seu caráter marcadamente compromissário, já que o Constituinte, na redação final dada ao texto, optou por acolher e conciliar posições e reivindicações nem sempre afinadas entre si, resultantes das fortes pressões políticas exercidas pelas diversas tendências envolvidas no processo Constituinte. 19 [...] os direitos fundamentais estão vivenciando o seu melhor momento na história do constitucionalismo pátrio, ao menos no que diz com seu reconhecimento pela ordem jurídica positiva interna e pelo instrumentário que se colocou à disposição dos operadores do Direito. Uma vez positivados, urge, cotidianamente, o zelo para com a efetividade de tais direitos, especialmente em vista do disposto no art. 5º, §1º, CF (BRASIL, 1988), segundo o qual “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. É evidente que, a norma referida deve ser vista com certo cuidado, em que muitos direitos dependem de prestações materiais temporalmente incalculáveis, mas, por outro lado, o que se espera do Poder Público é agir continuamente em prol de tal efetividade. Nesta Leitura Digital, introduzimos o estudo da Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. Neste primeiro momento, o estudo se dedicou basicamente a duas frentes: a conceituação e caracterização dos direitos fundamentais; o desenvolvimento histórico dos direitos fundamentais no Brasil a partir de um breve estudo das Constituições. Referências ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Livraria Almedina, 1998. ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. BORGES DE OLIVEIRA, Emerson Ademir; RAMOS JÚNIOR, Galdino Luiz. O Estado Liberal, o Estado Social e suas influências na Constituição Econômica brasileira de 1988. Revista Jurídica Luso-Brasileira, [s. l.], a. 5, n. 5, p. 501-527, 2019. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2019/5/2019_05_0501_0527.pdf. Acesso em: 14 jul. 2021. https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2019/5/2019_05_0501_0527.pdf 20 BRASIL. [Constituição (1824)]. Constituição Política do Império do Brazil. Rio de Janeiro: Presidência da República, [1824]. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em: 27 abr. 2021. BRASIL. [Constituição (1891)]. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Presidência da República, [1891]. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm. Acesso em: 27 abr. 2021. BRASIL. [Constituição (1934)]. 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As gerações/dimensões de direitos fundamentais A garantia de direitos é uma das máximas revolucionárias, adiantando- se mesmo à Constituição Francesa de 1791, a qual incorporou a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, dois anos mais velha. Em seu preâmbulo, a proposta de estabelecer os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem. Em seu art. 16º, a precisa indicação de que a “sociedade em que não esteja assegurada a garantia de direitos nem estabelecida a separação de poderes não tem Constituição” (FRANÇA, 1789). Com apenas um mês de diferença em relação à Declaração, apressaram- se os Estados Unidos em estipular um sistema parecido, com a incorporação da Declaração de Direitos, ou Bill of Rights, à Constituição de 1787. A influência advinha tanto da homônima francesa, como das anteriores Declaração de Direitos da Virgínia, de 1776, e do Bill of Rights, em inglês, de 1689. A diferença entre ambos residia apenas no fato de que, na França, a Constituição fora posterior, incorporando a Declaração, ao passo que nos Estados Unidos a Constituição precedeu a Declaração, a qual se incorporou àquela posteriormente (BORGES DE OLIVEIRA, 2019, p. 167). Nesta segunda Leitura Digital acerca da temática Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, propõe-se um desenho histórico sobre a formação dos direitos fundamentais, em especial pelas vias da caracterização enquanto dimensões ou gerações, na esteira da teoria do jurista tcheco Karel Vasak. E, consequentemente, apresentam- se as características jurídicas de cada dimensão, ressaltando-se o consenso acerca das três primeiras, mas os prolegômenos de gerações posteriores. 23 Curiosamente, como será melhor explanado no item subsequente, a necessidade de garantir direitos antecede o constitucionalismo francês – embora não se aplique ao caso norte-americano. Não se olvide, ainda, que muito antes, diversos documentos históricos ingleses permearam a necessidade de previsão interna de direitos mínimos, como a Magna Carta Libertatum, de 1215, a Petition of Right, de 1628, o Habeas Corpus Act, de 1679, e a Bill of Rights, de 1689. Consoante antecipado, apesar de se estabelecerem críticas, a teoria das gerações dos direitos é apresentada apenas em 1979, em palestra do jurista tcheco Karel Vasak. Para o autor, no processo histórico era possível indicar a ocorrência de três gerações de direitos fundamentais, as quais alinhavam um dos lemas da revolução francesa com uma quebra de paradigma ou fato histórico relevante. Assim, a primeira dimensão, originada nas revoluções liberais e protetora de direitos civis e políticos, estaria ancorada na perspectiva da liberdade. A segunda geração, representante dos direitos econômicos, sociais e culturais, aproximar-se do ideal de igualdade e, historicamente, decorreria da Revolução Industrial. A terceira, por fim, envolveria o valor fraternidade, revelando direitos conectados com a ideia de solidariedade, especialmente difusos e coletivos, tendo como ponto de partida histórico o final da II Guerra Mundial. Há, evidentemente, a apresentação doutrinária de novas dimensões, o que não revela uniformidade, nem na aceitação de sua existência, tampouco na sua composição. Antes de iniciar o estudo histórico a partir da perspectiva trinária, é necessário antever as possíveis críticas ao modelo. A primeira delas diz respeito a própria terminologia utilizada. Segundo Lazari (2018, p. 337), como se nota, nesta leitura utiliza-se a expressão “dimensões de direitos”, em substituição a “gerações de direitos”, pois 24 o desenvolvimento histórico dos direitos fundamentais não ocorre de forma concatenada e substitutiva. A ascensão de novos direitos não extingue os anteriores, assim como a dinamicidade das rupturas, por vezes, acaba gerando certo intercâmbio entre os direitos. No plano internacional dos direitos humanos, por exemplo, a criação da Organização Internacional do Trabalho fez com que direitos típicos de segunda dimensão antecedem os de primeira, que viriam a ser inseridos no universo dos direitos humanos apenas com a criação da Organização das Nações Unidas. A Declaração Universal de Direitos Humanos, por sua vez, em 1948, em um só documento fez previsão de direitos de primeira e segunda dimensões. Além disso, na sucessão temporal, mesmo os direitos fundamentais mais antigos, de primeira dimensão são cotidianamente redesenhados. O direito ao voto, em sua origem burguesa, não contemplava um sufrágio universal, como nos parece óbvio nos dias atuais. A evolução da sociedade é que apresenta e rediscute as características dessas dimensões, “sujeitos a saltos evolutivos e a tropeções históricos” (MARMELSTEIN, 2018, p. 39). Não obstante, por uma questão didática e por se tratar de teoria amplamente aceita, o estudo a tomará por base delineando os aspectos principais de cada uma das dimensões de direitos fundamentais. 2. A primeira dimensão: as revoluções liberais Para compreender a primeira dimensão de direitos fundamentais é preciso voltar ao século XVI e elucidar o pensamento de filósofos como Thomas Hobbes e Nicolau Maquiavel. O primeiro, em sua famosa obra Leviatã, partia do pressuposto de que o homem é o único ser capaz de gerar danos a si próprio, razão pela qual apenas uma autoridade estatal 25 forte e concentrada seria capaz de coordenar a autopreservação social. “Hobbes defendia que o soberano deveria possuir um poder absoluto, sem qualquer limitação jurídica ou política. Nada que o soberano fizesse poderia ser considerado injusto [...] O soberano julgava, mas não poderia ser julgado”, bem como não estaria submetido à própria lei, mas somente a Deus (MARMELSTEIN, 2018, p. 34). Segundo Marmelstein (2018), para Maquiavel, o soberano, no exercício do poder, deve-se fazer o necessário em prol de sua manutenção, ainda que na base da força e valendo-se de todos os meios disponíveis. Considerando as circunstâncias históricas, já que encontravam-se em um período de transição medieval, o Estado Absolutista fazia total sentido e atendia bem às necessidades da época de um Estado forte para proteger a sociedade. Contudo, a partir do século XVI, a Idade das Trevas começa a ceder lugar a uma nova postura filosófica perante o mundo, alcunhada “iluminismo”.Atuando em todas as frentes, fora na concepção política que viria a influenciar a rediscussão do desenho do Estado, especialmente pelos escritos e John Locke e Jean-Jacques Rousseau. Para Locke e Rousseau, a concepção da sociedade civil era imprescindível para a consecução do bem comum. Essa organização, entretanto, exigia que os cidadãos entregassem parte de sua liberdade em prol do todo. Nesse sistema, a lei é necessária para proporcionar uma sociedade organizada, mas desde que essa lei fosse fruto de um pacto dos membros da sociedade, submetendo a todos, não sendo imposta por um que dela estaria isento. Além disso, em consoante as lições de Montesquieu, que as funções governamentais fossem exercidas por pessoas distintas, de forma que um governante tivesse freado seu impulso para o domínio do todo. 26 Essa concepção gera o chamado Rule of law, ou Estado Democrático de Direito. Então, perceba que não se inaugura, nessa ocasião, a repartição de funções estatais, mas apenas a lógica segundo a qual o soberano não deve ser alguém que as concentre todas. Ademais, igualmente necessário um sistema por meio do qual os Poderes estatais pudessem controlar uns aos outros, de forma a evitar quaisquer abusos. O ganho da releitura teórica de Montesquieu é a necessidade de distinção entre as pessoas que exercem os três tipos de poderes, sob pena de ameaça à liberdade. Há, assim, a necessidade de delimitação precisa entre eles, em especial com a atribuição de cada um a pessoas distintas [...] Leitura eivada, em grande parte, pela limitação ao Poder por meio da lei, a doutrina de Montesquieu homenageia a soberania desta. (BORGES DE OLIVEIRA, 2019, p. 161) Sob esse prisma histórico que pairava a França pré-revolucionária: um rei soberano, ausência de garantias aos cidadãos, e duas classes privilegiadas, a nobreza e o clero, as quais eram mantidas pelo povo. A inexistência de garantias fazia com quem eventuais críticos do sistema fossem imediatamente presos ou decapitados e impostos criados ou majorados para sustentarem o custo desse modelo de Estado. Somado a isso temos a ascensão da classe burguesa, decorrente dos sucessos negociais e das expansões extraterritoriais do seu poder econômico. Captando essa realidade, o abade Joseph Sieyès, em sua obra Que é o Terceiro Estado?, observou que a população francesa era composta por duzentos mil membros privilegiados (clero e nobreza, respectivamente primeiro e segundo Estados), além da família real e, de outro lado, por vinte e cinco milhões de povos, alcunhados simplesmente de “povo”, a incluir a burguesia, e que comporiam o Terceiro Estado. 27 Daí suas acepções: Tudo isso já é suficiente para demonstrar o direito que tem o Terceiro estado de formar sozinho uma Assembléia Nacional, e para autorizar, por força da razão e da eqüidade, a sua pretensão legítima de deliberar e de votar por toda a nação, sem exceção [...] Já no segundo aspecto, ele é a nação. Como tal, seus representantes formam a Assembléia Nacional; têm todos os seus poderes. Como são os únicos depositários da vontade geral, não têm necessidade de consultar seus constituintes sobre uma dissenção que não existe (...) Para eles, só existe uma ordem, isto é, nenhuma, porque para a nação só pode haver a nação. (SIEYÈS, 1988, p. 137, 139). Não se negue, ainda, a influência da independência norte-americana, de 1776. Plantada a semente revolucionária, seu marco é a Tomada da Bastilha em 14 de julho de 1789, prisão que simbolizava a opressão do Antigo Regime, paralela à instalação da Assembleia Constituinte. Em 1792, rompe-se o último símbolo desse regime, com a deposição do rei Luís XVI e sua posterior condenação à morte. O nascente Estado Liberal – tipicamente um Estado de Direito – nasce com a Constituição como meio de refrear quaisquer abusos, distribuindo o Poder e, mais importante, estabelecendo garantias e direitos mínimos dos cidadãos em face do Estado. Assim, a liberdade econômica e a proteção contra o arbítrio estatal, a partir da soberania, passam a ser bandeiras da Declaração de 1789 e da Constituição de 1791. De uma forma geral, nota-se, no contexto, que, diante de todo governo organizado, nasce a necessidade de se criar barreiras garantistas entre o cidadão e o Estado, teoria extremamente difundida nos idos revolucionários e, antes, com a própria Magna Carta. O estabelecimento de direitos consubstancia uma proposta contra o abuso por parte do governante em seu exercício estatal, permitindo que o Estado tenha 28 sempre como parâmetro a pessoa humana, para o qual nasce e para o qual se direciona. A garantia de direitos é, assim, uma garantia em si. Uma garantia em prol da continuidade pacífica do Estado, a qual não existirá todas as vezes em que os direitos não forem garantidos constitucionalmente – ainda que de forma consuetudinária – ou, a despeito de garantidos, sejam ignorados pelos governantes. É que, nesses termos, rompe-se uma das estruturas do constitucionalismo. (BORGES DE OLIVEIRA, 2019, p. 168) Eis a razão pela qual, em sua teoria, Karel Vasak conecta esse primeiro aporte fundamental com o ideal de liberdade, vale dizer, ainda, a proteção do cidadão contra a ingerência estatal, impedindo que o Estado se imiscua na vida do povo, salvo nos casos previstos em lei ou na Constituição. De acordo com Borges (2020), aí está a importância da soberania do parlamento, enquanto Casa plural – nem tanto neste momento – e representante legítima da vontade popular. Nesse sentido, direitos como propriedade, liberdade, vida, participação e legalidade emergem como os principais neste primeiro momento. Por isso, deve-se simplificar a primeira dimensão como representativa dos direitos civis e políticos. É claro que, em um universo de restrições censitárias, o sufrágio estava bem longe de ser universal, mas a inserção do cidadão na tomada de decisão representa um avanço evolutivo. Como tais direitos manifestam uma anteposição do cidadão em face do Estado, do qual desconfia enormemente e, por isso, lhe estabelece amarras, esses direitos ficaram conhecidos como negativos. 3. A segunda dimensão: a revolução industrial O afastamento do Estado em relação ao cidadão, contudo, embora possa ter sido visto sob a ótica positiva e liberal em um primeiro momento, traria efeitos malévolos em um segundo momento. 29 É de se notar que, embora o lema da revolução tenha sido “liberdade, igualdade e fraternidade”, apenas o primeiro ideal fora realmente tomado a sério no final do século XVII e início do XIX. A igualdade, tida como bandeira, a ponto de inscrita no artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (FRANÇA, 1789), era puramente formal. Quando o Estado se afasta, o homem, novamente, tem a chance de ser lobo do próprio homem. A restrição na concepção de cidadão denotava uma prova de que nem todos eram realmente iguais perante o Estado. Dessa forma, ainda durante esse mesmo período, muitos países, como os Estados Unidos e o Brasil, praticavam a escravidão e restringiam a ideia de cidadania. Votos censitários, isto é, limitados a determinadas camadas sociais ou pessoas, e um desvirtuamento das liberdades públicas uniam-se para promover uma desigualdade fática. A burguesia, que antes possuía o poder econômico, alçou o poder político com o Estado Liberal e manter afastado o ente estatal se tornou imprescindível para a expansão de ambos os poderes, mormente nos idos da Revolução Industrial no século XIX. O novo modelo econômico das grandes indústrias, em substituição aos produtos manufaturados, deu-se por meio da exploração das camadas mais baixas da população. As classes operárias, isto é, aquelas que não detinham seus meios de produção foram espoliadas em salários miseráveis, jornadas de trabalho intermináveis, exploração do trabalho infantil, assédios e toda sorte de escabrosas práticas desumanas. Ao desenvolvimento econômico, assim, contrapunha-se o recrudescimento das relaçõeshumanas. Até então, o Estado se mantinha inerte e equidistante, mas ser equidistante para quem possui poder é diferente de o ser para quem tem necessidades. Além disso, isso permite que o poder econômico se torne instrumento de exploração. 30 Nesta contraposição, emergem críticas de cunho econômico, buscando-se garantir melhores condições de trabalho por meio do estabelecimento de direitos mínimos. Novas concepções políticas e, até mesmo, a ocorrência de revoluções socialistas fizeram emergir um novo modelo de Estado, alcunhado Estado do Bem-Estar Social (Welfare State). O Welfare State não apresenta um modelo de Estado socialista, mas sim social. Isto é, o Estado manter-se capitalista, porém maximizado em responsabilidades sociais e atuação para o combate das desigualdades materiais. O Estado social representa efetivamente uma transformação superestrutural por que passou o antigo Estado liberal. Seus matizes são riquíssimos e diversos. Mas algo, no Ocidente, o distingue, desde as bases, do Estado proletário, que o socialismo marxista intenta implantar: é que ele conserva sua adesão à ordem capitalista, princípio cardial a que não renuncia. (BONAVIDES, 1980, p. 205) Nesse âmbito, emergem preocupações normativas que podem ser resumidas na ideia de direitos econômicos, sociais e culturais, enquanto perspectivas necessárias para perscrutar uma igualdade de oportunidades, isto é, a igualdade material, para muito além da mera previsão formal. Como bem lembra Lazari (2018, p. 340), “há certos direitos que devem ser garantidos e não podem ser perseguidos por todas as pessoas sem que o Estado tome providências, notadamente, aquelas menos favorecidas economicamente”. As primeiras Constituições do mundo a preveem direitos de tal natureza foram a Mexicana, de 1917, e a de Weimar, alemã, de 1919. No Brasil, ainda que fora do rol de direitos fundamentais, ganham espaço em 1934. Até mesmo os Estados Unidos, eivado na perspectiva liberal de primeira dimensão, fora obrigado a se dobrar à necessidade de atuação do Estado, como o estabelecimento de piso salarial, principalmente com 31 a Grande Depressão, fruto da quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929. A Suprema Corte, antes reticente a tais problemáticas, precisou de um “estímulo” de Roosevelt, com a ameaça de elevação do número de membros, para iniciar a viragem jurisprudencial com o caso West Coast Hotel v. Parrish, em 1937, e aceitar as medidas decorrentes do New Deal, como o salário mínimo (MARMELSTEIN, 2018). Esse episódio ficou conhecido como mudança a tempo de salvar os nove (switch in time that saved nine). Por vezes, essa segunda dimensão é apresentada genericamente como a dimensão dos “direitos sociais”, englobando as três modalidades acima mencionadas. Alguns exemplos de direitos da segunda dimensão seriam: direitos trabalhistas mínimos, como salário mínimo e jornada de trabalho (econômicos); previdência social, educação e saúde (sociais); e acesso aos meios artísticos e de promoção da cultura (culturais). 4. Terceira dimensão: o mundo pós-guerra O início do século XX é marcado por dois grandes episódios beligerantes. A I Guerra Mundial desdobrou-se de 1914 a 1918, colocando em conflito os aliados (representados na Tríplice Entente) e os Impérios Centrais, deixando um saldo de vinte milhões de mortos. Ao seu término, a Liga das Nações emerge, criada em 1919, a partir da Conferência de Paz de Paris, e que pode ser vista como um esforço primitivo do que se tornaria a Organização das Nações Unidas mais de vinte anos mais tarde. Por sua vez, seu objetivo principal era alcançar uma paz permanente com solução pacífica dos conflitos. Não funcionou. A ascensão do nazismo na Alemanha e do fascismo na Itália geraram novos Estados Totalitários, plantando a semente de um novo conflito de conquistas. Em 1939 eclode a II Guerra, que só terminaria em 1945. De um lado, os Aliados (Inglaterra, França, Polônia, União Soviética 32 e Estados Unidos, entre outros) e do outro o Eixo (Alemanha, Itália e Japão), e um saldo catastrófico: entre sessenta e oitenta e cinco milhões de mortos. As sangrias do período conduziriam a uma nova e mais contundente tentativa de se criar uma organização responsável pela manutenção da paz mundial. Assim, em 1945 nasce a Organização das Nações Unidas, tendo, mediante Resolução, proferido a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Após a ONU, surgiram outras organizações regionais de direitos humanos, como a Organização dos Estados Americanos, em 1948, e o Conselho da Europa, de 1949. Nesse ponto ocorre o maior intercâmbio entre direitos fundamentais e direitos humanos, passando a atuar simultaneamente as duas sistemáticas. Da mesma forma, a partir da segunda metade do século XX, tornou-se comum que os países gozassem de dupla proteção quanto a um determinado direito: no plano internacional, como direito humano, e no plano interno, como direito fundamental. Além disso, segundo Lazari (2018), o contexto histórico revela novas preocupações em termos de direito, especialmente voltadas aos transindividuais, isto é, quando a proteção não se volta a um cidadão, mas a uma coletividade, internacional ou local e, mais do que isso, para as gerações futuras. E são justamente estes os direitos que podem ser considerados como de terceira dimensão, representados pela máxima da fraternidade e categorizados em direitos difusos e coletivos. Mais tarde, após a II Guerra Mundial, percebe-se a necessidade de certos direitos fundamentais com viés coletivo, sejam seus destinatários determinados ou não. Tal dimensão realiza a ideia de fraternidade e é responsável por direitos como meio ambiente, qualidade de vida, patrimônio histórico e cultural e relações de consumo. (BORGES, 2020, p. 75) São exemplos de patentes a proteção do meio ambiente, o direito à paz, a proteção de grupos minoritários, a democracia e o patrimônio 33 humano. Deles não olvidou a Constituição, com destaque para o meio ambiente (art. 225) e a tutela de grupos vulneráveis (arts. 226 a 232). 5. Novas dimensões? Até a terceira dimensão e a partir da teoria das gerações de Vasak, há uma certa uniformidade de compreensão, embora não sem críticas. Não obstante, a doutrina, de forma esparsa, apresenta uma série de possíveis novas dimensões ou gerações de direitos fundamentais, que seriam frutos de novos direitos ou de releitura de direitos já existentes. Não apenas a diversidade de ideias, como também a falta de elementos sólidos e, principalmente, de uma quebra histórica de paradigma, servem de crítica a esses posicionamentos. Não há um desenho claro, em nível global, que justifique, de forma uníssona, a criação de uma nova dimensão, o que não significa que não devam tais direitos serem protegidos. Contudo, nessa esteira, por exemplo, os direitos ligados ao desenvolvimento da paz e da biotecnologia podem ser enquadrados na terceira dimensão, enquanto difusos. Ainda assim, cumpre apresentar algumas das principais considerações acerca de supostas novas dimensões de direitos fundamentais. Para Paulo Bonavides (1998), por exemplo, uma quarta dimensão englobaria a democracia substancial, o acesso à informação e o pluralismo político, permitindo o desenvolvimento da cidadania e realização da globalização política. Há doutrinadores que os entendem como pertencentes a uma suposta sexta dimensão, além disso, uma quinta dimensão diria respeito à paz universal. A democracia a que Bonavides faz referência na quarta dimensão difere daquela constante da primeira, trata-se de uma “nova cidadania”, “desbloqueada”, com “efetiva participação do povo”, transpondo o viés do cidadão para um universal (SAMPAIO, 2010, p. 279). 34 Há, ainda, segundo Sampaio (2010), autores que entendem os direitos digitais ou uso compartilhado de informações, bem como padrão de vida sanitário e de bem-estar, e direitos das mulheres ou proteção da dignidade humana contra abusos do progressotecnológico e, ainda, proteção a grupos vulneráveis enquanto direitos de quarta dimensão. Para Norberto Bobbio, os direitos de quarta dimensão “se referem aos efeitos traumáticos da evolução da pesquisa biológica, que permitirá a manipulação do patrimônio genético do indivíduo de modo cada vez mais intenso” (LAZARI, 2018, p. 342). Da mesma forma, a defesa de direitos de quinta dimensão comporta várias defesas esparsas, como direitos sentimentais, identidade individual, patrimônio genético e proteção contra técnicas de clonagem (SAMPAIO, 2010). Além da posição de Bonavides, segundo Lazari (2018, p. 342), antecipada, Patrícia Peck e Luís Carlos Cancellier de Olivo entendem que “o direito eletrônico seria a quinta dimensão dos direitos fundamentais, envolvendo o direito de acesso e convivência num ambiente salutar ou ciberespaço”. Por fim, temos uma suposta sétima dimensão, que englobaria direito à impunidade em razão da ineficiência estatal, direito à probidade administrativa e combate à corrupção. Nesta Leitura Digital, você pôde compreender a evolução história dos direitos fundamentais, permeando os caracteres dos direitos com os fatos que motivaram cada uma das fases, alcunhadas de gerações ou dimensões. Com ênfase nas três dimensões sobre as quais há aparente consenso, não foi deixado de mencionar, contudo, a existência de teorias sobre novas dimensões de direitos fundamentais, em relação às quais apenas o futuro poderá confirmar. 35 Referências BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980. BORGES, Emerson. A Constituição brasileira ao alcance de todos. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020. BORGES DE OLIVEIRA, Emerson Ademir. O estudo estruturalista do direito constitucional. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v. 116, p. 155-172, nov./dez. 2019. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, [1988]. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 27 abr. 2021. FRANÇA. Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, 1789. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores- %C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es- at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html. Acesso em: 27 abr. 2021. LAZARI, Rafael de. Manual de direito constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018. MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2018. SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos fundamentais. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa: que é o Terceiro Estado? Rio de Janeiro: Líber Júris, 1988. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Socied http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Socied http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Socied 36 Teoria Geral dos Direitos Fundamentais III: a eficácia dos direitos fundamentais Autoria: Emerson Ademir Borges de Oliveira Leitura crítica: Lais Giovanetti Objetivos • Elucidar a imprescindível temática da eficácia das normas constitucionais como um todo. • Apresentar as principais problemáticas acerca da efetivação dos direitos fundamentais. • Discorrer sobre as diferenças mais agudas na efetivação dos direitos fundamentais de acordo com as características do direito. 37 1. Introdução O problema da eficácia dos direitos fundamentais configura uma das mais percucientes preocupações do direito constitucional. Ele pretende responder questionamentos sobre a conexão entre a previsão normativa e a materialização do direito e, em especial, sobre a suficiente normatividade para fins de produção de efeitos. A fim de afastar uma constitucionalização meramente simbólica, as previsões constitucionais devem lograr o alcance de suas pretensões, ceifando-se tentativas genéricas de programatizar o texto constitucional como um todo. Afinal, a Constituição é a vontade do povo que vem ao lume pela força da Assembleia Constituinte, no exercício do poder constituinte originário. Nesta Leitura Digital acerca da temática Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, propõe-se um esforço acerca da interpretação constitucional com vistas à efetivação da norma, especialmente aquela que trata de direitos fundamentais. Para tanto, em um primeiro instante, o estudo da eficácia das normas constitucionais como um todo, para, em um segundo, adentrar especificamente à seara dos direitos fundamentais. 2. A eficácia das normas constitucionais Se há um pressuposto que se deve tomar como válido neste estudo é o de que as normas constitucionais possuem eficácia diferenciada, conforme seu teor. Desse modo, é desejável que a Constituição possua a eficácia mais ampla e plena possível, com aplicabilidade direta, imediata e integral de seus dispositivos, a fim de que o compromisso seja real e não simbólico. Por outro lado, não se pode olvidar que muitas das suas previsões possuem o caráter de programáticas – conceito que 38 será desenvolvido em sequência–e há momentos em que ela permite que a legislação infraconstitucional venha a suprimir parte dos efeitos, tornando alguns de seus preceitos não integrais. Essa primeira parte do estudo possui a intenção de discutir a eficácia das normas constitucionais em caráter geral, perpassando pelas principais classificações e teorias doutrinárias sobre o estudo da efetividade da Constituição. 2.1 Eficácia social e eficácia jurídica da Constituição Um primeiro e recorrente apontamento que deve ser feito no tocante à eficácia das normas constitucionais diz respeito à distinção que deve ser realizada entre as eficácias social e jurídica da norma. Primeiramente, a eficácia social diz respeito ao reconhecimento da validade do Direito pela comunidade, vindo a concretizá-lo, ou seja, operando-se como efetivo na realidade fática ou com potencialidade para efetivação. Em outras palavras, eficácia social corresponde à efetividade, diferindo da mera vigência. De acordo com Reale (2002, p. 112), “A eficácia se refere, pois, à aplicação ou execução da norma jurídica, ou por outras palavras, é a regra jurídica enquanto momento da conduta humana. A sociedade deve viver o Direito e como tal reconhecê-lo”. De outra via, a eficácia jurídica diz respeito à qualidade que a norma tem para produzir efeitos jurídicos, iniciando-se com a sua existência, quando, pelo simples fato de viger, revoga normas em sentido contrário, a espeque do que preceitua o art. 2º, §1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (TEMER, 1998, p. 23). 39 2.2 As classificações de Thomas Cooley, Vezio Crisafulli e Gustav Zagrebelsky Como leciona Thomas Cooley, as normas constitucionais podem ser classificadas em autoexecutáveis e não autoexecutáveis. Essa classificação fora incorporada e explanada por Ruy Barbosa (1933, p. 481 e ss.) durante a República nascente brasileira, embora o próprio autor admitisse sua limitação, ressaltando que todas as normas constitucionais “têm força imperativa de regras, ditadas pela soberania ou popular a seus órgãos” (BARBOSA, 1933, p. 489). As normas autoexecutáveis (self-executing) são aquelas dotadas de qualidades que as permite a produção imediata de efeitos. Por outro lado, as normas não autoexecutáveis (non self-executing) dizem respeito às normas que dependem de intermediação legislativa ou executiva para proporcionar a produção de efeitos. Em crítica aos limites da classificação da doutrina norte-americana, Vezio Crisafulli apresentou concepção distinta:as normas constitucionais são classificadas em normas de eficácia plena e normas de eficácia limitada. Segundo Teixeira (1991, p. 317 e ss.), as normas de eficácia plena são autoexecutáveis, produzindo efeitos por sua própria existência, ao passo que as normas de eficácia limitada prescindem de complementação normativa ou executiva, subdividindo-se em “normas de legislação” e “normas programáticas”. Por fim, a classificação de Gustavo Zagrebelsky merece destaque, o qual divide as normas constitucionais entre as de eficácia direta e eficácia indireta. Já as de eficácia indireta entre: a) eficácia diferida; b) normas de princípio; c) normas programáticas (TAVARES, 2013, p. 193). A norma de eficácia direta é completa, permitindo que sejam gerados direitos subjetivos a partir do texto, aptos a serem exigidos pelo destinatário da norma. Segundo Tavares (2013, p. 194), “A Constituição, 40 aqui, é considerada como fonte direta de posições jurídicas subjetivas, em todo tipo de relação”. Por outra via, as normas de eficácia indireta são incompletas, dependendo de intermediação. As normas de eficácia indireta diferida são aquelas normas de organização que imprescindem de complementação posterior. As normas de eficácia indireta de princípios são as que “estabelecem orientações gerais” (TAVARES, 2013, p. 194), podendo ser dependentes de atuação do legislador ou serem aplicadas diretamente. Por fim, as normas de eficácia indireta programáticas têm por objetivo construir um direito ou qualificar melhor um direito existente com o desenvolvimento temporal. 2.3 As classificações de José Afonso da Silva e Maria Helena Diniz A despeito da existência de outras classificações doutrinárias importantes realizadas por autores nacionais, as mais conhecidas são as propostas de José Afonso da Silva e Maria Helena Diniz. José Afonso da Silva divide as normas constitucionais em três categorias: eficácia plena, eficácia contida e eficácia limitada. As normas de eficácia plena são aquelas dotadas de aplicabilidade direta, imediata e integral. Nesse caso, a aplicabilidade é direta porque independe de qualquer intermediação legislativa ou executiva para atingir efetividade. Ela também é classificada como imediata, pois sua mera existência já é capaz de lhe atribuir efeitos. E, ainda, será integral porque seu âmbito de alcance não pode ser diminuído por outra norma infraconstitucional. Assim produzem efeitos plenos e totais. Segundo Silva (1998, p. 89), temos como exemplo as competências da União, Estados e Municípios (arts. 21 e 25 a 30, CF), a repartição de competências tributárias (arts. 145, 153, 155 e 156) e as normas atributivas dos Poderes (arts. 48, 49, 51, 52, 70, 71, 84 e 101 a 122). 41 Por outra via, as normas de eficácia contida são dotadas de aplicabilidade direta, imediata, mas, talvez, não integral. Ela é direta porque independe de intermediação legislativa para produção de efeitos; imediata porque basta sua existência para gerar efeitos instantâneos; contudo, pode ser não integral porque poderá ter seu âmbito reduzido por outra norma ou atuação do Poder responsável. Ainda, saliente-se que, enquanto não houver limitação, possuirá alcance integral, mas, a qualquer momento, poderá ter a sua abrangência restringida. Ela será plena enquanto não houver restrição. Silva (1998) cita como exemplos, entre outros: art. 5º, IV, VI e VIII (liberdade de crença e de convicção filosófica e política) e art. 220, §2º (manifestação de pensamento). Nessa parte, a regra é plenamente eficaz e de aplicabilidade imediata, mas essa eficácia pode ser contida (restringida) em relação àquele que se eximir de obrigação legal imposta a todos e se recusar a cumprir prestação alternativa, fixada em lei. (SILVA, 1998, p. 105-106) Por último, as normas de eficácia limitada são aquelas que não possuem capacidade para produzir quaisquer efeitos antes da intermediação legislativa ou executiva. Trata-se de normas diferidas, que possuem aplicabilidade indireta, mediata e possivelmente reduzida. É indireta porque depende de intermediação para produzir qualquer efeito e mediata porque sua previsão não faz gerar efeitos. E, no momento da intermediação, pode acabar tendo seu âmbito reduzido (SILVA, 1998, p. 164). Não obstante, elas produzem pelo menos o efeito de obrigar o legislador ou o chefe do Executivo para o futuro e nos termos da previsão normativa. Isto é, obriga-se o Poder Público a efetivar o direito no futuro e sem violar a norma constitucional que o criou. Assim, por exemplo, o art. 37, VII, CF (BRASIL, 1988), prevê o direito de greve aos servidores públicos. Ao criar a norma para tratar da temática, não poderá o legislador afirmar inexistir direito de greve. Além disso, tais normas 42 servem como bloqueio para disposições em sentido contrário. Nesse sentido, para Barroso (2013, p. 237), as normas de eficácia limitada possuem os seguintes efeitos: [...] revogando as normas infraconstitucionais anteriores com elas incompatíveis, constituindo parâmetro para a declaração de inconstitucionalidade por ação e por omissão, e fornecendo conteúdo material para a interpretação das demais normas que compõem o sistema constitucional. Quanto às normas de eficácia limitada, há uma divisão: a) normas de princípio institutivo ou organizativo; b) normas de princípio programático. As normas de princípio institutivo são aquelas que criam instituições ou órgãos, como ocorre com o art. 102, §1º, CF (BRASIL, 1988), que criou a arguição de descumprimento de preceito fundamental, mas cuja efetividade dependia totalmente da edição legislativa. São, pois, normas constitucionais de princípio institutivo aquelas através das quais o legislador constituinte traça esquemas gerais de estruturação e atribuições de órgãos, entidades ou institutos, para que o legislador ordinário os estruture em definitivo, mediante lei. (SILVA, 1998, p. 126) Já as normas de princípio programático são aquelas que possuem objetivos a serem alcançados, de forma diferida no tempo, como no caso da progressiva universalização do ensino médio gratuito (art. 208, II) e o salário mínimo que atenda todas as necessidades do cidadão (art. 7º, IV). Como ensina o mestre, são normas: [...] através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e indiretamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado. (SILVA, 1998, p. 138) 43 Por fim, merecem destaques os ensinamentos de Maria Helena Diniz, muito próximos da classificação de José Afonso da Silva. A professora classifica as normas constitucionais em quatro categorias: a) eficácia absoluta ou supereficazes; b) eficácia plena; c) eficácia restringível; d) eficácia complementável. As normas de eficácia absoluta ou supereficazes, além de produzirem efeitos imediata e integralmente, não admitem qualquer diminuição de sua eficácia, ainda que por emenda constitucional. Esse é o caso das cláusulas pétreas (BRASIL, 1988, art. 60, §4º). As normas de eficácia plena produzem efeitos imediatos e diretos, sem necessidade de intermediação legislativa ou executiva. Contudo, elas podem sofrer, por alteração constitucional, a diminuição do seu alcance. Desse modo, pode-se citar as competências legislativas dos entes federativos (BRASIL, 1988, arts. 23 e ss.). Já as normas de eficácia restringível se equiparam às normas de eficácia contida de José Afonso da Silva. Elas possuem aplicabilidade imediata, direta, mas podem ser não integrais quando ocorrer a intermediação legislativa ou executiva. Enquanto não houver a intermediação, essas normas são integrais, mas, com a intermediação, são restringíveis. Por último, as normas de eficácia complementável, as quais se equivalem às normas de eficácia limitada, pois dependem de complementaçãolegislativa. Caso não exista a lei, a norma constitucional “não produz efeitos positivos, mas terão eficácia paralisante de efeitos de normas precedentes incompatíveis e impeditivas de qualquer conduta contrária ao que estabelecerem” (DINIZ, 1997, p. 114). Da mesma forma, podem ser de princípio institutivo ou de normas programáticas. 44 3. A eficácia dos direitos fundamentais Concluída essa primeira parte, adentramos, a partir das bases acima constituídas, na discussão acerca da eficácia específica dos direitos fundamentais, compreendidos, primeiramente, de forma genérica e, em segundo lugar, a partir das matizes geracionais e características. 3.1 O problema da aplicabilidade imediata do art. 5º, §1º, CF Uma das maiores problemáticas acerca da discussão da eficácia das normas constitucionais de direitos fundamentais diz respeito à previsão do art. 5º, §1º, da Constituição Federal (BRASIL, 1988): “As normas definidoras dos direitos e garantas fundamentais têm aplicação imediata”. Como bem ressaltado por Sarlet (2001, p. 239), o dispositivo fora influenciado por Constituições estrangeiras, como a de Portugal e a do Uruguai. Uma primeira leitura poderia conduzir à ideia de efetividade máxima de todos os direitos fundamentais, furtando-se à hipótese de existência de direitos fundamentais de eficácia limitada. No mais, não há, no quadro constitucional, um dispositivo que determine tratamento diferenciado a depender da característica do direito fundamental. Como bem lembra Sarlet (2001, p. 240-241): [a] toda evidência, a nossa Constituição não estabeleceu distinção desta natureza entre os direitos de liberdade e os direitos sociais, encontrando- se todas as categorias de direitos fundamentais sujeitas, em princípio, ao mesmo regime jurídico. Contudo, o problema não é a fundamentalidade do direito, nem mesmo quando fora do Título II, mas a resposta ao questionamento se todos os direitos fundamentais possuem a mesma eficácia. 45 Longe de um local pacífico, é fato que, por outra via, o afastamento de qualquer eficácia a certos direitos, impedindo seu gozo por parte do indivíduo, ensejaria uma análise meramente simbólica do direito, permitindo ao Estado torná-lo efetivo apenas quando e se assim o quiser. Por outra via, não seria possível nivelá-los em igualdade para afirmar que todos os direitos fundamentais possuem o mesmo grau de exigibilidade em face do Poder Público. Como bem lembra Sarlet (2001, p. 242-243), Celso Bastos advoga uma posição intermediária, entendendo que: [...] os direitos fundamentais são, em princípio (na medida do possível), diretamente aplicáveis, regra que, no entanto, comporta duas exceções: a) quando a Constituição expressamente remete a concretização do direito fundamental ao legislador, estabelecendo, por exemplo, que este apenas será exercido na forma prevista em lei; b) quando a norma de direito fundamental não contiver os elementos mínimos indispensáveis que lhe possam assegurar a aplicabilidade, no sentido de que não possui a normatividade suficiente à geração de seus efeitos principais sem que seja necessária a assunção, pelo Judiciário, da posição reservada ao legislador. Ademais, cumpre salientar que a compreensão de que a existência de instrumentos de controle de constitucionalidade que busquem remediar a omissão – como a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão e o Mandado de Injunção–ensejariam a ideia de inexistência de normas programáticas não parece crível em razão de normas em que a intermediação do legislador é expressamente exigida, como ocorre com a proteção do consumidor (BRASIL, 1988, art. 5º, XXXII), em que a Constituição assegura o direito “na forma da lei”. Embora existam direitos de primeira dimensão que exijam um maior zelo e prestação estatal, não há como compará-los, de forma genérica, com os direitos sociais. Em sentido comum, também é fato que existem certos direitos sociais que mais se assemelham a direitos de defesa, ocasião em que não haveria como afastar sua aplicabilidade imediata. 46 Daí a necessidade, como defende Sarlet (2001), de se advogar uma posição intermediária, diferenciando normas de suficiente normatividade – que não dependem da ação concretizadora legislativa ou executiva – de normas de insuficiente normatividade – as quais apenas poderiam gerar efeitos a partir da intermediação pública. Levando-se em conta esta distinção, somos levados a crer que a melhor exegese da norma contida no art. 5º, §1º, de nossa Constituição é a que parte da premissa de que se trata de norma de cunho inequivocadamente principiológico, considerando-a, portanto, uma espécie de mandado de otimização (ou maximização), isto é, estabelecendo aos órgãos estatais a tarefa de reconhecerem a maior eficácia possível aos direitos fundamentais, entendimento este sustentado, entre outros, no direito comparado, por Gomes Canotilho e compartilhado, entre nós, por Flávia Piovesan. (SARLET, 2001, p. 249) Todos os direitos constitucionais – e não apenas fundamentais – possuem, de certo, um mínimo de aplicabilidade: ao menos servem como espécie de diretriz para programas de ação governamental e para bloquear normas em sentido oposto. E, no mais, deve guiar o Poder Público a proposta de maximização na melhor medida possível, evitando-se, assim, o perecimento dos direitos fundamentais pela falta de atuação estatal. 3.2 A perspectiva de eficácia entre os direitos de defesa e os direitos prestacionais É inegável, sob uma análise preliminar, que os direitos de defesa, por exigirem uma postura de abstenção do poder público, reclamam uma eficácia maior, a qual, geralmente, depende muito mais de uma omissão do Estado do que de qualquer ação. Essa mesma lógica não assiste aos direitos sociais, de forma geral, ao menos no que tange aos direitos prestacionais. 47 Além disso, não se pode olvidar que existam direitos de primeira dimensão, portanto de defesa, que, por vezes, exigem uma atuação estatal, não apenas em termos legislativos, mas também em ações materiais. O direito ao voto é um exemplo clássico, em que não basta a permissão para votar, de forma universal, pois o Estado precisará organizar uma estrutura complexa para permitir o seu exercício, geralmente de elevada monta. Note-se que, embora, em regra, os direitos de defesa encontram asilo no texto constitucional, dotados de normatividade e independentes de concretização legislativa, esta não é uma máxima que possa ser adotada em quaisquer condições. Quanto aos direitos de defesa que se situam nessa regra, não há grandes empecilhos para sua efetivação, nos termos do art. 5º, §1º, CF (BRASIL, 1988), embora não se deva ignorar que muitas vezes a sua fruição depende, ao menos, da existência de lei. Já no tocante às exceções, a questão se torna mais complexa. Por outra via, existem direitos sociais que podem demandar nenhuma, pouca ou muita prestação material, o que acentua o grau de dificuldade em efetivação. Como bem ressalta Sarlet (2001, p. 254): As diretrizes fixadas, válidas para os direitos de defesa, alcançam igualmente boa parcela dos direitos fundamentais sociais consagrados em nossa Constituição. Neste sentido, já se constatou que as assim denominadas liberdades sociais equivalem, em virtude de sua função essencialmente defensiva e por sua estrutura normativa, aos clássicos direitos de liberdade e igualdade, reclamando uma abstenção por parte do destinatário e não dependendo, em regra, da alocação de recursos e de concretização legislativa. Quanto a estes direitos sociais, já se sustentou, entre nós, que desencadeiam sua plena eficácia, gerando para o seu titular um direito subjetivo. 48 Evidentemente, o grau de prestação material que o direito exige – e isso vale não apenas aos direitos prestacionais – convocará a necessidade de maior dedicação estatal e, por consequência, uma efetividade que dependerá justamente desta dedicação. A partir disso temos a necessidade de que essamesma eficácia esteja conectada às circunstâncias específicas de cada direito, ignorando-se a existência de uma “forma geral e abstrata” (SARLET, 2001, p. 262). Em outras palavras, valerá menos o enquadramento do direito nas dimensões ou sua classificação como de defesa e prestacional, e mais as exigências que suas características trazem em si para fins de alcance da efetividade. 3.3 Ativismo judicial e efetivação de direitos De outra forma, não se olvide que muitas são as vozes que, sob uma verdade irrestrita do art. 5º, §1º, CF (BRASIL, 1988), defenderão a exequibilidade imediata dos direitos fundamentais, bem como o fato de que sua mera previsão normativa constitucional seria suficiente para constituir o cidadão em um direito subjetivo. Nesse tocante, a omissão estatal ensejaria a possibilidade de pleitear a tutela jurisdicional para fins de alcance de sua efetividade. Um exemplo patente a merecer destaque diz respeito ao direito à saúde. Em face do art. 196 da Constituição (BRASIL, 1988), segundo o qual a saúde é direito de todos e dever do Estado, nascem inúmeras possibilidades de compreensão, a motivar um elevado número de demandas judiciais. Nesse momento, vem ao lume o chamado “ativismo judicial” ou a politização do Judiciário, transferindo a tomada de decisões em termos de políticas públicas do Executivo para a esfera judicial. Nesse contexto, o ativismo estaria vinculado a uma compreensão que, ora, entende-o por uma concretização do texto constitucional, ora, uma invasão da 49 esfera política vedada ao Judiciário. Noutras palavras, um embate entre a interpretação e a criação do direito (BORGES DE OLIVEIRA, 2015, p. 168). Conforme leciona Barroso (2013, p. 307), o ativismo se manifesta de diferentes formas: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas. Em específico quanto ao direito de saúde, para tomar-lhe de exemplo, variadas ações judiciais pleiteiam a concessão de medicamentos – de baixo e alto custo – e tratamentos específicos – experimentais ou não. De um primeiro momento, menos agressivo, o ativismo nessa área se expandiu, atingido por força da ADPF-MC 45 e, mais atualmente, retraiu- se em busca de um ponto de equilíbrio. Nesse sentido, a decisão do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.657.156, gerando o Tema 106 de REsps repetitivos: A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos: i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência. 50 Nesse tocante, os medicamentos e tratamentos experimentais, para alcançarem efetividade a um direito subjetivo pela via judicial, deveriam respeitar as diretrizes do CONEP e da ANVISA, salvo em raríssimas hipóteses. Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 566.471, com repercussão geral entendeu que o Estado não estaria obrigado ao pagamento de medicamentos de alto custo fora da lista do sistema único de saúde. Toda a questão, como se nota, e não apenas no direito à saúde, perpassa pela discussão sobre a eficácia dos direitos fundamentais. Se a resposta acenar positivamente ao direito e caso não fornecido pelo Estado, poderia haver razoabilidade na exigência judicial. Se negativo, em termos de dificuldades e graus para efetivação, não poderia haver socorro jurisdicional. Nesta Leitura Digital, você pôde compreender a problemática discussão acerca da eficácia dos direitos constitucionais e, em específico, dos direitos fundamentais, mormente diante de inevitáveis comparações teóricas como a que coloca em lados opostas direitos de defesa e direitos prestacionais. Como fora visto, a questão não apresenta soluções matemáticas e muito menos simplistas, dependendo, em grande parte, das características do direito e do grau de dificuldade estatal para sua efetivação. Referências BARBOSA, Ruy. Comentários à Constituição Federal brasileira. São Paulo: Saraiva, 1933. T. II. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. BORGES DE OLIVEIRA, Emerson Ademir. Ativismo judicial e controle de constitucionalidade: impactos e efeitos na evolução da democracia. Curitiba: Juruá, 2015. 51 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, [1988]. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 27 abr. 2021. DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. LAZARI, Rafael de. Manual de direito constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. TEIXEIRA, João Horácio Meirelles. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1991. TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm 52 Teoria Geral dos Direitos Fundamentais IV: restrições, colisão e limites dos limites Autoria: Emerson Ademir Borges de Oliveira Leitura crítica: Lais Giovanetti Objetivos • Trabalhar com as restrições de direitos fundamentais em um contexto amplo, seja a partir da lei ou das políticas públicas. • Compreender os elementos necessários para a restrição de direitos fundamentais e os limites restritivos. • Elucidar a colisão de direitos fundamentais e suas implicações. 53 1. Introdução A esmagadora maioria dos direitos fundamentais não pode ser taxada de absoluta (SILVA, 2021). Aliás, essa é a premissa que embasa a teoria geral dos direitos fundamentais, influenciando na classificação da eficácia dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais, assim, comportam restrições, sejam elas prévias ou concomitantes. Em alguns casos, vale dizer que, a própria Constituição (BRASIL, 1988) prevê as limitações ou permite que a lei as preveja. Em outras ocasiões, os direitos, especialmente os de cunho programático, sofrem diminuições do seu âmbito no momento do desenvolvimento das políticas públicas ou intermediações legislativas. Evidentemente, as limitações aos direitos fundamentais, embora admitidas, mesmo nos casos em que não expressamente previstas no texto constitucional, também comportam limites, de forma a não se colocar em risco o núcleo essencial dos direitos, tornando-o ineficaz e, assim, violando a própria Constituição (BRASIL, 1988). Neste último tema da Leitura Digital acerca da temática Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, o objetivo é compreender as restrições aos direitos fundamentais, seus âmbitos de aplicação, diferentes características, bem como o limite da imposição restritiva. 2. Reserva do possível e mínimo existencial Em especial naseara dos direitos sociais, a reserva do possível é temática inerente à limitação dos direitos, com especial aplicabilidade nos direitos de cunho programático, isto é, aqueles que, para produzirem efeitos, dependem de intermediação legislativa ou executiva. 54 O termo “reserva do possível” tem origem alemã, sem que foi utilizado pelo Tribunal Constitucional Federal, em 1972, na decisão conhecida como numerus clausus. Na ocasião, um grupo de estudantes pleiteou judicialmente a abertura de vagas em faculdade de medicina por não terem obtido êxito no processo de seleção. Para os estudantes, a Constituição alemã determinaria a abertura do número de vagas suficiente para atender a demanda, em consonância com o art. 12 da Lei Fundamental, segundo o qual todos os alemães possuem direito de livre escolha de sua profissão (ALEMANHA, 1945). Inobstante, o Tribunal Constitucional rejeitou o pedido, mas não pela impossibilidade financeira do caso concreto, pois é evidente que não haveria problemas no custeio de algumas poucas vagas para os estudantes autores da ação. Todavia, segundo Masson (2017, p. 330), ele lembrou que a demanda não tratava de questão “que seria razoável para o indivíduo exigir, de maneira racional, da sociedade”. Em outras palavras, embora não fosse empecilho atender aquela finalidade específica, certamente o seria se todos resolvessem pleitear vagas nas universidades para atender suas próprias inclinações. No Brasil, a teoria fora inicialmente analisada apenas do ponto de vista financeiro, isto é, alegação estatal para não atender pretensão pelo fato de não haver dinheiro suficiente para tanto, inclusive nos casos pontuais. Essa perspectiva conduziu Ingo Sarlet (2001) a estabelecer três critérios para a aplicação da justificativa no Brasil: a) impossibilidade fática – inexistência de recursos para satisfazer a pretensão sob o olhar da coletividade, isto é, se todos pretendessem demandar o mesmo; b) impossibilidade jurídica – inexistência de autorização orçamentária e incompetência para a realização da despesa; c) ausência de razoabilidade da exigência e desproporcionalidade da prestação, sob o ângulo da legitimidade e da prioridade ante outras políticas públicas necessárias. 55 Essa questão coloca em xeque a razoabilidade e proporcionalidade da pretensão sob o ângulo coletivo. Por exemplo, um remédio de alto custo, validado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), mas não disponibilizado no sistema único, para doença grave, se indicado em laudo médico, poderia ser considerado exigível judicialmente. Já não o seria o pleito de tratamento de eficácia não comprovada, experimental, em país estrangeiro e de alto custo, pois, possivelmente, no primeiro caso a mesma solução poderia ser dada àqueles em mesma situação fática, mas não no segundo caso. Não obstante, a alegação de reserva do possível costuma ser combatida por outra teoria, a do “mínimo existencial”. Essa teoria também tem origem alemã. Aliás, é anterior à reserva do possível, tendo sido utilizada pela primeira vez em 1953, sob caneta do Tribunal Administrativo Federal da Alemanha. O mínimo existencial abarca o conjunto de bens e utilidades que se façam indispensáveis para uma vida digna. É o mínimo necessário para sobreviver ou, como afirma Sarlet (2001, p. 298), uma “ajuda para a autoajuda”. No Brasil, a teoria fora importada pelo professor Ricardo Lobo Torres, o qual considera, neste conjunto, um núcleo impreciso, a ser definido geográfica e temporalmente. Ana Paula de Barcellos, por sua vez, afirma que o conjunto constitui a educação fundamental, saúde, assistência aos desamparados e acesso ao Poder Judiciário (MASSON, 2017, p. 335). Nesse sentido, Sarlet (2001, p. 303) afirma que, o mínimo existencial deve ser efetivado mesmo diante de situações em que só exista um meio de tornar o direito realidade, excluindo a possibilidade de alegação de reserva do possível contra esse mínimo. Segundo Sarmento (2016, p. 1672), é possível opor a reserva do possível ao mínimo existencial, mas a carga argumentativa daquela teoria deverá ser substancialmente maior, a fim de justificar o não atendimento a um direito que companha o núcleo do mínimo existencial. 56 Em geral, a reserva do possível costuma ser conectada aos direitos de cunho programático e direitos sociais, em que, de uma forma geral, mas não exclusiva, há maiores custos e ações governamentais envolvidos, além de maior imprecisão do conteúdo específico dos direitos. De qualquer forma, trata-se também de restrição a direitos fundamentais, contrabalanceada, em alguns casos, justamente pela teoria do mínimo existencial, cuja teoria costuma incluir, quando ocorre, direitos que possuem tipicamente tais caracteres. 3. Restrição textual de direitos fundamentais A limitação de direitos fundamentais, não obstante, costuma merecer maior atenção nos casos em que ocorre pelas vias da própria Constituição (BRASIL, 1988) ou quando ela permite a restrição sob a pena do legislador. O primeiro ponto para compreender a restrição é, naturalmente, saber qual o âmbito de proteção de um determinado direito fundamental. Para tanto, conforme ensinam Mendes e Branco (2018, p. 194), imprescindível a análise sob dois aspectos: a) a identificação dos bens jurídicos protegidos e a amplitude dessa proteção (âmbito de proteção da norma); b) a verificação das possíveis restrições contempladas, expressamente, na Constituição (expressa restrição constitucional) e identificação das reservas legais de índole restritiva. Segundo Silva (2021), o próprio art. 5º, em seu inciso II, apresenta uma cláusula geral de reserva legal, segundo a qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (BRASIL, 1988), a qual merece leitura em conjunto com o pressuposto de inexistência, em regra, em um ordenamento, de direitos fundamentais 57 absolutos. Dessa forma, até mesmo a vida, por força expressa do art. 5º, XLVII, “a”, CF (BRASIL, 1988), admitirá ceder à pena de morte em caso de guerra declarada. E, mesmo na inexistência do dispositivo, poderia ceder a outro direito fundamental em face de um conflito de princípios, como ocorrera no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54. Não obstante, para esclarecer a possibilidade de restrição, o constituinte, muitas vezes, faz uso de uma reserva legal específica, com a utilização de expressões como “na forma da lei” (art. 5º, VI), “nos termos da lei” (art. 5º, VII) ou “fixada em lei” (art. 5º, VIII), entre outras (BRASIL, 1988). Ademais, em outras ocasiões, também, é comum valer-se de conceito jurídico indeterminado ou plurissêmico, que dependerá de definição legislativa, a exemplo da “função social” (BRASIL, 1988, art. 5º, XXIII). Dessa forma, perceba que, a norma restritiva estabelece a garantia do direito, com determinado âmbito de proteção, e, ao mesmo tempo, uma autorização de restrições, limitando o âmbito de proteção (MENDES; COELHO, 2018, p. 194-195). Ainda, Mendes e Coelho (2018, p. 195) ressaltam que, nem sempre a intermediação legislativa procurará restringir o direito, havendo casos em que servirá a completá-lo ou concretizá-lo, a exemplo do que ocorre com a proteção do consumidor (BRASIL, 1988, art. 5º, XXXII). Nesses casos, a intervenção legislativa é necessária para garantir o exercício do direito. Também é possível que a restrição se dê a partir do próprio texto constitucional, sem terceirização desta tarefa ao legislador ordinário. Assim, a inviolabilidade do domicílio, prevista no art. 5º, XI (BRASIL, 1988), é excepcionada pela própria Constituição para situações flagrante delito, socorro ou ordem judicial durante o dia. Da mesma forma, o 58 direito de reunião exige que se dê de forma pacífica, sem armas e com aviso prévio da autoridade competente (BRASIL, 1988, art. 5º, XVI). De acordo com a teoria externa das restrições, “entre a ideia de direito e aideia de restrição inexiste uma relação necessária. Essa relação seria estabelecida pela necessidade de compatibilização concreta entre os diversos tipos de direitos fundamentais” (MENDES; BRANCO, 2018, p. 198). Além disso, segundo Novelino (2011, p. 401), “as restrições ao direito fundamental não atingem o seu conteúdo abstratamente considerado, mas apenas o seu exercício diante de um caso concreto”. Por outra via, para a teoria interna, não há direito e restrição enquanto categorias autônomas, mas “a ideia de direito fundamental com determinado conteúdo” (MENDES; BRANCO, 2018, p. 198). Nesse caso, o limite é inerente à configuração do próprio direito, e não um elemento que advém de fonte externa. “O direito e os limites imanentes a ele formam uma só coisa” (NOVELINO, 2011, p. 398). Se se considerar que os direitos individuais consagram posições definitivas (Regras: Regel), então é inevitável a aplicação da teoria interna. Ao contrário, se se entender que eles definem apenas posições “prima facie” (prima facie Positionen: princípios), então há de se considerar correta a teoria externa. (MENDES; BRANCO, 2018, p. 198) De uma forma geral, percebe-se que os direitos fundamentais apenas admitem a limitação textual por expressa previsão constitucional, quando a restrição será imediata, ou por permissivo constitucional, quando a restrição será mediata. Além disso, as restrições podem ser classificadas em restrição legal simples ou restrição legal qualificada: No primeiro caso, limita-se o constituinte a autorizar a intervenção legislativa sem fazer qualquer exigência quanto ao conteúdo ou à finalidade da lei; na segunda hipótese, eventual restrição deve-se fazer 59 tendo em vista a persecução de determinado objetivo ou o atendimento de determinado requisito expressamente definido na Constituição. (MENDES; BRANCO, 2018, p. 203) No caso da reserva legal simples ou restrição legal simples, o texto constitucional apenas prevê que o direito seja definido ou assegurado nos termos da lei, na forma da lei, assim definido em lei ou fórmulas similares, a exemplo do que ocorre, no art. 5º, com os incisos VI, VII XXIX e LVIII (BRASIL, 1988). Desse modo, perceba-se que o constituinte, nesse caso, terceiriza a responsabilidade de conformação ou definição do direito ao legislador ordinário (NOVELINO, 2011). Note-se o inciso XV: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens” (BRASIL, 1988). Segundo Lazari (2018), na reserva legal qualificada ou restrição legal qualificada, embora se exija uma atividade conformadora do legislador, o constituinte estabelece as bases desta atuação, fixando “condições especiais, os fins a serem perseguidos ou os meios a serem utilizados”. Assim, por exemplo, no tocante ao livre exercício profissional (BRASIL, 1988, art. 5º, XIII), a limitação apenas pode levar em consideração “as qualificações profissionais”, dentro de um critério de proporcionalidade e razoabilidade (BRASIL, 1988). Paralelo a isso, não se olvide existem os direitos fundamentais que não se submetem a nenhuma reserva legal, “que seriam aqueles garantidos por dispositivos que não fazem menção à lei ou qualquer outra forma de regulamentação” (SILVA, 2021, p. 119). Contudo, nem por isso não poderão sofrer restrições. 60 4. Núcleo essencial e limites dos limites Ainda que a própria Constituição traga previsões acerca da restrição de direitos fundamentais, é preciso tomar cuidado para que a limitação não esvazie o seu âmbito de proteção. Com isso, temos a teoria dos “limites dos limites” (Schranken-Schranken) e a necessidade de proteção do núcleo essencial do direito. A teoria em questão oferece balizas à atuação legislativa, de modo que, a pretexto de efetivar o dispositivo constitucional, não esteja o legislador a conferir verdadeira fonte de ineficácia ao direito fundamental. Assim, por exemplo, admite-se, em razão de reserva legal, a exigência de aprovação no Exame de Ordem para o exercício da profissão de advogado. Contudo, tornaria o dispositivo letra morta se o exame fosse estruturado em cinco fases com necessidade de índice de aproveitamento de 95% em cada uma delas. No Brasil, não há um dispositivo constitucional semelhante ao art. 19 da Constituição da Alemanha, o qual alude previsão específica sobre tais limites dos limites: Artigo 19 [Restrição dos direitos fundamentais – Via judicial] (1) Na medida em que, segundo esta Lei Fundamental, um direito fundamental possa ser restringido por lei ou em virtude de lei, essa lei tem de ser genérica e não limitada a um caso particular. Além disso, a lei terá de citar o direito fundamental em questão, indicando o artigo correspondente. (2) Em nenhum caso, um direito fundamental poderá ser violado em sua essência. (ALEMANHA, 1949, art. 19) 61 Assim, o dispositivo assegura a proteção da “essência” do direito ou, em outras palavras, de seu “núcleo essencial”, estabelecendo limites para a conformação legislativa. Há três teorias acerca da identificação do núcleo essencial: a. Teoria Absoluta – haveria um núcleo duro em qualquer direito fundamental, imune, sempre, à atuação legislativa. “Em outras palavras, haveria um espaço que seria suscetível de limitação por parte do legislador e outro seria insuscetível de limitação”, situação na qual, além da necessidade de justificativa para o limite, haveria um núcleo intocável (MENDES; BRANCO, 2018, p. 213). No entanto, sua dificuldade é a demonstração, em abstrato, do que estaria contido nesse núcleo. b. Teoria Relativa – o núcleo essencial deve ser definido casuisticamente. “O núcleo essencial seria aferido mediante a utilização de um processo de ponderação entre meios e fins (Zweck-Mittel-Prufung), com base no princípio da proporcionalidade” (MENDES; BRANCO, 2018, p. 213-214). Vale dizer que, a definição do núcleo dependerá das “circunstâncias do caso concreto (possibilidade fática) e das demais normas envolvidas (possibilidade jurídica)” (NOVELINO, 2011, p. 394). A partir de contornos práticos, a teoria é criticada por oferecer extrema flexibilidade na proteção do núcleo essencial. c. Teoria conciliadora – para Hesse, a persecução de um núcleo essencial deve ser guiada pelo princípio da proporcionalidade. A proporcionalidade, nesse tocante, é visualizada sob a ótica de três subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Para o subprincípio da adequação, as medidas restritivas devem ser aptas para atingir as finalidades pretendidas. Em outras palavras, aquela restrição deve ser capaz de atingir o objetivo de sua existência: “a medida adotada é adequada para fomentar a realização do objetivo 62 perseguido? A medida não precisa, portanto, realizar por completo o fim perseguido, basta que o fomente” (SILVA, 2021, p. 121). Para o subprincípio da necessidade, a restrição deve se pautar no meio menos oneroso para o indivíduo (LAZARI, 2018). Desse modo, vale dizer, se houver meio menos gravoso para se atingir a mesma finalidade, deve esse ser preferível. Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito representa que “um juízo definitivo sobre a proporcionalidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação e do possível equilíbrio entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador” (MENDES; BRANCO, 2018, p. 227). Diante disso, conduzir-se aos requisitos da lei restritiva, de forma a salvaguardar o núcleo essencial. Primeiramente, quanto aos aspectos formais, salienta-se a “reserva legal”, de forma somente atos normativos primários são aptos para estabelecer limites a direitos fundamentais. Além disso, segundo Novelino (2011), a limitação deve “irretroativa”, produzindo efeitos somente para o futuro. Em segundo lugar, no tocante aos aspectos materiais, deve-se aplicar os subprincípios da proporcionalidade, demonstrando quea medida restritiva é adequada, necessária e proporcional em sentido estrito. Além disso, a restrição deve ser genérica e abstrata, não podendo se voltar para atingir pessoa ou caso concreto. Por fim, pela salvaguarda do núcleo essencial, a restrição não pode inviabilizar o exercício do direito (NOVELINO, 2011). 63 5. Colisão de direitos fundamentais Segundo Alexy (2002), o desenvolvimento da resposta à colisão de direitos fundamentais deve ter como pressuposto o fato de que os direitos fundamentais devem ser tratados como princípios, vale dizer, mandatos de otimização, os quais admitem uma satisfação em diferentes graus, a depender do desenho fático. Ademais, mesmo nos pontos em que a Constituição não viera a estabelecer limites legais ou constitucionais, é possível que a colisão venha a legitimar restrições em situações concretas. Conforme ressalta Novelino (2011, p. 407), a “colisão de direitos ocorre quando dois ou mais direitos abstratamente válidos entram em conflito diante de um caso concreto, hipótese na qual as soluções serão divergentes de acordo com o direito aplicado”. No entanto, é de Alexy (2002) o melhor desenvolvimento teórico sobre a colisão de direitos fundamentais, em sua mais famosa obra “Teoria dos direitos fundamentais”. Nesse sentido, o professor alemão ensina, no caso de colisão de princípios – e assim consideramos os direitos fundamentais – um dos princípios terá de ceder ao outro, sob certas circunstâncias, o que significa que, sob outras circunstâncias, o resultado poderá ser distinto. Em outras palavras, segundo Alexy (2002), nos casos concretos, os princípios possuem pesos diferentes. A partir da jurisprudência do Tribunal Alemão, ele informa que a solução para o conflito poderá se operar sob duas formas: lei de colisão e ponderação. No primeiro caso, a lei de colisão, deve-se ponderar os resultados diametralmente opostos e que, tomados em si, conduzem aos resultados contraditórios. Para solucioná-lo, haverá de se aferir qual dos 64 interesses, abstratamente na mesma classificação, terá maior peso no caso concreto (ALEXY, 2002). A situação poderá ter uma precedência condicionada, concreta ou relativa, isto é, quando o Tribunal entende que determinado direito, sob certas condições, preferirá ao outro, adicionando tais condições à fórmula. Ou, segundo Alexy (2002, p. 91), poderá haver precedência incondicionada, abstrata ou absoluta, excluída pelo Tribunal ao asseverar que nenhum dos interesses merece precedência prévia e incontornável sobre o outro, situação excepcionada apenas pela “dignidade da pessoa humana”. O caso prático trazido por Alexy (2002) é o seguinte: determinado preso possui doença cardíaca grave e, se levado a um interrogatório, poderá sofrer um infarto. De um lado, pontuam o direito à vida e à integridade física, mas do outro, a aplicação do direito penal. De acordo com o Tribunal, sob certas circunstâncias (um perigo concreto de graves danos à saúde e integridade do réu), o primeiro direito possui precedência sobre o segundo, gerando uma situação de precedência condicionada (ALEXY, 2002). Com isso, o segundo direito, nesse caso, sofreria uma proibição jusfundamental, em razão das aventadas circunstâncias. Essa solução cria para aqueles direitos sob determinadas circunstâncias uma “lei de colisão”, que conduzirá a um determinado resultado preestabelecido. De acordo com Alexy (2002), as condições sob os quais um princípio precede a outro constituem uma nova regra jurídica. Nasce, assim, uma lei não escrita, a partir da compreensão jurisprudencial acerca de como resolver o conflito diante dos mesmos direitos e circunstâncias. Entre nós, essa máxima pode ser claramente visualizada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, a qual autorizou o aborto de fetos anencefálicos. No caso, a lei de colisão poderia ser resumida da seguinte forma: a dignidade da pessoa humana da mãe, sob as circunstâncias de anencefalia do feto, precede ao direito à vida dele. 65 Já na ponderação, pressupõe-se a inexistência de qualquer precedência capaz de tornar qualquer dos direitos inválidos sob determinadas condições gerais, como visto acima. O caso trabalhado por Alexy é o famoso Lebach, segundo o qual um condenado, próximo a deixar o sistema prisional por ter cumprido sua pena, opôs-se judicialmente à produção de um documentário sobre o crime cometido, o que dificultaria sua ressocialização (ALEXY, 2002). Nesse caso, há um conflito entre o direito de personalidade do condenado e a liberdade de informação da produtora do documentário. Analisados isoladamente, qualquer um dos direitos conduz a uma proibição ou permissão, mas, na ponderação, inexiste qualquer precedência, sendo necessário demonstrar as circunstâncias do caso concreto. Ademais, a colisão se opera entre princípios de uma mesma hierarquia. Desse modo, qualquer precedência seria insuficiente, assim como supor que toda informação sobre delitos possa ser veiculada, pois é possível estabelecer exceções. Logo, não há como haver uma precedência. Então, a resposta dependerá “da conformação típica do caso e das circunstâncias especiais do caso particular” (ALEXY, 2002, p. 96-97). Em sua decisão, o Tribunal acoplou certas condições que conferiram maior força ao direito de personalidade: “uma informação televisa repetida (S1), que não responde a nenhum interesse atual informativo (S2), sobre um delito grave (S3) e que coloca em perigo a ressocialização do autor (S4) é considerada jusfundamentalmente proibida” (ALEXY, 2002, p. 97). As letras S perfazem o conjunto de condições sob as quais a liberdade de informação será proibida. No entanto, essa configuração apenas funciona para aquele caso concreto específico. Assim, é possível concluir que “como resultado de toda ponderação jusfundamental correta, pode-se formular uma norma de direito fundamental atribuída com caráter de regra sob a qual pode ser subsumido o caso” (ALEXY, 2002, p. 98). 66 Assim, como se vê diante das duas possibilidades, do conflito de direitos fundamentais, poderão ser extraídos princípios ou regras. Desse modo, perceba-se que a solução dos conflitos, de uma maneira geral, dependerá de um juízo de pensamento ou de ponderação, necessário quando “um direito fundamental afeta diretamente o âmbito de proteção de outro direito fundamental” (MENDES; BRANCO, 2018, p. 237). Nesta Leitura Digital, o aluno pôde compreender a problemática da restrição dos direitos fundamentais, seja em razão de previsão do próprio texto constitucional, seja por sua permissão ou em vista de elementos fáticos ou conflitos com outros direitos fundamentais. Referências ALEMANHA. [Constituição (1949)]. Lei Fundamental da República Federal da Alemanha. 1949. Disponível em: https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf. Acesso em: 19 maio 2021. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, [1988]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 27 abr. 2021. LAZARI, Rafael de. Manual de direito constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018. MASSON, Nathalia. Manual de direito constitucional. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2017. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. 67 SARMENTO, Daniel. O mínimo existencial. Revista de Direito da Cidade, [s. l.], v. 8, n. 4, p.1644-1689, 2016. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/ article/view/26034. Acesso em: 14 jul. 2021. SILVA, Virgílio Afonso da. Direito constitucional brasileiro. São Paulo: EdUSP, 2021. https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/view/26034 https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/view/26034 68 BONS ESTUDOS! Sumário Teoria Geral dos Direitos Fundamentais I: o constitucionalismo brasileiro e os direitos humanos e di Objetivos 1. Aspectos conceituais dos direitos fundamentais: aproximação e diferenciação dos direitos 2. A evolução dos direitos fundamentais no constitucionalismo brasileiro Referências Teoria Geral dos Direitos Fundamentais II: as dimensões de direitos fundamentais Objetivos 1. As gerações/dimensões de direitos fundamentais 2. A primeira dimensão: as revoluções liberais 3. A segunda dimensão: a revolução industrial 4. Terceira dimensão: o mundo pós-guerra 5. Novas dimensões? Referências Teoria Geral dos Direitos Fundamentais III: a eficácia dos direitos fundamentais Objetivos 1. Introdução 2. A eficácia das normas constitucionais 3. A eficácia dos direitos fundamentais Referências Teoria Geral dos Direitos Fundamentais IV: restrições, colisão e limites dos limites Objetivos 1. Introdução 2. Reserva do possível e mínimo existencial 3. Restrição textual de direitos fundamentais 4. Núcleo essencial e limites dos limites 5. Colisão de direitos fundamentais Referências