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<p>FEDERAL DO BIBLIOTECA 193 CUTTER H114 d DO TOMBO 2093 16-99 II. CONCEITO HEGELIANO DE MODERNIDADE I Ao analisar em 1802 os sistemas de Kant, Jacobi e Fichte sob o aspecto da oposição entre crença e e com o fito de estilhaçar a partir de dentro a filosofia da subjectividade, Hegel não procede de um modo rigorosamente ima- nente. Ao fazê-lo, ele apoia-se na sua diagnose da época do só esta diagnose lhe dá o direito de pressupor o absoluto - logo, de apresentar a razão (diferentemente do que se passa na filosofia da reflexão) como poder de unifi- cação: cultura elevou os nossos tempos tão acima do antagonismo entre filosofia e religião positiva que esta oposição entre crença e saber... foi trans- posta para dentro da própria Contudo, coloca-se a questão de se a razão triunfante não experimentou o destino, que costuma ter a força triunfante das nações bárbaras perante a fraqueza subjugada das civilizadas, de preservar a superioridade do ponto de vista da dominação exterior e, do ponto de vista do espírito, sucumbir perante o vencido. o triunfo glorioso que a razão ilumi- nista alcançou sobre aquilo que ela, segundo a sua pequena medida de com- preensão religiosa, considerava ser-lhe oposto na qualidade de crença, visto bem à luz, não é mais do que a circunstância de nem o positivo com o qual ela bata- ter permanecido religião, nem ela, que venceu, ter permanecido Hegel está convencido de que a época do iluminismo que culmina em Kant e Fichte edificou na razão apenas um ela colocou erradamente o entendi- mento ou a reflexão no lugar da razão e elevou assim algo finito a absoluto. infinito da filosofia da reflexão é na verdade algo racional que é apenas H., Vol. II, pp. 287 e segs. UNIVERSIDADE DO PARA MENTRAL 33 Data</p><p>o DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE posto pelo entendimento, que se esgota na negação do finito: Fixando-o (o infinito), o entendimento opõe-no ao finito de modo absoluto e a reflexão que se tinha razão suprimindo o finito, ao fixar o actuar da razão na opo- sição, rebaixou-se de novo a entendimento; além disso, tem agora a pretensão de permanecer racional mesmo neste 2 Todavia, como mostra o dis- curso sem cerimónia sobre o Hegel pressupõe aqui, sub-repticia- mente, aquilo que pretende demonstrar: ele deveria primeiro mostrar, e não pura e simplesmente pressupor, que a razão, que é mais que entendimento abso- lutizado, pode unificar de um modo igualmente necessário aqueles antagonis- mos que a razão tem de destrinçar Aquilo que encoraja Hegel a fazer a pressuposição de um poder absoluto da unificação são também menos os argumentos do que as experiências que teve na sua vida - nomeadamente, aquelas experiências da crise da sua época que ele recolheu e ponderou em Tue- bingen, Berna e Frankfurt, e que depois levou para O jovem Hegel e os seus companheiros no seminário de Tuebingen eram, como se sabe, partidários dos movimentos de libertação do seu tempo. Viviam imediatamente no campo de tensões do iluminismo religioso e polemizavam com a ortodoxia protestante representada pelo teólogo Gottlieb Christian Storr. Orientavam-se, filosoficamente, pela filosofia kantiana da moral e da religião, politicamente, pelas ideias veiculadas pela Revolução Francesa. A ordem rigoro- samente regulamentada da vida no Seminário desempenhavam uma função pro- vocatória: teologia de Storr, o regulamento do convento e a constituição do Estado que conferia a sua protecção a ambas pareciam à maioria (dos semina- ristas) valerem uma 3 No quadro dos estudos teológicos a que Hegel e Schelling então se dedicavam este impulso rebelde assume a forma mais refreada de uma inspiração reformatória no âmbito do cristianismo primitivo. A intenção que eles atribuem a Jesus - moralidade na religiosidade da sua nação 4 é a deles próprios. Com isto eles viram-se tanto contra o partido do iluminismo como contra o da ortodoxia 5. Ambos os lados servem- -se dos instrumentos histórico-críticos da exegese bíblica, não obstante seguirem H., Vol. II, p. 21. 3 D. Henrich, Historische Voraussetzung von Hegels System (Pressupostos históricos do sistema de Hegel), in id., Hegel im Kontext (Hegel no seu contexto), Frankfurt, 1971, p. 55. 4 H., Vol. p. 107. 5 É o que Hegel insinua na sua observação: tipo de tratamento que se dá à religião muito abalada nos nossos dias, o qual toma a razão e a moralidade como base do seu exame e se socorre do espirito das nações e dos tempos para a sua explicação, é encarado por uma parte dos nossos muito respeitável em virtude do seu conhecimento, da sua lúcida razão e das suas boas intenções, como um benfazejo iluminismo que conduz aos fins da humanidade, da verdade e da virtude, e é denunciado pela outra parte, igualmente respeitável devido a semelhantes conhecimentos e fins igualmente benévolos e, além disso, suportada pelo de séculos e pelo poder público, como mera (Hegel, Vol. I, p. Henrich (1971), pp. 52 e segs. 34</p><p>FEDERAL CONCEITO HEGELIANO DE MODERNIDADE objectivos contrários nomeadamente, ou justificando a religião da razão, como é designada desde Lessing, ou defendendo contra esta a rigorosa doutrina de Lutero. A ortodoxia tinha passado à defensiva e tinha de se servir do método crítico dos seus adversários. A posição de Hegel corta estas duas frentes transversalmente. Como Kant, Hegel considera a religião como poder de executar (e) validar os direitos que a razão 6 Mas a ideia de Deus só pode conseguir um tal poder se a religião impregnar o espírito e os costumes de um povo, se ela estiver presente nas instituições do Estado e na praxis da sociedade, se ela tornar o modo de pensar dos Homens, bem como os seus motivos, sensíveis aos mandamentos da razão prática e lhos incutir na alma. Só como elemento da vida pública a reli- gião pode conferir eficiência prática à razão. Hegel deixa-se inspirar por Rous- seau quando estabelece três exigências à autêntica religião popular: As suas doutrinas têm de fundar-se na razão universal. A fantasia, o coração e a sensi- bilidade não podem permanecer conceitos vazios. Ela tem de ser constituída de modo a que todas as necessidades da vida, as acções públicas do Estado, se ins- pirem 7 Reconhecíveis são ainda os acordes do culto da razão dos dias da Revolução Francesa. A partir desta visão explica-se a dupla linha de choque dos escritos teológicos do jovem Hegel contra a ortodoxia e a religião da razão. Ambas se manifestavam como sendo produtos complementares e unilaterais de uma dinâmica iluminista que compele de facto para além das limitações do ilu- minismo. Um positivismo da eticidade é, assim julga o jovem Hegel, o signo da As religiões que assentam somente na autoridade e que não colocam o valor do Homem na sua moral designa Hegel de positivas prescrições segundo as quais os crentes devem poder obter a graça de Deus por meio de obras em vez de pelo agir moral são positivas; positiva é a esperança de uma indemnização no além, positivo é o alheamento de uma doutrina concentrada nas mãos de alguns da vida e da propriedade de todos; positivo é o aparta- mento do saber dos sacerdotes das crenças fetichistas das massas, e o desvio que só pode conduzir à eticidade por intermédio da autoridade e dos actos milagrosos de uma pessoa positivas são as asseverações e ameacas que visam a mera legalidade do agir; positivas são, por fim e antes de mais, a separação da religião privada da vida pública. Se tudo isto caracterizasse a crença positiva que o partido ortodoxo defende, o partido filosófico teria o jogo na mão. Pois esta insiste no princípio de que a religião não tem pura e simplesmente nada de positivo em si, mas que é auto- 6 H., Vol. I, p. 103. 7 H., Vol. I, p. 33. 8 H., Vol. I, p. 10. As expressões moral [Moral] e eticidade [Sittlichkeit] são utilizadas pelo jovem Hegel ainda na qualidade de sinónimos. 35</p><p>o DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE rizada pela razão universal dos Homens de modo que o Homem discerne e sente as obrigações dela caso passe a dar atenção a 9. Mas aos ilumi- nistas Hegel opõe, por sua vez, que a pura religião da razão, não menos que a crença em fetiches, representa uma abstracção, pois ela é incapaz de interessar o coração e de exercer influência sobre as sensações e as necessidades Também ela leva apenas a um outro tipo de religião privada, porque está separada das instituições da vida pública e não desperta qualquer entusiasmo. Só se a reli- gião da razão se apresentasse publicamente em festas e cultos, se se associasse a mitos, sensibilizasse o coração e a fantasia, poderia a moral mediatizada reli- giosamente entretecer em todo o complexo do Na religião a razão ganha forma objectiva somente sob as condições da liberdade a popular que cria e nutre disposições grandiosas caminha ombro a ombro com a Por isso o iluminismo é apenas a outra face da ortodoxia. Tal como esta persiste na positividade das doutrinas aquela insiste na objectividade dos man- damentos da razão; ambas se servem dos mesmos meios, da crítica da Bíblia, ambas consolidam o estado de bipartição e são em igual medida incapazes de desenvolver a religião até à totalidade ética do todo de um povo e de inspirar uma vida em liberdade política. A religião da razão, assim como a positiva, parte de algo oposto algo que não somos, mas deveriamos 12 mesmo tipo de(bipartição critica Hegel nas relações políticas e nas insti- tuições estatais principalmente, na hegemonia do regimento da cidade de Berna sobre a Waadtland, na constituição municipal de Wuerttemberg e na constituição do Império Alemão Tal como o vivo do cristianismo primitivo se escapou da religião tornada positiva da ortodoxia assim também na política as leis perderam a sua antiga vida, bem assim não 9 H., Vol. I, p. 33. 10 H., Vol. I, p. 77. 11 H., Vol. 1, p. 41. 12 H., Vol. p. 254. 13 Sobre os escritos políticos do jovem Hegel Vol. I, pp. 255 e 268 e segs.; 428 e 451 e segs. Claro que nos escritos políticos o pendor ainda é para a do Hegel recupera-a, como é conhecido, na do o título liberdade absoluta e o Também aqui é dirigida contra um partido filosófico que, com reivindicações abstrac- tas, se opõe a um regime velho e entrincheirado por detrás da sua positividade. Por outro lado, nos escritos políticos, a experiência da crise tem uma expressão mais eloquente, em todo o caso mais ime- diata, que nos teológicos. Hegel proclama abertamente a penúria da época, o sentimento de contradi- ção, a necessidade de modificação, o impeto de quebrar as restrições: imagem de tempos melho- res, mais justos, chegou à alma do homem com toda a vitalidade, e uma nostalgia, um de uma situação mais pura, mais livre, comoveu todos os ânimos e apartou-os da (H., Vol. pp. 268 e segs.). Cf. também o meu posfácio: G. W. F. Hegel, Politische Schriften (Escri- políticos), Frankfurt, 1966, pp. 343 e segs. 36</p><p>FEDERAL DO o CONCEITO HEGELIANO DE MODERNIDADE soube a vivacidade dos nossos dias constituir-se em 14/As formas jurídi- cas e políticas entorpecidas em positividade devieram um poder estranho. Nes- tes anos, cerca de 1800, Hegel revitaliza ambas as coisas, Estado e religião, com o veredicto de eles terem descido até algo meramente mecânico, a uma engrena- gem, a uma máquina Estes são, portanto, os motivos do seu tempo que moveram Hegel a projec- tar a razão a priori como um poder que não só diferencia e desmembra o sis- tema das relações vitais como também, por sua vez, o unifica. Na polémica entre a ortodoxia e o iluminismo o da subjectividade gera uma positi- vidade que, por sua vez, motiva a necessidade objectiva da sua superação Antes que possa realizar esta dialéctica do iluminismo Hegel tem de mostrar porém como é que a superação da positividade pode ser explicada a partir do mesmo princípio a que aquela é devida. II Nos seus primeiros escritos, Hegel opera com a força conciliadora de uma razão que não é directamente deduzível da subjectividade. Ele acentua o lado autoritário da autoconsciência sempre que tem em vista a bipartição pela reflexão. Os fenómenos modernos do desmascaram o princípio da subjectividade como princípio da dominação. É assim que a positividade da religião que foi ao mesmo tempo provocada e consolidada pelo iluminismo, é assim que, em geral, o positivismo do ético caracteriza a da e, na necessidade, ou o Homem é feito objecto e oprimido ou ele tem de fazer da natureza objecto e Este carácter repressivo da razão está fundado em geral na estrutura da auto- i. e., da referência de um sujeito que se faz a si mesmo objecto. É certo que o cristianismo já tinha eliminado uma parte da positividade da crença religiosa, o protestantismo uma parte da positividade da crença católica, mas mesmo na filosofia kantiana da moral e da religião retorna ainda uma positividade e, desta vez, como elemento declarado da própria razão. Neste contexto, Hegel não vê a diferença entre o que se encontra submetido a uma dominação cega, e filho da modernidade, que só obedece ao seu dever, na diferença entre servidão e liberdade, mas apenas no facto aquele ter o amo fora de si e este o amo dentro de si e ser, simulta neamente, o servo de si mesmo: para o particular, para as tendências, as 14 H., Vol. 1, p. 465. H., Vol. 1, pp. 219 e 234 e segs. 16 H., Vol. 1, p. 118. 37</p><p>o DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE inclinações, o amor patológico, a sensibilidade, ou lá como lhe chamam, o uni- versal é necessária e eternamente um desconhecido, algo objectivo; resta uma positividade indestrutível que é definitivamente revoltante em virtude de o con- teúdo, que o mandamento universal do dever contém, conter um dever determi- nado, a contradição de ser ao mesmo tempo restrito e universal, e ter, a favor da forma da universalidade, as maiores pretensões para a sua unilaterali- dade Na mesma monografia sobre o Espírito do cristianismo e o seu destino Hegel elabora a concepção de uma que elimina a positivi- dade não apenas segundo a aparência. modo como esta razão se faz sentir entre os sujeitos enquanto poder de unificação explica Hegel paradigmatica- mente com o modelo da pena que é experimentada como destino Em oposi- ção ao estado moral, Hegel designa agora de ético um estado social em que é feita justiça a todos os membros da sociedade e em que todos satisfazem as suas necessidades sem lesar os interesses de terceiros. Ora um criminoso que viole essas relações éticas, prejudicando e oprimindo a vida alheia, experimenta o poder da vida alienada pelo seu acto como um destino que lhe é hostil. Ele sente como necessidade histórica de um destino aquilo que na verdade é apenas o poder reactivo da vida reprimida e extinguida Este deixa sofrer o culpado até ele reconhecer na destruição da vida alheia uma falta da sua própria vida, no abandono da vida alheia a alienação de si mesmo/Nesta casualidade do destino o elo quebrado da totalidade ética retorna à consciência. A totalidade bipartida só pode ser conciliada se da experiência da negatividade do bipartido ascender a da vida perdida e, bem assim, quando esta obriga os implicados a reconhecer na existência cindida do que lhes é estranho a sua própria natu- reza renegada. Então ambos os partidos compreenderão a sua posição obsti- nada um face ao outro como resultado da separação, da abstracção do contexto colectivo da sua vida e neste eles reconhecem o fundamento da sua exis- tência. Hegel contrapõe às leis abstractas da moral as leis completamente diferentes de um contexto concreto de culpa que surge pela cisão de uma totalidade ética pressuposta. Mas aquele processar do destino justo não pode ser deduzido, como as leis da razão prática, do princípio da subjectividade por intermédio do conceito da vontade autónoma. A dinâmica do destino resulta antes da desor- dem das condições de simetria e das relações recíprocas de reconhecimento de um contexto de vida constituído do qual se isolou uma parte, tendo-se assim todas as outras também alienado de si mesmas e da sua vida colectiva. É só com este tipo de separação de um mundo da vida comparti- intersubjectivamente que é gerada uma relação sujeito-objecto. Em todo 17 H. Vol. 1, p. 323. 18 H., Vol. p. 342 e segs. 38</p><p>o CONCEITO HEGELIANO DE MODERNIDADE o caso, esta é introduzida só posteriormente como um elemento estranho em relações que obedecem desde início à estrutura de uma compreensão entre sujei- tos e não uma lógica da objectivação que tivesse lugar por meio de um sujeito. também adquire assim um outro significado. A absoluti- zação de algo condicional em incondicional já não é reduzida a uma subjectivi- dade empertigada que expande as suas aspirações, mas à subjectividade alie- nada que se separou da vida colectiva. E a repressão que dai resulta remonta à perturbação de um equilíbrio intersubjectivo em vez de à subjugação de um sujeito tornado objecto. Hegel não pode ganhar para si o aspecto da conciliação, i. e., do restabeleci- mento da totalidade dilacerada, da autoconsciência ou da relação reflexiva do sujeito cognoscente. Logo que, porém, recorre à intersubjectividade das relações de entendimento mútuo ele falha o objectivo que é essencial para a autofunda- mentação da modernidade, ou seja, o de pensar o positivo de modo tal este que possa ser superado a partir do mesmo princípio de que ele próprio parte pre- cisamente, da subjectividade. Este resultado não é tão surpreendente se pensarmos que o jovem Hegel explica as relações vitais coaguladas em positividade colocando a sua contem- poraneidade em correspondência com a época de do helenismo. Ele espelha a sua contemporaneidade numa época de desagregação dos padrões clássicos. Deste modo, para a conciliação fatídica da modernidade em desagre- gação Hegel pressupõe uma totalidade ética que não germinou do solo da modernidade, mas que é retirada do passado idealizado da comunidade primitiva e da polis grega. Contra a encarnação autoritária da razão centrada no sujeito Hegel apre- senta o poder unificante de uma intersubjectividade que se manifesta sob o título de amor e A posição da relação reflexiva entre sujeito e objecto é ocupada por uma mediação em largo sentido comunicacional dos sujeitos entre si. o vital é o medium que funda uma comunhão de um tal género que um sujeito sabe que é uno com o outro e permanece apesar disso ele mesmo. isolamento dos sujeitos estabelece então a dinâmica de uma comunicação perturbada a que, contudo, é inerente como telos o restabelecimento da relação ética. Esta orientação do pensamento ter dado o impulso para recupe- rar e transformar, do ponto de vista da teoria da comunicação, o conceito refle- xivo da razão desenvolvido na filosofia do sujeito. Hegel não foi por este cami- nho 19. Pois até ai ele tinha desenvolvido a ideia da totalidade ética guiando-se apenas pela ideia de uma religião popular em que comunicativa tomava 19 Abstraio da Filosofia Real de onde os rudimentos de escritos de juventude os seus Cf. J. Habermas, und e in: Id., Technik und Wissenschaft als (A técnica e a ciência como Frankfurt, 1968, pp. 9 e segs. 39</p><p>o DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE as formas idealizadas de comunidades históricas como, por ex., a da comuni- dade cristã primitiva e a da polis grega. Enquanto religião popular ela está entretecida não apenas ilustrativamente, mas indissoluvelmente com os traços ideais da época clássica. Ora os tempos modernos tinham conquistado a sua autoconsciência pela relexão, a qual vedava uma recorrência sistemática a tais passados exemplares. antagonismo entre crença e saber, como se tornava legível na polémica entre Jacobi e Kant e na reacção de Fichte, tinha sido transferido para a filosofia. É com esta ponderação que Hegel inicia o seu referido ensaio. É ela que o obriga a despedir-se da ideia de que a religião positiva e a razão podiam ser conciliadas pela via de uma renovação reformatória do do cristianismo primitivo. Ao mesmo tempo Hegel familiariza-se com a economia Também aqui ele tem de discernir que as relações económicas capitalistas pro- duziram uma sociedade moderna que representa sob o nome tradicional de sociedade burguesa uma realidade completamente nova e incomparável com as formas clássicas da societas civilis ou da polis. Apesar de uma certa continui- dade da tradição do direito romano Hegel já não se pode socorrer do estado social do império romano em para o comparar com as relações de direito privado da moderna sociedade burguesa. Deste modo a base de compa- ração, a partir da qual se torna visível o que representa o império romano na sua última fase, ou seja, a célebre liberdade da cidade-estado ate- niense, perde o carácter de um modelo para os tempos modernos. Sucinta- mente por muito forte que seja a interpretação da eticidade da polis e do cristianismo primitivo, esta já não pode fornecer o critério de que se possa apropriar uma modernidade em si mesma bipartida. Isto poderia ter sido a razão por que Hegel não continuou a seguir as pega- das da que são patentes nos seus escritos de juventude, desenvolvendo no período de Iena um conceito de absoluto que permitia uma libertação, dentro dos limites da filosofia do sujeito, dos padrões da antigui- dade e do cristianismo é certo, pelo preço de um outro dilema. III Antes de esboçar a solução filosófica que Hegel oferece para a autofunda- mentação da modernidade é aconselhável uma olhadela retrospectiva programa mais antigo do sistema que nos foi transmitido na caligrafia de Hegel e que reflecte a colectiva dos companheiros reunidos em Frankfurt, Hoelderlin, Schelling e Hegel Aqui é posto em jogo mais um elemento: R. Bubner (ed.), Das Systemprogramm (O mais antigo programa de Bona, 1973; acerca da proveniência do manuscrito os contributos para: Chr. Jamme, H. Schneider (ed.), Mythologie der Vernunft (Mitologia da Razão), Frankfurt, 1984. 40</p><p>UNIVERSIDADE FEDERAL DO o CONCEITO HEGELIANO DE MODERNIDADE a arte enquanto poder de conciliação que aponta para o futuro. A religião da razão tem de se entregar à arte para se transformar em religião do o monoteísmo da razão e do coração tem de se associar ao da ima- ginação e criar uma mitologia ao serviço das ideias: de as ideias serem tornadas estéticas, i. e., mitológicas, elas não têm qualquer interesse para o povo; e, inversamente, antes de a mitologia se tornar racional a filosofia tem de se envergonhar 21 A totalidade ética que não oprime nenhuma força e possibilita a formação uniforme de todas as forças será inspirada por uma religião instituída poeticamente. A sensibilidade desta mito-poesia poderá então abranger o povo e os filósofos na mesma medida 22. Uma tal programática recorda-nos as ideias de Schiller sobre a educação estética do Homem de 1975 ela guia Schelling na elaboração do seu sistema do idealismo transcendental de 1800; e é ela que compele o pensamento de Hoelderlin até ao final Entretanto Hegel começa rapidamente a duvidar da utopia estética. No escrito sobre a diferença de 1801 ele já não lhe dá mais qual- quer chance porque na formação cultural do que se alienou relação mais profunda e séria da arte não poderia encontrar qualquer aten- ção Em a poesia da primeira fase do romantismo desenvolve-se bem à vista de Hegel. Ele reconhece imediatamente que a arte romântica é congenial ao do tempo - no seu subjectivismo exprime-se o da moderni- dade. Mas enquanto poesia da bipartição ela é pouco ou nada chamada a ser educadora da ela não trilha o caminho em direcção àquela religião da arte que Hegel tinha exortado em Frankfurt conjuntamente com Hoelderlin e Schelling. A ela a filosofia não se pode submeter. Antes tem de ser a própria filosofia a entender-se como local em que a razão, enquanto poder absoluto da unificação, tem a sua manifestação. E uma vez que esta, em Kant e Fichte, tomou a forma da filosofia da reflexão, Hegel tem de, inicial- mente ainda seguindo as pegadas de Schelling, tentar desenvolver a partir da filosofia da i. e., da auto-relação do sujeito, um conceito de razão com o qual ele possa ponderar as suas experiências de crise e levar a cabo a crítica da modernidade bipartida. Hegel quer conceptualizar as intuições da sua juventude de que no mundo moderno a emancipação se tem de transformar em não-liberdade, porque a força desenfreada da reflexão se autonomizou e porque ela só realiza a unifica- ção por meio do poder de uma(subjectividade mundo moderno 21 H., Vol. 1, p. 236. 22 os iluminados e os não-iluminados podem finalmente apertar as mãos, a mitologia tem de se tornar filosófica e o povo racional, e a filosofia de se tornar mitológica para tornar os filósofos H., Vol. p. 236. 23 Cf. o excurso a seguir, na página e segs. 24 Henrich (1971), pp. 61 e 25 H., Vol. 2, p. 23. 41</p><p>o DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE sofre de identidades, porque tanto no quotidiano como na filosofia, res- pectivamente, eleva um condicionado a absoluto. Às positividades da fé e às instituições políticas, à eticidade bipartida, em geral, corresponde o dogma- tismo da Filosofia Kantiana. Esta absolutiza a autoconsciência do Homem dotado de entendimento a qual coerência e firmeza objectiva, substan- cialidade, multiplicidade e até mesmo realidade e possibilidade da variedade de um mundo que se desagrega em si, uma determinidade objectiva que o Homem contempla e deita fora>> E o que é válido para a unidade do sub- jectivo e do objectivo no conhecimento é igualmente válido para a identidade do finito e do infinito, do singular e do universal, da liberdade e da necessidade na religião, no Estado, na moralidade; tudo isto são identidades falsas unificação é violenta, uma toma a outra sob si... a identidade que devia ser absoluta é o anseio de uma natural. a necessidade de uma identidade dife- rente da positiva, fixada em relações de poder, é para Hegel, como acabamos de ver, autenticada pelas suas vivas experiências da crise. Se, porém, a verda- deira identidade, por seu lado, tem de ser desenvolvida a partir do princípio da filosofia da reflexão, a tem certamente de ser pensada como a auto-refe- rência de um doravante como uma reflexão que não se impõe meramente enquanto poder absoluto da subjectividade a um outro mas que, ao mesmo tempo, não tem a sua subsistência e o seu movimento em nada mais que tão-somente em contrariar todas as absolutizações, e., em eliminar reiterada- mente todo o positivo que ele gera. Por isso, Hegel coloca no lugar da oposição abstracta entre finito e infinito a auto-referência absoluta de um sujeito que alcançou a autoconsciência após ter saído da substância, que comporta em si tanto a unidade quanto a diferença do finito e do infinito. Em contraste com Hoelderlin e Schelling este sujeito absoluto não pode preceder o processo uni- versal como ser ou intuição intelectual, pois tem de consistir unicamente no processo da relação recíproca entre o finito e o infinito e, portanto, na activi- dade do próprio não é concebido nem como substância nem como sujeito, mas apenas como processo mediador da auto-relação que se produz sem qualquer condição Esta figura de pensamento característica de Hegel utiliza os meios da filoso- fia do sujeito com o fim de uma superação da razão centrada no sujeito. Com ela o Hegel da fase madura pode persuadir a modernidade dos seus erros sem recorrer a mais nenhum outro princípio que não seja o da subjectividade que é imanente a mesma. A sua estética fornece um exemplo instrutivo disso. Os companheiros de Frankfurt não tinham posto a sua esperança só na 26 H., Vol. 2, p. 309. 27 H., Vol. p. 48. 28 D. Henrich, und in Henrich (1971), pp. 35 e segs. 42</p><p>o CONCEITO HEGELIANO DE MODERNIDADE força conciliadora da arte. Foi justamente durante a polémica sobre o carácter modelar da arte clássica, como tinha acontecido em França, que o problema da autofundamentação da modernidade tinha vindo também na Alemanha à consciência. H. R. Jauss mostrou 29 como Friedrich Schlegel e Friedrich Schil- ler actualizaram nos seus trabalhos Sobre o estudo da filosofia grega (1977) e Sobre a poesia naif e a poesia sentimental (1976) o questionamento da francesa, definiram a especificidade da poesia moderna e tomaram posi- ção em relação ao dilema que tinha lugar quando se tinha de conciliar o carác- ter modelar da arte antiga reconhecida pelos classicistas com a superioridade da modernidade. Ambos os autores descrevem a diferença de estilo de modo semelhante, ou seja, como um antagonismo entre o objectivo e o interessante, entre a cultura natural e a artística, entre o naif e o sentimental. Eles contra- à imitação clássica da natureza a arte moderna como um acto de liber- dade e de reflexão. Schlegel alarga os limites do belo até mesmo por meio de referências a uma estética do horrível que concede um lugar ao picante e aven- tureiro, ao surpreendente e ao novo, ao chocante e nauseabundo. Mas enquanto que Schlegel hesita em se afastar inequivocamente do ideal clássico de arte, Schiller estabelece uma hierarquia entre a antiguidade e os tempos modernos. A perfeição da poesia naif tornou-se, porventura, vel para o poeta reflectido da modernidade; em vez disso, a arte moderna esfor- ça-se por um ideal de uma unidade mediatizada com a natureza - e isto é ao objectivo que a arte antiga alcançou com a beleza da natureza imitada. Schiller conceptualizou a arte da reflexão do romantismo ainda antes de ela vir à luz. Hegel já a tinha em vista quando assimila a interpretação filosófico- -histórica de Schiller da arte moderna no seu conceito de absoluto 30, Em geral, é o se deve visualizar como acontecer simultâneo da auto-exteriorização e do retorno a si. A arte é a forma sensível em que o absoluto se apodera de si intuitivamente, enquanto que a e representam formas superiores sob as quais o absoluto se representa e concebe. A arte encontra na sensibilidade do seu medium uma limitação interna e, por fim, aponta para além da fronteira do seu modo de representar o absoluto. Há um da Desta perspectiva Hegel pode transferir aquele ideal que, segundo Schiller, é o único pelo qual a arte moderna... se esforça, não podendo, porém, alcançar, para uma esfera que está além da arte, na qual ele se pode realizar enquanto ideal. Contudo, a arte contemporânea tem então de ser inter- pretada como um grau no qual a arte sob a forma de arte romântica se dissolve. 29 H. R. Jauss, und Schillers Replik réplica de Schlegel e de in 1970, pp. 67 e segs. 30 H., Vol. 13, p. 89. H., Vol. 13, p. 141. 43</p><p>o DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE Deste modo, a polémica estética entre o antigo e o moderno encontra uma solução elegante: o romantismo é a da arte tanto no sentido do subjectivista da arte em reflexão como no sentido do rompimento de uma forma de representação do absoluto agrilhoada ao Assim a questão levantada ironicamente sempre de novo se tais produções ainda se podem designar de obras de 32 pode ser respondida com uma ambivalên- cia propositada. A arte moderna é de facto decadente, mas precisamente por isso ela avançou muito no seu caminho para o saber absoluto, enquanto que a arte clássica preserva a sua exemplaridade e foi ultrapassada com razão: forma da arte clássica alcançou (porventura) o mais elevado que a sensibiliza- ção da arte poderia ter não obstante, a reflexão sobre a limita- ção da esfera da arte enquanto tal que se manifesta de uma maneira tão visível nas tendências românticas de dissolução carece da sua naividade. É também de acordo com este mesmo modelo que Hegel dispensa a religião Os paralelos entre as tendências de dissolução na arte e na religião são nítidos. A religião atingiu a sua interioridade absoluta no protestantismo; final- mente, ela separou-se da consciência mundana na época do iluminismo: não constitui preocupação para a nossa época não conhecer nada que provenha de Deus, antes é válido como uma intelecção superior que este conhecimento nem sequer é 34/A reflexão penetrou na religião como na arte; a crença substancial cedeu ou à indiferença ou à sensibilidade Deste ateísmo a filosofia salva o conteúdo da fé destruindo a sua forma religiosa. A filosofia pode não ter qualquer outro conteúdo a não ser a religião, mas transformando este em saber conceptual não há na crença nada (mais) que seja Se nos detivermos por momentos e olharmos retrospectivamente para a senda do pensamento, parece-nos que Hegel atingiu o seu objectivo. Com o conceito de absoluto que supera todas as absolutizações e que retém apenas o processar infinito da auto-referência, enquanto incondicionado, que absorve todo o finito, Hegel pode compreender a modernidade partindo do seu próprio princípio. E ao fazê-lo ele apresenta a filosofia como poder da unificação que supera todas as positividades que decorrem da reflexão e cura assim os fenó- menos modernos de decadência. Só que esta sensação elegante ilude. Ora se compararmos o que Hegel tem em mente na sua ideia de uma religião popular com o que resta após a superação da arte pela religião e da crença pela filosofia compreendemos a resignação que se abate sobre Hegel no fim da sua filosofia da religião. Aquilo que a razão filosófica poderia, no 32 H., Vol. 14, p. 223. 33 H., Vol. 13, p. 111. 34 H., Vol. 16, p. 43. 35 H., Vol. 17, p. 343. 44</p><p>o CONCEITO HEGELIANO DE MODERNIDADE melhor dos casos, causar seria parcial sem a universalidade externa daquela religião pública que deveria fazer o povo racional e os filósofos povo vê-se antes abandonado pelos seus sacerdotes que devieram filósofos: filosofia é, neste sentido, um santuário escreve agora Hegel os seus servidores formam uma classe de sacerdotes que não pode caminhar a par do mundo... o modo como a actualidade temporal e empírica sai da como ela se organiza tem de ser deixado ao seu critério, e isso não é um assunto e um caso imediatamente prático para a 36 A dialéctica do iluminismo, uma vez atingido o seu objectivo, cobrou à crítica da época o impulso que a tinha posto em movimento. Este resultado negativo mostra-se ainda mais nitidamente na construção da da sociedade burguesa no plano do Estado. IV Na tradição aristotélica o antigo conceito europeu de política, enquanto uma esfera que abrange o Estado e a sociedade, foi mantido sem interferências até ao século XIX. A economia da célula uma economia de subsistência que assenta na produção agro-artesanal completada por merca- dos locais, forma, segundo esta óptica, uma ordem política global. Estratifica- ção social e participação diferencial no (respectivamente, exclusão do) poder político têm lugar uma a par da outra a constituição da dominação política integra a sociedade no seu conjunto. Claro está que esta conceptualidade já não se adapta às sociedades modernas nas quais a circulação de mercadorias organi- zada na base do direito privado da economia capitalista se separa da ordem da dominação. Por intermédio dos medien do valor-de-troca e do poder diferencia- ram-se (dois sistemas de acção que se completam funcionalmente social separou-se do político sociedade económica despolitizada separou-se do Estado burocrático. Este desenvolvimento tinha de exceder a capacidade con- ceptual da doutrina clássica. Por isso, desde o fim do século XVIII, esta desa- grega-se numa teoria social fundamentada político-economicamente por um lado, e numa teoria do Estado inspirada no direito natural, por outro. Hegel encontra-se no meio deste desenvolvimento da ciência. Ele é o pri- meiro que confere terminologicamente expressão a uma conceptualidade ade- quada à sociedade moderna, separando a esfera política do Estado da da Como que recupera a oposição da teoria da arte entre moder- nidade e antiguidade do ponto de vista da teoria da sociedade: sociedade civil cada um é o seu fim e tudo o resto não é para ele nada. Mas sem relações com os outros ele não pode alcançar o conjunto dos seus fins. Estes outros são, 36 H., Vol. 17, pp. 343 e segs. 45</p><p>o DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE por consequência, meios para o fim do particular. Mas o fim particular confere a si mesmo por meio da relação com outros a forma da universalidade e satis- faz-se, satisfazendo ao mesmo tempo o bem-estar dos 37 Hegel des- creve as relações de mercado como um domínio neutralizado eticamente para a persecução estratégica de interesses privados, fundando estes, além disso, um de dependências Na descrição de Hegel a sociedade civil aparece, por um lado, como eticidade perdida nos seus por outro, condenada à 38 Por outro lado, ela, criação do mundo 39 encontra a sua na emancipa- ção do indivíduo ao qual confere liberdade formal: o desencadeamento da arbi- trariedade das necessidades e do trabalho é um momento necessário na via para a subjectividade na sua Embora o novo termo só apareça mais tarde na Filosofia do Direito Hegel elaborou a nova concepção já durante o período de Iena. No ensaio Sobre os modos de tratamento científico do direito natural (1802) refere- -se à Economia Política para analisar sistema da dependência recíproca uni- versal face às necessidades físicas, e ao trabalho e à acumulação em virtude das 41 como da propriedade e do Já aqui se lhe coloca o problema de como é que a sociedade civil pode ser concebida não meramente como uma esfera do da eticidade substancial, mas ao mesmo tempo, na sua negatividade, como um momento necessário da Hegel parte do princípio de que o ideal antigo de Estado não pode ser recuperado sob as condições da sociedade moderna despolitizada. Por outro lado, ele retém a ideia daquela totalidade ética que inicialmente o tinha ocupado sob o nome de religião do povo. Ele tem, portanto, de mediar o ideal ético dos antigos, no sen- tido em que ele é superior ao idealismo dos tempos modernos, com as realida- des da modernidade social. Com a diferenciação entre Estado e sociedade que Hegel, de facto, já então assume, ele demarca-se ao mesmo tempo da filosofia restaurativa do Estado bem como do direito natural e Enquanto que o direito de Estado da restauração não vai além das representações de uma eti- cidade substancial e ainda concebe o Estado como uma relação familiar alar- gada, o direito natural individualista não se eleva sequer até à ideia da eticidade e identifica o Estado da necessidade e do entendimento com as relações de direito privado da sociedade civil. A especificidade do Estado moderno só entra em consideração quando o princípio da sociedade civil é concebido como um princípio de socialização em forma de mercado, i. e., um modo não estatal. 37 H., Vol. 7, p. 340. 38 H., Vol. 7, pp. 340 e 344. 39 H., Vol. 7, p. 340. 40 H., Vol. 7, p. 343. H., Vol. 2, p. 482. 46 3</p><p>FEDERAL DO o CONCEITO HEGELIANO DE MODERNIDADE Pois princípio do Estado moderno tem uma força e uma profundidade enor- mes que não deixam que o princípio da subjectividade se aperfeiçoe até extremo autónomo da particularidade pessoal e, ao mesmo tempo, redu-lo à unidade substancial, conservando-a deste modo dentro dele 42 Esta formulação caracteriza o problema da mediação entre Estado e socie- dade, e caracteriza também a solução tendenciosa que Hegel Não é de modo algum óbvio que a esfera da eticidade englobe a família, a sociedade, a formação política da vontade e o aparelho de Estado como um todo, que só se deva resumir, i. e., voltar a si mesma no Estado, mais precisamente no governo e no seu cume Inicialmente Hegel só pode tornar vel que e porquê que no sistema das necessidades e do trabalho eclodem anta- gonismos) que não podem ser absorvidos apenas pela auto-regulação da socie- dade civil; isto explica Hegel, sempre à altura da sua época, pela de uma grande massa abaixo da média de um certo modo de subsistência que, por sua vez, comporta a grande facilidade em concentrar riquezas desproporciona- das nas mãos de uns 43. Dai decorre, evidentemente, a necessidade funcional da incorporação da sociedade antagónica numa esfera de viva etici- dade. Esta universalidade, inicialmente apenas exigida, tem a forma dupla da eticidade absoluta que a sociedade engloba em si como um dos seus momentos e a de um que se distingue da sociedade para absorver as tendências de autodestruição e, ao mesmo tempo, preservar os resultados da emancipação. Hegel pensa este positivo como Estado e resolve o problema da mediação pela da sociedade no plano da monarquia consti- tucional. Contudo, esta solução decorre necessariamente apenas com o pressuposto de que é concebido segundo o modelo da auto-referência de um sujeito cognoscente 44. A figura já tinha impelido Hegel na sua Filosofia Real de a como unidade da individualidade e do o todo ético Pois um sujeito que é relativo a si mesmo no conhe- cimento encontra-se, simultaneamente, a si mesmo como um sujeito universal que está perante o mundo como totalidade dos objectos do conhecimento 42 H., Vol. 7, p. 407. 43 De um modo ainda mais enérgico do que na versão do livro, a estrutura da crise da socie- dade burguesa é desenvolvida nas aulas sobre filosofia do direito dadas durante o semestre de Inverno de 1819/1820. Cf. a introdução de D. Henrich a: G. F. W. Hegel, Philosophie des Die Vorlesung von 1819/20 in einer Nachschrift (Filosofia do Direito. A lição de 1819/20 segundo um apontamento), Frankfurt, 1983, pp. 18 e segs. 44 Cf. R. P. Horstmann, Probleme der Wandlung in Hegels Jenaer Systemkonzeption (Proble- mas da transformação no concepção hegeliana de sistema no período de Phil. Rundsch, 9, 1972, pp. 95 e segs.; id, Ueber die Rolle der buergerlichen Gesellschaft in Hegels Politischer Philo- sophie (Acerca do papel da sociedade civil na filosofia politica de Hegel), Hegel-Studien, Vol. 9, 1974, 209 e segs. 45 Jenenser Realphilosophie (Filosofia real de (ed.) Hoffmeister, Leipzig, 1931, p. 249. 47</p><p>o DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE e como ocorre dentro deste mundo como uma entre muitas outras entidades. Ora se o absoluto é pensado como subjectividade infinita (que se gera eternamente na objectividade para se elevar da sua cinza até ao esplendor do saber absoluto 46), os momentos do universal e do singu- lar só podem ser pensados como unificados no quadro de referências do auto- conhecimento monológico: por isso, no universal concreto o sujeito permanece como primazia universal face ao sujeito enquanto singular. Para a esfera da eti- cidade decorre desta lógica a primazia subjectividade de alto grau do Estado face à liberdade subjectiva do indivíduo. D. Henrich designou isto de ins- da filosofia do direito de Hegel: vontade singular, que Hegel denomina subjectiva, está inteiramente integrada na ordem das institui- ções e, em geral, só nessa medida é justificada, do mesmo modo como esta o Um outro modelo para a mediação do universal e do singular oferece a intersubjectividade de alto grau da formação natural da vontade numa comuni- dade comunicacional que se encontre sujeita à necessidade de cooperar: na uni- versalidade de um(consenso natural, atingido entre Homens livres e iguais, os indivíduos conservam uma instância de apelo que pode ser evocada também contra formas particulares da concretização institucional da vontade colectiva. Nos escritos de juventude de Hegel, como acabámos de ver, ficou em aberto a opção de explicar a totalidade ética como uma razão comunicacional incorpo- rada em contextos intersubjectivos de vida. Nesta linha, uma auto-organização democrática da sociedade poderia ter ocupado o lugar do aparelho de Estado Em contrapartida, a lógica do sujeito que se concebe a si mesmo impõe o institucionalismo de um Estado forte. Quando, porém, o Estado da Filosofia do Direito é elevado à da vontade substancial, ao racional em e para dai decorre a consequência, sentida como provocação já mesmo pelos de que o movi- mento político que se arroja além dos limites traçados pela filosofia, do ponto de vista de Hegel, transgride a própria razão/Tal como a Filosofia da Religião que no final de lado as necessidades religiosas insatisfeitas do povo a filosofia do Estado também se retira da realidade política que é incapaz de apa- anseio de autodeterminação democrática que se anuncia energica- mente na revolução parisiense de Julho, e cautelosamente no projecto de gabi- nete inglês para uma reforma eleitoral, soa aos ouvidos de Hegel como uma 46 Com estas palavras Hegel caracteriza a tragédia que o absoluto, em jogo constante consigo mesmo, coloca em cena no domínio do H., Vol. 2, p. 495. 47 Henrich, Einleitung zu Hegel (Introdução Hegel), 1983, p. 31. 48 o Evangelho já não é pregado aos pobres, quando o sal se tornou tolice e todos os festejos fundamentais foram furtivamente excluídos, então o povo, para cuja razão angustiada a verdade só pode estar na representação, já não sabe como encarar a ansiedade do seu (H., Vol. 17, p. 48</p><p>o CONCEITO HEGELIANO DE MODERNIDADE ainda mais aguda. Desta vez Hegel está tão inquieto com a dis- crepância entre razão e actualidade histórica que se coloca com o seu ensaio Sobre a Carta inglesa para reforma, francamente, do lado da restauração. V Mal tinha Hegel acabado de conceptualizar a da modernidade já a rebelião e o movimento da modernidade se preparava para estilhaçar este con- ceito. Isto explica-se pela circunstância de que Hegel só podia realizar a crítica da subjectividade dentro do quadro da filosofia do sujeito. Onde o poder da bipartição se deve tornar activo para que o absoluto se possa demonstrar como sendo o poder da unificação, não pode haver mais positividades mas meras bipartições a que é permitido aspirar a um direito também relativo. Foi o forte institucionalismo que guiou a pena de Hegel quando este, no prefácio à Filosofia do Direito, declarou ser o real racional. É certo que nas lições prece- dentes do semestre de Inverno de 1819/20 encontra-se a formulação mais fraca: que é racional devém real e o real devém 49 Contudo, mesmo esta frase abre campo de manobra para uma actualidade pré-decidida, pré-condenada. Recordemos o problema Uma modernidade sem modelo, aberta ao futuro, ansiosa de inovações, só pode ir buscar os seus critérios a si mesma. princípio da subjectividade, donde provém a própria consciência temporal da modernidade, é oferecido como fonte única do A filosofia da refle- xão, que parte do facto básico da autoconsciência, conceptualiza este princípio. A faculdade de reflexão aplicada a si mesma revela-se, claro está, também o negativo de uma subjectividade autonomizada, posta de modo absoluto. Por isso, a racionalidade do entendimento, que a modernidade sabe que é sua pro- priedade e a qual reconhece como único vínculo, alarga-se até à razão seguindo as pegadas de uma dialéctica do iluminismo. Contudo, enquanto saber abso- luto, esta razão acaba por tomar uma forma que é de tal modo imponente que não só resolve o problema inicial da autocertificação da modernidade como o resolve demasiado bem: a questão sobre a autocompreensão genuína da moder- nidade perece ao som das gargalhadas irónicas da a razão ocupou agora o lugar do destino e sabe que todo o acontecer de significado essencial já foi decidido. Assim, a filosofia de Hegel satisfaz a necessidade da moderni- dade de autofundamentação somente ao preço de um alargamento da actuali- de uma desagudização da Por fim, a filosofia retira o peso da sua presença, destrói o interesse que há por ela e recusa-lhe a vocação para ino- vação autocrítica. Os problemas do tempo perdem o grau de provocações por- que a filosofia, que está à altura do seu tempo, lhes retirou o sentido. 49 Hegel (1983), 51. 49</p><p>o DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE Em 1802 Hegel tinha iniciado o Jornal crítico da filosofia com um ensaio a essência da crítica Ele distingue ai (dois tipos de Um dirige-se contra as falsas positividades da época; entende-se como uma da vida oprimida que obriga a sair de formas entorpecidas: a tica não pode fazer com que a obra e o feito valham como forma da ideia, então ela não ignorará o esforço; o interesse propriamente consiste em destruir a casca que ainda impede o esforço interno de ver o 50 Nisto reconhecemos sem custo a crítica que o jovem Hegel fez dos poderes positivos da religião e do Estado. Um outro tipo de crítica dirige Hegel contra o idea- lismo subjectivo de Kant a Fichte. Dele se pode dizer conheceu a ideia de filosofia com mais nitidez, mas que, contudo, a subjectividade se esforça por se defender da filosofia na medida em que isso é necessário para a sua própria salvação 51. Aqui trata-se de descobrir a artimanha de uma subjectividade limitada que se fecha a um discernimento melhor e há muito acessivel. o Hegel da Filosofia do Direito já só considera justificada a crítica nesta segunda versão. A filosofia não pode ensinar o mundo a ser como ele deve nos seus con- ceitos só se reflecte a realidade como ela é. Ela não se dirige mais contra a reali- dade, mas contra as abstracções difusas que se intrometem entre a consciência subjectiva e a razão configurada objectivamente. Após o ter um na modernidade, após ter encontrado uma saída das da modernidade, após ter não só penetrado na realidade, mas ter devindo nela objectivo, Hegel vê a filosofia dispensada da tarefa de confrontar a existência corrompida da vida social e política com o seu conceito. A da crítica corresponde a da actualidade a que viram as costas os servidores da A modernidade elevada ao seu conceito permite uma retirada estóica da Hegel não é o primeiro filósofo que pertence aos tempos modernos, mas é o primeiro para o qual a modernidade se tornou um problema. Na sua teoria torna-se visível a constelação conceptual entre modernidade, consciência do tempo e racionalidade. No fim é o próprio Hegel que destrói esta constelação, porque a dilatada até absoluto, neutraliza as condições sob as quais a modernidade adquiriu uma consciência de si mesma. Com isto Hegel não resolveu o problema da autocertificação da Contudo, para os tempos posteriores a Hegel decorre a consequência de que para o tratamento deste tema só ganha opção aquele que conceber o conceito de razão de um modo mais Os jovens hegelianos mantêm-se fiéis ao projecto de Hegel com um conceito moderado de razão e querem entender, e ao mesmo tempo criticar, a moder- 50 H., Vol. 2, p. 175. 51 50</p><p>FEDERAL DO PARA o CONCEITO HEGELIANO DE MODERNIDADE nidade em declinio pela via de uma outra dialéctica do iluminismo. Eles consti- tuem, claro está, apenas um de vários partidos. Ambos os outros partidos que lutam pela compreensão correcta da modernidade empreendem a tentativa de dissolver a coesão interna entre modernidade, consciência do tempo e racionali- dade; não obstante, eles não conseguem furtar-se à coacção conceptual desta constelação. partido que se inspira no hegelianismo de direita, abandona-se acriticamente à dinâmica que impele a modernidade social, trivializando a consciência moderna da época e recortando a razão à medida do entendimento e a racionalidade à medida da racionalidade orientada para fins. A par da ciência autonomizada de modo cienticista a modernidade cultural perde para eles qualquer vínculo. partido dos jovens conservadores que se inspira em Nietzsche excede a crítica dialéctica da época, radicalizando a moderna consciência da época e desmascarando a razão como racionalidade absolutizada orientada para fins, como forma de exercício despersonalizado do poder. Nisto ela deve à arte vanguardista esteticamente autonomizada aquelas normas inconfessadas perante as quais não pode subsistir, nem a modernidade cultural, nem a modernidade da sociedade. EXCURSO ACERCA DAS CARTAS DE SCHILLER SOBRE A EDUCAÇÃO ESTÉTICA DO HOMEM As Cartas, em que Schiller trabalhava desde 1793, editadas em 1795 nas constituem o primeiro escrito programático para uma crítica estética da modernidade. Ele antecipa a visão frankfurtiana dos amigos de Tuebingen na medida em que leva a cabo a análise da modernidade bipartida nos concei- tos da Filosofia Kantiana e esboça uma utopia estética que atribui à arte um papel francamente No lugar da religião deve ser a arte que pode ser activa enquanto poder unificador, porque ela é entendida como uma de que intervém nas relações intersubjectivas dos homens. Schiller entende a arte como comunicacional que se irá rea- lizar no do futuro. Na Segunda Schiller coloca a questão de se não será inadequado à época deixar que a beleza da liberdade guie o homem, (não será que) as vicissitudes do (mundo) moral oferecem um interesse que nos está mais pró- ximo e que o espirito de investigação filosófico, favorecido pelas circunstâncias da época, é enfaticamente desafiado a se ocupar com a edificação de uma ver- dadeira liberdade A formulação da pergunta sugere já a resposta: a própria o medium da formação do género humano em verdadeira liberdade política. Não é ao indivíduo que se refere este processo de formação, mas ao contexto colectivo da vida do povo: do carácter tem de ser encontrado no povo, 52 F. Schiller, Saemtliche Werke, Vol. 5, pp. 571 e segs. 51</p><p>o DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE que deve ser capaz e digno de trocar o Estado da necessidade pelo(Estado da (Vol. V, p. 579.) Se a arte deve poder cumprir a tarefa histórica de conciliar consigo mesma a modernidade em decadência, ela não pode apenas arrebatar os indivíduos, ela tem antes de transformar as formas de vida que os indivíduos compartilham. Por isso, Schiller aposta na força comunicativa, insti- tuinte de comunhão, solidária, no público da arte. A sua análise da actualidade desemboca na visão de que nas relações modernas da vida as forças particulares só se diferenciaram e desenvolveram ao preço da fragmentação da totalidade. Mais uma vez, a concorrência do novo com o velho fornece o ponto de apoio para uma autocertificação da modernidade. A poesia e a arte gre- gas também porventura, a natureza humana e separaram as suas partes ampliando-as na esplendorosa dos seus deuses, mas não foi por elas a terem fragmentado, mas sim por terem misturado de diversas maneiras as suas partes, que a humanidade estava presente em cada um dos deuses. Como é diferente entre nós! Entre nós a imagem do género humano também foi dividida e ampliada em - mas em fragmentos e não em misturas diversas, de modo que temos de interrogar os indivíduos um a um para conse- guirmos obter uma leitura da totalidade do género (Vol. p. 582.) Schiller critica a Sociedade burguesa como do As palavras que escolhe fazem lembrar o jovem Marx. A mecânica de um relógio engenhoso serve de modelo tanto para o processo económico coisificado que separa o pra- zer do trabalho, o meio do fim, o esforço da recompensa (Vol. V, p. 584), como igualmente para o aparelho de Estado autonomizado que se aliena dos cida- dãos, os como objectos de administração e a frias (Vol. V, p. 585). Com a critica do trabalho alienado e da burocracia, de um só (Schiller) opõe-se a uma intelectualizada, super-especializada que se afasta dos problemas do quotidiano: no reino das ideias por possessões inalienáveis, o espírito especulativo teve de se tornar no mundo dos sentidos um estranho, perdendo a matéria a favor da forma. espírito empreendedor, encerrado num círculo uniforme de objectos e ainda mais cons- trangido neste pelas fórmulas, viu o todo da liberdade afastado do seu campo de visão e empobrecer-se a par de toda a sua esfera... Em consequência, o pen- sador abstracto tem um coração frio, porque ele decompõe as impressões que, apesar disso, afectam a alma apenas como um todo; frequentemente, o homem de negócios tem um coração pouco sensível porque a sua imaginação está encerrada no círculo uniforme da sua profissão e não se pode alargar a modos de representação (Vol. V, pp. 585 e segs.) Claro está que Schiller entende estes fenómenos de alienação apenas como efeitos secundários inevitáveis do progresso que, doutro modo, o género humano não poderia ter efectuado. Schiller partilha da confiança da filosofia crítica da história, serve-se da figura de pensamento teleológico, mesmo sem 52</p><p>o CONCEITO HEGELIANO DE MODERNIDADE as reservas da filosofia transcendental: só devido a elas se isolarem no homem e arrogarem-se uma legislação exclusiva que as forças individuais entram em contenda com a verdade das coisas e obrigam o senso comum, que geralmente repousa em indolente satisfação sobre os fenómenos exteriores, a se aventurar nas profundezas dos (Vol. V, p. 587.) Tal como o espirito empreendedor na esfera da sociedade, assim também se autonomiza o espírito especulativo no reino das ideias. Na sociedade e na filosofia formam-se duas legislações contrárias. E esta oposição abstracta da sensibilidade e do entendi- mento, do instinto da matéria e do da forma, subjuga o sujeito esclarecido a uma coacção à coacção física da natureza bem como à coacção moral da liberdade, que se tornam ambas tanto mais sensíveis quanto mais desinibida- mente os sujeitos tentam dominar tanto a natureza externa como a interna. Assim, o Estado naturalmente dinâmico e o Estado racionalmente ético encon- tram-se por fim frente a frente como dois estranhos; ambos convergem apenas no efeito da opressão do senso comum pois Estado dinâmico só pode tor- nar a sociedade possível domando a natureza com a natureza; o Estado ético só a pode tornar apenas (moralmente) necessária submetendo a vontade singu- lar à (Vol. V, p. 667). A realização da razão concebe Schiller como uma ressurreição do senso comum destruído; ela não pode provir apenas nem da natureza nem da liber- dade, mas tão-somente do de formação que, para terminar o conflito entre aquelas duas legislações, tem de isolar a contingência da natureza externa do carácter físico de uma e a liberdade da vontade do carácter moral da outra (Vol. V, p. 576). medium deste processo de formação é a pois ela causa uma intermédia na qual o nosso ânimo não é obrigado nem física nem moralmente, mas, não obstante, é activo das duas (Vol. V, p. 633). Enquanto que a modernidade é enredada pelos progressos da própria razão, cada vez mais profundamente, no conflito entre o sistema desenfreado das os princípios abstractos da a arte pode conferir a esta totalidade bipartida carácter porque ela participa em ambas as legislações: meio do reino medonho das forças e no meio do reino sagrado das leis, o instinto estético da formação labora imperceptivelmente num terceiro reino do jogo e da aparência em que ele alivia o homem das cadeias de todas as relações e o desembaraça de tudo o que se chama coacção, tanto física como (Vol. V, p. 667). Com esta utopia estética, que permaneceu ponto de orientação para Hegel e Marx, bem como para a tradição hegeliano-marxista até Lukács e Mar- cuse Schiller entende a arte como a encarnação genuína da razão comu- 53 H. Marcuse, im Lichte der (O progresso à luz da psicanálise), in Freud in der Frankfurter zur Sociologie (Freud na actualidade. Contribuições frankfurtianas para a sociologia), Vol. 6, Frankfurt, p. 438. 53</p><p>DISCURSO FILOSÓFICO DA MODERNIDADE nicacional. É certo que a da faculdade do de KanDpossibilitou também a entrada num idealismo especulativo que não se podia dar por satis- feito com as diferenciações kantianas entre entendimento e sensibilidade, liber- dade e necessidade, e natureza, porque ele avistava justamente nestas diferenciações a expressão da bipartição das relações modernas da vida. Mas a capacidade mediadora da faculdade de julgar serviu a Schelling e a Hegel de ponte para uma intuição intelectual que se queria assegurar da identidade abso- luta. Schiller era mais modesto. Ele insistiu no significado restringente da facul- dade de julgar estética para fazer desta, de facto, um uso Para isso ele misturou tacitamente o conceito kantiano de faculdade do juízo com o tradicional que, na tradição aristotélica (ainda até Hannah Arendt), nunca perdeu inteiramente a ligação à concepção política de senso comum. Assim, ele podia entender a arte como uma forma [Mitteilung] e atribuir-lhe a tarefa de inserir a na as outras formas da representação separam a sociedade, porque se referem exclusivamente ou à sensibilidade privada ou à perícia particular dos membros singulares, logo, ao que há de distinto entre os homens; só a bela comunicação [Mitteilung] uni- fica a sociedade, porque se refere ao que é comum a (Vol. V, p. 667.) A forma ideal da intersubjectividade determina Schiller então em contraste com o isolamento e massificação as duas deformações opostas da intersub- jectividade. Os homens que se escondem como trogloditas nas cavernas são pri- vados, no seu modo de vida privativo, das relações para com a sociedade enquanto algo objectivo existente fora deles; enquanto que aos homens que erram em grandes massas como nómadas lhes falta na sua existência exteriori- zada a possibilidade de encontrarem o caminho para si mesmos. equilíbrio correcto entre estes extremos, o da e o que ameaçam na mesma medida a identidade, encontra Schiller numa imagem romântica: a sociedade conciliada esteticamente tinha de constituir uma estrutura de comuni- cação (cada um) conversa calmamente no seu refúgio consigo mesmo e, logo que sai, com todo o género (Vol. V, p. 655). A utopia estética de Schiller claro que não visa uma estetização das relações da vida, mas sim o revolucionar das relações de entendimento Perante a dissolução da arte na vida, que os surrealistas mais tarde exigem pro- gramaticamente, que os dadaístas e os seus seguidores querem levar a cabo pro- vocatoriamente, persiste Schiller na autonomia da pura aparência. É certo que ele espera da alegria motivada pela aparência estética a de o modo de Mas a aparência só permanece uma aparência pura- mente estética enquanto prescindir da assistência da Semelhante- mente a Schiller determina mais tarde Herbert Marcuse a relação entre arte e revolução. Uma vez que a sociedade não se reproduz só na consciência dos Arendt, Lectures on Kant, Chicago, 1982 (em alemão), Munique, 1985. 54</p><p>VERSIDADE DO PARA o CONCEITO HEGELIANO DE MODERNIDADE homens, mas também nos seus sentidos, a emancipação da consciência tem de estar enraizada na emancipação dos sentidos - tem ser dissolvida a intimi- dade repressiva com o mundo-objecto Não obstante, a arte não deve consumar o imperativo surrealista, ela não deve transitar para a vida sem ser sublimada: fim da arte só é imaginável (num estado) onde os homens já não estão em condições de distinguir entre verdadeiro e falso, bem e mal, belo e feio. Esse seria o estado de barbárie completa no ponto mais elevado da civili- 55 Marcuse da última fase repete a advertência de Schiller face a uma estetização não-mediatizada da vida: a aparência só desenvolve a sua força conciliadora enquanto aparência - (o homem), no domínio teórico, se abstém conscienciosamente de afirmar a sua existência e enquanto ele renun- cia, no domínio prático, a conferir-lhe (Vol. V, p. 658). Por detrás da advertência oculta-se já em Schiller aquela ideia de uma legis- lação específica da esfera cultural de valores da ciência, da moral e da arte, que Emil Lask e Max Weber irão mais tarde desenvolver. Estas esferas são como que elas de uma imunidade absoluta face à arbitrarie- dade do homem. Assim, o legislador político também pode isolar o seu domí- nio, mas ele não pode dominar (Vol. V, p. 593). Se se tentasse, sem tomar em consideração a especificidade cultural, quebrar os recipientes da aparência estética os conteúdos derramar-se-iam - no sentido dessublimado e da forma desestruturada não poderia partir uma acção libertadora. Uma estetização do mundo da vida é para Schiller legítima apenas no sentido de que a arte actua de forma catalisadora, como uma forma de comunicação, como um medium em que os momentos divididos se unem de novo numa totalidade natural. carácter social do belo e do gosto só é confirmado em virtude de a arte apre- sentar tudo que se bipartiu na modernidade sistema das necessidades desenfreadas, Estado as abstracções da moral, da razão e da ciência dos especialistas - o céu aberto do senso 55 H. Marcuse, Konterrevolution und Revolte (Contra-revolução e revolta), Frankfurt, 1973, pp. 140 e segs. 55</p>