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AULA 1 EPIDEMIOLOGIA Profª Ivana Maria Saes Busato 2 INTRODUÇÃO Epidemiologia e o conceito de saúde O que é saúde? Segundo a Organização Mundial da Saúde – OMS, organismo internacional fundado em 1948, saúde é o “[...] estado de completo bem-estar físico, mental e social”. Essa definição foi adotada pela Conferência Sanitária Internacional realizada em junho de 1946, em Nova York (OMS, 2006, tradução nossa). Nesta etapa, estudaremos a evolução do pensamento epidemiológico e dos modelos explicativos do processo saúde-doença, os principais personagens e eventos históricos mundiais e brasileiros associados à epidemiologia. TEMA 1 – HISTÓRIA DO PENSAMENTO EPIDEMIOLÓGICO As raízes históricas da epidemiologia nos levam aos tempos de Hipócrates (460-370 a.C.), que é considerado o pai da epidemiologia. Seus textos relacionavam o meio ambiente com a noção de epidemia e afirmavam também que a ocorrência do desequilíbrio entre os elementos da natureza – terra, fogo, ar e água – era capaz de provocar doenças. Nesse período histórico, os povos antigos acreditavam que todos os fenômenos da natureza eram obras de divindades, o que também acontecia com o conceito de saúde, por meio do modelo explicativo do processo saúde-doença mágico-religioso, pelo qual a doença estava relacionada com o pecado, o malfeito e sua punição por divindades religiosas. Os gregos acreditavam que as doenças estavam relacionadas com o deus Apolo, mas a cura era a esperança de seu filho Asclépios. Na mitologia grega, Asclépios é o deus da saúde, possuindo duas filhas, Higeia (Panaceia) e Higina, a primeira deusa da saúde coletiva e a segunda deusa da saúde individual. Hipócrates foi seguidor de Asclépios, teve maior influência de promover a saúde com ações preventivas (Higeia) e, em seus textos sobre as epidemias, relacionando-as com os ambientes, antecipa-se o raciocínio epidemiológico. Em Roma, outro ícone da história da epidemiologia foi Claudius Galeno (130-200 a.C.), médico grego, um dos mais importantes da antiga Roma. Os médicos gregos eram muito valorizados pelos romanos, e Galeno tornou-se médico das celebridades pelo seu conhecimento e arrojo (Busato, 2016). A medicina galena foi importante para o avanço da descrição e do conhecimento de 3 doenças. A antiga Roma trouxe várias contribuições para a epidemiologia coletiva, com sua infraestrutura sanitária na construção de aquedutos, esgotos e demografia. Do lado oriental do mundo, o caráter coletivo da medicina árabe tem em Avicena (980-1037 d.C.), médico, matemático e filósofo persa, seu principal representante. Avicena legou para a medicina ocidental os conceitos epidemiológicos e coletivos de Hipócrates e Galeno. Busato (2016, p. 30) aponta ainda que “médicos muçulmanos, baseados na escola hipocrática, adotaram uma prática precursora da saúde pública, com grandes avanços nos registros de informações demográficas e sanitárias, bem como os sistemas de vigilância epidemiológica”. Durante um grande período temporal que vai do século XI até meados do século XIX, os conceitos iniciados por Hipócrates, Galeno e Avicena foram substituídos pela teoria miasmática, que explicava a má qualidade do ar como causa de todas as doenças e os maus cheiros. 1.1 Os primeiros relatos de epidemias A peste de Atenas é um dos primeiros relatos de epidemia na história: há pormenorizada descrição de seus sinais e sintomas. O império ateniense vivia seu apogeu no período de 495-429 a.C., quando a Grécia era governada por Péricles. O Porto de Pireu representava grande rota comercial no Mediterrâneo, sendo o principal porto da região. Em 430 a.C., habitantes de Atenas começaram a apresentar manifestações infecciosas, em uma época quente, o que favoreceu a disseminação da doença e a sua alta mortalidade. O Porto de Pireu, responsável pelo grande desenvolvimento da cidade, no comércio, também foi responsável pela chegada e transmissão dessa doença febril desconhecida, que causava também dor de cabeça, vermelhidão nos olhos, inflamação na língua e boca, podendo apresentar sangramentos, vômito, diarreia, como relatado por Tucídides (460-400 a.C.), historiador que descreveu ainda que a morte pela peste ocorria entre o sétimo e o nono dia de manifestação de seus sintomas (Ujvari, 2020). Os doentes que sobreviviam à doença ficavam fracos e com problemas visuais – um desses sobreviventes foi o próprio historiador Tucídides. Mesmo com sua descrição pormenorizada de sinais e sintomas, nunca foi possível definir a causa da peste de Atenas com os conhecimentos da época. Em 1994, foi encontrada uma vala com 150 mortos, claramente indicando que houve no local 4 da descoberta um enterro coletivo de corpos que datavam da época da epidemia em Atenas. Pesquisadores descobriram a presença da bactéria Salmonella typhi na polpa dentária dos corpos (Ujvari, 2020). Essa descoberta mostrou que uma das hipóteses da epidemia que causou a Peste de Atenas foi a doença da febre tifoide, que é diretamente associada às baixas condições de saneamento básico, em especial de qualidade da água, higiene pessoal e ambiental. 1.2 John Snow, fundador da epidemiologia A teoria miasmática estava perdendo força entre os jovens médicos da Inglaterra, nos anos de 1850, então jovens simpatizantes das ideias médico- sociais que se contrapunham aos métodos de cuidados de saúde, bem como dos modelos explicativos do processo saúde-doença. Esses jovens médicos se alinharam com os oficiais da saúde pública e membros da Real Sociedade Médica e organizaram um grupo de estudos epidemiológicos, a London Epidemiological Society. Busato (2016, p. 30-31) destaca “[...] a participação de Florence Nightingale (1820-1910), fundadora da enfermagem, no London Epidemiological Society, e sua importância para a epidemiologia nos estudos pioneiros sobre a mortalidade por infecção pós-cirúrgica nos hospitais militares na Guerra da Crimeia”. Um dos membros fundadores dessa sociedade foi John Snow (1813-1858), que realizou a mais notável investigação da epidemia de cólera de 1854 e, por esse feito, é considerado por muitos o fundador da epidemiologia. Snow mostrou a contaminação hídrica da cólera pela metodologia epidemiológica, sem o conhecimento da teoria microbiana de Pasteur. Outros autores indicam Snow como o pai da epidemiologia. Aos 14 anos, ele era aprendiz de cirurgião pelo sistema mestre-discípulo, auxiliando um cirurgião da época. Graduou-se em medicina em 1844, na cidade de Londres, pelo Royal College of Physicians, começando a clinicar na capital britânica. O estudo de John Snow sobre a cólera teve início no surto de 1831-1832, quando ainda era aprendiz. Questionando a teoria do miasma para explicar a epidemia de cólera, percebeu que os mineiros que trabalhavam no interior da terra, longe das regiões miasmáticas, também haviam adoecido, e percebeu a influência da qualidade da água na ocorrência da doença. Assim, em agosto de 1849, publicou um panfleto defendendo que a transmissão da cólera se dava pela água. Os médicos da época não confirmaram a teoria de Snow. “Em Londres, no 5 ano de 1854, a cólera reapareceu com características de uma grave epidemia, nos primeiros dias de setembro foram registrados mais de 616 casos fatais. Nessa época Snow era titular de uma posição equivalente a ministro da saúde de Londres” (Busato, 2016, p. 32). Várias teorias tentavam, em vão, explicar o grande número de óbitos em tão pouco tempo. John Snow, contudo, mapeou as 616 mortes mostrando a distribuição espacial do surto, concentrada nas imediações da bomba de água da Broad Street, indicando a possível fonte da contaminação. Anos depois da morte de Snow, Robert Koch identificou Vibrio cholerae como agente causador da cólera, em 1884 (Busato,2016). TEMA 2 – MODELOS EXPLICATIVOS DO PROCESSO SAÚDE-DOENÇA A indagação humana por que adoecemos? é explicada por meio do conhecimento do processo saúde-doença. As sociedades sempre buscaram esclarecimentos – esses porquês – sobre por que, em uma comunidade, alguns adoecem e outros não adoecem. Assim, com a evolução do conhecimento científico, “diversos modelos explicativos têm sido estabelecidos para elucidar a complexidade do processo saúde-doença ao longo da história” (Busato, 2016, p. 47). Durante vários séculos, porém, a ocorrência de uma doença era explicada por culpa das pessoas que transgrediam os dogmas religiosos, sendo a doença resultante de uma punição dos deuses. Esses modelos são conhecidos por modelos mágico-religiosos. A medicina hindu e a medicina chinesa criaram o modelo holístico, que explicava as doenças por meio do desequilíbrio entre os elementos e humores que compõem o organismo humano. A observação das doenças fez surgir o modelo empírico-racional, que também explica a ocorrência das doenças por meio da consequência do desequilíbrio dos elementos água, terra, fogo e ar. Na Idade Média, a teoria dos humores trabalhava com o mesmo conceito de desequilíbrio, do modelo empírico-racional, para determinar a ocorrência de saúde ou de doença (Busato, 2016). Por sua vez, o modelo biomédico surgiu pela evolução das ciências, em especial do conhecimento da microbiologia e da descoberta dos agentes etiológicos das doenças infectocontagiosas. Esse modelo vem na direção do conceito de saúde como ausência de doença. Ao longo do tempo, o modelo biomédico foi assimilado pelo senso comum, tendo como foco principal a noção de doença como algo infeccioso causado por um agente, que domina a prática de 6 saúde pela vida da medicalização. Nessa abordagem, Puttini, Pereira Junior e Oliveira (2010, p. 754, 755) apontam que a [...] doença é definida como desajuste ou falta de mecanismos de adaptação do organismo ao meio, ou ainda como uma presença de perturbações da estrutura viva, causadoras de desarranjos na função de um órgão, sistema ou organismo, numa lógica unicausal, sempre buscando identificar uma causa específica, que explicaria o fenômeno do adoecer, direcionando essa explicação a se tornar universal. Com o tempo, e por meio da OMS, há uma nova configuração que deve ser considerada na explicação do processo saúde-doença e também da organização do cuidado para se alcançar a saúde, entendida agora como um “estado de completo bem-estar físico, mental e social e não mera ausência de moléstia ou enfermidade”. Com o modelo sistêmico, proposto a partir de 1970, o conceito de sistema começou a ganhar força, abrangendo uma compreensão mais completa do processo saúde-doença. O sistema, nesse caso, é entendido como “[...] um conjunto de elementos, de tal forma relacionados, que uma mudança no estado de qualquer elemento provoca mudança no estado dos demais elementos” (Almeida Filho; Rouquayrol, 2002, p. 51). Almeida Filho e Rouquayrol (2002, p. 52) explicam que a noção de sistema incorpora a ideia de um todo, de contribuição de diferentes elementos do ecossistema no processo saúde-doença, fazendo assim um contraponto à visão unidimensional e fragmentária do modelo biomédico. Segundo essa concepção, a estrutura geral de um problema de saúde é entendida como uma função sistêmica, na qual um sistema epidemiológico se constitui num equilíbrio dinâmico. Ou seja, cada vez que um dos seus componentes sofre alguma alteração, esta repercute e atinge as demais partes, num processo em que o sistema busca novo equilíbrio. Como estudado anteriormente, esse modelo sistêmico se aproxima dos primeiros conceitos epidemiológicos da época de Hipócrates, do pensamento hipocrático em relação à doença, explicado pelo desequilíbrio entre terra, ar e água, enfim, um desequilíbrio na natureza. 2.1 A história natural das doenças O desenvolvimento das ciências no período do positivismo e a possibilidade de se estudar o corpo humano fizeram com que se desenvolvesse o modelo biomédico, pelo qual a principal justificativa para a ocorrência das doenças está na presença de um agente causal, o que possibilita a adoção de medidas curativas 7 (modelo unicausal) e que influenciou os primeiros conceitos de saúde como ausência de doença. O modelo intitulado história natural da doença é um modelo explicativo do processo saúde-doença inovador, porque considera múltiplas determinações causais. Institui a tríade ecológica, apontando que a doença é resultado da interação entre o agente hospedeiro e o ambiente. Esse modelo multicausal foi sistematizado por Leavell e Clark (1976). O modelo analisa as características das funções de uma doença ou agravo numa linha de tempo, apontando sua distribuição e levando em consideração: pessoas, tempo e espaços. Essa linha de tempo para ocorrência da doença tem início antes dos primeiros sinais e sintomas, o período pré-patogênico, e vai até a morte como desfecho. A explicação da doença nessa linha de tempo permitiu o desenvolvimento de ações de prevenção e de promoção da saúde, além de considerar a possibilidade da reabilitação. O modelo explicativo da história natural da doença ainda é utilizado na vigilância epidemiológica de doenças transmissíveis, em especial de doenças emergentes, como é o caso da Covid-19, porque temos que compreender toda a linha temporal da evolução da doença, que antecede os seus primeiros sinais e sintomas, até a morte ou e os danos definitivos. Esse conhecimento permite traçar as estratégias da prevenção primária até a prevenção quaternária. Logo, o modelo da história natural das doenças representa um grande avanço em relação ao modelo biomédico e aos modelos anteriores, porque reconhece que o processo saúde-doença implica múltiplas e complexas determinações, como foi sistematizado por Leavell e Clark (1976). Nessa lógica causal, a ocorrência da doença tem início antes do aparecimento dos seus sinais e sintomas e para se manter e/ou restabelecer a saúde é preciso realizar ações de promoção de saúde e de prevenção, o que confere uma visão positiva ao processo. Com isso, o conceito de saúde ganha uma estruturação explicativa proporcionada pelo esquema da tríade ecológica, da interação entre agente, hospedeiro e meio ambiente, introduzindo-se novamente o conceito de condicionantes e determinantes, o que inclui o meio ambiente, as condições específicas do hospedeiro e o fator de risco (agente). Enquanto, para o “[...] modelo biomédico (unicausal), no conceito de saúde prevalece a lógica exclusivamente em razão da ausência da doença, no modelo multicausal, privilegia-se o conhecimento da interação da tríade ecológica” (Puttini; Pereira 8 Junior; Oliveira, 2010, p. 755). Nesse modelo, fatores externos, como a natureza física, biológica, sociopolítica e cultural, e fatores individuais, como os hereditário- congênitos e as alterações orgânicas, colaboram com o adoecer. A história natural da doença mostra um avanço linear e contínuo de avanço da doença até a morte, caso não haja ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde. Ele ainda é um ótimo modelo explicativo para estudarmos doenças desconhecidas, porque foca na descrição de sinais e sintomas ao longo de seu tempo, o que vai desde a incubação até a morte e/ou dano permanente, com a busca de ações de promoção da saúde e prevenção (primária, secundária e terciária). TEMA 3 – MODELO DA DETERMINAÇÃO SOCIAL DA SAÚDE Houve necessidade da associação entre epidemiologia e ciências sociais na busca de explicações para os padrões populacionais de distribuição das doenças (Barata, 2005), o que faz nascer o modelo explicativo denominado determinação social da saúde, que contempla numa maior dimensão o conceito de saúde da OMS (2006). Hoje, entendemos o processo saúde-doença por meio desse modelo,proposto por Dahlgren e Whitehead (2007). Ao passo que os modelos anteriores exploram as condições individuais e biológicas para explicar a ocorrência de doença ou não, o modelo de Dahlgren e Whitehead (2007) introduz a importância dos determinantes sociais. O modelo de determinação social da saúde aponta que as condições individuais (sexo, idade, fatores hereditários) não são mais as únicas formas de explicação para as pessoas estarem com saúde ou com doença, porque associadas com os demais determinantes e condicionantes. O estilo de vida e as relações sociais familiares e comunitárias têm, então, reconhecida sua reconhecida no processo saúde-doença. Outros determinantes também impactam esse processo, como as condições de vida e de trabalho, além das condições socioeconômicas, culturais e ambientais gerais. A escolha do estilo de vida e as redes sociais e comunitárias passam a ser consideradas para ocorrência das doenças. As condições socioeconômicas, culturais e ambientais gerais como: educação, renda, condições de vida e de trabalho, entre outras, são determinantes do processo saúde-doença. As determinações sociais da saúde possibilitam evitar as iniquidades em saúde. As iniquidades em saúde são diferenças socialmente produzidas, sistemáticas, em sua distribuição pela população, e injustas (Mendes, 2012). O 9 modelo explicativo da determinação social da saúde é desenvolvido com base na crítica ao raciocínio epidemiológico tradicional do processo saúde-doença, que foca nas características individuais, sem diferenciar o âmbito biológico e o que pertence ao social, ao analisar uma doença. Nesse contexto, é importante conhecer a afirmação de Puttini, Pereira Junior e Oliveira (2010, p. 758), sobre a medicina social [...] como campo de novos saberes e conhecimentos vem em contraposição ao modelo biomédico, aonde a classe social passa a ser uma categoria que representa uma condição a ser utilizada na exploração epidemiológica de uma coletividade. Isso significa dizer que a condição social é um pressuposto primordial para o conhecimento epidemiológico. Se, no processo saúde-doença da população de uma dada sociedade estão presentes determinantes sociais, é de fundamental importância, para a atuação dos profissionais de saúde, saber conhecê-los e interpretá-los, especialmente para suscitar medidas de promoção da saúde e prevenção das doenças. No Brasil, criou-se uma Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais em Saúde – CNDSS, “[...] que estuda os determinantes sociais das doenças e agravos da população brasileira, para adoção do modelo explicativo do processo saúde-doença de Dahlgren e Whitehead, para elaboração das políticas públicas de saúde” (Brasil, 2008, p. 14). TEMA 4 – HISTÓRIA DA EPIDEMIOLOGIA BRASILEIRA A epidemiologia brasileira se destaca na atuação nas doenças tropicais e na luta pelo Sistema Único de Saúde – SUS. Na virada dos séculos XIX e XX, Vital Brazil, Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Emílio Ribas e Adolfo Lutz combateram diversas epidemias e doenças, como febre amarela, cólera, varíola e peste bubônica, sempre com foco em saúde pública e medicina tropical. As condições sanitárias das cidades portuárias, no início da república, eram marcadas pela ocorrência de tais doenças. Essas condições dificultavam inclusive as nossas transações comerciais, porque as grandes companhias não queriam expor seus marinheiros às doenças infectocontagiosas. A história da epidemiologia brasileira é marcada pelo combate às epidemias, pelo desenvolvimento científico, com pesquisa e publicações científicas, no avanço dos estudos epidemiológicos brasileiros, na formação de epidemiologistas brasileiros, na fabricação de vacinas, soros e medicamentos. 10 4.1 Os brasileiros pioneiros no combate às epidemias Adolf Lutz (1855-1940) nasceu no Rio de Janeiro, filho de pais suíços que migraram para o Brasil. Quando Lutz tinha 2 anos de idade, sua família retornou para Berna, na Suíça, onde posteriormente ele iniciou o curso de Medicina na Universidade de Berna, finalizado na Universidade de Leipzig. Na Universidade de Leipzig, Lutz teve oportunidade de conhecer os estudos de Robert Koch, um dos fundadores da microscopia e da epidemiologia das doenças transmissíveis, e isso direcionou a vida profissional do então jovem médico. Em 1881, após concluir seu doutorado, Adolf Lutz veio para o Brasil para poder exercer a profissão. A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro validou seu diploma de médico, possibilitando-lhe abrir seu próprio consultório (Ujvari, 2020). Rapidamente, Lutz tornou-se um médico muito procurado, mas sempre achou tempo para continuar suas pesquisas sobre doenças transmissíveis como as parasitoses, publicando seus artigos em revistas europeias. Destacaram-se, nessa época, seus estudos sobre a lepra, que o levaram a realizar um trabalho nas Ilhas do Havaí, em 1889, retornando ao Brasil em 1893, já casado e fixando residência em São Paulo (Ujvari, 2020). Nessa trajetória, encontra-se outro personagem fundamental para o desenvolvimento da epidemiologia brasileira, em especial nos estudos das doenças tropicais: Vital Brasil. Vital Brasil nasceu em Campanha, interior de Minas Gerais, em 1865, e migrou para São Paulo com a família em 1880, aos 15 anos. No Rio de Janeiro, cursou a Faculdade de Medicina, de 1886 a 1891, e depois voltou a São Paulo, como médico e pesquisador, para ser funcionário do Serviço Sanitário de São Paulo. Em 1892 foi fundado o Instituto Bacteriológico, seguindo o modelo do Instituto Pasteur de Paris, de laboratório de saúde pública. Nesse momento é que se cruzam os caminhos profissionais e de pesquisa de Vital Brasil e Adolf Lutz. Logo que retornou ao Brasil, em 1893, Adolf Lutz foi convidado para ser o subdiretor do recém-criado Instituto Bacteriológico, em São Paulo, e em sete meses foi nomeado diretor desse instituto. O Instituto Bacteriológico foi dirigido pelo Adolpho Lutz de 1893 a 1908. Em 1897, Vital Brasil começou a trabalhar no Instituto Bacteriológico, sob a orientação de Adolfo Lutz. E quem foi Emílio Ribas? Ribas nasceu em Pindamonhangaba, em 1862, e mudou-se posteriormente para a capital federal, na época o Rio de Janeiro, para estudar na Faculdade de Medicina, onde formou-se em 1887. Iniciou suas 11 atividades profissionais como médico clínico-geral no interior do Estado de São Paulo e, em 1895, foi nomeado inspetor sanitário e passou a trabalhar na Cidade de São Paulo no combate a epidemias, em especial de febre amarela, nas regiões de Araraquara, Jaú, Rio Claro e Pirassununga. Emílio Ribas foi bem-sucedido no combate à febre amarela em várias cidades de São Paulo, a ponto de ser convidado e participar de parceria com os médicos norte-americanos Walter Reed e Carlos Finlay no combate à febre amarela em Cuba. Com essa experiência adquirida, disseminou a importância do combate ao mosquito de Aedes aegypti, na infecção da febre amarela. Esses personagens viveram na mesma época e compartilharam das mesmas inquietudes na busca de respostas às epidemias, por meio de pesquisa e epidemiologia. Em 1903, Emílio Ribas e Adolfo Lutz se deixaram picar pelo mosquito e foram infectados pelo sangue de um portador da doença para provar aos negacionistas da época a transmissão vetorial da febre amarela. O médico Emílio Ribas cuidou e tratou de Vital Brasil quando este foi acometido por peste bubônica. No período em que foi diretor de serviço sanitário de São Paulo, Emílio Ribas procurou desenvolver as instituições brasileiras para produção de soros e sugeriu aos governantes da época a aquisição de uma fazenda nos arredores de São Paulo, para futuras instalações do Instituto Serumterápico. Em 1899, devido ao surto de peste bubônica que se propagava de Santos, São Paulo, Vital Brasil foi convidado por Emílio Ribas a dirigir o recém-criado laboratóriode produção de soro para combater a doença, vinculado ao Instituto Bacteriológico. Esse laboratório foi instalado na Fazenda Butantã, na Zona Oeste da Cidade de São Paulo, e, em fevereiro de 1901, foi reconhecido como instituição autônoma sob a denominação de Instituto Serumterápico, no que viria a ser o Instituto Butantã. Os serviços prestados pelo Instituto Bacteriológico são marcados pelas questões de saúde coletiva, particularmente ligadas ao modelo sanitário desenvolvido por Emílio Ribas no Estado de São Paulo. Em 1925, o Instituto Bacteriológico é fechado e transformado em uma seção incorporada ao Instituto Butantã, quando, em 1940, com a fusão do Instituto Bacteriológico com o Instituto de Análises Clínicas, foi fundado o Instituto Adolfo Lutz, que, em 1943, incorporou os laboratórios existentes no interior do estado, hoje denominados centros de laboratórios regionais. 12 Assim, Vital Brasil foi um dos fundadores e o primeiro diretor do Instituto Butantã, cargo em que permaneceu até 1919 e o qual voltou a ocupar, por mais quatro anos, em 1924. O Instituto Butantã foi pioneiro no estudo do tratamento de acidentes por envenenamento por cobra e, hoje, é uma referência internacional com sua produção de vacinas, soros e pesquisas em medicamentos, na divulgação científica e inovação constante, uma herança do legado desse grande sanitarista, Vital Brasil. Em paralelo, no Rio de Janeiro, em 1900, nasce o Instituto Soroterápico Federal, para fabricar soros e vacinas contra a peste bubônica, sob a direção técnica de Oswaldo Cruz (1872-1917), na bucólica Fazenda de Manguinhos, Zona Norte do Rio de Janeiro, onde se localiza a Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, atualmente. Mas, antes de entendermos o papel do Instituto Soroterápico Federal/Fiocruz, vamos saber quem foi Oswaldo Cruz, nesse contexto. O sanitarista nasceu em São Luís do Paraitinga (SP), em 5 de agosto de 1872. Aos 14 anos, ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Durante os seis anos em que frequentou o curso, não demonstrou grande interesse pela clínica, mas sentiu-se completamente fascinado pelo mundo microscópico, que começava a ser revelado pelas descobertas de Louis Pasteur, Robert Koch e outros investigadores. Em 1892, Cruz completou doutorado, com tese sobre a veiculação microbiana pelas águas, e após isso clinicou no Rio de Janeiro até meados de 1896, quando viajou para a França. Em Paris, estagiou no Instituto Pasteur e, em seguida, na Alemanha. Regressou ao Brasil em 1899, quando foi designado para organizar o combate ao surto de peste bubônica em Santos (SP) e em outras cidades portuárias (Oswaldo Cruz, 2002). O Rio de Janeiro era então a capital brasileira, e os avanços e estudos do Instituto Soroterápico, atual Fiocruz, contribuíram para a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, em 1920, tendo uma forte influência no desenvolvimento da saúde pública no país. Oswaldo Cruz foi nomeado em 1902 diretor-geral de Saúde Pública, com a tarefa de sanear a Cidade do Rio de Janeiro. Oswaldo Cruz erradicou a febre amarela utilizando medidas rigorosas, multas e demolições de imóveis insalubres. Em seguida, implantou a notificação compulsória dos casos de peste bubônica e o combate aos ratos, o que incluiu a compra de ratos (História, [20--]). 13 Oswaldo Cruz obteve sucesso com essas medidas, porém provocando grande insatisfação da sociedade. No combate à epidemia de varicela, em 1904, Oswaldo Cruz conseguiu aprovar no Congresso a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola. A forma autoritária como essa vacinação foi imposta provocou uma ampla oposição da população, o que resultou na Revolta das Vacinas (Busato, 2016). Outro grande avanço foi realizado por Carlos Chagas, em 1905, quando conseguiu controlar o surto de malária no interior de São Paulo. O protozoário causador da doença de chagas foi descoberto por Carlos Chagas, e esse protozoário foi nomeado Trypanossoma cruzi, em homenagem a Oswaldo Cruz. Em 19 de agosto de 1909, Oswaldo Cruz deixou a direção da saúde pública por motivo de saúde. Em 26 de junho de 1913, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, na vaga do poeta Raimundo Correia. Em 18 de agosto de 1916, assumiu o cargo de prefeito de Petrópolis, Rio de Janeiro, mas, cada vez mais doente, renunciou a ele em janeiro do ano seguinte. Morreu logo depois, na mesma cidade de Petrópolis, em 11 de fevereiro de 1917 (Oswaldo Cruz, 2002). Em suma, a Fiocruz é um importante espaço de ensino, pesquisa e desenvolvimento da epidemiologia brasileira, e nasceu com o objetivo de promover estudos sobre as doenças por meio da participação dos estudiosos brasileiros da época. TEMA 5 – A IMPORTÂNCIA DO CONCEITO DE SAÚDE NA POLÍTICA NACIONAL BRASILEIRA O conceito de saúde da OMS (2006) influenciou a organização das nossas políticas públicas de saúde. No Brasil, a Constituição Federal de 1988, consagrou a saúde como direito de todos e dever do Estado (Brasil, 1988); e o conceito de saúde foi regulamentado pela Lei n. 8.080/1990, em seu art. 3º: Art. 3º Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais. (Brasil, 1990) As condições socioeconômicas e sociais que determinam o processo saúde-doença são consideradas, na lei, ao se afirmar que os níveis de saúde são expressões da organização social e econômica do país (Brasil, 1990). Por sua 14 vez, a Lei n. 12.864/2013 (Brasil, 2013) amplia esse conceito de saúde para a política pública de saúde, acrescentando a atividade física nesse rol, o que indica claramente a preocupação com a escolha do estilo de vida e as redes sociais e comunitárias. A epidemiologia deve considerar o conceito de saúde e os modelos explicativos do processo saúde-doença para ser uma ciência aplicada. Barata (2005) aponta que os fenômenos estudados pela epidemiologia pertencem ao âmbito coletivo e, portanto, devem remeter ao aspecto social. 5.1 A importância da epidemiologia brasileira para o SUS A Fundação Rockefeller teve papel importante no avanço da epidemiologia no mundo e, no Brasil, exerceu grande influência na formação do pensamento sanitário. Formou a primeira geração de epidemiologistas, dos quais destacamos: Guilherme Rodrigues da Silva, José da Rocha Carvalheiro, Maria Zélia Rouquayrol, Euclides Castilho e Sebastião Loureiro, citados e estudados até hoje. A consolidação da epidemiologia no Brasil se mistura com a história da noção e da área de saúde coletiva. Na década de 1970, foram criados diversos núcleos de saúde coletiva, que abrigaram os primeiros epidemiologistas brasileiros. A saúde coletiva como campo interdisciplinar engloba a epidemiologia, na busca do desenvolvimento de atividades de investigação sobre o estado sanitário da população, a natureza das políticas de saúde, a relação entre processos de trabalho e doenças e agravos, bem como as intervenções de grupos e classes sociais sobre a questão sanitária. Em 1979 foi estabelecida a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), que pautou pesquisas, como também a formação e a intervenção da epidemiologia. A preocupação dos epidemiologistas passava pela organização do sistema de saúde brasileiro, com engajamento no movimento da Reforma Sanitária que teve seu ápice na VIII Conferência Nacional de Saúde, marco na criação do SUS (Abrasco, 2022). A Organização Pan-Americana da Saúde – Opas e a OMS, impulsionadas pelo governo norte-americano, empreenderam diversas ações de controle e erradicação de várias doenças. As campanhas de erradicação da varíola, na década de 1960, e da poliomielite, na décadade 1970, e contra a grave epidemia da doença meningocócica contribuíram para consolidar o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica – Sinan, no Brasil (Medronho et al., 2009). 15 Ressaltamos que a Constituição Brasileira de 1988, em seu art. 200, inciso II (Brasil, 1988), explicita a aplicabilidade da epidemiologia por meio das ações da vigilância epidemiológica como uma das competências do SUS, mostrando sua importância no contexto da saúde da população e dos sistemas de saúde. Logo após a promulgação da Constituição Federativa do Brasil de 1988 foi elaborado o I Plano Diretor para o Desenvolvimento da Epidemiologia, no Brasil. O marco da epidemiologia no Brasil aconteceu, todavia, em 1990, com a realização do I Congresso Brasileiro da Epidemiologia e a criação do Centro Nacional de Epidemiologia – Cenepi (Sobre, [S.d.]). 16 REFERÊNCIAS ALMEIDA FILHO, N.; ROUQUAYROL, M. Z. Introdução à epidemiologia. 4. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2013. BARATA, R. B. Epidemiologia social. Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 8, n. 1, p. 7-17, 2005. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 28 mar. 2022. _____. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Diário Oficial da União, Brasília, 20 set. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm>. Acesso em: 28 mar. 2022. _____. Lei n. 12.864, de 24 de setembro de 2013. Diário Oficial da União, Brasília, 25 set. 2013. 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