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<p>Capítulo 91</p><p>O edifício lógico e o aprender "sobre"</p><p>Sobre o edifício lógico propriamente dito já falamos o suficiente até agora.</p><p>Minha sugestão, portanto, é a de que analisemos aqui suas possibilidades e seus limites,</p><p>referindo-o ao conhecimento psicológico e à formação de psicólogos, e enfatizando os</p><p>lugares onde esses limites criam espaço para outras formas de aprender, dessa vez já</p><p>abordando a forma que tem a Oficina de Criatividade hoje.</p><p>Partindo finalmente para a recuperação dos dados mostrados no início do livro,</p><p>pretendo fazer isso começando por tentar entender os sujeitos-alvo da atividade.</p><p>A Oficina destina-se, como já foi dito, a alunos de 5º ano de psicologia, que</p><p>chegam a nós em condições específicas, sobre as quais podemos nos deter.</p><p>Vêm de uma experiência, na Licenciatura e Graduação, calcada primordialmente</p><p>no aprender "sobre" (as pessoas, as teorias e técnicas, etc.), salvo as exceções feitas por</p><p>algumas disciplinas nas quais participam de alguns contatos com situações que simulam</p><p>atendimentos (como o treinamento para aplicação de testes), ou que os colocam na</p><p>fímbria da situação clínica, sem dela participar ainda (como no caso do estágio em</p><p>hospitais psiquiátricos, oferecido em Psicopatologia).</p><p>Este aprender "sobre" se dá por meio de aulas em diferentes formatos definidos</p><p>pelos recursos da didática, leituras variadas, seminários e avaliações ditas objetivas, por</p><p>meio de provas e trabalhos escritos, nos quais predominantemente prevalece a exigência</p><p>de reproduzir o conhecimento recebido, permeado em maior ou menor grau pelas</p><p>opiniões ou reflexões do estudante.</p><p>Todos esses recursos, melhor ou pior administrados, constituem o que viemos</p><p>definindo como um saber que está aí, à disposição do sujeito para uso, que com ele</p><p>estabelece duas condições de encontro. Por um lado, há um encontro positivo com um</p><p>saber que, disponível, desvela inúmeras possibilidades, e que guarda uma certa aura</p><p>mágica frente à compreensão dos demais. Começar a aprender psicologia significa</p><p>maravilhar-se com as várias facetas da existência humana, cujas manifestações agora</p><p>podem começar a ser entendidas numa trama infinita de articulações possíveis.</p><p>Significa aprender mais sobre si mesmo, descobrir teorias e autores com os quais se</p><p>identificar, compartilhar com outros visões de mundo e de como são as pessoas.</p><p>Tomados por outro ângulo, no entanto, esses mesmos aspectos deflagram um</p><p>encontro com esse saber disponível que se dá mais ao modo de um encontrão, de um</p><p>confronto com uma série de desconfortos pelos quais os futuros psicólogos não serão</p><p>abandonados nunca mais.</p><p>Esse mesmo encontro que propicia algum apoio naquilo que se conseguiu</p><p>aprender, propicia o desencontro diante da possibilidade de articular cada fragmento do</p><p>que é aprendido num todo organizado. Conhecimentos que permitem ao aluno</p><p>desenvolver um embrião de direcionamento diante das diferentes abordagens</p><p>apresentadas, mas que não oferecem, em contrapartida, razões sólidas que sirvam de</p><p>critérios para que optem por uma coisa e não outra. Configura-se todo um campo de</p><p>possibilidades que o estudante, via de regra, não consegue articular completamente.</p><p>O que os alunos aprendem nos primeiros quatro anos de faculdade, proveniente</p><p>dos recursos apontados acima, converge para a familiarização2. Ao longo desse tempo</p><p>1 Cupertino, C. M. B. Criação e formação: fenomenologia de uma oficina. São Paulo: Annablume, no</p><p>prelo.</p><p>2</p><p>eles convivem no que podemos chamar de uma estrutura de contenção do</p><p>estranhamento, que visa criar os meios para que, quando confrontados com o</p><p>inexplicável, tratem de por em ação aquilo que aprenderam, tornando-o explicável</p><p>através do recurso aos fundamentos que definem o que aquilo é.</p><p>Os alunos são convencidos, por um lado, pela demonstração lógica à qual são</p><p>expostos por meio de textos articulados, que por sua vez se remetem a outros; de</p><p>discursos expositivo-demonstrativos emitidos (com maior ou menor competência) por</p><p>professores; do acesso a exemplos (imaginados ou relatados) nos quais os conceitos</p><p>aprendidos podem ser observados; de discussões acadêmicas com professores e colegas.</p><p>Aproximam-se do conhecimento enquanto podem submetê-lo à prova, desdobrá-lo e</p><p>torná-lo familiar, usando a lógica.</p><p>Num desdobramento desse tipo de pensamento, realizam outras operações pelas</p><p>quais visam constituir dispositivos de intervenção futuros quando, por exemplo,</p><p>antecipam limites e possibilidades de alcance para o que está sendo apresentado, pela</p><p>via do pareamento imaginário entre o conteúdo aprendido e comportamentos</p><p>observados (deles mesmos ou de pessoas conhecidas) ou exemplificados nos livros.</p><p>Estas formas de pensar, entretanto, encontram-se fortemente permeadas pelo que</p><p>podemos chamar de pensamento axiológico, ou aquele através do qual definimos o que</p><p>é desejável, para nós e para os demais, com base no que acreditamos como indivíduos.</p><p>Ao longo de sua vida acadêmica, então, os alunos constituem seu aprendizado</p><p>acreditando (ou não). Em última instância, acreditam na possibilidade de um</p><p>conhecimento acumulado e, dentro dele, em maior ou menor escala, no que dizem os</p><p>professores e os livros. Identificados com alguns professores, passam a acreditar nas</p><p>posições por eles defendidas, à primeira vista refratárias às incoerências, uma vez que</p><p>são transmitidas pela via da organização e não das dissonâncias.</p><p>Com base no pensamento axiológico, transformam suas visões de mundo em</p><p>critério de credibilidade, avaliando e incorporando aquilo a que vão sendo expostos a</p><p>partir da discriminação com relação a qual abordagem está, para cada um, melhor ou</p><p>pior articulada em sua sistematização de conceitos, assim como de que maneira o</p><p>cabedal de instrumentos, procedimentos e técnicas formam um conjunto compatível</p><p>com os pressupostos, tornando-se, assim, passíveis de adoção.</p><p>Acompanhar tais movimentos experimentados por nossos alunos oferece-nos a</p><p>possibilidade de observar alguns tipos de conhecimento que se articulam,</p><p>simultaneamente, no(s) fazer(es) psicológico(s), e que devem ser por eles aprendidos.</p><p>O saber psicológico3 constitui-se a partir do que Figueiredo (1995a), a partir da</p><p>obra de M. Polanyi, identifica como os conhecimentos explícito, tácito e subsidiário.</p><p>Sobre esses tipos de saber gostaria de estender-me aqui, assumindo que a Oficina de</p><p>Criatividade pretende incidir sobre os últimos, instituindo um espaço para reflexão e</p><p>crítica do primeiro.</p><p>O primeiro deles, relativo ao que os alunos aprendem pela via da transmissão, é</p><p>o conhecimento explícito ou representacional, que pode ser definido como o que se</p><p>torna disponível na forma de sistemas de representação. É o que aprendemos nos livros,</p><p>2É importante assinalar aqui que não estou entrando no mérito do quanto isso é desejável ou não,</p><p>o que é uma questão bastante debatida hoje em dia, quando se pensa na organização dos</p><p>currículos em psicologia. O trajeto para o familiar, aqui, é reconhecido como um dos trajetos</p><p>possíveis numa formação composta de muitas outras alternativas, melhor ou pior administradas,</p><p>dependendo da instituição onde se desenvolvam. Ele foi escolhido entre os muitos possíveis</p><p>porque é o caminho que pretendemos trilhar, pela contramão, na Oficina de Criatividade.</p><p>3Tomo essa expressão no singular consciente de toda a polêmica quanto a usá-la dessa forma ou</p><p>obrigatoriamente no plural, já que a condição múltipla da psicologia permite que pensemos não</p><p>apenas em um saber e um fazer únicos, mas em diferentes saberes e fazeres.</p><p>3</p><p>ou por qualquer outra forma de transmissão explícita, ordenada, sistematizada.</p><p>Considerado o representante da parte objetiva de um conhecimento qualquer, é</p><p>sobre</p><p>ele que podemos fazer incidir nossas avaliações e correções. É importante assinalar,</p><p>entretanto, que apesar de aparentemente ancorado em referências que poderíamos</p><p>considerar mais sólidas, não está isento de problemas diante dos questionamentos</p><p>referentes ao potencial universalizante do conhecimento científico que evidenciam</p><p>algumas lacunas, que nos cursos de psicologia são deixadas, obrigatoriamente para</p><p>serem preenchidas pelos próprios alunos.</p><p>Pretendendo apresentar a eles um conhecimento organizado, deparamo-nos com</p><p>a impossibilidade de fazê-lo porque tal nível de organização e universalidade não é</p><p>possível. Frente aos limites do conhecimento explícito, ficam para ser</p><p>convenientemente equacionadas perguntas com relação, por exemplo, a quais</p><p>abordagens privilegiar na definição do mínimo necessário a ser transmitido para que</p><p>possamos afirmar, com a consciência tranqüila, que nossos alunos sabem psicologia.</p><p>Vivemos um eterno conflito sobre o que devemos impor, considerando que eles não têm</p><p>experiência nem conhecimento suficiente, ou o quanto podemos permitir que eles</p><p>escolham seus próprios caminhos, elegendo currículos personalizados.</p><p>Constituída, portanto, sob o signo da multiplicidade, a Psicologia, para ser</p><p>ensinada, descortina vários níveis diferentes a serem abordados e exige articulações em</p><p>diferentes planos. Do ponto de vista da formação de psicólogos, estamos lançados no</p><p>desafio de proporcionar, ao mesmo tempo, um eficiente saber circunscrito ao campo do</p><p>representável e uma dose equivalente de traquejo para lidar com aquilo de que o</p><p>conhecimento explícito não dá conta, que podemos identificar como um outro tipo de</p><p>saber: o tácito, pré-reflexivo, difícil de ser transformado em discurso transmissível: "O</p><p>conhecimento tácito é o conhecimento incorporado aos hábitos afetivos, cognitivos,</p><p>motores e verbais de um sujeito." (Figueiredo,1995a:87).</p><p>É uma disposição para o uso e/ou incorporação de determinadas habilidades,</p><p>parte do que sabemos sem saber que sabemos. Difícil também de ser considerado</p><p>apenas subjetivo, já que por ser pré-reflexivo antecede a cisão sujeito-objeto, este</p><p>conhecimento está lá, não à disposição, mas como disposição, refratário às tentativas de</p><p>explicitação.</p><p>"A dificuldade de 'fazer falar o tácito' advém do fato de que o conhecimento</p><p>pessoal existe num plano da experiência em que sujeito e objeto ainda não se</p><p>constituíram como entidades relativamente independentes uma da outra." (idem:87).</p><p>E ainda temos, semelhante, mas não igual, um outro conhecimento, o</p><p>subsidiário. Pano de fundo para a apreensão focal e temática de aspectos particulares do</p><p>mundo, os quais organiza e reúne, dando-lhes configurabilidade, "...o conhecimento</p><p>subsidiário resiste à representação já que por sua natureza é o que existe no registro do</p><p>implícito e do disperso." (idem:90). É ele que dá sentido ao explícito, focal.</p><p>Conhecimento focal e subsidiário alternam-se como figura e fundo, levando-nos</p><p>a uma associação com a diferença ontológica heideggeriana entre ser e ente</p><p>intramundano, uma vez que "embora o fundo esteja fora de foco e possa passar em</p><p>grande medida desapercebido sabemos que é esta apreensão não temática do fundo que</p><p>garante as possibilidades de formação e significação das figuras. Em outras palavras:</p><p>nós possuímos conhecimentos focais significativos porque somos possuídos pelo</p><p>conhecimento subsidiário em que vivemos" (idem:89). Retornamos, portanto, à questão</p><p>do acesso ao enigmático, ao que, no humano, permanece como implícito, perguntado-</p><p>nos se este fundo, apesar de impossível de ser tornado explícito, pode ser posto em</p><p>movimento.</p><p>Voltando à idéia do fundo sem fundo heideggeriano, a partir de onde as coisas</p><p>são o que são, podemos pensar (livremente) que um fundo sem fundo não oferece apoio</p><p>4</p><p>para que nada se mova. O que está vazio não tem movimento. Todavia, como nos</p><p>lembramos, esse vazio tomado como ausência de sentido, pode também ser</p><p>compreendido como o lugar de onde tudo pode vir a ter sentido, como um vazio pleno</p><p>de sentidos possíveis. Ao retomarmos, ao mesmo tempo, a possibilidade de um trânsito,</p><p>de um dar a ver, percebemos que as próprias palavras que utilizamos pressupõem um</p><p>movimento, apesar de sabermos que nada está lá.</p><p>Concretizar um pouco mais essa idéia, trazendo-a para o contexto específico do</p><p>atendimento psicológico leva-nos de volta a algumas afirmações interessantes,</p><p>apresentadas por Stern (1990) já superficialmente mencionadas, e às quais voltaremos</p><p>novamente. Stern desenvolve sua argumentação a partir da apresentação da idéia de</p><p>"pensamentos, sentimentos e percepções inesperados", cujo caráter é o de algo que "está</p><p>passando" por nós, e dos quais nos apropriamos posteriormente ao seu surgimento.</p><p>"Saber que somos os autores de nossos próprios pensamentos não ajuda a</p><p>desmistificar a experiência bastante comum de que simplesmente os registramos.</p><p>Pensamentos, imagem ou sentimentos inesperados parecem vir a nós: sentimo-nos como</p><p>conduites" (1990:452). Essa capacidade, presente em todos nós, constitui-se, segundo</p><p>Stern, num recurso imperdível para a aprendizagem.</p><p>Dirigimo-nos às situações esperando alguma coisa delas. Lá, na situação, somos</p><p>surpreendidos por um pensamento inesperado, que não vem da decisão de dar sentido,</p><p>nem dos encadeamentos lógicos que podemos fazer sobre ela. Desvinculados da</p><p>condição de produção deliberada, tais eventos teriam como prerrogativa nos</p><p>surpreender, contrariando as expectativas que temos. Frequentemente desconfiamos da</p><p>veracidade desses pensamentos, uma vez que não conseguimos precisar exatamente sua</p><p>correspondência com os fatos presentes. Se não estabelecemos um distanciamento</p><p>frente ao princípio de razão, consideramos esses acontecimentos como acidentes de</p><p>percurso. Se procuramos ajustá-los à sua eventual proveniência pelo caminho da lógica,</p><p>explicitando essa correspondência, vemo-nos incapacitados de fazê-lo. Esses</p><p>pensamentos acontecem, simplesmente, no nível da experiência, como saber</p><p>subsidiário. Oferecem-se a nós como um trânsito a ser explorado em suas ramificações</p><p>que estão por vir, mais do que pela análise das razões de seu aparecimento. São os</p><p>vetores em potencial para o que, dependendo das circunstâncias, pode se transformar</p><p>em fala fenomenalizadora, aquela que apenas nos aponta um sentido para, se estivermos</p><p>abertos para essa possibilidade.</p><p>Em nossa abertura para a surpresa, para nos deixarmos contrariar em nossas</p><p>expectativas criamos, então, uma condição de conhecimento pelo intervalo, ou lacuna,</p><p>entre o que esperamos e o que, inesperadamente, nos aparece por acaso. Aqui vamos</p><p>nos deter, momentaneamente, no que se apresenta como a possibilidade de</p><p>perseguirmos os pensamentos inesperados, criando situações que possam, elas mesmas,</p><p>nos surpreender, uma vez que, apesar de parecer um processo basicamente passivo pelo</p><p>qual "...somos observadores da produção de nossos próprios modos de compreender o</p><p>mundo" (p. 454), podemos desdobrá-los, inserindo-os novamente em uma trama.</p><p>Ainda segundo Stern, "quando esse pensamento - talvez apenas uma inclinação</p><p>para pensar, um protopensamento - aparece, consciente, um esforço deliberado é</p><p>usualmente necessário para avaliá-lo, burilando-o e estendendo suas ramificações. Mas</p><p>o original, para ser uma contribuição real, tem que chegar tanto como intenção quanto</p><p>como uma parte da vivência do que está fora dos limites da reflexão ou do controle.</p><p>Percepções autênticas não são desveladas ou entendidas" (idem:455).</p><p>As ressonâncias do pensamento heideggeriano novamente se fazem ouvir,</p><p>quando fazemos referência a uma inclinação para pensar, ou ao que está fora dos limites</p><p>do controle e do entendimento racional.</p><p>5</p><p>É importante, também, pararmos um pouco sobre a idéia da composição dupla</p><p>do que assinalamos acima como uma contribuição original. Podemos fazê-lo a partir da</p><p>extensão dessas idéias para o contexto psicológico, analisando esse processo diante de</p><p>sua necessidade</p><p>e utilidade na prática psicológica. Essa idéia está presente num excerto</p><p>já referido, do qual agora enfatizo alguns aspectos:</p><p>"Paciente e analista trabalham com percepções inesperadas rotineiramente. As</p><p>mais significativas percepções dos outros - e de nós mesmos também - chegam a nós</p><p>sem intenção consciente. Vêm de outro lugar, disfarçadas em sintomas ou sonhos. São</p><p>eventos que caem fora das expectativas, embora às vezes assustadores e freqüentes. E,</p><p>embora psicanalistas possam às vezes aprender sobre pacientes de forma mais</p><p>conscientemente planejada (por exemplo, extrapolação consciente da teoria ou</p><p>expectativas de desenvolvimento), grande proporção de observações analíticas, e as</p><p>mais significativas, são da espécie comum humana." (idem:455).</p><p>Assitimos aqui à explicitação da manifestação dos conhecimentos que vínhamos</p><p>apontando acima. Por um lado, temos acesso ao representável, constituindo "um</p><p>aprendizado de forma conscientemente planejada". Por outro lado, é apenas no</p><p>abandono ao imprevisível, capacidade "da espécie comum humana", que o planejado</p><p>adquire configurabilidade, transformando-se em intervenção aproveitável.</p><p>Com isso finalizo um segmento através do qual espero ter demonstrado, em</p><p>primeiro lugar, o espaço e a necessidade do conhecimento acumulado garantido através</p><p>do edifício lógico. Além disso, espero ter conseguido deixar claros os limites deste</p><p>mesmo conhecimento que, por mais objetivo e concreto que pareça, sofre</p><p>atravessamentos que tendemos a considerar, se não inúteis, pelo menos indesejáveis,</p><p>sempre que não soubermos como contar com eles, ou antes, se não soubermos que</p><p>temos que contar com eles. Podemos passar a analisar, a seguir, o lugar dos discursos</p><p>teóricos e o lugar da experiência pessoal.</p><p>É aí, nesta lacuna, que se instala a pertinência de um lugar e um tempo para que</p><p>possamos, por meio do que não é sistemático, submeter aquilo que o é à prova,</p><p>tornando-o mais familiar, incorporado, através do acesso à sua incompletude original,</p><p>do acesso ao estranhamento. Um espaço onde o que não é sistemático possa ser</p><p>momentaneamente instaurado como experiência que flui, desatrelada do conhecimento</p><p>sobre ela. Alheio ao contexto do demonstrável, o estranhamento é viável, entre outras</p><p>coisas, a partir do pensamento axiológico, tornando-se acessível por meio da</p><p>explicitação e análise das crenças e valores, processo pelo qual o indivíduo, ele</p><p>também, põe-se à prova, revendo-os.</p><p>Recebemos para estágio, em resumo, alunos que foram apresentados à parte do</p><p>saber acessível pela via da sistematização, vertente que, mesmo que tivesse sido</p><p>exaustivamente trabalhada, depende de um outro tipo de conhecimento que lhe serve de</p><p>dispositivo acionador, e que não é acessível pela representação. É possível e viável,</p><p>nesse momento, apresentar-lhes uma alternativa para isso. Afinal, é em parte disso que</p><p>vêm cuidar na clínica: de desenvolver esse outro lado, apropriando-se do conhecimento</p><p>adquirido pela via do exercício, como o aprendiz de artesão, que burila aquilo que sabe</p><p>por meio do fazer.</p><p>Eles chegam até nós ambivalentes. Acostumados a lidar com as representações,</p><p>algumas das quais já consideradas familiares, imaginando poder projetá-las sobre os</p><p>futuros clientes, vêm, por um lado, confiantes, até por sua inexperiência, na</p><p>transparência e aplicabilidade daquilo que aprenderam. Diante daquilo a que tiveram</p><p>acesso acreditando, podemos instituir um espaço intermediário, onde essas crenças</p><p>assumam um caráter provisório para, suspensas, serem confrontadas, podendo aí ser</p><p>assumidas na forma de incorporação.</p><p>6</p><p>Ansiosos por colocar tudo isso em prática, os alunos não vêem a hora de</p><p>atender. É isso que farão nas outras áreas de estágio, que são o lugar por excelência para</p><p>exercitarem suas habilidades. Lá estão reunidas, em princípio, a teoria e a prática,</p><p>favorecendo todos os intercâmbios entre elas. A iminência do atendimento, no entanto,</p><p>se por um lado fascina, por outro amedronta. Esse início é marcado pelas inseguranças</p><p>ocasionadas pelo compromisso duplo que assumem. Ao atender, os estagiários têm um</p><p>compromisso com o cliente à sua frente, do qual devem cuidar e diante de quem têm</p><p>que mostrar alguma competência, e outro com o arcabouço de conhecimentos</p><p>acumulados, ao qual devem se reportar obrigatoriamente, e que será avaliado por um</p><p>supervisor. Expostos diante desses outros têm que aprender a desenvolver as diferentes</p><p>escutas, têm que dar respostas imediatas ou exercitar a suspensão. Demonstrar</p><p>inadequação acarreta consequências que podem determinar sua reprovação.</p><p>Sentem-se incapazes de um relacionamento natural com os futuros clientes, por</p><p>perceberem-se aprisionados pela obrigatoriedade de lançar mão dos instrumentos</p><p>aprendidos corretamente. Acreditam pouco em si mesmos porque, principiantes, estão</p><p>suspensos na iminência de construir uma experiência profissional, a ser desenvolvida ao</p><p>longo do resto de suas vidas, e que nesse momento apenas se inicia. Acreditam pouco</p><p>em si mesmos porque foram ensinados, ao longo dos quatro anos antecedentes, a</p><p>encobrir seu senso comum por constructos sistematizáveis, aprendendo a desconsiderar</p><p>o que vem da observação da "espécie comum humana".4</p><p>Pressionados por terem que se mostrar competentes, tendem a amenizar a</p><p>sensação de estarem perdidos, por um lado, pelo recurso às explicações rápidas demais,</p><p>obtidas pela via da compreensão entendida como encaixar o cliente naquilo que sabem</p><p>através do que aprenderam. Quando esse encaixe não é possível, acabam por parear as</p><p>manifestações do cliente com sua própria experiência de vida, o último refúgio seguro</p><p>ao qual podem se reportar. Têm medo de errar e sabem, ao mesmo tempo, que de agora</p><p>em diante grande parte do que vai acontecer depende, ali, na hora, deles mesmos. É</p><p>nessa travessia que pretendemos ajudá-los.</p><p>Ambivalentes também somos nós, supervisores, neste contexto. Constituimo-nos</p><p>como o polo da experiência, ditada pelo fato de sermos, o mais do tempo, mais velhos,</p><p>e por trabalharmos há mais tempo. Isso também pode constituir-se numa forma de</p><p>aprisionamento instaurada por um dos entendimentos possíveis do que "experiência"</p><p>quer dizer, como aquilo que se adquire ao longo da vida e que nos aplaina o espírito,</p><p>tornando-nos descrentes.</p><p>"Em nossa luta por responsabilidade enfrentamos um mascarado. A máscara do</p><p>adulto chama-se "experiência". Ela é inexpressiva, impenetrável, sempre igual. O que</p><p>experimentou esse adulto? O que pretende provar-nos? Antes de tudo um fato: também</p><p>ele foi jovem, também ele desejou outrora o que agora queremos, também ele não</p><p>acreditou em seus pais; mas a vida também lhe ensinou que eles tinham razão. E ele</p><p>sorri com ares de superioridade, pois o mesmo acontecerá conosco."</p><p>(Benjamin,[1913]1984:23)</p><p>Aqui há uma analogia possível com o "apoiar-se na tradição" heideggeriano, em</p><p>sua vertente mais limitadora, de temor diante da possibilidade da não existência</p><p>(próxima, já que somos mais velhos): o modo da adesão às possibilidades, do deixar-se</p><p>viver no mundo perdido no disponível (Heidegger,1988). Eminentemente retrospectiva,</p><p>essa experiência não nos inclina a nada, por ser composta do que se deixou para trás: a</p><p>4Quanto a isso, já tive a oportunidade de assinalar, em outro trabalho (Cupertino, 1995), o quanto</p><p>é freqüente que a transmissão se dê orientada pelo sucesso, trazendo-nos a sensação de que</p><p>qualquer falha só pode ser atribuída à má aplicação da técnica por parte de um indivíduo mal</p><p>preparado.</p><p>7</p><p>juventude, os ideais, e a capacidade de deixarmo-nos surpreender. Constitui-se na</p><p>comemoração de cada novo fracasso, pois ele demonstra, ainda como quer Benjamin,</p><p>que o adulto sempre teve razão.</p><p>Há, ao contrário, uma outra experiência possível, característica da juventude</p><p>segundo Benjamin, que é aquela pela qual se passa, vívida e estimulante, de desafio ao</p><p>estabelecido, de movimento</p><p>para um vir-a-ser descomprometido com a responsabilidade</p><p>desesperançada da desilusão progressiva.</p><p>"Tudo o que tem sentido, que é verdadeiro, bom, belo está fundamentado sobre</p><p>si mesmo - o que a experiência tem a ver com tudo isso? ...a experiência se torna para</p><p>ele (o adulto) a mensagem da vulgaridade da vida (enquanto que) cada uma de nossas</p><p>experiências (as outras, vivas) possui efetivamente um conteúdo, conteúdo que ela</p><p>recebe de nosso próprio espírito."(Benjamin,[1913]1984:24)</p><p>O que é bom, belo e verdadeiro é porque sim. Essa experiência que é porque sim</p><p>dá sentido a si mesma, e "somente para o indivíduo insensível a experiência é carente de</p><p>sentido e imaginação. Talvez ela possa ser dolorosa para aquele que a persegue, mas</p><p>dificilmente ela o levará ao desespero." (idem:24)</p><p>De volta à Oficina de Criatividade</p><p>A Oficina de Criatividade é o momento que os alunos têm para dirigirem o olhar</p><p>para si mesmos, em princípio através da suspensão da necessidade externa (e da</p><p>ansiedade interna) de acertar, de avaliar um conhecimento que escapa a essa</p><p>possibilidade. É um lugar para o recolhimento, para que o pensamento se volte para si</p><p>mesmo, desobrigado de perseguir caminhos pré-estabelecidos, constituindo-se para</p><p>todos, supervisores e alunos, como campo para essa segunda espécie de experiência</p><p>descrita por Benjamin. Dessa forma, a Oficina pretende incidir, por meio de atividades</p><p>que se conectam umas às outras mais do que a qualquer conhecimento explicitável que</p><p>as anteceda, sobre os conhecimentos subsidiário e tácito.</p><p>Sabemos que eles não são atingíveis pela via da representação. Apenas supomos,</p><p>sem nenhuma certeza, que podem ser postos em movimento de outra maneira, que é a</p><p>da criação, neste caso deliberadamente, das lacunas a serem preenchidas.</p><p>Essa suposição traz novamente à cena os entraves quanto à possibilidade mesma</p><p>de fazer a análise à qual me proponho, que aparece como uma sensação de desconforto</p><p>quanto à utilidade e à pertinência de começarmos, agora, a pegar alguns itens</p><p>selecionados a partir do relato inicial da Oficina, submetendo-os a um destrinchamento</p><p>sistemático.</p><p>A possibilidade de análise, reduz-se a cercar de perto o que acontece na Oficina,</p><p>sem entrar hora nenhuma em contato com "os fatos". Sintomática recusa, a intenção de</p><p>fazê-lo configura-se para mim como uma redução simplificadora através do</p><p>estabelecimento de relações lineares, destinadas a empobrecer ou o relato explicativo,</p><p>ou a experiência relatada.</p><p>Ao mesmo tempo, sabemos que os acontecimentos gerados na ruptura e a partir</p><p>dela anunciados, devem ser reconduzidos a uma trama que pode, ela mesma ser re-</p><p>significada, sob risco de permanecerem órfãos, separados de seu potencial</p><p>transformador. "Um acontecimento é, de início, uma ruptura na trama das</p><p>representações e das rotinas; em outras palavras, de início o acontecimento é uma</p><p>quebra nos dispositivos de construção e manutenção do 'tecido da realidade'; mas um</p><p>acontecimento é também a transição para um novo sistema representacional"</p><p>8</p><p>(Figueiredo,1994a:151-152)5. Essa transição é proposta aos alunos, quando são</p><p>solicitados a falar sobre suas experiências após vivê-las. O mesmo acontece comigo</p><p>nesse relato, vivido como um processo longo e estimulante de preenchimento de</p><p>lacunas, tentando reconduzir o que aparece como clareiras abertas a uma trama que faça</p><p>um mínimo de sentido para um leitor que eu pretendo que reconheça, a partir desse</p><p>trabalho, partes de si mesmo, podendo avaliar e incorporar o que nele lhe interessar. O</p><p>recurso aos dados, então, é inevitável, assim como escrever sobre o trabalho. A eles,</p><p>entretanto, reservo o espaço de exemplos, oferecidos quando considerados de utilidade</p><p>para compreensão desse cenário mais amplo de uma aprendizagem diferenciada,</p><p>calcada não mais apenas no conhecimento sistemático.</p><p>Voltando às lacunas (ou permanecendo nelas?), pretendemos, na Oficina de</p><p>Criatividade, estabelecê-las saindo momentaneamente do campo do representável, por</p><p>meio de atividades pouco habituais no contexto acadêmico, que se apresentam sempre</p><p>aos alunos como uma surpresa. Trabalhamos com experiências de outra ordem,</p><p>representáveis ao final, quando falamos sobre elas, mas que partem de uma outra</p><p>escuta, permitindo que nosso pensamento navegue desatrelado, detendo-se naquilo que</p><p>se constitui, em nós mesmos, como aspereza.</p><p>O plural aqui se aplica, porque do mesmo modo que solicitamos aos alunos que</p><p>falem sobre suas vivências, para que identifiquem nelas o que soou estranho, nós,</p><p>supervisoras, nos comprometemos a fazer o mesmo quanto à nossa própria experiência</p><p>dentro do mesmo contexto.</p><p>O tratamento dado ao que falamos pretende também, sempre que possível, evitar</p><p>a categorização imediata do que é dito com o intuito de inseri-lo num quadro de</p><p>referências organizado, que se desdobre diante de nós logicamente, ou numa retomada</p><p>de conceitos estudados, numa instrumentalização do aprendido na fase acadêmica</p><p>anterior. Nossas intervenções visam, quanto a esse aspecto fazer incidir a reflexão sobre</p><p>esse conhecimento sistematizado, a partir da experiência, identificando nele também</p><p>asperezas.6</p><p>Como exemplo (enfim!) dessa situação, podemos pensar na discussão</p><p>apresentada sobre a loucura, apenas uma das muitas que tivemos sobre o assunto.</p><p>Lembramos que ela é descrita no capítulo 2 a partir de uma atividade proposta pelos</p><p>alunos, que constava de um video que visava representá-la, seguida de uma discussão na</p><p>qual, escapando de definições precisas da loucura, cuja fragilidade já foi logo apontada</p><p>pela aluna que dizia que havia ficado na dúvida sobre qual delas trazer, criamos o</p><p>espaço para que fosse explorada uma forte resistência a ela por meio da experiência</p><p>pela qual acabavam de passar e de exemplos de fora, os casos encontrados pela rua. Ali,</p><p>através de uma maneira que não era nem o contato direto com um cliente concreto, nem</p><p>o "ouvir sobre", pudemos desencadear e trabalhar o medo e a rejeição frontal que os</p><p>alunos apresentavam frente àquilo que, podemos pensar, são as formas do existir</p><p>humano com a qual pretendem se envolver profissionalmente.</p><p>5 É importante assinalar que esta é uma referência explícita às formulações de Figueiredo</p><p>elaboradas em seu texto "Fala e acontecimento em análise", feita com a ressalva de que não ouso</p><p>conferir ao que se passa na Oficina de Criatividade o mesmo status atribuído pelo autor ao</p><p>"acontecimento". Entendo que o que acontece conosco não tem um caráter tão radical, ou não se</p><p>constitui como uma ruptura tão intensa quanto a apresentada pelo autor, "que destroça mundo e</p><p>funda mundo", que é "sempre uma prefiguração da morte" de intensidade equivalente ao trauma</p><p>psíquico. Se vivemos acontecimentos, ele acontecem numa versão mais "leve", se é que esse tipo</p><p>de fenômeno pode ser avaliado por esse prisma.</p><p>6 Há trechos neste capítulo que referem-se ao material recuperado a partir do Capítulo 2,</p><p>apresentado em alguns momentos, como esse, de forma resumida, e em outros literalmente.</p><p>9</p><p>A Oficina é o lugar para exercitar um abandono consentido do que é</p><p>sistemático, e nisso talvez esteja o último resíduo que permite que ainda a chamemos de</p><p>Oficina de Criatividade, entendendo aqui o criativo quase que do ponto de vista amplo</p><p>do senso comum, como o que se opõe ao sistemático. As atividades desencadeiam</p><p>processos, mais de modo aleatório do que previsível, e abrem o campo para discussão</p><p>não só (mas basicamente) dos processos experimentados pelos alunos, mas também das</p><p>projeções que eles fazem desses mesmos processos sobre os clientes: por passarem pela</p><p>experiência, tornam-se capazes de falar a respeito de como esta ou aquela vivência</p><p>atinge as vidas humanas, deles ou dos outros.</p><p>Um outro aspecto pertinente à discussão, e que ilustra a composição dupla do</p><p>saber psicológico diz respeito à condição de representação dos trabalhos</p><p>propriamente</p><p>ditos.</p><p>Muitas vezes formulamos as instruções para a tarefa a ser realizada através da</p><p>expressão "façam um trabalho X, que represente tal ou qual aspecto de sua vida". É</p><p>inevitável, diante dessa solicitação, que nos reportemos ao caráter projetivo que</p><p>conferimos a ela: na verdade, acreditamos que ao fazer uma colagem, por exemplo, o</p><p>aluno está de alguma maneira mostrando algo de si, quando sabemos que acreditar que</p><p>o trabalho representa alguém pressupõe que imaginemos que esse alguém se constitui</p><p>em algo estático, ou que há uma essência da pessoa a ser representada. Nesse caso, esse</p><p>pedido visa justamente criar as condições de confronto entre a pretensão de podermos</p><p>dizer alguma coisa sobre os outros tomando como referência produções isoladas. Põe</p><p>em suspenso essa pretensão.</p><p>Difíceis de fazer, os trabalhos exigem que os alunos parem para pensar sobre si</p><p>mesmos, reduzindo-se ao que consideram como o mais significativo a ser mostrado.</p><p>Estabelecem um trajeto de revisão a respeito de características pessoais, permeado por</p><p>um processo de escolha daquilo que vale a pena mostrar, que por si só já vale a sugestão</p><p>da tarefa. Defrontados com a complexidade irrepresentável de si mesmos, tendem a</p><p>amontoar figuras que "representem" o máximo de coisas possível, caindo na</p><p>generalidade. São tanta coisa que podem ser qualquer coisa. Podemos, já aí, discutir o</p><p>quanto é difícil esse tipo de redução, pelo lado do quanto é difícil ver-se reduzido. São</p><p>apresentados à sua própria irredutibilidade, e aprendem a por em suspenso a</p><p>possibilidade de virem a fazer o mesmo com seus clientes.</p><p>A partir da apresentação anônima dos trabalhos, introduzimos o problema de ter</p><p>que identificar os demais apenas por meio do produto feito, tarefa para a qual têm que</p><p>lançar mão de sua sensibilidade, daquilo que já sabem sobre o outro, e de algumas</p><p>articulações superficiais na linha mesma da interpretação dos recursos projetivos ou das</p><p>tão atuais práticas alternativas. Estão acionados os vários tipos de conhecimento, numa</p><p>manifestação do mais puro ecletismo prático, em alguns casos de forma mais bem</p><p>sucedida que em outros, cuja articulação pode então ser trabalhada.</p><p>Do confronto com a interpretação feita pelos outros, ou da possibilidade de</p><p>tentar a identificação de alguém mais, surge a questão do quanto a produção é genérica,</p><p>se pretende mostrar mesmo alguma coisa. E a conseqüente pergunta: será que é possível</p><p>mesmo mostrar tão completamente qualquer coisa a partir de um exemplo único, de um</p><p>objeto desvinculado de qualquer contexto, mesmo considerando uma produção mais</p><p>específica? E mais: há sentido em se pedir uma coisa assim, em princípio impossível?</p><p>A discussão posterior evidencia aquilo a que se pode chegar: o diálogo como</p><p>condição de negociação dos entendimentos possíveis. Trabalhamos com eles a</p><p>impossibilidade de uma apreensão globalizante, de ver a totalidade de uma vez. Quando</p><p>pretendemos fazer isso, fica tudo igual, o relevo se achata, as nuances e sutilezas se</p><p>perdem. Recuperá-las significa perseguir o que aponta para (não tão) determinadas</p><p>direções, apreensíveis por meio de recursos variados, mas sempre discutíveis, no</p><p>10</p><p>sentido mesmo de terem que ser abertos à discussão, para que qualquer conhecimento se</p><p>constitua. Abre-se a impossibilidade de desvelar qualquer coisa que seja sobre o outro</p><p>fora dessa condição de intercâmbio propiciada pela escuta mútua constituída na lacuna</p><p>daquilo que reconhecemos não saber.</p><p>Experiências desse tipo devolvem os discursos teóricos a outro lugar que não</p><p>aquele de exclusividade obtido ao longo dos primeiros quatro anos do curso de</p><p>psicologia. Ou melhor, impedem que eles se cristalizem como verdades absolutas, como</p><p>ortodoxia.</p><p>Como?</p><p>Constituído, como vimos, na confluência de vários saberes, o conhecimento</p><p>psicológico se estabelece como um trânsito inesgotável de um a outro. "Penso que é</p><p>realmente necessário levar a sério a idéia de que a experiência incorporada, o</p><p>conhecimento tácito e pessoal, entranhado no corpo, não é totalmente transparente e</p><p>convertível em teoria. Mas, na direção inversa, é preciso também se resignar diante do</p><p>fato de que os sistemas representacionais nunca serão totalmente incorporados às</p><p>práticas, melhor dizendo, eles sempre serão compreendidos de acordo com as</p><p>possibilidades abertas pelos conhecimentos subsidiários." (Figueiredo,1995a:93)</p><p>Frente a essa condição dupla, concluímos que a falência da razão como recurso</p><p>único não a invalida devolvendo-nos ao senso comum, que nos atrela ao habitual, ao</p><p>rotineiro e nos desobriga da explicitação, como é freqüente observarmos nos praticantes</p><p>da psicologia e, mais ainda, nos estagiários.</p><p>O pluralismo e o atravessamento de diversas referências presentes no exercício</p><p>da psicologia, com as decorrentes inseguranças nas quais nos colocam, acabam por</p><p>depositar sobre o profissional a possibilidade de articulação. Nos diz Vorcaro (1995)</p><p>que uma prática apoiada numa multiplicidade de pressupostos faz com que caiba ao</p><p>clínico a junção de todas as referências, atribuindo a ele papel central nesse processo. A</p><p>confluência de possibilidades explicativas, que têm ainda um caráter difuso durante a</p><p>iniciação, torna esse aspecto problemático quando se trata de estagiários que ainda não</p><p>definiram claramente seus caminhos, que se sentem despreparados apesar de</p><p>teoricamente informados, e que tendem a lançar mão de todos os recursos possíveis</p><p>para articular suas compreensões, até como modo de testar cada um deles.</p><p>Privilegiando a relação como o que deve ser preservado a qualquer custo,</p><p>transformando-a num vale tudo de onde retiram as articulações possíveis, podemos</p><p>perceber que os estagiários, inundados pela multiplicidade de pontos de vista que ainda</p><p>não sabem manejar, pressionados a dar respostas, passam a tomar a si mesmos como</p><p>padrão.</p><p>É necessário, assim, que se estabeleça um nível ótimo de tensão entre os dois</p><p>tipos de conhecimento, no qual o discurso teórico teria um papel de "desalojar os</p><p>conhecimentos tácitos impregnados nas práticas mecanizadas, reintroduzindo nelas o</p><p>espaço do encontro com o inesperado..." (Figueiredo,1995a:94).</p><p>Ou seja, voltando à possibilidade de deixarmo-nos surpreender, de permitirmos</p><p>que a experiência contrarie o que esperamos em uma situação, condição entendida até</p><p>agora como o espaço por excelência do conhecimento pessoal, podemos inverter o</p><p>raciocínio, pensando que, diante de nossas disposições tácitas, o conhecimento</p><p>representacional possa emergir, ele também como possibilidade de quebra das</p><p>expectativas, como a condição de estranhamento. "...a função da teoria é a de abrir no</p><p>curso da ação o espaço da indecisão, do adiamento da ação, tempo em que podem</p><p>emergir novas possibilidades de escutar e falar. É nessa medida que, no campo da</p><p>clínica psicológica, representações e conhecimentos tácitos deveriam conservar-se a</p><p>uma respeitosa distância uns dos outros." (idem:94).</p><p>11</p><p>Este nível de tensão devolve a seu devido lugar o discurso científico como busca</p><p>de um sentido dado, ou seja, de razões - o sentido da vida, a ordem pressuposta, a razão</p><p>de ser das coisas. Institui a necessidade da ruptura com os hábitos ditados pelo senso</p><p>comum, desalojando-nos pela reflexão e revelando que o sentido não está lá aguardando</p><p>nosso olhar para finalmente ser desvelado. O sentido se constrói, se faz, tanto faz com</p><p>que elementos, que podem ser os que escolhemos para nós, em nossas vidas</p><p>particulares, ou quaisquer outros. Diante dele temos que suspender as certezas, romper</p><p>com o habitual, arriscarmo-nos nas infinitas formas de vida. A tensão esvazia a teoria</p><p>de sua capacidade de gerar adeptos cada vez mais separados de suas experiências</p><p>próprias e, inversamente, reverte o movimento de apoiar-se estritamente sobre estas</p><p>últimas, ambos movimentos claramente observáveis quando tratamos com estagiários,</p><p>"...instaurando os espaços do desconhecimento nos quais podem ser acolhidas as</p><p>alteridades emergentes."</p><p>(Figueiredo,1993:94).</p><p>12</p><p>Referências bibliográficas</p><p>BENJAMIN, W. Reflexões: o brinquedo, a criança e o brincar. São Paulo: Summus, 1984.</p><p>CUPERTINO, C.M.B. O psicodiagnóstico fenomenológico e os desencontros possíveis. In</p><p>ANCONA-LOPEZ, M. (org.) Psicodiagnóstico: processo de intervenção. São Paulo: Cortez,</p><p>1995.</p><p>FIGUEIREDO, Luis Claudio M. Sob o signo da multiplicidade. In Cadernos de subjetividade, São</p><p>Paulo, vol 1, nº 1, mar/ago 1993.</p><p>____________________________ Escutar, recordar, dizer: encontros heideggerianos com a</p><p>clínica psicanalítica. São Paulo:Educ/Escuta,1994a.</p><p>____________________________ Revisitando as psicologias: da epistemologia à ética nos</p><p>estudos psi. S. Paulo: Vozes/Educ, 1995a.</p><p>91.</p><p>HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis, RJ: 1988.</p><p>STERN, Donnell B.Courting Surprise. in Contemporary Psychoanalysis, v.26, n.3, 1990.</p><p>VORCARO, A. Compreender ou estranhar: incidências no psicodiagnóstico. In ANCONA-</p><p>LOPEZ, M. (org.) Psicodiagnóstico: processo de intervenção. São Paulo: Cortez, 1995.</p>