O que e, afinal, a Psicologia Comunitaria

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<p>36 Eduardo Mourão Vasconcelos 9 temos de reaprender tudo, como se não tivéssemos passado por um curso. Ou mesmo, temos de desaprender muita coisa do curso, em termos da realidade social que encontramos pela frente. E, geralmente, a gente não se sente psicólogo quando realiza essas formas de trabalho comu- nitário". Em síntese, as experiências ocorrem de forma normalmente espontânea, sem avaliação rigorosa de seus resultados e sem um contato O QUE É, AFINAL, A permanente com uma busca de sistematização PSICOLOGIA COMUNITÁRIA? teórica. Em terceiro lugar, estamos assistindo, nos últimos anos, à implantação muito gradativa de programas que incorporam a Psicologia Comuni- tária, por parte de instituições sociais principal- Neste ponto, você, leitor, depois de ter uma mente ligadas ao Estado. Normalmente são visão das origens da Psicologia Comunitária, deve projetos-piloto em pequenas unidades de saúde, estar se perguntando: que é então a Psicologia escolas, comunidades. Recentemente, a Previdência Comunitária? chegou a anunciar uma reorientação da assistência Alguns autores, quando analisam a história da psiquiátrica no país, e propondo um modelo atuação de um corpo científico e profissional, inspirado em parte na proposta feita pela OMS. notam que em determinadas circunstâncias histó- Na maioria dos casos, não existe uma integração ricas os profissionais têm uma forma própria de dessas diferentes iniciativas em Psicologia Comu- atuar, diferente dos que atuam em outras épocas nitária. Mas acredito que a tendência a que vimos e contextos sociais. A essa forma chamam para- assistindo é a superação gradativa deste isolamento digma da prática profissional. Na área médica, por de experiências. Isso pode se dar, por exemplo, exemplo, sabemos que o modelo de atuação que através da integração das universidades às inicia- conhecemos, chamado Medicina Científica, não tivas institucionalizadas de prestação de serviços, foi e não é o único existente. Se percorrermos a ou da colaboração com os projetos populares história da Medicina, veremos que a Alemanha dos autônomos. séculos XVIII e XIX e a Inglaterra e França do</p><p>38 Eduardo Mourão Vasconcelos 0 que é Psicologia Comunitária 39 século passado nos apresentam três paradigmas PSICOLOGIA PSICOLOGIA distintos da prática médica. A Medicina Comu- TRADICIONAL COMUNITÁRIA nitária recente constitui um outro paradigma, em social. As análises são se apresenta como uma oposição ao da Medicina Científica atual. essencialmente unidisci- integração dos aspectos Na Psicologia, vimos que as experiências que plinares, e o trabalho rea- orgânicos, psíquicos e podemos reunir sob nome da Psicologia Comu- lizado é predominante- sociais. A abordagem é nitária tiveram origens e objetivos bastante dife- mente uniprofissional. interdisciplinar, e o tra- rentes. Tivemos desde propostas bastante radicais, balho é feito em equipes como a SEXPOL, até os programas conservadores Apesar dessa diversidade, creio 2) Enfatiza-se a abordagem 2) A ênfase está nas pessoas poder afirmar que a Psicologia Comunitária pode individual do psíquico. enquanto seres sociais, ser considerada um campo com uma unidade onde o conteúdo psicoló- mínima, e pode significar a formalização de um gico tem conotações tam- novo paradigma de prática profissional do bém institucionais, so- logo, em relação à prática predominantemente ciais, culturais e cas, e vice-versa. desenvolvida até então. Assim, apesar dos riscos de simplificação exces- 3) A abordagem é desarti- 3) É uma abordagem articu- siva, acredito que a sistematização comparativa culada de uma visão mais lada a uma visão totali- que tentarei esboçar aqui poderá ser interessante ampla do social, e muitas zante do social e busca a vezes pretende-se neutra explicitação de um com- para se entender como vejo a proposta de uma com relação aos proble- promisso político e so- Psicologia Comunitária comprometida com os mas sociais. cial. interesses populares: 4) A prática desenvolvida é 4) A prioridade básica são dirigida prioritariamente as classes populares, ainda para os grupos sociais sem acesso a serviços bá- PSICOLOGIA PSICOLOGIA mais privilegiados, tanto sicos de saúde mental. TRADICIONAL COMUNITÁRIA do ponto de vista econô- 1) As abordagens enfatizam 1) As divisões do saber são mico quanto cultural. o enfoque do psicólogo fruto da história das ins- 5) Nas faculdades, a forma- 5) A formação só é coerente como esfera predominan- tituições acadêmicas e ção é predominantemen- se baseada na prática temente independente do profissionais. A realidade te teórica, intramuros, e concreta no campo social,</p><p>Eduardo Mourão Vasconcelos que é Psicologia 40 41 PSICOLOGIA PSICOLOGIA PSICOLOGIA COMUNITÁRIA PSICOLOGIA TRADICIONAL TRADICIONAL COMUNITÁRIA desvinculada da prática. com reflexão teórica e no pesquisas concomitantes. saber, com a integração da saúde mental na vida 6) As técnicas são predomi- 6) Integração de recursos cotidiana e na cultura do nantemente curativas. curativos e preventivos lugar do poder é com ênfase na prevenção. alternado e distribuído. 7) A teorização e o conjunto 7) Teorização e técnicas são 10) A abordagem não reco- de técnicas são dirigidos dirigidas para situações inhece o conhecimento 10) Há um reconhecimento institucionalizadas e de difuso e as práticas infor- e busca de constante co- principalmente para con- sultórios, hospitais e gabi- campo, junto aos locais mais populares em saúde aprendizagem com o sa- de trabalho e moradia da mental e as práticas netes separados da vida social, e em locais con- população, proporcionan- mas da população que do maior acessibilidade e têm implicações ou que centrados nas áreas dos coerência com a reali- são diretamente ligadas à grandes centros urbanos. saúde dade vivida por ela. 11) As práticas têm alto 11) Propõe-se pesquisa e 8) A prática profissional é 8) Formam-se profissionais nível de especialização e altamente especializada mais generalistas, envolvi- síntese de práticas mais A formação dos com faixa mais ampla simplificadas, apropriadas por técnicas de trabalho é longa, de (principalmente na clíni- de técnicas e práticas às condições sociais e cul- alto custo, que é repas- à variedade de turais populares. Um dos ca). A clientela se adapta sado aos serviços, e dai situações Há uma objetivos básicos é a ex- ao esquema teórico e sua busca constante de pes- tensão da cobertura com técnico do profissional. quisa e sistematização de manutenção da Raramente se buscam práticas alternativas. 12) As práticas são planeja- práticas alternativas. 12) Busca-se efetiva partici- 9) profissional atua pri- das e executadas pelo 9) A prática predominante pação da clientela na mordialmente como as- profissional sem qualquer exige sempre a presença definição das prioridades sessor, transmissor de ha- participação da clientela. do profissional, e é man- de atuação, planejamen- tenedora do monopólio bilidades e treinador de to, execução e avaliação do saber profissional. 0 agentes de saúde das Ou seja, lugar do poder é fixo e objetivo é a desmono- participação comunitária constantemente centrado polização gradativa do efetiva.</p><p>42 Eduardo Mourão Vasconcelos PSICOLOGIA PSICOLOGIA TRADICIONAL COMUNITÁRIA 13) A ação do psicólogo é 13) A ação do psicólogo restrita aos consultórios, envolve também o conhe- seções de contato ou tra- cimento da saúde pública, balho na escola ou em- a administração, gestão e presa. supervisão dos serviços. Assim, as técnicas em Psi- cologia Comunitária são de três tipos: LOCAIS DE ATUAÇÃO a) técnicas direta- DA PSICOLOGIA COMUNITÁRIA mente à intervenção em saúde mental com a clientela; b) técnicas voltadas ao trei- A primeira coisa que podemos constatar é que namento de pessoal para os psicólogos comunitários não são donos de atuar em saúde mental; campos de trabalho onde só eles atuam. Eles vão c) técnicas administrativas e bater em muitas áreas onde psicólogos em geral de gestão dos serviços em já desenvolvem suas atividades, bem como outros saúde mental. profissionais da área humana e de saúde. Como vimos, o que dá identidade ao psicólogo comuni- tário em relação a seus colegas tradicionais é uma forma própria de atuar, voltada para objetivos próprios segundo uma visão crítica definida. Assim, o primeiro campo de atuação da Psico- logia Comunitária é o das próprias instituições onde o psicólogo já é comumente chamado a trabalhar: nas escolas e demais instituições de educação, nos hospitais psiquiátricos, nas empresas, etc. Nelas, psicólogo comunitário poderá até</p><p>1049 Se a saúde mental é um direito de cada cidadão, que a psicologia e a psicanálise têm oferecido à grande maioria da população? Será possível pensarmos num outro campo de ação para estas ciências, fora dos consultórios elitizados dos grandes centros? A psicologia pode se t acessível à participação das pes ou está condenada a um grup especialistas? Eduardo M. Vasconcelos edição O QUE PSICOLOGIA COMUNITÁRIA editora brasiliense editora brasiliense</p>