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<p>© Tarcísio Meirelles Padilha</p><p>Direitos de edição em língua portuguesa no Brasil adquiridos por Editora Batel</p><p>www.editorabatel.com.br</p><p>DIREITOS RESERVADOS</p><p>1ª Edição - 1a Impressão</p><p>Abril 2019</p><p>CURADORIA DA OBRA REUNIDA DE TARCÍSIO PADILHA</p><p>Heloísa Padilha</p><p>Julio Lellis</p><p>COORDENAÇÃO EDITORIAL</p><p>Carlos Barbosa</p><p>REVISÃO</p><p>Charles Mourão</p><p>Edmílson Carneiro</p><p>PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO DE MIOLO</p><p>Júlio Lapenne</p><p>CAPA</p><p>Victor Burton</p><p>EDITORAÇÃO FINAL</p><p>Solange Trevisan zc</p><p>TEXTO ESTABELECIDO SEGUNDO O ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA PORTUGUESA DE 1990, EM</p><p>VIGOR NO BRASIL DESDE 2009.</p><p>CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE</p><p>SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ</p><p>P134L</p><p>Padilha, Tarcísio</p><p>Literatura e livre pensar: grandes nomes / Tarcísio Padilha. - 1. ed. - Rio de</p><p>Janeiro: Batel, 2019.</p><p>http://www.editorabatel.com.br/</p><p>208 p.; 21 cm.</p><p>ISBN 978-85-7174-021-1</p><p>1. Literatura brasileira - História e crítica. 2. Escritores brasileiros. I. Título.</p><p>19-55992</p><p>CDD: 869.09</p><p>CDU: 82.09(81)</p><p>20/03/2019 22/03/2019</p><p>Sumário</p><p>Prefácio - Domicio Proença Filho</p><p>A fidelidade ética de Sobral Pinto</p><p>Carlos Heitor Cony e as dimensões do ser</p><p>Nélida Pinon e o poder da sua criação literária</p><p>Coelho Neto ou o culto à palavra</p><p>A universalidade de João Guimarães Rosa</p><p>O recado literário de Ana Maria Machado</p><p>A aragem metafísica do romance de Octávio de Faria</p><p>Luiz Paulo Horta, mestre do jornalismo e da música</p><p>O legado de Alceu Amoroso Lima</p><p>A personalidade forte de Rachel de Queiroz</p><p>E</p><p>Preácio</p><p>Domicio Proença Filho</p><p>Celebração e relexão</p><p>ste livro do Professor Tarcísio Padilha integra uma dupla dimensão:</p><p>celebra a produção literária e ensaística e constitui um convite à reflexão.</p><p>A celebração configura-se em textos produzidos em momentos e</p><p>circunstâncias diversos.</p><p>Nucleariza-se em aspectos da contribuição de dez escritores e ensaístas</p><p>brasileiros para a cultura do país, que situa entre seus “grandes nomes”: Sobral</p><p>Pinto, Carlos Heitor Cony, Nélida Pinon, Coelho Neto, João Guimarães Rosa,</p><p>Ana Maria Machado, Octávio de Faria, Luiz Paulo Horta, Alceu Amoroso</p><p>Lima e Rachel de Queiroz.</p><p>A reflexão, pautada no juízo isento e preciso do pensador, está presente</p><p>em todos os textos, com os quais dialoga. A partir do perfil e da obra de cada</p><p>um dos selecionados, dos seus pensamentos e tomadas de posição. Fiel à</p><p>coerência e à consistência. Imune à prevalência de conclusões impressionistas.</p><p>Sobre serem carregados de atualidade.</p><p>É o mesmo posicionamento que assume na Academia Brasileira de</p><p>Letras, e disso dou testemunho, na condição de membro da confraria.</p><p>Ali se faz presente a sua palavra iluminadora, que concilia conflitos, que</p><p>une, agrega. Ali, na Casa que cultiva, democraticamente, a convergência na</p><p>divergência.</p><p>Mestre Padilha norteia-se pela abertura ao diálogo enriquecedor, traço</p><p>relevante das mentes esclarecidas. Isento do risco de hipertrofia da</p><p>subjetividade.</p><p>Ao tratar dos percursos dos escritores e ensaístas sobre os quais lança as</p><p>luzes de seu discurso, dialoga criticamente com seus textos. Sintetiza</p><p>motivações e ideários. Pensa as estações percorridas. Identifica, com olhar</p><p>agudo, marcas singularizadoras. Para além dos espaços individuais, privilegia</p><p>as dimensões do ser social e do ser humano. Reflete, com a bagagem filosófica</p><p>de sua formação erudita, sobre a contribuição de cada um para a cultura</p><p>brasileira. Associa, nesse mister, como poucos, crítica literária e filosofia.</p><p>A partir dos perfis desenhados com rara mestria, explicita</p><p>posicionamentos, reveladores de sua condição de pensador humanista. Exerce</p><p>o livre pensar. Numa visão longe da abstração desvinculada da realidade. Pelo</p><p>contrário: voltada para o mundo e os seres do mundo, alerta aos rumos da</p><p>contemporaneidade.</p><p>Dirige o seu pensamento percuciente a instâncias várias, entre outras a</p><p>questões ligadas a linguagem, língua, literatura, educação, pedagogia,</p><p>ideologia, sociologia, leitura, política, religião, justiça social. No discurso, a</p><p>clareza, a objetividade, o apuro do estilo. Assegurada a profundidade da</p><p>dimensão reflexiva.</p><p>Permito-me destacar, a título de exemplo e de mobilização motivadora,</p><p>alguns dos múltiplos e vários aspectos da leitura iluminadora que empreende.</p><p>Em Sobral Pinto acentua as “atitudes éticas fundamentais”, a</p><p>disponibilidade sempre aberta à palavra do outro, o intercâmbio de ideias.</p><p>Ressalta, em decorrência, na atuação e na produção do homenageado,</p><p>marcas pontuais relevantes. Entre elas, o convívio com o dissenso, emergente</p><p>do diálogo, sem qualquer vislumbre de ameaça à autonomia do pensamento do</p><p>interlocutor; o entendimento do contraditório como enriquecimento; o</p><p>respeito ao outro, no plano individual; o respeito às instituições, no plano</p><p>coletivo; o respeito à divergência. E mais: a não imposição de seus valores a</p><p>quem quer que seja; “a ordem como sintonia de contrários” e não como</p><p>imposição de uma vontade sectária; a crença na liberdade e na democracia.</p><p>Na homenagem a Carlos Heitor Cony, tece considerações sobre a sua</p><p>capacidade de superação, a sua vivência como seminarista e a opção posterior</p><p>pela vida leiga, a importância de que nesta se reveste a sua formação religiosa.</p><p>Destaca a sua ação como jornalista e cronista combativo, radicada na</p><p>liberdade; a sua preocupação com a realidade brasileira; a ousadia de romper</p><p>com a literatura, a moral, os bons costumes. Lembra o seu domínio dos mais</p><p>diversos gêneros literários. Nesse âmbito, analisa textos ficcionais luminosos</p><p>dos quais depreende a sua resistência “aos rogos de uma coisificação do real”, a</p><p>busca do afastamento do plano do mundo numa espécie de realismo fantástico</p><p>que não distingue limites entre realidade, memória e ficção. Em paralelo, a</p><p>possível condução do seu leitor a “convocar a espiritualidade para o debate”.</p><p>No texto sobre Nélida Pinon, discorre sobre a sua entrega à vocação</p><p>literária e o reconhecimento e acolhida das diferenças; a plena liberdade na</p><p>criação; a alta significação e as múltiplas marcas que depreende do silêncio do</p><p>seu texto, o rigor com que trabalha a linguagem literária. Chama a atenção</p><p>para a dimensão política de sua atuação como escritora, decorrência de suas</p><p>convicções libertárias. Registra o pioneirismo do seu engajamento na causa</p><p>feminista, nas décadas de 1960 e 1970. Pontua a relevância de sua presença e</p><p>de sua atuação na Academia Brasileira, de que foi presidente. Destaca a</p><p>amplitude da representatividade de sua obra que, para além do Brasil, estende-</p><p>se a toda a América Latina e presentifica-se em várias outras partes do mundo.</p><p>A obra de Coelho Neto e o caráter polêmico de que a historiografia</p><p>literária brasileira a reveste constitui um desafio para o crítico. Tarcísio</p><p>Padilha o enfrenta e o suplanta com galhardia. Perpassa sua vida e sua ficção.</p><p>Comenta múltiplos e vários juízos avaliatórios relativos à sua produção</p><p>ficcional, em destaque o caráter conflitante que os caracteriza. Aponta a</p><p>prevalência, na obra do ficcionista, da preocupação com as cenas do cotidiano</p><p>sobre “os desejos existenciais que transbordam do cálice de vivências</p><p>humanas”. E sobretudo com a palavra. Levanta a hipótese da sobreposição, no</p><p>espírito do autor, de uma relativa curiosidade difusa à preferência pelo</p><p>genuíno esforço de aprofundamento temático. Disserta, mobilizado pelo texto</p><p>do escritor, sobre a natureza da palavra e a relevância dos signos para o ser</p><p>humano, um animal symbolicum.</p><p>Alude à sua atuação na Academia Brasileira de Letras. Em destaque o</p><p>duelo verbal com Graça Aranha, em torno do Modernismo.</p><p>Nem falta a lembrança de que a ele se deve a alcunha de Cidade</p><p>Maravilhosa dada ao Rio de Janeiro.</p><p>A partir dos posicionamentos do escritor, alerta, atualizado: “hoje,</p><p>quando o sentimento de amor à terra há de forçosamente conjugar-se com a</p><p>consciência da aldeia global, impossível seria qualquer opção radical.”</p><p>Desafio ainda mais amplo é o representado por Guimarães Rosa. O</p><p>crítico-filósofo o ultrapassa com segurança plena. Identifica, no sertão rosiano,</p><p>“o palco da condição humana e não o elo intrínseco do viés cotidiano, o</p><p>horizonte ilimitado pela singela</p><p>demasiado vultuosa desse escritor, num ambiente</p><p>como o nosso, em que se lê tão pouco, não tem permitido, geralmente, aos</p><p>mais curiosos, percorrer-lhe senão um pequeno número de livros, e sendo</p><p>essas obras irregulares, havendo nela do bom, do muito bom, do medíocre e</p><p>do ruim, acontece, muitas vezes, o conhecimento incidir na parcela mais fraca,</p><p>de onde os juízos levianos e falhos, embora quase sempre dogmáticos. Muitas</p><p>opiniões sobre Coelho Neto poderiam resumir-se na já famosa boutade de</p><p>Oswald de Andrade: Não li e não gostei.”</p><p>Lúcia Miguel-Pereira é cáustica em sua avaliação: “Talvez se possa</p><p>sintetizar a personalidade literária de Coelho Neto dizendo que, a despeito da</p><p>sua inegável vocação intelectual, foi vítima de um terrível engano: tomou o</p><p>meio pelo fim, confundiu expressão e ideia, instrumento e concepção. Deixou-</p><p>se dominar pela palavra, em lugar de dominá-la. Fantasia, imaginação,</p><p>observação, senso poético - tudo isso existia nele, e tudo isso foi posto apenas</p><p>ao serviço do poder verbal, tudo isso foi reduzido a mero pretexto para frases.</p><p>E, inconsciente do mal que a si próprio causava, ele se ufanava de haver</p><p>disciplinado o vocabulário, quando o vocabulário o asfixiava, afogava-lhe a</p><p>concepção em termos preciosos, em construções onomatopaicas. O que tinha</p><p>a dizer pareceu-lhe menos importante do que a maneira pela qual o dizia.”</p><p>José Veríssimo teceu sobre Coelho Neto juízos contraditórios, ora</p><p>notável, eminente, extraordinário ou fora do comum, ora afiançando que a</p><p>obra de Coelho Neto é “complicação toda literária, sem nenhuma</p><p>complexidade interior.”</p><p>Tristão de Athayde - “... Gastão Penalva lamentava, há dois dias, em</p><p>comovido artigo, o esquecimento do nome de Coelho Neto. Duzentos livros</p><p>não o fazem lembrado dos próprios contemporâneos, pois há apenas alguns</p><p>anos que se afastou de nós a grande presença daquele trabalhador das letras...”</p><p>e “Contudo, não me surpreende que o esqueçam. Neto encheu muito o seu</p><p>tempo. Dominou os círculos literários com a sua possante personalidade. Era</p><p>natural que com o seu desaparecimento sucedesse o mesmo que a tantos</p><p>outros grandes escritores; envolve-os o silêncio passageiro à espera de novas e</p><p>definitivas consagrações”.</p><p>De Medeiros e Albuquerque lemos: “Coelho Neto e Alberto de Oliveira</p><p>provam diariamente a justiça que os fez aclamar príncipes dos prosadores e</p><p>poetas brasileiros, com o furor que anima tantos literatinhos novos a se</p><p>atirarem contra eles. Prova indireta, mas decisiva. De fato, se eles não tivessem</p><p>mérito, seria desnecessário atacá-los. Bastaria que esses adversários usassem a</p><p>mais simples das táticas: que produzissem melhor do que os dois.”</p><p>Aires da Mata Machado se situa num justo meio-termo: “Cedendo ao</p><p>império da moda literária ou despercebidamente se entregando à proclividade</p><p>do temperamento, Coelho Neto abusou algumas vezes do seu direito de</p><p>arreliar o burguês pé-de-boi, com o emprego exagerado de saborosos</p><p>plebeísmos, de peregrinismos expressivos, de palavras inusitadas, até de</p><p>invencionices extravagantes. Tudo isso, porém, representava exceção. A regra</p><p>era a palavra exata, na frase adequada à expressão, à situação, ao intuito do</p><p>escritor.”</p><p>Manuel Cavalcanti Proença se inclina ante a nomeada do escritor</p><p>maranhense: “ataques e defesas, e, ainda mais, feitos com o passionismo a que</p><p>se referiu Brito Broca, constituem sinal de vitalidade. Mais certo par ao crítico</p><p>será ficar no meio do campo onde se travam os torneios. Se, morto, há mais de</p><p>trinta anos (1934), ainda recebe ataques, é porque sua obra continua viva; e,</p><p>se, ao mesmo tempo, precisa de defesa, é que essa mesma obra não é toda de</p><p>aço puro. Parece estar aí a verdade.”</p><p>Em reportagem a João do Rio, escreve Coelho Neto: “O público não sabe</p><p>a capacidade do meu trabalho e a crítica ignora porque trabalho tanto. Não</p><p>sabem eles que, subordinando o estilo à concepção, a pena desliza quase</p><p>mecanicamente.”</p><p>Coelho Neto não dispunha dos vagares para rever os seus escritos, eles</p><p>fluíam velozmente ao sabor da caudal de sua criatividade hors concours, o que</p><p>robustece nossa convicção de que não lhe poderíamos exigir rigor especulativo</p><p>ou mesmo e sempre densidade imaginativa.</p><p>Como membro efetivo da ABL, recepcionou Mário de Alencar, Osório</p><p>Duque-Estrada e Paulo Barreto. Foi presidente da Academia Brasileira e um</p><p>dos imortais mais ligados à instituição, nas sessões de trabalho, como no palco</p><p>maior da sociedade, com suas intensas participações em outras entidades</p><p>culturais e ainda pelo seu acendrado patriotismo, que partilhou com Olavo</p><p>Bilac.</p><p>Conta seu filho Paulo que “na fase inicial de sua carreira literária, Coelho</p><p>Neto adotou pelo menos nove pseudônimos em artigos para jornais e revistas,</p><p>contos, histórias brejeiras e até romances”. “Álbum de Caliban” e “O arara”</p><p>foram publicados com o pseudônimo de Caliban. No Filhote, da Gazeta de</p><p>Notícias, fez uma coluna diária. Além desses, Coelho Neto firmou muitos</p><p>outros trabalhos com os pseudônimos de Ariel, Demonac, Blanco Canabarro,</p><p>Victor Leal e Henri Lesongeur.</p><p>A letra de Coelho Neto merece um registro especial, pois revela a sua</p><p>perfeição como objetivo permanente e uma inclinação vigorosa para o belo.</p><p>Paulo assim narra: “a letra de Coelho Neto era regular, seguida, esmerada,</p><p>como se houvesse de sair dali a gravura. Tinha traços grossos e delgados,</p><p>como os podem exigir os mestres mais meticulosos de caligrafia. Os tt</p><p>elevavam-se à sua altura certa, cortados por um traço curto, reto, bem</p><p>horizontal, sempre o mesmo; os ll subiam mais um pouco, mas sem nenhum</p><p>desmando, nenhuma permissão de se inclinar ou passar da linha. Nenhuma</p><p>confusão possível entre os mm, os nn, ou uu, que toda a gente mais ou menos</p><p>baralha e que, na escrita de Rui Barbosa, por exemplo, só pela formação da</p><p>palavra ou pelo sentido da frase se podiam distinguir. Coelho Neto desenhava,</p><p>gravava as letras. Até nisso era artista.”</p><p>Todo este senso estético numa vida atribulada e atarefada. Sim, porque o</p><p>escritor, com família numerosa, não poderia adquirir uma casa para morar.</p><p>Quando indagado a respeito, certa feita respondeu prontamente: “Não!</p><p>Habito-a há 20 anos, como inquilino. Casa própria tenho no cemitério, a que</p><p>foi doada a meu filho. Não sou tão pobre assim: tenho, pelo menos, onde cair</p><p>morto.”</p><p>A história registra um duelo na ABL ocorrido entre Graça Aranha e</p><p>Coelho Neto: na sessão de 19 dejunho de 1924, os dois grandes escritores se</p><p>desavieram. Descreve Eliezer Bezerra o episódio: Poucos dias antes da</p><p>(anunciada) conferência de Graça Aranha, Coelho Neto, usando de seu</p><p>sagrado direito de expressão, manifestou-se, por meio de um órgão da</p><p>imprensa carioca, contra o risco que o movimento modernista oferecia,</p><p>abrindo facilidades para manifestações literárias artificiais capazes de</p><p>comprometer a seriedades da literatura brasileira. A predição do grande</p><p>escritor tornou-se realidade, em parte.</p><p>Houve, então, a reunião de 1924, no plenário da Academia Brasileira de</p><p>Letras, numa demonstração eloquente de que nosso maior cenáculo das letras</p><p>nunca teve maiores preconceitos com os movimentos literários contrários ao</p><p>seu reconhecido tradicionalismo.</p><p>Graça Aranha, a certa altura, depois de ofender, seriamente, às tradições</p><p>da Casa de Machado de Assis, de que fora fundador, apesar de não contar, em</p><p>seu currículo, em 1879, com um livro publicado sequer, gritou: “Abaixo a</p><p>Grécia! Morram todos os helenos!”, invocação, esta sim, aparentemente sem</p><p>nexo, porque a velha Grécia e os seus helenos gloriosos só permaneciam, havia</p><p>muito, na memória dos que lhes herdamos a civilização superior. Então,</p><p>Coelho Neto, que era de gênio arrebatado e de idade avançada, esquecendo-se,</p><p>momentaneamente, de certo, que, por trás dos excessos naturais do</p><p>Modernismo nascente, havia o essencial, isto é, o desejo geral de</p><p>modernização completa de nossa cultura, revidou: “mas, eu serei o último dos</p><p>helenos e o fogo das paixões não vai destruir a beleza da cultura, porque a</p><p>inteligência é eterna!”</p><p>Coelho Neto não se cingiu a pugnar pela Abolição e pela República.</p><p>Vemo-lo porfiar pela educação moral</p><p>e cívica, a educação física, o escotismo, a</p><p>defesa das florestas, o serviço militar obrigatório, na esteira de Olavo Bilac, a</p><p>proteção e assistência à infância, ao teatro brasileiro, o intercâmbio cultural</p><p>entre Brasil e Portugal.</p><p>É amplo e variegado o aspecto de sua participação na vida nacional.</p><p>Jamais se refugiou em uma torre de marfim, perfilado ao abstracionismo. Em</p><p>sua época era ouvido por muitos que recebiam suas palavras como uma forte</p><p>sinalização para os valores do humanismo cristão. Coelho Neto confessa:</p><p>“homem de fé, o livro de minh’alma aqui o tenho: é a Bíblia. Não o encerro na</p><p>biblioteca entre os de estudo, conservo-o sempre à minha cabeceira, à mão.”</p><p>“É dele que tiro a água para a minha sede de verdades; é dele que tiro o</p><p>pão para a minha fome de consolo; é dele que tiro a luz nas trevas das minhas</p><p>dúvidas; é dele que tiro o bálsamo para as dores das minhas agonias.” Sua</p><p>adesão ao espiritismo é objeto de um singelo documento em que fica patente</p><p>um certo distanciamento da consistência filosófica que seria de esperar-se de</p><p>quem sorveu o néctar da árvore do helenismo.</p><p>Talvez se possa concluir que o espírito de Coelho Neto o circunscreve</p><p>aqui e ali a uma relativa curiosidade difusa, de preferência ao genuíno esforço</p><p>de aprofundamento temático. Na Summa theologica, Tomás de Aquino discerne</p><p>os dois conceitos de curiositas e studiositas</p><p>1, apontando a superficialidade do</p><p>primeiro e resguardando a densidade do segundo. Em Coelho Neto se</p><p>desprende à primeira vista uma curiosidade e uma sensibilidade que muitos</p><p>confundem com riqueza de imaginação que ele próprio se atribui. Sua</p><p>inteligência se distrai com as cenas do cotidiano e não com os desafios</p><p>existenciais que transbordam do cálice das vivências humanas. É preciso</p><p>observar que, à época de Coelho Neto, a especulação filosófica não vicejava</p><p>entre nós como em terra nativa. O domínio do darwinismo, do positivismo,</p><p>exercia fascínio nas gerações mais voltadas para a especulação. É bem de ver</p><p>que não se tratava de um evolucionismo sólido, senão que de formas</p><p>meramente embrionárias de um pretenso sistema completo. O positivismo</p><p>parecia mais respeitado pelos seus astutos, cujas vidas ofereciam à sociedade o</p><p>espetáculo da seriedade de palavras e atos, bem mais do que da densidade do</p><p>pensamento. Tal predomínio do efêmero sobre o duradouro explica magna</p><p>parte a postura literária de Coelho Neto, que não tinha a socorrê-lo um</p><p>sistema de ideias bem estruturado ou o recurso surpreendente e oportuno de</p><p>intuições, que Nicolai Hartmann chama de intelecções.</p><p>A ausência de um compromisso com sistemas e correntes de pensamento</p><p>poderia induzir-nos a concluir que Coelho Neto cedeu aos rogos de um</p><p>ecletismo esterilizante. Isto em face dos acentos românticos mesclados por</p><p>tinturas realistas que não encobriam traços do barroco. Talvez mais adequado</p><p>se compreenderia o soi-disant ecletismo do prolífico escritor como uma</p><p>maneira de não optar filosoficamente por uma determinada corrente de</p><p>pensamento, quem sabe mesclando os afluentes de uma caudal indefinida?</p><p>O ecletismo em nossa cultura promana, de preferência, do vezo de</p><p>assentir e pugnar por teses na sua individualidade, sem atentar devidamente</p><p>para a sua adequação a um sistema de ideias metodologicamente estruturado</p><p>numa inequívoca travação lógica. Razão assiste a Sérgio Buarque de Holanda</p><p>quando sustenta que, entre nós, a maioria dos homens de grande talento</p><p>incorre em contradições de que não têm consciência. Não há que se estranhar</p><p>a sinuosidade da obra de Coelho Neto no relativo à falta de nitescência na</p><p>opção propriamente literária e à dispersão no campo das ideias.</p><p>É imperioso sublinhar que não advogamos uma subordinação da</p><p>literatura à filosofia ou à teologia. Apenas referimos a presença, muitas vezes</p><p>imperceptível, de um embasamento especulativo do cultor das letras poder</p><p>indiretamente interferir em sua criação. Isto porque nos pomos de acordo com</p><p>Kant, que, em sua Crítica do juízo, cuida de evitar os escolhos de uma</p><p>dependência indesejável da arte a uma finalidade que lhe restrinja o campo de</p><p>atuação. É o sentir também de Goethe, para quem a propósito da beleza “não</p><p>podem lábios humanos dizer nada mais sublime do que: existe”.</p><p>Coelho Neto poderia ratificar o pensamento de Marcel Proust: “a</p><p>verdadeira vida, a vida por fim esclarecida e descoberta, a única vida, portanto,</p><p>plenamente vivida, é a literatura.”</p><p>Em suma, tudo sinaliza para um escritor fiel à sua vocação como poucos</p><p>que, no entanto, mais se assemelha ao beija-flor que colhe em cada flor o que</p><p>lhe apetece e logo busca outras sem se fixar em nenhuma. Este perpassar em</p><p>ritmo de leitura dinâmica do real fugidio bem se ajusta como símbolo de um</p><p>escritor por alguns considerado o maior dentre os nossos artistas da palavra.</p><p>À época, os leitores como que exigiam profissionais da pena capazes de</p><p>rebuscar recantos semi-ignotos da nossa língua rica e fecunda, sem nem</p><p>mesmo perseguir temáticas mais densas e profundas. Pascal já nos advertia a</p><p>respeito do abismo entre o divertissement</p><p>2 e o resguardo necessário à criação</p><p>cultural. Até porque, no dizer de Saint-Exupéry, o silêncio é o espaço do</p><p>espírito.</p><p>Frequentar os escritos de Coelho Neto é volver a um passado, seja no</p><p>plano da criação literária, como na expressividade esplendorosa que dimanava</p><p>de sua pena privilegiada.</p><p>É conhecida a ligação de Coelho Neto com o mundo dos desportos,</p><p>tornando-se patrono dos jogos atléticos entre nós. Estimulou por todas as</p><p>formas diversas modalidades desportivas. Nos esportes aquáticos frequentava</p><p>o Guanabara e nos terrestres o seu querido Fluminense.</p><p>Coelho Neto adotou o Rio de Janeiro como a cidade de sua vida. Tanto</p><p>que a ele se deve a alcunha de Cidade Maravilhosa à nossa antiga capital</p><p>federal. Em 1908, nas páginas dojornal A Notícia, Coelho Neto criou o</p><p>sinônimo e avançou ainda mais em seu entusiasmo, publicando em 1928 sua</p><p>centésima obra com o título de Cidade Maravilhosa, o que serviu de inspiração</p><p>ao músico André Filho, em 1934, lançou para o carnaval a música que se</p><p>transformaria no hino da cidade do Rio de Janeiro. Não poderia deixar de</p><p>caber ao Príncipe dos Prosadores Brasileiros a feliz ideia que associou para</p><p>sempre o Rio de Janeiro à expressão como ele foi definido pelo escritor</p><p>maranhense-carioca.</p><p>A paixão da família de Coelho Neto pelo Fluminense é notória. Seu filho,</p><p>Paulo Coelho Neto, é um autorizado historiador do clube das Laranjeiras e de</p><p>seu pai, ao qual dedicou numerosos livros. Além de Paulo, Emanuel, João,</p><p>Violeta e outros mais se inseriam na galeria dos atletas do clube, então elitista.</p><p>Coelho Neto rompeu o preconceito de que ser torcedor é tarefa de</p><p>desocupados. O torcedor Coelho Neto surgiu, de forma ostensiva, em 2 de</p><p>setembro de 1912, quando de seu ingresso no quadro social do Fluminense,</p><p>proposto por um dos antecessores dos cronistas desportivos, Honório Netto</p><p>Machado. Quatro anos mais tarde, em 22 de outubro de 1916, houve um Fla x</p><p>Flu, empatado em 2 x 2, quando o juiz marcou um pênalti contra o</p><p>Fluminense. O jogador do Flamengo desperdiçou a penalidade, mas a seguir o</p><p>juiz marcou um segundo pênalti, defendido por Marcos Carneiro de</p><p>Mendonça, mas o referee mandou repetir o lance, alegando “falta de um</p><p>jogador do Flamengo”. Com isso não se conformou Coelho Neto que, em</p><p>companhia do delegado de polícia Corrêa Dutra, pulou a grade da</p><p>arquibancada social com bengala em riste. A atitude surpreendente gerou</p><p>apoio da torcida tricolor e o jogo foi anulado posteriormente. Em campo</p><p>neutro, no caso o do Botafogo, o Fluminense venceu por 3 x 1.</p><p>Coelho Neto, com muitos filhos jogando em diversos níveis o velho</p><p>esporte bretão, os acompanhava em todos os jogos. Assim, os domingos eram</p><p>inteiramente dedicados aos diversos esportes praticados por seus filhos. De tal</p><p>maneira que o prolífico escritor passou a emitir opiniões técnicas com grande</p><p>ênfase, até que seu filho Paulo certa feita não resistiu ao comentário ferino:</p><p>“Ora, papai! Você pensa quejogar football é tão fácil como escrever livros?”</p><p>Coelho Neto foi autor do primeiro</p><p>hino do Fluminense, quando da</p><p>inauguração da terceira sede do clube. É que o escritor consagrado visualizava</p><p>na prática desportiva uma forma eficaz de enfrentar os desafios da via. Em</p><p>crônica célebre, Coelho Neto contesta tese de um prócer francês e outro</p><p>espanhol em que ambos condenavam a participação da mulher nos esportes.</p><p>Recorrendo à sua reconhecida cultura clássica, Coelho Neto sustenta a</p><p>inconsistência dos desportistas estrangeiros.</p><p>Em 1928, Coelho Neto foi eleito Príncipe dos Prosadores Brasileiros</p><p>(concurso pela revista Malho).</p><p>Coelho Neto escreveu a peça Bonança, encenada na inauguração do</p><p>Theatro Municipal, em 1909.</p><p>Coelho Neto escreveu 131 volumes; mas se fosse possível reunir todas as</p><p>crônicas que publicou em cerca de 70jornais e revistas do país e do estrangeiro</p><p>- aproximadamente 8.000 - o total chegaria a 300 volumes. Sua improvisação,</p><p>mais ou menos 3.000, segundo seus próprios cálculos, dariam matéria para</p><p>outros 100 livros. Ele deixou cerca de 131 volumes, quando poderia ter</p><p>acumulado mais de quatrocentos!</p><p>A ninguém ocorreria esperar de um escritor de largo espectro como</p><p>Coelho Neto a excelência em todos os seus numerosíssimos escritos. Há que</p><p>pinçar algumas obras que mereceriam, como mereceram, os encômios que se</p><p>seguiram à sua edição. O próprio Agripino Griecco, não afeito a elogios,</p><p>menciona nove livros como notáveis, a saber: Sertão, Treva, A conquista, Jardim</p><p>das oliveiras, A bico de pena, Rei negro, Inverno em lor, Miragem, O morto. Alceu</p><p>indica Esinge como obra de peso e Hermann Lima o mesmo reconhece em</p><p>Tormenta e Água de Juventa.</p><p>Aos vinte e nove anos, Coelho Neto publica o seu primeiro romance, A</p><p>capital federal, para Brito Broca uma crônica romanceada. O personagem</p><p>principal, o jovem Anselmo, vive as agruras da mudança brusca de hinterland</p><p>para a urbs</p><p>3. Na obra se percebe a riqueza de minúcias, o pitoresco inserido no</p><p>mosaico de descrições, transformando a narrativa num documentário rico da</p><p>vida carioca.</p><p>Manoel Moreyra sustenta sem rebuços que as seguintes três obras</p><p>figuram entre as obras-primas de Coelho Neto: Inverno em lor, Miragem e Rei</p><p>negro. Inverno em lor desenrola pungente drama de uma velhice pecaminosa</p><p>servida por um elã especial. A loucura e a erótica dominam o romance, que</p><p>talvez antecipe os albores do freudismo, ideia compartilhada por Péricles</p><p>Morais. Miragem, que revela um certo parentesco com José de Alencar no</p><p>sentir de Bosi, retrata a miséria. Dada a semelhança com Alencar, o uso dos</p><p>adjetivos e advérbios reafirma o recurso às descrições que irão perdurar até o</p><p>“advento da revolução modernista”.</p><p>Luís Murat não se conforma. Dirigindo-se a Coelho Neto, aconselha-o:</p><p>“você tem talento, mas abusa do adjetivo, e tem mania do Oriente. Você é</p><p>exuberante e excessivo”, para finalizar: “o ideal do artista é a simplicidade.”</p><p>O conselho caiu no vazio.</p><p>A conquista cinzela o perfil do ser humano, sinalizando par ao fim da</p><p>escravidão. Em Jardim das oliveiras, conto dialogado, modalidade nem sempre</p><p>presente nos fastos literários, desenha vultos a viver seus momentos</p><p>pungentes. Turbilhão é um romance realista, demarcando o sofrimento de uma</p><p>pessoa pobre, cuja filha havia desaparecido. Um drama conjugal é o tema de A</p><p>tormenta. O conto de Coelho Neto mereceu premiação em Banzo, Terra, Sertão,</p><p>Água de Juventa.</p><p>A poesia não figura como marca frisante de Coelho Neto. Faltava-lhe a</p><p>dimensão metafísica da poesia, bem distante de Holderlin e da justa asserção</p><p>de Régis Jolivet4, para quem “a poesia é o mistério do homem que dá uma voz</p><p>e um sentido ao universo”.</p><p>Coelho Neto foi, essencialmente, o mestre da palavra. Palavra - não se</p><p>trata de sonus, mas de vox, pois, segundo Aristóteles, nenhum ente sem alma</p><p>tem voz. E Forster5 nos adverte que a “alma da cultura é a cultura da alma”.</p><p>A palavra como verbum expressa a riqueza maior do espírito. Verbum</p><p>inclui verbum mentis ou verbum cordis</p><p>6. Consubstancia a variedade e a</p><p>fecundidade da palavra que flui das profundas camadas da alma. Mas também</p><p>exprime o cotidiano que desdobra o dinamismo dos seres. De qualquer forma,</p><p>locutio estproprium opus rationis</p><p>7</p><p>, no dizer de Aquinate8.</p><p>Convém recordar que a palavra que emerge da reflexão profunda está</p><p>conectada com o silêncio que a precede, pois, o silêncio é condição de</p><p>possibilidade da vigência da palavra que renasce quando a circunstancidade o</p><p>permitir.</p><p>Como mestre inconteste da palavra, Coelho Neto pôde exibir o seu</p><p>vocabulário além de vinte mil palavras. Martins Fontes escreveu: “num</p><p>sarau em casa de Neto conversávamos com Euclides da Cunha sobre verbos</p><p>luminosos e ardentes da nossa língua. E Coelho Neto, com o conhecimento</p><p>inexaurível do nosso vocabulário, começou a amontoar pilhas de verbos.</p><p>Tomei de um bloco de papel e acumulei no momento duzentas e dezoito</p><p>moedas.” Segue-se o elenco dos verbos anotados naquela noite: “abrilhantar,</p><p>aureolar, acender, aclarar, arcoirisar, adurir, assoleimar, afogar, afuzilar,</p><p>acalorar, alumbrar, abrasar, aloirar, alumiar, aluziar, alvorear, aluzir, alvorar,</p><p>alvorescer, aurorar, aurorescer, arorear, amanhecer, ambrear, arde, arses,</p><p>assolear, aurifulgir, acobrear, arraiar, alvorejar, alumiar, abrasear, abrasificar,</p><p>aquecer, argentear, argentar, argentizar, arrosear, albirrosear, brasilhar,</p><p>brilhar, brilhantar, bruxulear, aurigemantizar, auriflamar, auriflamantizar,</p><p>aurisplender, auritremular, clarear, chamear, comburir, combustar, alraboiar,</p><p>causticar, cambiar, canjar, chamejar, cobaltizar, cobrear, candentear, coruscar,</p><p>coriscar, diamantizar, diamantar, dardejar, doirar ou dourar, dourejar,</p><p>esfoguear, esfuzilar, ensolarar, enlunar, escandear, esbrasear, escandecer,</p><p>estrelar, estrelejar, estrelecer, esmechar, esmeraldear, esplendecer,</p><p>esplandecer, esplander, esplender, esfuziar, entreluzir, enfervorizar,</p><p>enrubescer, enloirecer, escamechar, encadear, encandecer, fagulhar, faiscar,</p><p>flamear, fopar, fulvecer, favilar, ferver, flamejar, foguear, fulgir, fulminar,</p><p>fuzilar, faulhar, fulgentear, fulgurear, fulgurescer, fulvejar, estreluzir, ignizar,</p><p>iluminar, incandescer, encender, incendiar, insolarar, inflamar, iriar, irisar,</p><p>irradiar, labaredar, labaredear, loirejar, luarizar, loirar, lucilar, luciolar,</p><p>luciluzir, luaçar, lustrar, luzir, lampejar, lampedejar, lucecilar, multicolorir,</p><p>nimbar, ourar, oirejar, opalescer, opalescer, opalizar, prefulgurar, prefulgir,</p><p>fosforear, fosforescer, fosfoerjar, pirilampejar, platinar, plumbear, preluzir,</p><p>purpurejar, purpurar, queimar, roxear, refaiscar, relustrar, rosiflorir,</p><p>radiescer, rudiclarear, ruborear, ruborizar, reluzir, relampejar, relampadejar,</p><p>relampaguear, relampear, raiar, radiar, rutilar, reacender, rosialbar, rosear,</p><p>rosicolorar, rosicolorir, rosifulgir, rebrilhar, refulgir, resplandecer,</p><p>resplendecer, resplander, reverberar, revermelhar, rubejar, rubescer,</p><p>relumbar, rescintilar, rescentelhar, refagulhar, centelhar, sobredoirar, cintilar,</p><p>siderar, translucidar, transluzir, transparecer, tremeluzir, transverberar,</p><p>translumbrar, vislumbrar, vermelhar, vermelhejar, versicolorir.” E</p><p>acrescentou o mesmo escritor: “E não estão todos. Faltam muitos ainda,</p><p>espelhantes das cores e das gradações cromáticas.”</p><p>Coelho Neto escreveu: “pouco a pouco fui desbastando do meu estilo os</p><p>guizos de muitos adjetivos para substituí-los por um só, exato.” Comentando a</p><p>afirmação, observa Otávio de Faria: “O termo exato... Eis, sem a menor</p><p>dúvida, o eixo básico da evolução de Coelho Neto como escritor. Consciente</p><p>da insuficiência da palavra escrita, tentou animá-la, colori-la, vivificá-la, dar-</p><p>lhe a inflexão sem a qual jamais poderia exprimir adequada, exata,</p><p>perfeitamente, o que ia à sua mente prodigiosamente rica e variada. Para tudo</p><p>e em todas as ocasiões, buscou a palavra exata e diante dela não recuou,</p><p>usando termos raros, absolutamente inusitados, terrivelmente difíceis. Que</p><p>importava? Não estava sendo fiel, integralmente fiel ao princípio de um de</p><p>seus grandes mestres, Maupassant que ensinava: “Seja o que for que se</p><p>pretenda exprimir, não há senão uma palavra par ao dizer,</p><p>um verbo para o</p><p>animar, e um adjetivo para o qualificar.”</p><p>O homem suplanta os sinais para pervadir o espaço dos signos. Ele é</p><p>autenticamente um animal symbolicum. Consoante o assente Ernst Cassirer9:</p><p>“Sem o simbolismo a vida do homem assemelhar-se-ia à dos prisioneiros da</p><p>caverna na famosa imagem de Platão. A vida do homem confirmar-se-ia aos</p><p>limites das suas necessidades biológicas e dos seus interesses práticos; não</p><p>poderia encontrar qualquer acesso ao ‘mundo ideal’ que lhe é aberto de</p><p>diferentes lados pela religião, a arte, a filosofia, a ciência.”</p><p>Ao vir ao mundo, o homem como que pede a palavra, a fim de dizer ao</p><p>que veio, ao explicitar os seus pensamentos, desejos, volições. A expansão da</p><p>personalidade se prende à ampliação do espaço concedido à palavra.</p><p>O homem persegue o sentido. O desespero lhe vem da aparente</p><p>inutilidade da busca. Até mesmo Nietzsche asseverou que “eu não desespero de</p><p>encontrar um dia um caminho que conduz a algum lugar”. É o pressentimento</p><p>do Encontro que se dará quando o ouvido humano ficar atento à Palavra. Pois</p><p>é da palavra que se trata sempre que perseguimos a finalidade última de nosso</p><p>destino.</p><p>No limiar da palavra, o ser humano se percebe acima de quanto o</p><p>circunda. Conscientiza a sua condição de rei da criação, de timoneiro da nave</p><p>que cifra o seu caminhar, no meio das borrascas que emergirem em seu</p><p>itinerário. E só pela palavra ele se afirmará, a partir do nome que portar e da</p><p>mensagem que ousar transmitir ou receber, nesse lusco-fusco que encobre</p><p>aqui e ali a luminosidade prestes a se manifestar.</p><p>Nascido da Palavra, o homem, pela palavra, reencontra a Palavra que</p><p>selará o seu caminho como luz e amor.</p><p>Coelho Neto fez da palavra a sua religião literária, dela e para ela viveu e</p><p>se transformou no monumento de nossa cultura pela fidelidade e tenacidade</p><p>com que, partindo das palavras em demasia, buscou na maturidade reduzir os</p><p>vocábulos em busca da palavra exata. Por este motivo conquistou o seu lugar</p><p>em nossas letras. A disparidade de juízos de valor sobre o mestre maranhense</p><p>talvez se prenda à diversidade dos momentos e fases de sua longa vida,</p><p>estuante de amor pela língua, pela pátria e especialmente pela expressividade</p><p>artística in genere em que pôs todas as suas complacências.</p><p>Coelho Neto mergulhou na riqueza ignota de nosso idioma privilegiado e</p><p>nele fincou as raízes de seu opus. Daí a pletora de vocábulos que deixaram a</p><p>zona sombria em que os esquecemos e trouxe a luz solar que se espraiou aos</p><p>seus leitores.</p><p>Otávio de Faria, seu ardoroso defensor, tem Coelho Neto como um autor</p><p>difícil, e assente: “Coelho Neto não é um autor fácil. E não o é, sobretudo, para</p><p>a nossa comum e moderna ignorância da língua portuguesa. Dono de um</p><p>prodigioso vocabulário - calculado em mais de vinte mil palavras - sabendo</p><p>manejá-lo e manejando-o com plena convicção do acerto com que o fazia, não</p><p>podia deixar de se tornar difícil de entender, às vezes mesmo misterioso para a</p><p>ignorância de muitos. Um empolgado? Um gongórico? Um cego apologista do</p><p>culto do estilo pelo estilo? Um escravo da forma? Todas essas acusações foram</p><p>formuladas, exploradas. Fizeram delas mesmo o cavalo de batalha de mil</p><p>condenações, às vezes levianas, às vezes ridículas. E foi preciso que o tempo e</p><p>o bom senso dos críticos as dissipassem estrepitosamente para que a verdade</p><p>enfim se restabelecesse a respeito do estilo de Coelho Neto.”</p><p>Pode-se falar numa espécie de ascese literária, uma limpeza de texto tese</p><p>chocante se levarmos em conta a presença maciça de palavras fora de uso</p><p>comum, mas patrimônio inesquecível de um idioma com toda uma coorte de</p><p>cultores que espargem pelos quatro cantos do mundo a bela língua que</p><p>herdamos e em torno das quais respiramos valores, costumes, com a qual</p><p>fortalecemos as nossas instituições. Um escritor que pôs em marcha em</p><p>numerosíssimos escritos o reconhecimento explícito e cotidiano da</p><p>fecundidade da língua portuguesa, só por isto merece o respeito e a admiração</p><p>dos brasileiros. Ele realizou tal obra ancorando em todos os gêneros literários</p><p>e abrindo as portas de sua oratória belíssima para mais diretamente dizer ao</p><p>que veio.</p><p>Coelho Neto sempre vincou sua presença como homo politicus, no sentido</p><p>helênico da expressão. Preocupava-se com o País e explicitava o sentimento</p><p>pátrio em discursos fulgurantes cinzelados com um ardor poucas vezes</p><p>encontradiço. Mormente porque não o conduzia a ambição política. É bem de</p><p>ver que havia um certo provincianismo em suas falas. Hoje, quando o</p><p>sentimento de amor a terra há de forçosamente conjugar-se com a consciência</p><p>da aldeia global, impossível seria qualquer opção radical; ainda por aí se pode</p><p>lobrigar o distanciamento em que nos encontramos do ilustre e saudoso</p><p>acadêmico, dada a extraordinária mudança no ritmo da história com a quase</p><p>supressão do espaço e do tempo nas relações humanas.</p><p>De um escritor que produziu grande número de obras, publicou milhares</p><p>de artigos, proferiu conferências e discursos também aos milhares não se</p><p>poderia idoneamente exigir qualidade permanentemente superior. O</p><p>descompasso fluiu até da necessidade premente de sobreviver da pena, o que</p><p>situa Coelho Neto como um modelo de profissional da pena.</p><p>Impende analisar a obra de Coelho Neto à luz de sua época, de sua</p><p>condição inelutável de ser situado. Por vezes, cuidamos que tal cautela não</p><p>comparece ao palco iluminado da crítica. Assim, que sentido teria chegarmos</p><p>às culminâncias, por exemplo, do evangelho literário de Ítalo Calvino para</p><p>com seus passos acelerados em direção do novo milênio e procedermos ao</p><p>pente fino de seu ideário estético e ético no julgamento dos literatos? Coelho</p><p>Neto não teria ultrapassado a barreira da primeira configuração ditada pelo</p><p>talentoso crítico quando se estende sobre a leveza. Até porque para Calvino, “a</p><p>literatura (e talvez somente a literatura) pode criar os anticorpos que coíbam a</p><p>expansão da peste da linguagem”.</p><p>Deixando de lado o horizonte fantástico de Calvino e volvendo à planície</p><p>de nossa literatura brasileira de fins do século XIX e no primeiro terço do</p><p>século XX, cumpre-nos reconhecer a figura esfuziante de Coelho Neto. Pleno</p><p>de domínio de nossa língua, elevando-a a patamares insuspeitados para lhe</p><p>reconhecer os méritos e resguardar-lhe a memória, foi escritor primoroso e</p><p>fiel ao seu ofício como poucos o souberam ser.</p><p>A morte, companheira inseparável de todos os seres vivos, segregou em</p><p>capítulos a sua vinda misteriosa e fatal. Saúde precária, em face do labor febril</p><p>e da necessidade de prover a numerosa família, Coelho Neto viu-se forçado,</p><p>certa feita, até a vender tudo o que possuía de algum valor para enfrentar</p><p>período de enfermidade pertinaz. Chegou a abandonar a sua Cidade</p><p>Maravilhosa demandando à cidade de Campinas em que nasceu Carlos Gomes</p><p>até que dois golpes profundos lhe vincaram a alma, a perda de seu filho Mano</p><p>(Emanuel) e de sua esposa Gabi (Gabriela). A fragilidade natural se viu</p><p>agravada por maneira a indicar o seu fim próximo, ocorrido em 28 de</p><p>novembro de 1934.</p><p>Sorveu a vida com ardor e devoção. Não se ateve a doestos e críticas</p><p>acerbas. Iluminou-lhe o caminho a palavra forte pela qual pautou os seus atos:</p><p>perge</p><p>10, isto é, segue adiante, não te voltes para trás.</p><p>A ansiada participação cultural, política, desportiva desabrochou em</p><p>Coelho Neto o grande orator. Amante da cultura grega, por vezes ele nos</p><p>relembra a eloquência ática. No concernente ao apuro da forma, é uma espécie</p><p>de Isócrates11 redivivo, para quem o conteúdo é menos relevante do que a</p><p>beleza estética do discurso. É oportuno recordar que a retórica demorou a se</p><p>impor entre os gregos. Aristóteles assinala que isto se deveu à abolição da</p><p>tirania.</p><p>Os eventos cívicos se prestaram especialmente para que Coelho Neto</p><p>externasse os seus invulgares dotes oratórios. Ao lado deJoaquim Nabuco, de</p><p>Teixeira Mendes, de Tobias Barreto, de Rui Barbosa, Coelho Neto figura</p><p>entre os grandes de nossa eloquência. Seu desmedido arco vocabular, seu</p><p>empenho de ordenar ritmicamente as frases, ensejando uma musicalidade que</p><p>a sua dicção favorecia,</p><p>garantiram ao polígrafo sua inclusão dentre os mais</p><p>prodigiosos oradores de nossa história. Escritor, ser participativo, artista da</p><p>palavra, orador, eis em síntese o perfil de quem para muitos foi o nosso maior</p><p>escritor. Membro e depois presidente desta Academia, Coelho Neto foi</p><p>plenamente fiel à sua pena rica e fecunda e alargou os horizontes de nossa</p><p>língua, revelando-lhe a beleza e a plasticidade e assim alçou seu voo seguro</p><p>para a imortalidade.</p><p>NOTAS DOS CURADORES</p><p>1 Curiositas e studiositas - Do latim, Curiosidade e Espírito de estudo.</p><p>2 Divertissement - Do francês, Divertimento.</p><p>3 Hinterland para a urbs - Do Interior para a cidade.</p><p>4 Régis Jolivet - Sacerdote e filósofo católico, da corrente neotomista, decano da Faculdade de Filosofia</p><p>da Universidade Católica de Lyon.</p><p>5 Edward Morgan Forster, mais conhecido por E. M. Forster - Romancista britânico.</p><p>6 Verbum mentis ou verbum cordis - Do latim, Palavras da inteligência ou palavras do coração.</p><p>7 Locutio estproprium opus rationis - Do latim, A palavra épropriamente obra da razão.</p><p>8 Aquinate, Tomás de Aquino, em italiano Tommaso d’Aquino - Frade católico italiano da Ordem dos</p><p>Pregadores cujas obras tiveram enorme influência na teologia e na filosofia, principalmente na</p><p>tradição conhecida como Escolástica, e que, por isso, é conhecido como “Doctor Angelicus”.</p><p>9 Ernst Cassirer - Filósofo alemão de origem judaica que pertenceu à Escola de Marburg, liderada por</p><p>Hermann Cohen, sendo seu mais destacado representante. Professor de Filosofia em Hamburgo, foi</p><p>reitor desta Universidade de 1930 até a subida de Adolf Hitler ao poder.</p><p>10 Perge - Do latim, Prosseguir.</p><p>11 Isócrates - Orador e retórico ateniense, chamado de o Pai da Oratória, porque foi o primeiro a</p><p>escrever discursos que serviam de modelo a seus discípulos.</p><p>A</p><p>A universalidade de</p><p>João Guimarães Rosa</p><p>menção ao nome de Guimarães Rosa nos transporta para os píncaros de</p><p>nossas letras. A literatura desempenhou em sua vida o papel de Hera, a</p><p>única deusa do olimpo efetivamente casada. Criador de um estilo próprio</p><p>haurido do linguajar do sertão, o escritor nele descobriu a riqueza de um</p><p>vocabulário em que as palavras e as expressões ganharam um elastério inédito.</p><p>À primeira vista, a obra ficcionista de Rosa nos remeteria ao regionalismo. O</p><p>linguajar francamente dominado por estruturas arrancadas ao ostracismo dos</p><p>baús linguísticos, com manifesta presença de arcaísmo, compôs um quadro</p><p>referencial que ensejou o aparente paradoxo de uma obra de cunho regional</p><p>aberta à universalidade. Josué Montello andou bem avisado quando distinguiu</p><p>o provinciano do provincial. Para o provinciano, “só existirá a província” para</p><p>o provincial “a província conterá também o universo, na complexidade da</p><p>condição humana”.</p><p>Numa abordagem perfunctória, não se detecta na obra rosiana a visão</p><p>abrangente que lhe apontamos. Um exame mais atento evidencia a temática</p><p>do homem como tal encoberto e na caligem momentânea e intrínseca do viver</p><p>localizado. É certo que a narrativa transforma sempre no sertão, mas este é o</p><p>palco da condição humana e não o elo intrínseco do viés cotidiano, o</p><p>horizonte ilimitado pela singela aparência dos seres e percorrem os espaços</p><p>geográficos privilegiados nos textos do escritor mineiro.</p><p>Outro dado que considero relevante na prosa rosiana é o que chamaria a</p><p>categoria do surpreendente. Sucedem-se as curvas fechadas no itinerário</p><p>estilístico do autor de Sagarana que geram um tênue desconforto pela forma</p><p>abrupta com que irrompem no espírito do leitor. Logo, ele irá acomodar-se</p><p>com a finura do artifício que, no fundo irradia a complexidade do real fugidio</p><p>pelo qual transitamos nesta arena de contradições em que se tece o destino</p><p>humano. Eis um exemplo do surpreendente: “... e ele estava com raiva tanta,</p><p>que tudo quanto falava ficava sendo verdade.” E mais: “o espaço é tão calado,</p><p>que ali passa o sussurro de meia-noite às nove horas.” Adiante, lê-se: “Mas,</p><p>então, fui que eu fiquei sabendo que tem também anjo da guarda de onça!”</p><p>Outro trecho: “Um cachorro soletrava, longe, um mesmo nome sem sentido. E</p><p>ia, no alto do mato, a lentidão da lua.” “Pesos de dias tão compridos -</p><p>dezembro foi, parou no meio.” Há expressões curiosas como: “aquilo foi um</p><p>buracão de tempo”, “aquele dia era uma véspera”; “... não sabia que a vida era</p><p>do tamanhinho só menos do que um minuto...”; “só achamos o nada dele”; “o</p><p>amor só mente para dizer maior verdade”; “Riobaldo, hoje-em-dia eu nem sei</p><p>o que sei e o que soubesse, deixei de saber o que sabia...”</p><p>Provérbios respeitáveis pela sua durabilidade, pela resistência à corrosão</p><p>do tempo, esfarinham-se na pena do mineiro ilustre, abrindo-nos de par em</p><p>par uma nova perspectiva na trilha do paradoxo, que nos lembra os escritos de</p><p>Chesterton1. E o curioso é que temas havidos transcendentes espocam a cada</p><p>passo e deitam suas raízes nos contos e romances de Rosa sem que o escritor</p><p>os revista das galas inerentes à sua jerarquia. Deus, o homem, o diabo percorre</p><p>as páginas plenas de originalidade de nosso autor, sem sentirmos o coração</p><p>bater mais rápido, até porque a referência é passageira, às vezes diáfana,</p><p>sempre surpreendente. Esta categoria irá acompanhar os passos do grande</p><p>romancista que hoje podemos incluir, sem hesitação, na galeria dos clássicos</p><p>de nossas letras. Não me causou qualquer surpresa, quando em 1965 li com</p><p>orgulho que Guimarães Rosa figurou entre os cinco escritores estrangeiros</p><p>mais celebrados na Alemanha.</p><p>Já em seu discurso de posse com chispas de remoque, pôs em realce a</p><p>transitoriedade da vida e da glória. Em seu momento pleno de sentido como</p><p>coroamento de uma vida de escritor, o genial mineiro nos brinda com a</p><p>sentença: “a gente morre é para provar que viveu.” A morte não é alçada à</p><p>condição de dona da festa da historicidade de cada ser humano. A prioridade é</p><p>a vida, é o sorver até o último alento o ar em que Anaxímenes identificou o</p><p>estofo do ser. Rosa poderia subscrever a conhecida sentença de Montaigne:</p><p>“meu ofício, minha arte, é viver.” Conquanto viver seja muito perigoso, Rosa</p><p>nos convida ao banquete da vida que, se já traz em seu bojo o decreto da</p><p>morte, - “a morte de cada um já está em edital” - nem por isso deixa de</p><p>assinalar que “a morte é para os que morrem”. E com um quê de malícia, “só</p><p>que, às vezes, por mais auxiliar, Deus espalha no meio um pingado de</p><p>pimenta...”. E em outra passagem: “... o diabo, é às brutas; mas Deus é</p><p>traiçoeiro! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei de mansinho -</p><p>assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza.”</p><p>A atividade humana desenhada pelo viver consubstancia patente risco</p><p>para Rosa. Apreendeu o singular escritor a lição de Kierkegaard2 de que “a</p><p>vida é uma aventura que todo homem deve arrostar senão quiser perder-se”.</p><p>Mas a vida não se adstringe a um viver racionalmente, ao explicitar no</p><p>cotidiano uma espécie de equação limitadora. É de libertação que se trata</p><p>corroborando a forte palavra de Nietsche: “o segredo para colher a maior</p><p>fecundidade, a maior fruição da existência, consiste em viver perigosamente.”</p><p>Guimarães Rosa estava a meio caminho da teoria do risco existencial de Peter</p><p>Wust3. Para o filósofo de Münster, a busca da segurança na humana condição</p><p>encontra no limite a insegurança essencial. Inspirado em Santo Agostinho, o</p><p>autor de Incerteza e risco vai ao extremo de sustentar que somente nos é dado</p><p>sorver a temporalidade afrontando todos os riscos e bosquejando os contornos</p><p>da securitas insecuritatis</p><p>4.</p><p>O escritorjoga com as palavras, enriquece-as com expressões exógenas.</p><p>Onomatopeias, aliterações pululam a evidenciar um apuro da técnica estilística</p><p>raras vezes encontradiço na língua de Eça de Queiroz. Sua obra ratifica a</p><p>assertiva de Ludwig Wittgenstein5: “os limites de minha linguagem são os</p><p>limites de meu próprio mundo.”</p><p>Poucas vezes nos defrontamos com um escritor que recobrisse a</p><p>relevância dos temas com recurso constante no linguajar regional. Muitos</p><p>outros há que percorreram esta difícil empreitada e tiveram êxito. O chamado</p><p>romance regional</p><p>vicejou entre nós em um arco extremamente rico e variado.</p><p>Em Guimarães Rosa, a articulação do romance regional com a universalidade</p><p>toca as franjas da perfeição e nos convida a meditar sobre os desafios da</p><p>existência, a partir da espontaneidade do caboclo, que expressa o mistério e o</p><p>desafio da suposta singeleza do cotidiano.</p><p>Decididamente Rosa leu Plotino. Não apenas porque o cita como</p><p>epígrafe. É que dele promana a aragem de uma teologia negativa que foi</p><p>gestada nas oficinas do grande filosofo neoplatônico. Como não perceber que</p><p>o Deus retratado por Rosa carece de traços definidos? Como não captar a</p><p>mensagem de que Deus não é cognoscível com as armas de que dispomos? A</p><p>racionalidade não é rejeitada, mas circunscrita às suas fronteiras naturais, sem</p><p>a amplitude desmedida dos racionalistas. Há uma imbricação metafisica entre a</p><p>criatura e o Criador e é somente nesta mescla de cunho apenas aparentemente</p><p>panteístico que se apresenta o Deus de Rosa, no meio dos paradoxos que ele</p><p>manejou com mestria. Julgo que o panteísmo se assimila a uma forma elegante</p><p>de nos descartarmos de Deus. Afinal, não é mais adequado dizer de Deus o que</p><p>ele não é do que aquilo que Ele efetivamente é? Assim terá pensado Rosa e</p><p>sentimos que o mistério do Ser recebe tratamento consentâneo com a sua</p><p>transcendência, conquanto as expressões usadas não nos ofereçam de pronto</p><p>tal impressão. É preciso saber ler e entreler os escritos do romancista, penetrar</p><p>no âmago da aparente simplicidade com que aqui e ali nos desvela o Ser no</p><p>qual, em que pesem a aparências em contrário, revelou a sua interioridade</p><p>objetiva, para me servir de uma expressão cara a Michele Federico Sciacca6.</p><p>Parece que Rosa deu as mãos ao teólogo protestante Karl Barth, para o qual</p><p>“só Deus fala de Deus”. Não se trata da presença ignorada de Deus, sobre a qual</p><p>versou com proficiência Viktor Frankl7, mas da confissão lapidar de nosso</p><p>acanhado horizonte na abordagem temática da transcendência. Por detrás de</p><p>uma linguagem rica e criativa, permeia nas obras de Rosa a nítida consciência</p><p>de que, como frisou Schopenhauer8, “o homem é um animal metafísico”.</p><p>A obra portentosa de Guimarães Rosa dificilmente encontrará quem lhe</p><p>possa captar o universo de beleza artística e de profundidade humana. Talvez</p><p>sua vida tenha sido demasiadamente curta - sem falar na fulminante passagem</p><p>por esta casa - permitindo-nos prever novos desdobramentos de sua</p><p>criatividade hors concours. O tempo que mediou entre sua eleição e a posse</p><p>nesta Casa se explicou pelo seu pressentimento de que o começo e o fim da</p><p>vida nesta academia deveriam quase superpor-se.</p><p>Quase ouso afiançar que o viver sempre presente em seus escritos,</p><p>acenou-nos com a ânsia de um viver alegre e espontâneo. Quem sabe Rosa,</p><p>anos mais tarde, não se encontraria com Paul Claudel9 ao privilegiar a</p><p>categoria da alegria? Já Charles Du Bos10 que nos legou radioso exemplo de</p><p>devoção à cultura e à fé, com clarividência assentiu ser a alegria “a primeira e</p><p>última palavra de Claudel”. Ao meu ver, o solidário romancista mineiro que</p><p>viveu inteiramente voltado para a meditação e elaboração de suas obras,</p><p>vinculando-se à vida e buscando sorver-lhe os instantes fugidios, aplanou as</p><p>arestas para o advento de um período feito de aurora, de luz, de alegria. Em</p><p>abono desta assertiva falam alto as cartas trocadas com Edoardo Bizzarri11, o</p><p>tradutor de seus livros para o italiano. Henri Bergson12 apontou o critério</p><p>basilar da autorrealização, ao sentenciar: a natureza “nos avisa por um sinal</p><p>preciso que nosso destino foi alcançado. Esse sinal é a alegria”. Mas a alegria é</p><p>irmã gêmea da beleza, como sublinhou Keats13: “uma realidade plena de beleza</p><p>é uma alegria para sempre.”</p><p>João Guimarães Rosa, tangenciando a genialidade, modelou uma nova</p><p>linguagem, plasmou formas ricas e inéditas de expressar o humano pulsar, e</p><p>transitou pela vida contando histórias que falam bem alto do valor universal</p><p>de sua obra.</p><p>Minha trajetória de vida e o percurso editorial das obras de Rosa se</p><p>tangenciaram na Alemanha na década de 1960. Indulgencie-me o caro leitor</p><p>por esse relato pessoal.</p><p>Viajei para a terra de Goethe precisamente no último dia do ano de 1964,</p><p>pois recebi uma bolsa do Goethe-Institut Brasilien. Fui de navio, o que muito</p><p>era comum nesta época, em uma excursão organizada pelo padre jesuíta Leme</p><p>Lopes. Desejava apropriar-me da língua alemã, porque queria ler, no original,</p><p>as obras de Kant, Leibniz, Nietsche, Hegel e outros. Mas era uma decisão</p><p>crucial e transformadora. A embarcação da minha vida poderia virar, mas,</p><p>como admirador de Guimarães Rosa, comungo com a já mencionada ideia de</p><p>que “viver é perigoso”. E assim entrei no navio sem olhar para trás. Ia ao</p><p>encontro de mim mesmo, um eu mais inteiro e mais profundo que clamava</p><p>em eclodir. Segui essa correnteza, esse fluxo, às vezes, “redemunho”, como</p><p>diria Rosa.</p><p>Hospedei-me em casa de meu irmão Paulo Padilha, que trabalhava na</p><p>embaixada brasileira em Bonn. Paulo referia-se frequentemente a seu amigo</p><p>Curt Meyer-Clason14, que foi o tradutor de Grande Sertão: Veredas para o</p><p>alemão. A julgar pelo sucesso que a obra alcançou na Alemanha, quando</p><p>ocupou o lugar de um dos livros mais lidos ao ser publicado em 1964, Meyer-</p><p>Clason fez um trabalho impecável.</p><p>Disso sou testemunha porque recordo-me da pneumonia que tive na</p><p>Alemanha nessa época e, por força desta, vi-me restrito à atividade de ler</p><p>jornais em casa. Foi quando li sobre a vendagem do livro naquela terra.</p><p>Guimarães Rosa diria Deus é alegria e coragem, para indicar que, apesar da</p><p>doença, regozijei-me com a notícia.</p><p>Décadas mais tarde, ao ler, para grata surpresa minha, o livro João</p><p>Guimarães Rosa - Correspondência com seu tradutor Alemão CURTMEYER-</p><p>CLASON1958-1967, fui arrebatado por esta passagem, datada de abril de 1965,</p><p>que alude ao momento vivido por mim:</p><p>(...) fiquei mais que surpreso quando Paulo Padilha telefonou várias</p><p>vezes pedindo detalhes e dizendo que o embaixador queria me indicar</p><p>para o Cruzeiro. Bem, au fond</p><p>15</p><p>sei a quem devo agradecer isto. Eu lhe</p><p>mandei um grande abraço saudoso e cheio de gratidão. Sinto-me</p><p>comovido. De certo modo, esta condecoração selaria o meu casamento</p><p>espiritual com o Brasil.</p><p>Muito me honrou saber que minha família estava fazendo parte da</p><p>história do magno escritor brasileiro, principalmente pelo fato de ser seu</p><p>sucessor na cadeira de número 2.</p><p>Para mim, já nesta época, Guimarães Rosa merecia ser considerado uma</p><p>espécie de Machado de Assis da era moderna, da contemporaneidade, por</p><p>absorver os hábitos e os falares de pessoas simples. Sua obra inaugura um</p><p>pensamento filosófico que emerge do povo, que, assim, encontrou nele um</p><p>intercessor para um diálogo íntimo. Nesse ponto, é preciso um IvanJunqueira</p><p>para não nos deixar olvidar que “não é todo dia, a propósito, que se consegue</p><p>urdir o regionalismo transcendente e universalista de um Guimarães Rosa”.</p><p>O prodigioso romance Grande Sertão: Veredas merece, agora, toda a nossa</p><p>atenção.</p><p>Nele, Rosa nos expõe toda a fragilidade do humano, do trágico, do</p><p>visceral. A força dessa obra levou Adélia Prado a dizer “Porque tudo que</p><p>invento já foi dito nos dois livros que eu li: as escrituras de Deus, as escrituras</p><p>de João. Tudo é bíblias. Tudo é Grande Sertão”.</p><p>Nem de propósito, há de fato questões bíblicas expostas na narrativa: “O</p><p>que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no</p><p>meio da alegria, e inda mais alegre no meio da tristeza! Só assim de repente, na</p><p>horinha em que se quer, de propósito por coragem.”</p><p>Lembro-me de quando li pela primeira vez o dito romance. Muito se</p><p>falava nele e dele na época, pois foi um acontecimento literário, já que Rosa</p><p>era um embaixador de renome e grande também nas letras. Fiquei impactado,</p><p>sobressaltado e recorria aos grandes filósofos para estabelecer interlocução</p><p>com eles. Em Kierkegaard vislumbrei a sinergia com Rosa. Não deveria ser de</p><p>se espantar, uma vez que o escritor brasileiro deixou registrado seu vivo</p><p>interesse pelo colega dinamarquês. Dois temas foram caros a ambos: o</p><p>indivíduo</p><p>e a fé. Riobaldo, o jagunço filosófico, em sua constituição como</p><p>indivíduo, passa pelos três estágios kierkegaardianos - estético, ético e</p><p>religioso. E, enquanto Riobaldo passa por esse périplo, Reinaldo - tal qual</p><p>Penélope - permanece no aguardo. No outro lado da margem. Uma inversão...</p><p>E não seria Diadorim quem faz as vezes de sedutor? Sim, é a “sereia” de</p><p>Ulisses, a seduzida.</p><p>Guimarães teve de se desviar de si mesmo para criar Grande Sertão:</p><p>Veredas. Despiu-se de embaixador e vestiu-se de jagunço para percorrer as</p><p>terras que serviriam de cenário e para conversar com as pessoas que lhe</p><p>inspirariam personagens e falas. Nas palavras iniciais desta obra, elejá nos</p><p>adverte disso. NONADA... não é nada.</p><p>Esta palavra-frase inicial do livrojá prenuncia o desconforto que virá,</p><p>trazido pela liberdade criativa do genial escritor... Nonada... E deságua na</p><p>abertura máxima da interpretação subjetiva, no inseguro, no não demarcado</p><p>ou loteado, no indeterminado... E seu significado... “Não é nada”...</p><p>Em seu livro Recado do nome - Leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de</p><p>seus personagens, Ana Maria Machado nos socorre com sua primorosa</p><p>tradução, a nos permitir, enfim, degustar os significados e as significâncias dos</p><p>nomes dos personagens, principalmente, os de Riobaldo16 e Diadorim17.</p><p>A criatividade linguística rosiana impende-nos a versar sobre questões</p><p>precípuas à linguagem. Para isso, recorremos a um texto, escrito em outra</p><p>ocasião e que, aqui, iremos costurar com pensamentos de Guimarães Rosa</p><p>sobre esse tema.</p><p>A linguagem se nos apresenta como expressão da realidade. Os seres que</p><p>vivem à nossa volta se manifestam por maneira que podemos dizer que eles</p><p>falam de si para nós, pois sua revelação constitui uma espécie de linguajar</p><p>mudo, à espera de sua tradução simbólica. Por isso mesmo é que Paul</p><p>Ricoeur18 apontou com razão para o recurso grego de principiar a filosofia</p><p>pelos símbolos cosmológicos. No estudo da linguagem cabe, assim, à filosofia</p><p>o papel de ponte para a realidade, para o cosmo.</p><p>A vinculação que se estabelece entre a linguagem e o mundo, nas</p><p>dimensões distintas de seus específicos compartimentos científicos, não nos</p><p>deve conduzir ao extremo de encarar a linguagem como mero epifenômeno de</p><p>cada um dos fatores particulares às diversas ciências com que ela vier a se</p><p>articular. As linguagens são setoriais prendendo-se à filosofia, à ciência, à</p><p>ideologia. Tais aspectos particulares da linguagem exigem, porém, um</p><p>tratamento no amplo estuário da filosofia analítica. Isto não implica em cingir</p><p>o estudo da linguagem à dimensão ilimitada da filosofia da linguagem.</p><p>Cuidamos necessária uma reflexão mais profunda de cunho ontológico.</p><p>Mostra Creusa Capalbo que “será pela reflexão filosófica ulterior, em nível</p><p>ontológico, que poderemos recuperar a estrutura da vida intencional que nos</p><p>mostrará como estas diversas linguagens são portadoras de uma intenção</p><p>significante que precisa ser apreendida, captada, tematizada, expressa numa</p><p>linguagem articulada e interpretada”.</p><p>A matéria é de complexa indagação. Sua transcendência ultrapassa, de</p><p>muito, a consideração do fenômeno linguístico numa órbita restrita de</p><p>especialização rígida. Isto porque, na linha de Ernst Cassirer19, o homem é um</p><p>animal simbólico. A linguagem assume, destarte, posição de relevo na</p><p>contextura do humano e do social.</p><p>Ferdinand de Saussure20 distingue a linguagem propriamente dita, a</p><p>língua e a palavra. A linguagem é vista como expressão da estrutura geral e</p><p>comum do idioma. Já a língua é a linguagem comunitária, sendo a palavra a</p><p>linguagem encarada como fenômeno individual. Possivelmente é nesse</p><p>sentido que Guimarães Rosa aponta que “muita coisa importante falta nome”:</p><p>a experiência individual é una, muita vez indizível, além do alcance das</p><p>palavras existentes, daí a falta, daí a necessidade de criar novas e novas</p><p>palavras.</p><p>Mas a posição de Saussure é extremamente reveladora da perspectiva</p><p>diversificada da linguagem, abrindo-se nitidamente ao individual e ao social,</p><p>sem mencionar a consideração direta de cunho estrutural.</p><p>Para nós o que importa ventilar é a conjunção da língua e da palavra. A</p><p>língua, na sinuosa caminhada em face de entrechoques gerados pelo encontro</p><p>do português com os idiomas de origem nativa ou africana. A palavra, na</p><p>flutuação do linguajar de matiz regional, na tortuosa flexibilidade dos</p><p>modismos, quase vizinhos do dialeto.</p><p>Se há domínio sensível à evolução dos costumes, das instituições, dos</p><p>valores é a língua. Lentamente ela desliza, de forma a se adequar às</p><p>mundivivências de cada época, numa mostra de sua docilidade aos tempos que</p><p>fluem. A língua é a mesma, mas não nos reconhecemos em seus vocábulos</p><p>preferenciais. O predomínio de expressões e construções, de modulações na</p><p>adjetivação refletem a mentalidade de cada curva da história e definem os</p><p>parâmetros da sociedade.</p><p>O aporte linguístico trazido pelos indígenas e pelos africanos foi</p><p>enriquecendo o patrimônio vocabular do português. Especialmente da língua</p><p>falada. Com o tempo, o peso adicional da contribuição de outras línguas, como</p><p>a francesa, a inglesa, a espanhola, a alemã e a italiana, sem falar na norte-</p><p>americana (por suas peculiaridades), representou um passo na evolução</p><p>assimilatória dos valores trazidos por essas culturas. Daí a riqueza da língua</p><p>portuguesa. O tupi alongou sua influência, notadamente em certas áreas, como</p><p>a paulistana Vieira, no séc. XVII, “a língua que nas ditas famílias (dos</p><p>portugueses e índios)”.</p><p>Só a partir de 1757, por força de uma lei pombalina, é que o português se</p><p>tornou obrigatório. Para Guimarães Rosa, “pela língua se começa a confusão”.</p><p>Reduzir a quantidade de línguas faladas por uma nação pode ter o condão de</p><p>reduzir tal desordem. Teriam pensado nisso os jesuítas?</p><p>O grande elo linguístico que se estabeleceu entre o missionário e o gentio</p><p>foi o grupo dos órfãos de Lisboa, para cá trazidos para facilitar o convívio com</p><p>os nativos. Foram eles os primeiros a aprofundar o convívio espontâneo</p><p>próprio da idade e geraram por contágio o curioso quadro em que “os padres</p><p>ensinam os filhos, e os filhos ensinam os pais” na narrativa de Serafim Leite.</p><p>É a psicopedagogia jesuítica em ação, que se faz valer da força</p><p>proveniente “do sangue do coração”, no dizer de Guimarães Rosa. Para ele,</p><p>“para poder ser feiticeiro da palavra, para estudar a alquimia do sangue do</p><p>coração humano, é preciso provir do sertão”, ou, no caso, da espontaneidade e</p><p>pureza das crianças, o que dá no mesmo.</p><p>A língua como ator de unidade nacional tem aí a sua origem são as</p><p>crianças na sua doçura que vão penetrando na alma nativa, pelo contato</p><p>indireto que proporcionam aos mestresjesuítas. Teria sido bem mais difícil,</p><p>conquanto nunca impossível, a catequese direta, também largamente</p><p>praticada. Mas a habilidade em aplainar as arestas para a aplicação direta,</p><p>através de folguedos, cantorias, danças e rezas levadas às aldeias indígenas</p><p>pelos órfãos vindos de Lisboa, constituiu, sem dúvida, fator de união das raças,</p><p>dos costumes e da língua. Gilberto Freyre obtemperou a conduta do jesuíta,</p><p>responsabilizando-os pela perda da autenticidade dos costumes indígenas,</p><p>debitando aos filhos de santo Inácio a destruição de culturas não europeias ao</p><p>atual. Sustenta que os jesuítas foram “puros agentes europeus de desintegração</p><p>de valores nativos”.</p><p>Admitimos a profundidade da influência dosjesuítas na contínua</p><p>desvinculação dos indígenas de sua cultura própria, mas, vista a questão pelo</p><p>ângulo da unidade nacional, não há como negar a percepção dos jesuítas, com</p><p>Nóbrega à frente, a visualizar no horizonte longínquo de uma nação</p><p>pungente. Quando se rebuscam os intérpretes no encontro das razões do</p><p>grande milagre da unidade pátria, por que recusar a evidência de que ela se</p><p>deve, em grande parte, ao esforço continuado dos primeiros missionários, em</p><p>nome da religião, plantaram sementes tão fecundas, que sua expulsão por</p><p>Pombal não conseguiu destruir?</p><p>Se o patrimônio cultural dos nativos tivesse preponderado ou ainda se</p><p>pululassem as ilhas culturais no imenso território</p><p>sem circulação de ideias de</p><p>valores e menos ainda como Estado, teríamos que joeirar, numa multidão de</p><p>pequenas nações, alguns valores comuns desintegrados parcialmente na</p><p>voragem das afirmações de diminuto porte. A unidade territorial, a unidade de</p><p>costumes e valores processou-se, mercê da unidade linguística, que se foi</p><p>desligando dos embaraços de outras línguas que, ao fecundarem o mundo e o</p><p>enriquecerem, se foram alijando a pouco e pouco, até remanescerem nas</p><p>expressões originarias das línguas nativas de proveniência africana, para afinal</p><p>comporem a grande caudal da língua portuguesa no novo continente.</p><p>O paradoxo é que a unidade coexiste com a multiplicidade com o</p><p>pluralismo. As raças se mesclam como as línguas e tudo converge para a</p><p>unidade. O linguajar regional se aguça na sintonia com a diversidade de</p><p>motivação econômica na exploração das diversas áreas. A ênfase numa</p><p>atividade econômica determinada foi gerando novos vocábulos a contribuir</p><p>para a ampliação da riqueza da língua. O incremento vocabular foi de tal</p><p>porte, que cuidaram alguns devêssemos reconhecer que a língua aqui falada e</p><p>escrita chegara ao ponto de se desvincular daquela falada na mãe-pátria, assim,</p><p>sustentou-se a existência de uma língua brasileira. Os debates se feriram</p><p>frequentemente com entusiasmo, não raro espelhando o ufanismo decantado</p><p>na literatura indianista e romântica.</p><p>As mudanças operadas no fluxo linguístico pelo menos nos devem</p><p>precatar contra a posição que atribui caráter natural à relação entre os sons da</p><p>palavra e a respectiva significação. Para Saussure: “o estudo da linguagem</p><p>comporta... duas partes: uma, essencial, tem por objeto a língua, que é social</p><p>na sua essência e independente do indivíduo: tal estudo, é unicamente</p><p>psíquico; o outro, secundário, tem por objeto a parte individual da linguagem,</p><p>isto é, a palavra, compreendendo-se nesta a fonação: ela é psicofísica.”</p><p>Já para Guimarães Rosa, “deve-se apenas partir do princípio de que há</p><p>dois componentes de igual importância em minha relação com a língua.</p><p>Primeiro: considero a língua como meu elemento metafísico, o que sem</p><p>dúvida tem suas consequências. Depois, existem as ilimitadas singularidades</p><p>filológicas, digamos, de nossas variantes latino-americanas do português e do</p><p>espanhol, nas quais também existem fundamentalmente muitos processos de</p><p>origem metafísica, muitas coisas irracionais, muito que não se pode</p><p>compreender com a razão pura”.</p><p>Fica bem claro que o problema da língua brasileira é um problema da</p><p>linguística da língua, com marcado caráter social. Ou melhor, o que está em</p><p>jogo é uma questão de sociologia linguística. Guimarães Rosa resumiu o ponto</p><p>de vista dos que propendem para sustentar a existência de uma língua</p><p>exclusivamente brasileira. Assim como o Português saiu do latim pela</p><p>corrupção popular desta língua, o Brasileiro está saindo do Português. O</p><p>processo formador é o mesmo: corrupção da língua mãe. A cândida</p><p>ingenuidade dos gramáticos chama corromper ao que os biologistas chamam</p><p>evoluir.</p><p>Entende-se, pois, que Rosa declare que “disso resultam meus livros,</p><p>escritos em idioma próprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à</p><p>tirania da gramática e dos dicionários dos outros. A gramática e a chamada</p><p>filologia, ciência linguística, foram inventadas pelos inimigos da poesia”.</p><p>A tese ressalta a opção de cunho biológico que alastreia, da mesma sorte</p><p>que se envolve na densa nebulosa do naturalismo. Assim como se pretendeu</p><p>conceber a história calcada na evolução vital - é o caso da Filosofia da História</p><p>de Osvald Spengler21também no campo da linguística se tentou caminho</p><p>paralelo, com as naturais desvantagens de forçar a adoção de modelo</p><p>transposto de uma ciência para outra.</p><p>A conjunção da língua e da palavra é para nós indispensável na</p><p>formulação de uma doutrina capaz de reunir os dados esparsos, que retratam o</p><p>país e seus habitantes. De um lado, a língua expressa as características das raças</p><p>e grupos sociais que compuseram o homem brasileiro. De outra parte a</p><p>palavra nos prende mais diretamente à linguagem individual.</p><p>A língua pressupõe a palavra conforme sustenta Wartburg22. Cada vez</p><p>nos apercebemos de que linguagem não tem uma significação meramente</p><p>intrínseca como veste do pensamento. Há uma união substancial entre ambos,</p><p>de vez que não se exprime senão o que foi maturado na oficina do espírito. E</p><p>certo que há um limite além do qual a realidade, o sentimento ou o</p><p>pensamento suplantam as possibilidades de sua explicitação vocabular. Não foi</p><p>sem sentido que verbum caro factum est</p><p>23 Assim, havemos de reconhecer uma</p><p>pureza do estilo que se mescla a uma conotação moral como se à beleza do</p><p>estilo correspondesse uma pureza interior. Torna-se, pois, facilmente</p><p>compreensível a evolução da linguagem através das diversas línguas, fundadas</p><p>nas palavras que nascem os indivíduos. Mas o social aí está presente como fase</p><p>ulterior de formulação da língua.</p><p>A nossa língua é a portuguesa, porque o elemento português se encontra</p><p>em toda fase da colonização, pela patente dominação cultural. A língua se</p><p>impôs naturalmente, incorporando ao seu acervo a tropicalidade de origem</p><p>nativa e africana.</p><p>Se a nossa língua é a portuguesa, a de Rosa “é a língua do homem de</p><p>amanhã, depois de sua purificação”. Por isso, diz ele, deve purificá-la. Ela é a</p><p>arma com a qual defende a dignidade do homem.</p><p>A posição de Lavelle24 não é de todo distinta, uma vez que, para ele, “a</p><p>linguagem está à disposição do homem; mas é necessário que ele a recrie a</p><p>cada instante para servir de intermediária entre o mundo invisível que lhe</p><p>conduz dentro de si mesmo e o mundo visível que se estende diante dele como</p><p>um espetáculo que lhe é oferecido”. Nesta perspectiva, a linguagem é um</p><p>convite a um diálogo crescentemente rico entre o homem e a realidade e,</p><p>quando o homem habita um país novo como o Brasil, abre-se um oceano de</p><p>possibilidades de recriar a cada passo a expressão do pensamento nos</p><p>entrechoques com uma realidade sempre viva e sempre aberta às modulações</p><p>do discurso humano. Assim como o fez Guimarães Rosa, ao escrever Grande</p><p>Sertão: Veredas.</p><p>NOTAS DOS CURADORES</p><p>1 Gilbert Keith Chesterton, mais conhecido como G. K. Chesterton - Escritor, poeta, filósofo,</p><p>dramaturgo, jornalista, palestrante, teólogo, biógrafo, literário e crítico de arte inglês.</p><p>2 Soren Aabye Kierkegaard - Filósofo, teólogo, poeta, crítico social e autor religioso dinamarquês,</p><p>amplamente considerado como o primeiro filósofo existencialista.</p><p>3 Peter Wust - Filósofo existencialista alemão.</p><p>4 Securitas insecuritatis - Do latim, Segurança da insegurança.</p><p>5 Ludwig Joseph Johann Wittgenstein - Filósofo austríaco naturalizado britânico, foi um dos principais</p><p>autores da virada linguística na filosofia do século XX.</p><p>6 Michele Federico Sciacca - Filósofo italiano, nasceu em 1908 em Giarre, Catânia, e faleceu em Gênova</p><p>em 1975, aos 67 anos de idade. Cedo descobriu o seu desejo de buscar a verdade capaz de lhe dar</p><p>sentido à vida.</p><p>7 Viktor Emil Frankl - Médico psiquiatra austríaco, fundador da escola da logoterapia, que explora o</p><p>sentido existencial do indivíduo e a dimensão espiritual da existência.</p><p>8 Arthur Schopenhauer - Filósofo alemão do século XIX.</p><p>9 Paul Claudel, nome artístico de Louis Charles Athanaíse Cécile Cerveaux Prosper - Diplomata,</p><p>dramaturgo e poeta francês, membro da Academia Francesa de Letras e galardoado com a Grã-Cruz</p><p>da Legião de Honra.</p><p>10 Charles Du Bos - Ensaísta e crítico francês, nasceu em 27 de outubro de 1882 em Paris e morreu em</p><p>5 de agosto de 1939.</p><p>11 Edoardo Bizzarri - Tradutor Italiano de Guimarães Rosa.</p><p>12 Henri Bergson - Filósofo e diplomata francês, laureado com o Nobel de Literatura de 1927.</p><p>13 John Keats - Poeta inglês, foi o último dos poetas românticos do país e, aos 25 anos, o mais jovem a</p><p>morrer.</p><p>14 Curt Meyer-Clason - Escritor e tradutor alemão, é conhecido por ter sido tradutor de Guimarães</p><p>Rosa.</p><p>15 Au fond - Do francês, basicamente.</p><p>16 Ana Maria Machado. Recado do Nome, pp. 62-63:</p><p>(...) à procura do vau por onde fazer a travessia do mundo se confunde,</p><p>para Riobaldo, com uma procura</p><p>de Deus. E aí se dilacera Riobaldo, se divide, se desagrega, se reintegra, e com ele seu Nome, em</p><p>diferentes anagramas, debatendo-se entre os polos de Deus e do Diabo, fazendo um pacto, uma pauta,</p><p>um Rol com o Diabo, mas também procurando o tempo todo situar-se num trabalho de Deus, num</p><p>LABOR de DIO. Cheio de meandros, o rio oscila e não se resolve, frustrado, baldo, e banha os dois</p><p>lados, rega as duas margens: “Riobaldo... Reinaldo...”</p><p>17 Ana Maria Machado. Recado do Nome, p. 66:</p><p>• Diá como Diabo, claramente confirmado quando o texto se refere ao demônio como diá (p. 40) e</p><p>Diadorim é chamado de Diá à p. 553.</p><p>• Diá como dea, referindo-se ao outro Polo, Deus, muitas vezes associado ainda ao elemento que</p><p>destacamos a seguir, também presente no nome Diadorim.</p><p>18 Paul Ricoeur - Um dos grandes filósofos e pensadores franceses do período que se seguiu à Segunda</p><p>Guerra Mundial.</p><p>19 Ernst Cassirer - Filósofo alemão de origem judaica que pertenceu a Escola de Marburg, liderada por</p><p>Hermann Cohen, sendo seu mais destacado representante. Professor de Filosofia em Hamburgo, foi</p><p>reitor desta Universidade de 1930 até a subida de Adolf Hitler ao poder.</p><p>20 Ferdinand de Saussure - Linguista e filósofo suíço cujas elaborações teóricas propiciaram o</p><p>desenvolvimento da Linguística enquanto ciência autônoma.</p><p>21 Osvald Arnold Gottfried Spengler - Historiador e filósofo alemão cuja obra O declínio do Ocidente foi</p><p>uma referência nos debates historiográficos, filosóficos e políticos entre os intelectuais conservadores</p><p>europeus ao longo do século XX.</p><p>22 Wartburg - O mais famoso castelo da nobre estirpe dos Ludowinger, está situado na Alemanha.</p><p>23 Verbum caro factum est - Do latim, o Verbo se fez carne.</p><p>24 Louis Lavelle - Filósofo da mente e metafísico francês.</p><p>A</p><p>O recado literário de</p><p>Ana Maria Machado</p><p>entrada de Ana Maria Machado na Academia Brasileira de Letras em</p><p>2003 representou o consectário natural e mesmo obrigatório de um</p><p>percurso pleno de afirmação literária da mais alta qualidade que, de há muito,</p><p>transpôs nossas fronteiras. Esta é a sua casa, sempre presente em seu amor,</p><p>como se evidenciou em sua fala na festa de aniversário da ABL, quando, em</p><p>2001, no salão nobre, recebeu o prêmio maior desta Academia, o prêmio</p><p>Machado de Assis.</p><p>Ana Maria foi a sexta escritora a ingressar nesta Casa que tangencia o</p><p>mito no imaginário do povo brasileiro. Após a alteração regimental ocorrida</p><p>em 1976, que cedeu afinal à insopitável decisão de acolher escritoras na</p><p>Academia, aqui aportou, com firme personalidade e fina sensibilidade, a</p><p>primeira imortal, a confreira Rachel de Queiroz, ícone de nossa literatura.</p><p>Em 1981, a ela se seguiu a doce romancista Dinah Silveira de Queiroz,</p><p>que depois de receber o prêmio Machado de Assis, foi estimulada a ingressar</p><p>na Academia, por Osvaldo Orico. O escritor paraense, com rara tenacidade,</p><p>logrou a alteração regimental ansiada. É o momento de volver o olhar para</p><p>Lúcio de Mendonça, a quem todos devemos a ideia de se fUndar esta</p><p>Academia. Na relação dos primeiros ocupantes possíveis das cadeiras da ABL,</p><p>Lúcio incluiu o nome de Julia Lopes de Almeida. Foi vencido duas vezes, mas</p><p>pela imprensa insistiu na mesma tecla, em favor do ingresso de escritoras na</p><p>Casa de Machado de Assis. O registro se faz necessário para repor nos trilhos a</p><p>história desta conquista quae sera tamen.</p><p>1</p><p>Em 1987, a Casa se viu enriquecida de forma exponencial com a eleição</p><p>de Lygia Fagundes Teles, esta mulher de riqueza humana ímpar, capaz de</p><p>detectar os mais tênues fios condutores do humano existir. A Academia</p><p>celebrou o livro paradigmático, As meninas, e de outra efeméride significativa</p><p>para a interminável coorte dos que a amam e admiram. Para ela, há um</p><p>mistério em que estamos mergulhados, palavra-chave de seu itinerário, no</p><p>registro crítico de Eduardo Portella. Lygia sentencia lapidarmente: “a obra de</p><p>arte para mim é um imprevisto. Um grande imprevisto de loucura.”</p><p>Desde 1990, outra emérita escritora, Nélida Pinon, vem abrilhantando a</p><p>presença feminina na Academia. Como brasileira recente, segundo se</p><p>anunciou. “Chego à Academia...”, disse ela, “trazida inicialmente pela paixão da</p><p>linguagem e pela fidelidade à imaginação, este território pelo qual transita a</p><p>liberdade”. Nesta sentença, está Nélida de alma inteira, ela a quem a Casa deve</p><p>a ascensão à presidência, por primeira vez, de uma mulher, bem antes de que a</p><p>Académie Française se atrevesse a romper as barreiras do preconceito.</p><p>Em 2002, Zélia Gattai Amado trouxe para esta Casa a leveza da narrativa.</p><p>Parece nos falar ao pé do ouvido, pois o estilo coloquial situa o leitor quase</p><p>como interlocutor. Impende recordar que sua presença, além de opulentar este</p><p>cenário privilegiado das letras, constituiu ainda uma engenhosa e sábia</p><p>maneira de reter entre nós o grande Jorge Amado.</p><p>Ana Maria Machado ingressou no recinto da ABL, pavimentado por</p><p>centenária tradição cultural, em presença de seus oito irmãos e seus três filhos,</p><p>Rodrigo, Pedro e Luísa, além de amigos e colegas de lides literárias, artísticas e</p><p>jornalísticas. É um excepcionallash da glória que acompanha o seu percurso</p><p>iniciado há muito tempo.</p><p>Cuido adequado sublinhar que a colega tem um compromisso visceral</p><p>com a palavra e sabe preservar o tempo, secretando a inventividade de quem</p><p>meteu a ombros uma obra ciclópica, com mais de uma centena de livros</p><p>publicados. Segue certamente a assertiva de La Fontaine, para quem “o sábio é</p><p>administrador do tempo e das palavras”.</p><p>Talvez se possa inferir do amor que certos escritores devotam à língua</p><p>pátria a sublimidade de estilo e a beleza da arte. Fincar as raízes da alma na</p><p>profundidade do mistério de dizer e de escrever denota intimidade de si</p><p>mesmo com a cultura que nos impregna a vida, com crenças, valores, tradição</p><p>e ímpeto de criar voltado para o porvir.</p><p>Ana Maria habituou-se a uma fidelidade plena aos valores fandantes da</p><p>bela língua que nos foi legada, sem incidir no equívoco de lhe</p><p>superdimensionar a correção epidérmica em detrimento da espontaneidade da</p><p>pena ágil, coloquial e altamente criativa.</p><p>Compelida a imigrar, teve o cuidado de preservar os filhos da pressão dos</p><p>idiomas dos países em que se refugiou, para mantê-los vinculados ao idioma</p><p>que nos cumpre preservar e que vinha cultivando com ternura filial e de que</p><p>se tornou sacerdotisa. Sim, porque é de liturgia que se trata, quando nos</p><p>defrontamos com o desafio de escrever, de expressar conceitos, sentimentos,</p><p>perfis existenciais que ornam a paisagem humana.</p><p>A escritora, que sempre soube conciliar o respeito devido à norma culta</p><p>com a abertura à evolução da língua, timbrou em reiterar: “falamos português,</p><p>sim, mas o Português do Brasil... quero a língua brasileira, com sua</p><p>flexibilidade, sua variedade, seu ritmo e sua dança, sua ginga inventiva, seu</p><p>jogo de cintura, sua irreverência.” Com a consciência de que “a linguagem não</p><p>existe só para a comunicação, ela também serve para a expressão - o terreno da</p><p>criação linguística”, Ana Maria entende que assim se evita a transformação da</p><p>norma culta numa camisa de força. A obra é genuinamente brasileira, poreja</p><p>intimidade com a nossa cultura, em seu dinamismo criativo.</p><p>Registro o paralelismo entre Ana Maria e a notável escritora, Rachel de</p><p>Queiroz que, há meio século, respondeu a um editor português que queria</p><p>publicar um de seus romances, afeiçoando-o ao linguajar lusitano. Naquele</p><p>então, avançou a aureolada confreira: “sua língua é um patrimônio tanto nosso</p><p>quanto seu.” Para concluir: “esses pronomes mal postos, essa língua que lhes</p><p>revolta o ouvido, é a nossa língua, é o nosso modo normal de expressão, é -</p><p>ouso dizê-lo-a nossa língua literária e artística.”</p><p>Da palavra devemos aproximarmo-nos com o desvelo e o carinho ditados</p><p>pelo amor essencial ante o mistério inefável da expressividade humana em</p><p>variegadas formas de comunicação. Forçoso é convir que o abuso de palavras,</p><p>ao explicitar um certo vezo de exibição ou um taedium vitae</p><p>2 muito contribuiu</p><p>para a desvalorização. A palavra de que cuidamos</p><p>concerne ao patamar</p><p>superior da significação, da mais-valia de sentido, da sintonia com a existência</p><p>humana em manifestações superiores. Pedro Abelardo, famoso filósofo que</p><p>viveu entre os séculos XI e XII, assentia: factis non verbis sapientia se proitetur</p><p>3.”</p><p>Tal compreensão, encontradiça também em Terêncio, Cícero, Sêneca e</p><p>mesmo em escritores consagrados nas línguas modernas parece olvidar o</p><p>étimo do vocábulo, de vez que palavra, parola, parole, palabra promanam do</p><p>latino cristão parábola, cuja densidade significativa a cultura tanto reconhece e</p><p>mesmo enaltece. Tal é o peso da palavra que vale reiterar, com Benedetto</p><p>Croce, que a palavra é sempre criação fantástica, poesia, e cada consideração</p><p>não estética da palavra conduz a algo que não é linguagem, mas um ato</p><p>econômico. Em que pese um certo exagero, é compreensível a tese, a que se</p><p>poderia acrescer a conclusão da escritora Flora: loquor, ergo cogito et sum</p><p>4. Ou,</p><p>ajustando ao ato de escrever, diríamos scribo, ergo sum</p><p>5.</p><p>Há um encantamento na origem do conhecer e do sentir, do querer e do</p><p>amar. A admiração é o estágio inicial da abordagem do real, segundo Platão.</p><p>Bem compreendeu, ao nos revelar o quanto tal atmosfera perpassou espíritos</p><p>de escol nos albores do percurso existencial. O fascínio pela narrativa esteve</p><p>na raiz de muitas vocações literárias. Ana Maria recorda o deslumbramento de</p><p>Carlos Drummond de Andrade com a leitura de Robinson Crusoé, de Clarice</p><p>Lispector com Reinações de Narizinho, do diretor de tese, mestre Roland</p><p>Barthes, mergulhado na mitologia grega com seus argonautas. O saudoso</p><p>mestre Evandro Lins e Silva, antecessor de Ana Maria na cadeira número 1,</p><p>mencionava o quanto ficara marcado pelos contos de fadas maviosamente</p><p>narrados por sua genitora.</p><p>Monteiro Lobato abriu o espaço inaugural da presença robusta da</p><p>literatura infantil entre nós. Sozinho vendeu, em 1943, mais de um milhão de</p><p>livros, cifra esta, hoje, amplamente sobrepujada por Ruth Rocha, por Ana</p><p>Maria Machado e de muitos escritores voltados para a literatura infantil como</p><p>Ziraldo, Lygia Bojunga, e tantos outros.</p><p>É curial ligar Ana Maria Machado a Monteiro Lobato, o pai da literatura</p><p>infantil, como se dele fosse herdeira, embora as preocupações não coincidam.</p><p>É bem verdade que ambos se voltam para questões sociais, políticas e</p><p>filosóficas e que discutem valores éticos. Mas Ana Maria teve o cuidado de</p><p>bem demarcar as diferenças: “Ele (Monteiro Lobato) tinha um vasto,</p><p>oportuníssimo e maravilhoso projeto pedagógico para o Brasil. Eu... apenas</p><p>quero explorar as potencialidades da linguagem e da narrativa... Fazer</p><p>brincadeira estética.” Seguramente estamos em presença de perfis diversos,</p><p>mas a modéstia de Ana se imiscui no debate, uma vez que sua forma de se</p><p>valer da palavra, em grau de crescente complexidade, configura uma intenção</p><p>marcadamente pedagógica que não é de confundir-se com um didatismo</p><p>esterilizante. A própria escritora capixaba sublinhou, ao mencionar a série</p><p>Mico Maneco como “uma proposta de alfabetização” nela embutida. E que são</p><p>os ensaios sobre a relevância da leitura senão o fruto de um compromisso com</p><p>a educação de crianças, adolescentes e adultos para o mundo encantado dos</p><p>livros, histórias, fantasias que tanto contribuem para os voos do espírito?</p><p>Não raro Ana Maria faz referências ao texto, às texturas, aos fios que</p><p>tecem as histórias. Parece tudo haver principiado no instante em que ela</p><p>transmitia ao leitor, o que ela e a filha Luísa acompanharam, maravilhadas, a</p><p>obra reiterada através dos tempos pela aranha. Sim, a teia bem expressa o</p><p>trabalho persistente de quem, como Ana Maria, ousa criar no universo mágico</p><p>e instigante da literatura. É esta constante busca de integração com a natureza</p><p>que nela alumia a construção artística a que devota com reconhecido talento.</p><p>Seu constante convívio com a terra, os animais e as plantas as transformaram</p><p>em convivas sempre bem-vindos em seu banquete das letras. E sucedem-se as</p><p>descrições da natureza, a revelar invulgar conhecimento de árvores, de peixes,</p><p>do mar diuturnamente presente nos escritos, minúcias da aurora e do</p><p>crepúsculo. Enfim, o homem não se distancia de seu chão, mas se vê integrado</p><p>nele, nesta permanente participação que tanto nos enriquece e afasta do</p><p>beletrismo estéril. Com Roland Barthes, Ana comentou que, em nossa língua,</p><p>falamos em texto com o pensamento em tecido, valemo-nos das palavras</p><p>novelo e novela.</p><p>A valorosa escritora reconhece o valor perene dos clássicos e ao tema</p><p>dedicou vários ensaios. Para ela “clássico não é livro antigo e fora de moda. É</p><p>livro eterno que não sai de moda”. Citando Ítalo Calvino, asseverou que “um</p><p>clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. É</p><p>uma mina inesgotável à qual recorremos com a ânsia de quem descobre ou</p><p>redescobre trilhas que nos ensejam maior penetração em nós mesmos e em</p><p>tudo e todos que nos circundam. Este conúbio entre a base de sustentação</p><p>clássica da cultura e o aporte da modernidade seduziu Ana Maria Machado e</p><p>sinalizou-lhe a necessidade de adequar os fundamentos aos passos novos em</p><p>direção ao futuro.</p><p>Poucos escritores vêm entre nós realçando com tanto vigor e brilho o</p><p>valor da leitura na humanização da vida, como Ana Maria. Tal como Alfredo</p><p>Bosi, ela se planta como paladina da cultura de resistência, contra o não das</p><p>restrições arbitrárias e a imposição do sim dado a obras destituídas de valor,</p><p>mas postas ao lado dos best sellers estrangeiros para disfarçar a censura a obras</p><p>de autores nacionais de real peso literário.</p><p>Vale destacar sua metáfora bem ajustada à escrita como ato de tecer, de</p><p>fiar, de bordar. E aqui avulta a intertextualidade de que Ana Maria lança mão,</p><p>como é o caso de Bisa Bia Bisa Bel, em que há patente inspiração de A bolsa</p><p>amarela, de Lygia Bojunga. Sempre em obediência a uma reinvenção. Nota-se</p><p>uma aproximação com a oralidade, o que facilita o acesso do leitor ao texto e</p><p>lhe confere uma vida espontânea, longe do artificialismo que malbarata muitas</p><p>obras infantis. Não teríeis alcançado o patamar invulgar de contadora e</p><p>reinventora de histórias que tamanha atração exerce em crianças, jovens e</p><p>adultos não fora o convívio amiudado e enriquecedor das avós Ritinha e</p><p>Neném. Ao pé da lareira, por assim dizer, elas transmitiram toda uma tradição</p><p>oral contida em relatos de elevado corte no imaginário. Já era o bosquejo da</p><p>ascensão literária que o país, orgulhoso, celebra. Bisa Bia Bisa Bel “brotou da</p><p>necessidade de explicar para seu filho Pedro uma certa avó Ritinha, contadeira</p><p>de histórias.” Daí para trilhar o seu sonho de escritora foi um passo. E uma</p><p>belíssima história começou com um sonho real, de que no lugar do coração</p><p>tinha um retrato oval da avó. O acordar já lhe trouxe, pronta, a abertura da</p><p>história: “sabe? Vou lhe contar uma coisa que é segredo. Ninguém desconfia. É</p><p>que Bisa Bia mora comigo.” É o encontro de gerações, unidas pela humanidade</p><p>e pelo afeto que lhes superpõe as vidas e as vivências. É emocionante realçar</p><p>que o gap geracional não obscurece a magia da intersubjetividade entre os</p><p>seres que, separados pelos anos, coexistem na permuta de suas riquezas. A</p><p>leitura de Bisa Bia, Bisa Bel presenteou-me com instantes privilegiados de</p><p>emoção que não saberia transpor para o papel, tal a beleza da concepção e a</p><p>arte estilística que dimanam do texto pleno de humanidade.</p><p>Nesta obra magistral, Ana Maria alforria as crianças da subalternidade a</p><p>adultos autoritários. Trata-se do resgate da memória coletiva. A reescritura da</p><p>história se apresenta como uma tarefa que suplanta as singularidades. A pessoa</p><p>humana avulta na individualidade, mas é herdeira de tradições, que</p><p>conglomeram valores, crenças, ideários. Neste sentido, a sociabilidade tem</p><p>cunho marcadamente ontológico.</p><p>Cabe relatar um certo paralelismo entre a autora e renomado escritor</p><p>inglês. Robert Browning, aos cinco anos, surpreendeu o pai lendo um livro e</p><p>indagou o que estava lendo. Em vez de desvencilhar-se da criança,</p><p>devolvendo-a aos brinquedos, o pai montou o cenário da Ilíada e, a partir daí,</p><p>aparência dos seres com que percorre os</p><p>espaços geográficos privilegiados nos textos do escritor mineiro”. Dimensiona</p><p>o seu regionalismo universalista. As múltiplas dimensões da condição humana</p><p>integradas nas suas narrativas, em especial no Grande Sertão: Veredas, e</p><p>depreende de seus textos ficcionais, entre outras, a categoria do surpreendente</p><p>e a transcendência, linhagens filosóficas e religiosas. A partir deles, analisados</p><p>com percuciência, tece digressões sobre vários tópicos e sua relevância, entre</p><p>eles, língua, linguagem, a especificidade do português brasileiro, sua unidade</p><p>na diversidade, sua diversidade na unidade.</p><p>Ao tratar de Ana Maria Machado, o ensaísta, entre outras considerações</p><p>sobre sua dinâmica e múltipla atuação, no jornalismo, no rádio, na gestão de</p><p>livraria especializada, realiza uma leitura crítica aprofundada da sua produção.</p><p>Como autora de literatura infanto-juvenil e adulta. Como ensaísta. Destaca, na</p><p>obra da escritora, o interesse e a preocupação com “esquadrinhar questões</p><p>como poder, autoridade, injustiça social, preconceitos de raça e sexo”, com</p><p>tratar de ecologia e de feminismo. E mais o seu acendrado compromisso com a</p><p>verdade, para além “dos arreganhos calcados nas certezas apodíticas por bem</p><p>saber que elas se estreitam nos descaminhos do fundamentalismo, seja ele</p><p>político ou religioso”. Nos espaços do ensaio, concentra a atenção na tese</p><p>intitulada O recado do nome, nuclearizada na obra de Guimarães Rosa.</p><p>A partir dos escritos de Ana Maria, discorre sobre literatura e ideologia,</p><p>o lugar e a relevância do autor e do texto na concretização do fato literário. E</p><p>explicita o seu próprio posicionamento, carregado de advertência significativa:</p><p>“Os que respiram a atmosfera aparentemente remansosa das certezas carecem</p><p>da indispensável leveza de ser, da consciência de que as âncoras especulativas</p><p>mais sólidas são encontradiças nos terrenos infensos à cristalização de</p><p>saberes.”</p><p>A Octávio de Faria dedica um minudente ensaio centrado na vida e, em</p><p>especial, na vasta obra do escritor. Detém-se, com base numa leitura exaustiva,</p><p>nos pontos luminosos dos romances que compõem a Tragédia burguesa.</p><p>Depreende as bases filosóficas do pensamento do autor. Em destaque a</p><p>contribuição e Léon Bloy, confessadamente depois de Nietszche o encontro</p><p>mais importante de sua vida. Tece considerações sobre a dimensão metafísica</p><p>presente na sua obra. E sobre as oscilações da crítica ao seu estilo. Para</p><p>culminar por considerar majestosa a sua contribuição literária.</p><p>No texto dedicado a Luiz Paulo Horta, discorre sobre sua estreita</p><p>vinculação com as letras, o jornalismo, a música. Aponta, no seu percurso</p><p>existencial, dois fatores consistentes: a problemática filosófica e as questões da</p><p>fronteira entre filosofia e religião; a presença forte das tradições orientais mais</p><p>profundas em sua formação; a vinculação com o marxismo. E, à semelhança de</p><p>Octávio de Faria, o encontro com o pensamento de Léon Bloy, que o trouxe</p><p>de volta, intensa e ativamente ao pensamento católico. Sintetiza a visão</p><p>hortiniana do cristianismo, um mistério a ser penetrado.</p><p>De Alceu Amoroso Lima diz tratar-se de uma das mais equipadas</p><p>culturas do seu tempo, não sem razão considerado por alguns o maior</p><p>pensador da América Latina. No seu entender, “o maior pensador cristão do</p><p>Continente abaixo do Rio Grande”. Senhor de um pensamento, sempre em</p><p>ebulição, voltado para os fundamentos da realidade em sua problemática. Em</p><p>múltiplas áreas do conhecimento, entre outras, Ciências Humanas e Sociais,</p><p>Filosofia, Teologia, Literatura, Direito, Economia, História, Política. No</p><p>percurso, três fases: crítica literária, crítica das ideias, área dos conhecimentos.</p><p>Considera-o um intelectual autêntico. E explicita: “o intelectual autêntico é um</p><p>intelectual-denúncia ou um intelectual-testemunho. Alceu era as duas coisas.</p><p>E impôs-se como intelectual católico, o leigo exemplar na Igreja do Brasil.”</p><p>Lembra que seu percurso existencial não se constituiu de um itinerário</p><p>geométrico. Foi marcado por uma dinâmica evidenciadora de quanto ele se</p><p>ajustou ao seu tempo, evoluiu em função do convívio com seus</p><p>contemporâneos. Longe de ser um racionalista frio. Sua obra traz a marca de</p><p>“uma paixão sadia da inteligência sem os arroubos apologéticos tão comuns</p><p>nos críticos contemporâneos.”</p><p>Mestre Padilha, a propósito, trata das vicissitudes da angústia metafísica</p><p>que, num determinado momento, se fez presente, avassaladora, no seu espirito</p><p>e a sua decisiva adesão à filosofia de Jacques Maritain.</p><p>No âmbito da participação política, assinala a isenção e a objetividade de</p><p>suas análises e sua atuação como crítico do governo militar instaurado em</p><p>1964 no Brasil.</p><p>No diálogo com o texto do autor, que se tornou “um leigo católico</p><p>exemplar”, discorre, numa iluminadora e percuciente análise em</p><p>profundidade, um ensaio dentro do ensaio dedicado ao homenageado, sobre</p><p>esse laicato como vocação e desafio.</p><p>A apreciação crítica dedicada a Rachel de Queiroz começa por relacionar</p><p>a sua produção literária com a cultura brasileira, as instâncias históricas em</p><p>que ocorre, caracterizada por “momentos conturbados, quando tudo está</p><p>desesperançado ou supostamente perdido” e em que uma das estratégias de</p><p>superação consiste em recorrer aos grandes nomes do passado. Rachel se</p><p>insere entre eles. Mestre Padilha o demonstra à larga. Aponta, nessa direção, a</p><p>vinculação da escritora à sua terra e a sua gente, a “brasilidade nordestina”, de</p><p>que sua obra se reveste. Rastreia a sua posição em termos políticos</p><p>“verbalmente ideológico em 1930, sentimentalmente liberal e esquerdizante</p><p>em face da ditadura de Vargas, passada a Segunda Guerra identificada com a</p><p>defesa pessoal das raízes do país, do seu próprio chão. E não deixa de assinalar</p><p>o que considera a comodidade de um certo anarquismo.</p><p>No seu texto, sabemos de Rachel feminista, teatróloga,jornalista e</p><p>romancista. De sua consciência da responsabilidade política do escritor,</p><p>notadamente em relação ao país.</p><p>Com base no olhar da escritora sobre a seca e o flagelo da fome a que se</p><p>vincula, associa-se ao posicionamento da Igreja católica caracterizado pela</p><p>permanente vigilância no que se refere à justiça social. Cita, a propósito, os</p><p>pronunciamentos dos papas Leão XIII, Paulo VI e João Paulo II.</p><p>No destaque, a denúncia e o apelo, em consonância com o momento</p><p>histórico em que se pronunciava: “poucos vêm a público para assegurar um</p><p>futuro melhor para os famintos de hoje ou de amanhã. (...) A fome nordestina</p><p>não pode esperar!”</p><p>O pensador participante nos põe diante, no texto dedicado a Luiz Paulo</p><p>Horta, de uma oportuna reflexão sobre a realidade da centúria atual. Com ela</p><p>encerro esta dispensável apresentação, com que distinguiu seu antigo aluno</p><p>agradecido dos bancos do antigo Internato do Colégio Pedro II:</p><p>“O novo século nos vem revelando um mundo conexo e interdependente.</p><p>É o momento de homens e mulheres embebidos numa visão humanista</p><p>forcejarem para tornar mais amiudado o diálogo indispensável e entre nações</p><p>aptas a lograrem o entendimento, a concórdia e a paz. A voz dos humanistas</p><p>se faz crescente e necessária.”</p><p>Domicio Proença Filho</p><p>O</p><p>A idelidade ética de</p><p>Sobral Pinto</p><p>1</p><p>cortejo de seres humanos que desfilam ante nós oferece uma enorme</p><p>variedade de perfis, a revelar a infinita riqueza do possibilismo da</p><p>criação. É certo que há em cada ser humano um potencial nem sempre</p><p>traduzido no concreto das realizações. Por vezes nos surpreende o</p><p>descompasso entre as virtualidades de um ser e o seu diminuto desempenho</p><p>existencial. E mais. Na visão da planície humana, aqui e ali descortinamos</p><p>alguns cumes. Homens e mulheres que ultrapassam a mediania e nos põem em</p><p>realce o retrato de sua aparente superação. Na verdade, o quinhão de resposta</p><p>munificente aos apelos de seu ser-mais. São seres de escol que se revelam nas</p><p>situações-limites, de que fala com percuciência Karl Jaspers2.</p><p>É de um desses altiplanos de nossa geografia humana que cabe especial</p><p>registro. Refiro-me à figura de Sobral Pinto, que o País inteiro se habituou a</p><p>admirar, não</p><p>fez o menino percorrer a imortal obra de Homero. Surgiu assim um gigante</p><p>das letras universais. Por igual, o ilustre pai de Ana Maria, o ínclito homem</p><p>público Mario Martins, abriu as portas da literatura, aproximando a filha do</p><p>romance maior, Dom Quixote, de Cervantes. Foi o ponto de partida para a</p><p>grande decolagem literária que extasia os coetâneos à volta. Isto porque a obra,</p><p>em grande parte nascida aparentemente do desejo maior de encantar os</p><p>espíritos em tenra idade e aqueles que se aprestam para pervadir o espaço</p><p>reservado aos adultos, se volta decididamente para o universal que mal se</p><p>encobre nas densas sortidas do imaginário. O fruto das obras se abre de par em</p><p>par para leitores de todas as idades, uma vez que o convite que nos dirige e</p><p>concerne à condição humana envolvida em arte de elevado corte. Penetrar na</p><p>riqueza desta condição invariavelmente vincou a alma sensível de Ana Maria</p><p>Machado, que nos vem propiciando infindáveis momentos de encantamento,</p><p>conquanto o estilo nem de longe se escude nas filigranas linguísticas a que se</p><p>afeiçoam alguns escritores carentes do real intento ou do talento de se</p><p>comunicarem com os leitores. Antes, almejam fechar-se em si mesmos e</p><p>monologar num refugio que lhes esvazia a alma.</p><p>Ana Maria vem enriquecendo o espírito mercê de textos de literatura</p><p>para crianças e jovens, romances, ensaios, dissertação de mestrado e tese de</p><p>doutoramento. Principiou a publicar em 1976. Foi quando, em Paris, Roland</p><p>Barthes escolheu-a para integrar um pequeno e privilegiado grupo de</p><p>doutorandos. Desde aquele então, a laureada escritora se adentrou nos</p><p>meandros da semiótica, da linguística e esmiuçou a rica e inovadora linguagem</p><p>de Guimarães Rosa, marco de nossa literatura.</p><p>Sua tese revela conhecimento profundo da moderna semiótica e da</p><p>linguística. Trata-se de “uma intraleitura da obra de Guimarães Rosa”, como</p><p>frisa Houaiss. O Nome próprio não se situa no plano impreciso do mero acaso,</p><p>mas desempenha papel singular e é mesmo inspirador da trama em que está</p><p>inserido. O Nome questiona o texto, manifesta um sistema de significação e,</p><p>pois, um papel classificador. O Nome se desintegra em pequenas unidades de</p><p>significação, para atestar que eles abrem espaço para a riqueza de sentido do</p><p>texto literário. É um leque de significações e mal encobre, com associações,</p><p>condensações e deslocamentos o vínculo do texto com a elaboração do sonho</p><p>na descrição freudiana. Na esteira de seu pensamento, conclui-se que “o que</p><p>nos revela uma análise da escrita rosiana é que, no engendramento de seu</p><p>texto, no trabalho ativo da escrita, o Nome próprio (particularmente, o dos</p><p>personagens) desempenha um papel fundamental: ele guarda dentro de si, sob</p><p>um aspecto latente, uma profusão de semas que se vão manifestando aqui e ali,</p><p>através do texto”.</p><p>Em 1977, veio a lume o primeiro livro infantil, Bento-que-beto-é-o-frade. Já</p><p>nele se encontra bem nítida a face rebelde. Em Passarinho me contou, desfila</p><p>ante nossos olhos atônitos, todo um cortejo de dados objetivos de nosso</p><p>próprio percurso nacional. Em Do outro lado tem segredos, o dealbar da</p><p>curiosidade que é permanente desperta para captar a riqueza do real, a</p><p>consciência do mistério que suplanta a visão imediata e perfunctória tão</p><p>convidativa e tão destituída de sentido para um olhar imerso na densidade do</p><p>ser. Prestou comovida homenagem a José Lins do Rego em O menino que virou</p><p>escritor. O centenário de Portinari também é lembrado em Portinholas. Abrindo</p><p>caminho revela para crianças e jovens todo um roteiro de leituras possíveis,</p><p>despertado com a menção aos grandes da literatura mundial. Bem original é a</p><p>proposta de jogar com as palavras, unindo-as pelo som que as irmana ou a</p><p>composição nelas atestada, como se verifica em Um avião e uma viola. História à</p><p>brasileira nasceu de uma noite sem luz elétrica, em companhia de seis meninas.</p><p>Passou a lhes contar histórias e, “quando o fornecimento de energia elétrica foi</p><p>restabelecido, elas não queriam que se acendesse a luz. Preferiam fazer de</p><p>conta que não havia televisão, vídeo nem videogame - desde que houvesse</p><p>histórias”. É um turbilhão de modalidades de narrar, de recordar, de sentir, de</p><p>captar a melodia do mundo mercê da beleza e riqueza das palavras. Certa feita,</p><p>ao visitar uma escola, sobreveio um comentário risonho de uma menina de</p><p>sete anos a propósito: “Ela (Ana Maria) vive tanto no meio das palavras que,</p><p>ao falar, ela rima.”</p><p>É mister sublinhar que a literatura infantil na América Latina vem</p><p>revestida de um sinal inequívoco de subversão, apresenta muita vez o sinete</p><p>inconcusso da denúncia. A crítica literária despertou majestosamente para a</p><p>nossa literatura infantil, designadamente em 1982, quando foi concedido a</p><p>Lygia Bojunga o prêmio maior deste relevante segmento, o Hans Christian</p><p>Andersen. E Ana Maria Machado, por igual, logrou alcançar esta glória</p><p>imarcescível, no ano 2001. Firmou o país como palco iluminado da melhor</p><p>literatura infantil dos últimos tempos.</p><p>Há muito, porém, que lamentar a barreira que os povos desenvolvidos</p><p>contrapõem à riqueza de outras culturas. Referiu que a falta de traduções,</p><p>especialmente para o inglês, gera um crescente distanciamento cultural entre</p><p>os povos. Por ocasião de uma pesquisa realizada na entrada do século XXI, que</p><p>deu conta de que cinco mil títulos saídos de editoras americanas, pouco mais</p><p>de uma dezena resultava de livros traduzidos de outras línguas, Ana Maria</p><p>frisou que se registra, nesse caso, uma “inabalável e injustificável convicção da</p><p>superioridade etnocêntrica”.</p><p>Como sublinha Maria Nikolajeva, consciente ou subconscientemente, os</p><p>leitores de Ana Maria Machado lhe reconhecem o interesse e preocupação em</p><p>esquadrinhar questões como poder, autoridade, injustiça social, preconceitos</p><p>de raça e de sexo. Não se trata de alimentar o veio meramente didático, senão</p><p>acima de tudo se alça a força de sua arte que, como tal, não aceita a imposição</p><p>de textos concebidos nas oficinas de normas e princípios que a orientariam os</p><p>passos, quase sem compromisso com a arte em si mesma.</p><p>Sem dúvida alguma, Ana Maria recebeu a forte influência de escritores</p><p>europeus que se firmaram no pós-segunda guerra mundial, como Sartre,</p><p>Camus e Malraux, depois de haverem se empenhado na luta pela resistência.</p><p>Em Camus, encontrou uma alma gêmea no concernente à maneira de definir o</p><p>sentido da vida do escritor. Haveria razão suficiente para o engajamento do</p><p>escritor, ou deveria ele cingir-se ao plano da pura estética? Conforme a autora</p><p>capixaba salientou, para Camus “nenhum escritor deveria colocar sua obra a</p><p>serviço de nada que seja exterior a suas próprias necessidades criadoras” até</p><p>porque “uma obra de arte é senhora de seu criador”. Isto não eximiu o</p><p>romancista francês de inibir o escritor de “ter uma posição definida a respeito</p><p>de questões sociais e políticas de seu tempo”. Arte e engajamento moldam o</p><p>perfil do genuíno escritor.</p><p>Guiados pela pena de Ana Maria, percorremos os espaços criativos da</p><p>infância, os meandros complexos da adolescência, conduzindo-nos</p><p>suavemente pelos caminhos de que não nos deveríamos apartar tão</p><p>radicalmente com o advento da maturidade. Antes, ela consegue preservar o</p><p>hálito de eternidade presente no imaginário das crianças e dos jovens, cuja</p><p>mirada volvida para o porvir constitui aceno e mesmo conselho indireto</p><p>endereçado a quantos, entrados em anos, por vezes se acomodam e perdem o</p><p>fio luminoso da criatividade e os anseios prenhes de imaginação do início da</p><p>caminhada existencial.</p><p>A escritora nos propõe percorrer um mundo que rompe as barreiras</p><p>etárias, porque sintonizado com a consistência ontológica do ser humano sem</p><p>prejuízo da indispensável evolução.</p><p>Este mérito lhe pertence e seguramente se posta no limiar de sua</p><p>esplendorosa obra, que hoje se situa no pedestal da literatura infanto-juvenil,</p><p>da ficção romanceada e da robusta ensaística, de que é exemplo lapidar a tese</p><p>sobre Guimarães Rosa. Carlos Drummond de Andrade, do alto da cátedra</p><p>literária, emitiu juízo de valor sobre a tese, que equivale a uma consagração</p><p>definitiva, ao escrever:</p><p>“só lamento duas coisas: Que Guimarães Rosa não</p><p>esteja vivo para ler e que você não tenha feito isso com uma obra minha.”</p><p>O surpreendente é que Anajuntou a sutileza e a acuidade especulativa no</p><p>trato de temas literários com a leveza de estilo, a incomparável capacidade de</p><p>comunicação com o leitor, que se sente atraído pela familiaridade do diálogo</p><p>em que se transformam as leituras das obras, com participação crescente de</p><p>quem penetra nos textos. Seus leitores são imantados pela linguagem</p><p>coloquial, pela riqueza metafórica, pelo vocabulário ajustado à temática, pela</p><p>reconstituição de períodos históricos, com todo o cortejo de hábitos, valores e</p><p>crenças, a atestar a amplitude das pesquisas necessárias à elaboração artística a</p><p>que se devota com paciência e competência beneditinas.</p><p>Basta infletir a nossa atenção para os seus romances para sentirmos a</p><p>força da sua narrativa. A audácia dessa mulher, por exemplo, nos transporta</p><p>para um clima machadiano, atestando elevado patamar de compreensão da</p><p>imbricação da ficção com a realidade. Tropical sol da liberdade imerge na relação</p><p>tortuosa entre mãe e filha, nos idos da perseguição política. O mar nunca</p><p>transborda faz desfilar cinco séculos de história, com costumes e valores, mar</p><p>que é metáfora preferencial da caminhada literária. Canteiros de Saturno,</p><p>romance que tanto me emocionou, nos fala do tempo, tema recorrente na</p><p>literatura universal, que encontrou em Marcel Proust o mais qualificado</p><p>intérprete na modernidade. Não há filósofo digno deste nome que dele não se</p><p>haja ocupado, mergulhando nas águas profundas e tortuosas de uma</p><p>temporalidade que nos limita e da qual não escapamos, pois nos cinge, mas</p><p>também parece convidar-nos para um altiplano em que pomos muita vez as</p><p>nossas complacências e nos aventuramos a esperar superações havidas como</p><p>utópicas ou como finalidade mesma do humano viver e conviver.</p><p>A Filosofia convive, ora com as ciências, ora com as artes. São tendências</p><p>que pendem de períodos culturais em que uma ou outra face do real ou do</p><p>imaginário parece preponderar. Muita vez nos inclinamos para o sentir de</p><p>Simone de Beauvoir, para quem “se a descrição da essência concerne à</p><p>Filosofia propriamente dita, somente o romance permitirá evocar na realidade</p><p>completa, singular, temporal, o surto original da existência”. Estimo que haja</p><p>paralelismo entre vocês.</p><p>Falemos de sua formação. Ana Maria começou pela pintura, seguindo o</p><p>curso de Aloísio Carvão, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Ali</p><p>encontrou-se a si mesma, ao descobrir, deslumbrada, que poderia se expressar</p><p>sem racionalismos estéreis. Seguiu-se a isso um caminho de exposições, depois</p><p>um curso intensivo em pintura no Museu de Arte Moderna de Nova York,</p><p>não sem aproveitar a viagem para o enriquecimento da experiência,</p><p>matriculando-se em outro curso, de História da Arte. Após doze anos de</p><p>dedicação à arte pictórica, veio a compreensão de que sua postura era mais</p><p>emocional que conceitual. Sem abandonar a arte inicial dos sonhos, a genuína</p><p>paixão se entremostrava claramente, a paixão que, segundo Fénelon6 é a alma</p><p>da palavra. Estava emergindo do casulo a grande escritora em que se tornou.</p><p>Ana Maria viveu o clima cultural que então criativamente nos modelava</p><p>o perfil artístico. Programas diários de música na televisão escancaravam as</p><p>portas para a MPB e o rock brasileiro. Bossa-nova e jazz enriqueciam o script.</p><p>Os Beatles pontificavam, além da Jovem Guarda, a que se juntaram em</p><p>prestígio Elis Regina, Chico Buarque, Edu Lobo, Caetano, Gil, Bethânia. Vale</p><p>recordar o apreço especial que Chico Buarque lhe devota, ao escrever: “faço</p><p>uma música e penso: será que a Ana Maria vai gostar dessa?”</p><p>À época, o Teatro Opinião era palco de outras afirmações artísticas que</p><p>comoviam essa geração. O cinema igualmente comparecia com presença</p><p>marcante de Glauber Rocha, Arnaldo Jabor, Cacá Diegues e tantos outros que</p><p>firmaram o nome do país em telas de outros continentes. Era uma época em</p><p>que os artistas se agitavam e faziam jorrar a criatividade bem brasileira.</p><p>Ia absorvendo osjatos da torrente cultural que suplantava os limites</p><p>impostos pelos então donos do poder.</p><p>No início de seus passos, Ana Maria nem pensava em escrever. Mas</p><p>provinha de rica vivência como professora de língua e literatura em colégios e</p><p>universidades. Lecionou Português e Literatura nos Colégios Santo Inácio,</p><p>Our Lady of Mercy, Princesa Isabel e no curso Alfa, do Itamaraty. Na</p><p>Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, trabalhou</p><p>como auxiliar de Augusto Meyer, ministrando aulas de Teoria Literária e, com</p><p>Afrânio Coutinho, de Literatura Brasileira. O exercício da docência a atraiu</p><p>graças à “alegria de compartir descobertas com ajuventude” e, ao que tudo</p><p>indica, obedeceu ao sentir de Rosa: “mestre não é quem sempre ensina. Mas</p><p>quem, de repente, aprende.” Eis o traço de união entre a fase de dedicação ao</p><p>ensino como interação entre docentes e discentes e a abertura de espírito a</p><p>desaguar na literatura como forma de diálogo constitutivo de si mesma e de</p><p>seus leitores. É de registrar-se a palavra, que promanou do mais íntimo de sua</p><p>alma: “o que eu sou mesmo, irrecusável e para sempre, é leitora.” A leitura</p><p>como alimento do espírito, como vigilante sentinela do espaço da memória,</p><p>certeza de enriquecimento interior.</p><p>Corria o ano de 1969. Aí emergiu o desafio decisivo: o convite para</p><p>escrever para crianças. Havia nascido a revista Recreio, que tinha como editora</p><p>Sonia Robato. O convite colheu de sua parte a mesma resposta que já lhe dera</p><p>Ruth Rocha, outra grande escritora de textos infantis: “mas eu nunca escrevi</p><p>uma história na vida.” “É justamente por isto que a estou convidando”,</p><p>redarguiu Sônia, incisiva. A primeira história saiu torta, artificial, moralista.</p><p>Não era o que a revista Recreio esperava, nem desejava. Mas seu espírito não é</p><p>afeto a desistências. Pelo contrário, os desafios compelem-na a enfrentá-los e</p><p>vencê-los.</p><p>É relevante assinalar, comJohn Rowe Townsend, que “antes que</p><p>existissem livros para crianças, era preciso que houvesse crianças” com sua</p><p>especificidade, seu modo infantil de ler, de reagir aos textos postos à</p><p>disposição. Na origem, estão as histórias oralmente transmitidas de geração</p><p>em geração que, de resto, está no dealbar da vocação literária de Ana. Não se</p><p>poderia idoneamente olvidar o poderoso influxo sobre a amplitude de ser pelo</p><p>vezo familiar de repassar histórias de geração em geração, marcante hábito em</p><p>sua família. Sua mãe e seus avós fizeram-na viver e sorver intensamente textos</p><p>literários que acabariam por se transformar em moradas perenes do seu filão</p><p>imaginário. Daí a decolagem para o ato de escrever foi um passo, nascido desta</p><p>fecunda pedagogia da leitura em que Ana está empenhada há várias décadas.</p><p>Com John Fowles, Ana Maria liga o livro à árvore. O enraizamento</p><p>deste, a capacidade de oferecer abrigo e sombra, a variedade de formas de vida</p><p>- que nela e à sua volta se aninham - bem dizem da riqueza do livro, ideias e</p><p>valores, sonhos e fantasias, memórias e lirismo, nostalgia e criação, beleza e</p><p>humanismo.</p><p>É recorrente a preocupação ecológica nos escritos de Ana. A natureza se</p><p>manifesta em seu caminhar, a par da sua sensibilidade muito particular para o</p><p>que há de humano no ser homem. Dizia Hans Meier a propósito da riqueza da</p><p>filosofia medieval: vista de longe, ela oferece a impressão de monotonia, de</p><p>perto é que detectamos a riqueza e variedade de suas correntes em que o</p><p>intelectualismo, o voluntarismo, o misticismo, o nominalismo, as formas de</p><p>escolástica e seus momentos se espraiam e se estendem por um milênio. Assim</p><p>são os livros que, bem frequentados, ora nos abrem clareiras nas densas</p><p>florestas, tudo à disposição de quem se aconchega em seu regaço na busca de</p><p>deleite e ânsia de beleza, de verdade e de bem.</p><p>Com amor, mulheres anônimas geraram a riqueza coletiva deste acervo</p><p>de narrativas que modelou gerações inteiras de leitores. Aí se criam histórias</p><p>infantis desvinculadas de quaisquer lições pré-fabricadas na oficina da</p><p>mediocridade, de que constituem</p><p>exemplo marcante as obras dos irmãos</p><p>Grimm e de Hans Christian Andersen. Foi, porém, John Locke quem, por</p><p>assim dizer, inventou a criança, em Thoughts concerning education, em 1693.</p><p>Frequentemente, livros escritos para adultos, por sua beleza literária, acabam</p><p>se transformando em arquétipos de literatura infantil ou juvenil, como The</p><p>pilgrim’s progress, de John Bunyan (1678), Robinson Crusoé, de Daniel Defoe</p><p>(1719) e Gulliver’s Travels, de Jonathan Swift (1726). Miríades de obras</p><p>encantam crianças e jovens, que após suplantarem a adolescência se cingem às</p><p>leituras obrigatórias de livros essenciais à profissão, quando ainda leem. O que</p><p>causa triste hemorragia no afã inicial de ler. A escola parece não se dar conta</p><p>de seu papel, no estímulo que deve dar aos alunos para que se habituem a ler e,</p><p>após a aquisição do tesouro inestimável, atinjam o nível ideal da paixão de ler.</p><p>Teme-se aqui e ali o desaparecimento do livro. À questão Ana Maria devotou</p><p>vários ensaios em que, somente de longe, admitiu a tese e, ainda assim,</p><p>unicamente por este vezo bem pessoal de discutir todas as hipóteses num</p><p>permanente atestado de abertura do espírito. Ainda que tal desenlace</p><p>indesejável viesse a ocorrer - e que ela não acolhe - concluiu seu pensamento</p><p>por afiançar alto e bom som: “livros podem morrer. O que não vai morrer é a</p><p>literatura.”</p><p>A questão básica a cuja análise emprestastes o melhor da argúcia consistiu</p><p>em saber se há ou não uma ideologia explícita ou subjacente aos escritos.</p><p>Emerge, com força insopitável, a tese basilar: a ideologia está presente ao</p><p>obrar literário, pois o escritor é um ser situado, alguém que sorveu sua</p><p>formação numa época, em livros, em valores que pervadiram seus espaços</p><p>mais íntimos, cinzelando-lhe o perfil intelectual, moral, estético. O problema</p><p>nuclear promana da pergunta se a obra está ou não a serviço da ideologia, pois</p><p>esta se vincula necessariamente ao mundo de quem escreve.</p><p>Subterraneamente, a atuação é curial, faz mesmo parte do tecido do escritor.</p><p>Artificialmente imposta, gera livros de que não passamos das primeiras</p><p>páginas, ou então, depois de lidos, não mais figuram em nossa evolução</p><p>intelectual. Obras que fizeram as delícias de multidões, como as Mil e uma</p><p>noites, estão repletas de preconceitos racistas e sexistas, embora se hajam</p><p>imposto aos leitores pela elevada qualidade de estilo, de sua beleza literária. Há</p><p>que se considerar que isto se deve ao fato de que os autores de tais escritos se</p><p>prendiam aos preconceitos correntes, que separavam os habitantes do hoje</p><p>chamado primeiro mundo, de homens brancos, educados em escolas de</p><p>elevado porte, dos negros, pardos, mestiços, enfim, simplesmente havidos</p><p>como seres inferiores. Ana Maria cuidou indispensável denunciar a ideologia</p><p>dominante nesses livros, sem ceder à tentação de lhes negar o valor literário,</p><p>sem perder os benefícios da leitura. É inconcussa e imperiosa a distinção de</p><p>tais planos, porque, como bem disse ela, “não existe objeto escrito que seja</p><p>ideologicamente inocente”. Impende realçar que o leitor igualmente traz em</p><p>sua bagagem todo um cortejo de valores e vivências, eventualmente de fortes</p><p>preconceitos, que integram a tessitura da relação autor-leitor. A leitura estará</p><p>carimbada com visto de embarque para adentrar-se no mundo encantado e</p><p>convidativo. Toda leitura é leitura de alguém que impregna o ato de ler de seu</p><p>próprio universo interior. Não raro as leituras e releituras se modificam em</p><p>função dos momentos em que antecipamos as narrativas, dando-lhes o</p><p>colorido do nosso possibilismo subjetivo. Isto permite atribuir sentido próprio</p><p>à nossa leitura individual e autoriza a recriação pessoal dos textos lidos, numa</p><p>nova modalidade de interação entre autor e leitor e em inéditas e criativas</p><p>relações do leitor com o mundo. É imperioso evitar os escolhos de uma</p><p>utilização mercantil do rico filão literário a ser posto à disposição de crianças e</p><p>jovens. Cumpre obviar os terríveis inconvenientes do mercado escolar e do</p><p>mercado de massa - é que Ana frisa amiudadamente. A literatura se afirma</p><p>mesmo pedagogicamente como uma forma de rebeldia, de autonomia do</p><p>leitor, de contestação ao politicamente correto. Insiste em abrir os espaços da</p><p>reflexão aos leitores, retirando-os da passividade convidativa. O rosto literário</p><p>de Ana resultou magna parte de suas leituras. Na qualidade de leitora voraz,</p><p>deve aos livros o que veio a ser.</p><p>A trilha existencial do percurso de Ana pendeu para uma crescente visão</p><p>do peso axiológico presente na filosofia moderna e concluiu que existe uma</p><p>maneira feminina de escrever e de ler. Porém, mulher de feminismo aguçado,</p><p>sem os ademanes daquele travestido de machismo artificial, tem transparente</p><p>compreensão de que “o projeto feminista é da humanidade, não só da mulher”.</p><p>O que nada obsta a que ela acredite na diferença dos perfis entre homem e</p><p>mulher e que bem saiba administrar as energias e capacidades, os atributos e as</p><p>virtudes do mundo da mulher. Aponta sem rebuços as qualidades da mulher:</p><p>paciência, coragem, determinação, amor, simplicidade e capacidade de</p><p>conviver, e sobretudo compaixão. Tais epítetos inegavelmente enriquecem a</p><p>biografia, com tinturas nítidas de inconformismo, de intuição dos caminhos</p><p>fecundos por explorar, da opção pelo silêncio criativo e, portanto, da fuga ao</p><p>rumor dos elogios protocolares, enfim, da sua autenticidade, da fidelidade a</p><p>valores, sem a rigidez dos espíritos caricatos a prelecionar uma axiologia</p><p>impositiva e preconceituosa.</p><p>Vejo-a um espírito aberto à modernidade, à natureza e à riqueza humana.</p><p>Certa feita Ana expressou, em entrevista, e de maneira espontânea, singela e</p><p>direta, o mundo que a atrai: “gente, mar, sol, natureza em geral, música, fruta,</p><p>salada, cavalo, dançar, carinho.” E bosquejastes o próprio perfil: “tenho em</p><p>mim uma mistura muito esquisita, misto de rebeldia meio arrogante e</p><p>petulante, com uma certa sensibilidade deslumbrada.” Revelou, pois, uma</p><p>personalidade rebelde, infensa a acomodações. E deixa-se guiar pelo</p><p>pensamento de John Kenneth Galbraith: “pretendo me divertir e seguir minha</p><p>filosofia de vida: levar conforto aos aflitos e afligir aqueles que vivem com</p><p>excesso de conforto.” Há em seu interior um impulso para situar-se “contra a</p><p>corrente e contra o corrente”. É mesmo o título de um dos seus livros que</p><p>enfeixa conversas sobre leitura e política.</p><p>Como radialista e jornalista, chefiou o departamento de jornalismo da</p><p>Rádio Jornal do Brasil e, no Jornal do Brasil, criou uma seção pioneira de crítica</p><p>da produção cultural para crianças. Na PUC, fundou o primeiro curso de</p><p>Literatura Infantil do país em nível universitário.</p><p>Vencidos os produtivos anos setenta, a década seguinte seria para ela a</p><p>década do livro, com a fundação da Livraria Malasartes, à qual se dedicou</p><p>durante dezoito anos, totalmente voltada para a literatura infantil.</p><p>A rigor, Ana não se preparou de antemão para escrever livros</p><p>especificamente destinados às crianças e partilha o sentir de C. S. Lewis:</p><p>“clássico infanto-juvenil é aquele cuja primeira leitura pode ser feita na</p><p>infância.” É manifesto, em nossa sociedade, o preconceito atinente à literatura</p><p>infanto-juvenil. Muitos adultos não a sabem ler, nela não captam a</p><p>universalidade que aí se encontra como em terra nativa. São lições</p><p>imorredouras de vida, sem as farpas afiadas de um cediço moralismo, da morale</p><p>close</p><p>7, de que cuida Henri Bergson8. É a vida que pulsa numa união entre o real</p><p>de que muitos adultos fogem e o imaginário a transbordar a profundidade do</p><p>humano existir, muita vez recheado de fina e doce ironia. Quem não é capaz</p><p>de perceber as nuances e modulações dos escritos preferidos pelas crianças que</p><p>já sentiram a atmosfera diáfana da imaginação literariamente estética ainda</p><p>não despertaram plenamente para a vida e, assim, não encontraram uma</p><p>perene fonte de alegria e de prazer. Os escritos não têm destinatários</p><p>definidos. A arte se abre de par em par à beleza que, no dizer de Dostoievski e,</p><p>mais tarde reiterado por Soljenitsyn, salvará o mundo. Ana Maria nunca se</p><p>atraiu pelos arreganhos</p><p>calcados nas certezas apodíticas por bem saber que elas</p><p>se estreitam nos descaminhos do fundamentalismo, seja ele político ou</p><p>religioso. Ouso dizer que ela palmilha as estradas amplas e luminosas da</p><p>verdade. É com ela que tem compromissos. Caminha de mãos dadas com ela.</p><p>Os que respiram a atmosfera aparentemente remansosa das certezas carecem</p><p>da indispensável leveza de ser, da consciência de que as âncoras especulativas</p><p>mais sólidas são encontradiças nos terrenos infensos à cristalização dos</p><p>saberes. Contrariamente, Ana navega no mar das flutuações variáveis, na</p><p>convicção de que a rigidez do espírito não se compadece com a grandeza da</p><p>criatura com proveniência acima da mera fenomenologia do cotidiano.</p><p>Atrevo-me a afiançá-lo, a verdade é uma luz que, conquanto distante, se</p><p>avizinha sob a égide da arte. Seu compromisso com a verdade se vincula</p><p>essencialmente ao que firmou com a arte, pelo que não se deixa seduzir pela</p><p>fácil popularidade, pela lei inconsistente do mero sucesso. Sabe, com base em</p><p>vivências dolorosas - o exílio, a doença - que a condição humana é fascinante</p><p>sempre que suplantamos a epiderme do real e mergulhamos na densidade do</p><p>mistério de ser. Daí a firme decisão de preservar a visceral intimidade, num</p><p>resguardo necessário à criatividade, que jamais emerge no bulício dos</p><p>aplausos, nesta infantil busca de simplesmente aparecer, no que seria uma</p><p>distorcida hermenêutica da filosofia de Berkeley, com o princípio esse rerum est</p><p>percipi</p><p>9. Os espíritos de escol sabem o pedágio oneroso que pagam à</p><p>desintegração de si mesmos sempre que fogem do silêncio interior em que se</p><p>abastecem os que cuidam do aprimoramento humano antes do que ao sucesso</p><p>episódico e infantil. Já há três séculos, Pascal nos advertia de que o grande mal</p><p>consistia em não saber o homem viver entre as paredes do quarto.</p><p>O verdadeiro escritor, e Ana o é superlativamente, é um inventor de</p><p>linguagem. Descobrir as palavras que traduzem a complexidade do ser e do</p><p>existir traduz insofismavelmente a própria compreensão dos desafios que nos</p><p>são lançados à face nesta senda em que tudo parece tornar-se obstáculo a</p><p>nossos passos e, portanto, ensejo para todas as afirmações e para todas as</p><p>negações. São os instantes aparentemente fugazes e fugidios em que a vida que</p><p>temos expressa o ser humano que somos. Invenção de linguagem é criação</p><p>diuturna da própria construção pessoal, é conatural ao ato de ser que se</p><p>manifesta na ação. Neste sentido, a história de Ana Maria Machado é de uma</p><p>riqueza sem par, por ter atingido o elevado plano de um estilo que parece fluir</p><p>de todos nós, quando na verdade avulta nos escritos com a simplicidade</p><p>inerente à perfeição possível, vale dizer, à perfectibilidade que</p><p>incessantemente ela busca. Longe de si a torre de marfim, o ensimesmamento</p><p>narcisístico. Antes, cuida necessário infletir na ação o conteúdo das palavras e</p><p>valores que cultiva. Tem patente e fidelidade ao dizer do Padre Antônio</p><p>Vieira, a quem tanto devemos culturalmente. Mestre da língua e expressão</p><p>superlativa do barroco em nossa literatura - consoante nesta casa proclamou,</p><p>com competência e paixão, Sergio Rouanet -, Vieira escreveu: “o semeador e o</p><p>pregador é nome; o que semeia e o que prega é ação; e as ações dão o ser ao</p><p>pregador.”</p><p>O roteiro de vida de Ana Maria Machado tem sido possível em virtude da</p><p>aguda consciência de que os saberes não são estanques, de que lhe incumbe</p><p>palmilhar estradas de conteúdo diversificado. É bem nítida em sua obra e em si</p><p>mesma a abertura para, além da literatura, para a linguística, a semiótica, a</p><p>filosofia da linguagem, a filosofia ut sic, a sociologia, a história, como estuário</p><p>de hábitos e costumes, crenças e valores. Isto sem falar no engajamento</p><p>político. Adota a visão global e não globalizante, graças à qual theoria e praxis,</p><p>ação e pensamento se ajustam, sem deméritos reciprocamente dardejados. Não</p><p>há surpresa em que se tenha recordado a assertiva de Sergio Buarque de</p><p>Holanda de que se pode falar de uma “aversão do brasileiro à economia”. Isso</p><p>porque Ana colheu do historiador ilustre a ideia de que economia integra o</p><p>todo cultural, e bem avisados andariam os que se distanciam do real concreto e</p><p>se refugiam numa retórica vazia, quando sérios desafios nos abalam a</p><p>consciência e apenas cruzamos os braços.</p><p>Bem sabe que a interdisciplinaridade se vem impondo gradativamente</p><p>aos espíritos mais atentos à complexidade do real. Daí a sua obra refletir esta</p><p>diversidade de aspectos que tanto a enriquecem e que resultam da consciência</p><p>de que os saberes não se estratificam, não se cristalizam, mas permeiam todo o</p><p>múltiplo universo que intentam explicitar. Estou convicto de que vivemos</p><p>epistemologicamente um momento rico de transição de uma tênue</p><p>interdisciplinaridade para, adiante, modelar uma transdisciplinaridade. Só</p><p>então, caberá aos pensadores de um futuro, talvez não muito distante, edificar</p><p>uma epistemologia da convergência, a partir da antessala de uma incipiente</p><p>convergência epistemológica. Isto porque não há unicamente no cosmo</p><p>buracos negros. Identificamos timidamente alguns cones de sombra no amplo</p><p>estuário dos saberes e cremos que neles pode residir o potencial de saber do</p><p>homem dos séculos vindouros.</p><p>A abertura de espírito de Ana bem revela a consciência do enorme</p><p>potencial que se esconde em suas arremetidas estéticas que, no meu</p><p>entendimento, expressam a busca da verdade nas modulações da beleza que</p><p>tanto a atraem e mesmo justificam o itinerário artístico. Cuido que ela deseja</p><p>abraçar o mundo, olhar olho no olho o desfilar dos fenômenos à volta,</p><p>resguardando aquela inocência da visão para mais bem lhe penetrar no</p><p>mistério, não sem pari passu se precatar mercê de exigente espírito crítico. A</p><p>espontaneidade que se casa com a reflexão bem define a sabedoria dos homens</p><p>e lhes endereça o convite a que cheguemos ao limiar do instante privilegiado</p><p>em que queremos o destino que nos cabe como se nós mesmos o houvéssemos</p><p>escolhido. Em que vocação e destino se superpõem.</p><p>Ana Maria secreta uma disponibilidade diuturna ao universo que nos</p><p>circunda sem fixar o olhar em nada, na esteira do filósofo Alan Watts, para</p><p>quem “a atenção ilumina com clareza algum ponto, mas nada nos diz sobre</p><p>onde realmente estamos”.</p><p>Hoje, a leitura é pessoal, silenciosa, reflexiva. Antes, sempre fora coletiva,</p><p>com poucos livros à disposição de todos. Daí a presença mais profunda das</p><p>ideias, das crenças, dos valores, da beleza nas mentes e nos corações dos</p><p>poucos que eram depositários privilegiados do mundo encantado da cultura.</p><p>Depois, a leitura passará gradativamente ao alcance de todos, ou de multidões.</p><p>Avultou no horizonte a democratização da leitura. Contudo, à carência</p><p>de textos sucedeu a sua proliferação nisto que George Steiner denomina o</p><p>“dilúvio da escrita”.</p><p>Não devemos obliterar o engajamento político de Ana Maria. Ainda</p><p>como estudante, participou do Movimento de Educação de Base para</p><p>alfabetizar adultos pelo Método Paulo Freire, deu aulas para operários num</p><p>prédio em construção, em Copacabana, no Rio de Janeiro, combateu o regime</p><p>militar como jornalista, viveu a dor do exílio, sempre forcejando pelos valores</p><p>fundantes da filosofia de vida. O jornalismo, na imprensa falada e escrita,</p><p>levou-a a atuar politicamente, com paixão em prol de convicções libertárias.</p><p>Daí à perda da liberdade de ir e vir foi um passo. Pagou o preço mas forjou a</p><p>têmpera e afirmou a vocação democrática voltada para a justiça social, valores</p><p>constantes em sua biografia.</p><p>Prêmios literários enriquecem sua exuberante biografia. Jamais</p><p>constituíram unicamente êxitos de vendas em si, é relevante sublinhar, são,</p><p>isto sim, permanentes sucessos de leitura. As listas dos mais lidos não podem</p><p>emergir como critério valorativo por si mesmo. É um índice quantitativo, que</p><p>essa magna escritora atinge de maneira exponencial. O significativo é o</p><p>despertar, pela leitura, do que há de humano em cada leitor, e os convites que</p><p>lhe endereçam para escrever, para proferir conferências, para transmitir as</p><p>experiências literárias que falam por si mesmas como</p><p>evidências de que, não o</p><p>sucesso perfunctório, mas a chama de ardor artístico é que vem dimensionado</p><p>a marcante presença cultural, aqui e alhures.</p><p>Sua brilhante passagem pelas nossas letras com tantos prêmios no país e</p><p>no exterior, sem falar nas múltiplas menções honrosas, recomendações</p><p>constantes de textos, de traduções, dentre as quais impende destacar Peter Pan</p><p>e Uma história de Natal, havidos como as melhores traduções dos anos de 1994</p><p>e 1995. Foram algumas dezenas de prêmios nacionais, dentre os quais se</p><p>destacam os prêmios Machado de Assis da Academia e da Biblioteca Nacional,</p><p>o Octávio de Faria, da União Brasileira de Escritores e três Jabutis. No exterior</p><p>avulta, em primeiro plano, o prêmio equivalente ao Nobel de literatura</p><p>infantil, o Hans Christian Andersen. A obra espraiou-se por numerosos países</p><p>a atestar a contribuição para o crescente incremento de nossa presença</p><p>literária no mundo. Com isto, contribuiu significativamente para a difusão da</p><p>literatura brasileira.</p><p>Não norteei essa exposição por nenhum critério cronológico. Se o fiz,</p><p>devo-o à própria Ana, pelo menos em parte. Como ela, andei subvertendo a</p><p>ordem da narrativa. Sua obra História meio ao contrário se inicia com as</p><p>palavras: “casaram-se e foram felizes para sempre” e termina de forma</p><p>igualmente surpreendente: “era uma vez...”</p><p>E também assim termino: Era uma vez... era uma vez... e era uma vez</p><p>Ana Maria Machado...</p><p>NOTAS DOS CURADORES</p><p>1 Quae sera tamen - Do latim, Ainda que tardia.</p><p>2 Taedium vitae - Do latim, Tédio, Sentimento de cansaço ou enfado.</p><p>3 Factis non verbis sapientia se proitetur - Do latim, A sabedoria tira proveito dos fatos e não das palavras.</p><p>4 Loquor, ergo cogito et sum - Do latim, Falo, logo penso e existo.</p><p>5 Scribo, ergo sum - Do latim, Escrevo, logo existo.</p><p>6 François Fénelon, pseudônimo de François Salignac de La Mothe-Fénelgon, também conhecido como</p><p>“O Cisne de Cambrai” - Teólogo católico, poeta e escritor francês.</p><p>7 Morale close - Termo criado pelo filósofo Henri Bergson. Moralfechada é a moral de determinado grupo</p><p>humano/região. É rígida e não aceita críticas.</p><p>8 Henri Bergson - Filósofo e diplomata francês, laureado com o Nobel de Literatura de 1927.</p><p>9 Esse rerum est percipi - Do latim, O existir das coisas consiste em serem percebidas.</p><p>O</p><p>A aragem metaísica do</p><p>romance de Octávio de Faria</p><p>ctávio de Faria nasceu nas Laranjeiras, no Rio deJaneiro, em 15 de</p><p>outubro de 1908. Filho do acadêmico Alberto de Faria, autor de uma</p><p>famosa biografia de Mauá, e de Maria Teresa de Almeida Faria, filha de</p><p>Tomaz Coelho e Almeida, Ministro do Império e fundador do Colégio</p><p>Militar, sua vida transcorria entre o Rio de Janeiro e a cidade imperial de</p><p>Petrópolis e, mais tarde, também em Teresópolis. Na cidade imperial viveu em</p><p>casa tombada pelo patrimônio histórico que pertenceu ao Barão de Mauá,</p><p>antes de ser adquirida pelo seu pai. O próprio Octávio desenhou o seu mundo:</p><p>“meus cunhados Afrânio Peixoto e Alceu Amoroso Lima e a grande</p><p>companheira de leituras e passeios, (minha irmã) Heloísa..., somados ao</p><p>exemplo e carinho de meus pais e à afabilidade do mundo familiar,</p><p>representaram o quadro quase completo das relações humanas de minha</p><p>meninice. Não tive nenhum amigo na infância.” Conta Alceu Amoroso Lima</p><p>que Octávio, em tenra idade, brincava com formigas e por um telescópio</p><p>contemplava as estrelas do céu. Introvertido, tímido à outrance</p><p>1, o romancista</p><p>carioca vivia em seu mundo interior, parecendo concentrar-se para cumprir</p><p>seu fecundo destino de escritor, um dos mais talentosos ficcionistas de nossa</p><p>língua. Afrânio Peixoto desposou sua irmã Chiquita em 1914 e, quatro anos</p><p>mais tarde, Alceu se casará com sua irmã Maria Teresa. A introversão do</p><p>patrono da nova cadeira era patente. Morava com sua irmã no morro da</p><p>Viúva. Lá foi entrevistado por Marisa Raja Gabaglia: “Você é casado?”</p><p>Resposta: “Não. Não houve ocasião. Acho que teria dado certo”.</p><p>A adolescência iria mudar este quadro de isolamento infantil,</p><p>incorporando numerosos amigos que haveria de conservar ao largo de sua</p><p>vida de quase setenta e dois anos. Os autores mais afeitos ao gosto infantil e</p><p>juvenil cederão lugar, dentre outros, a Byron, Shakespeare, Victor Hugo,</p><p>Dostoievski.</p><p>Concluiu seus estudos primários e secundários no Colégio Santo Antonio</p><p>Maria Zaccaria, dos padres barnabitas, de 1922 a 1926, e sua formação</p><p>superior se deu na Faculdade Nacional de Direito, de 1927 a 1931 - ano em</p><p>que se firmou como escritor, mercê da publicação de Maquiavel e o Brasil.</p><p>Sua personalidade introspectiva jamais o impediu de se firmar como líder</p><p>intelectual que foi, já durante o curso de direito, quando adentrou o Centro de</p><p>EstudosJurídicos e Sociais (o famoso Caju), com a apresentação de uma tese</p><p>sobre Desordem no mundo moderno. Nele figuraram intelectuais de valor</p><p>inquestionável como San Tiago Dantas, Antonio Galloti, Chermont de</p><p>Miranda, Américo Lacombe, Helio Vianna, Thiers Martins Moreira, Álvaro</p><p>Penafiel (meu padrinho), Vinicius de Morais, Plínio Doyle, Mario Vieira de</p><p>Melo, Clovis Paula da Rocha, Almir de Andrade e muitos outros escritores.</p><p>Havendo se imposto a intelectuais de elevado corte no início de sua</p><p>fecunda vida literária, Octávio porejava uma seriedade madura e, por esta</p><p>razão, se manteve distante de polêmicas, preservando a sua vida interior a</p><p>alimentar os seus escritos. Sua liderança não era apenas política, mas também</p><p>artística, no sentir de Francisco de Assis Barbosa.</p><p>Seu cunhado Afrânio Peixoto foi um mestre para o jovem escritor.</p><p>Cinema e literatura se imiscuíram em sua biografia mercê de forte influxo de</p><p>Afrânio. A Alceu Amoroso Lima, Octávio deve, entre outros ganhos, a</p><p>revelação de Léon Bloy2.</p><p>Octávio assente que “depois de Nietzsche, foi o encontro mais importante</p><p>de minha vida. Pode parecer estranho eu gostar de dois autores tão opostos,</p><p>tão irredutíveis, diferentes”.</p><p>Léon Bloy, o trágico romancista gaulês, viveu a aventura solitária e</p><p>também solidária com sua mulher e filhos. Octávio de Faria deixou-se imantar</p><p>por seus escritos, parecendo redigidos com uma pena embebida em sangue.</p><p>Afonso Arinos de Melo Franco obtempera que Octávio, em seus romances,</p><p>havia rompido com a inocência, mas não com a pureza. Daí o porquê da</p><p>menção privilegiada em sua obra à palavra fulgurante de fé, de entrega e de</p><p>sofrimento existencial. Bloy escancara a alma, deixa-a inundar de lucidez, ao</p><p>declarar enfaticamente: “só há uma tristeza: a de não sermos santos.” Nada</p><p>mais apropriado e ajustado ao perfil espiritual de Octávio e de muitas de suas</p><p>personagens. A perfeição nos acena de longe, nós nos encaminhamos para o</p><p>grande encontro. Ela não nos acolhe em seu regaço. Octávio sabe que ela é</p><p>inatingível, que o embate entre as potências praeter</p><p>3 ou sobrenaturais</p><p>propendem para dominar nosso espírito, a nossa carne, nossos instintos,</p><p>nossas paixões. A perfectibilidade irrompe como limite natural, delineando as</p><p>fronteiras de uma santidade frustrada. O romancista nos propõe, segundo</p><p>Alceu, solução dramática, espiritual e sobrenatural aos desafios existenciais</p><p>que ele mesmo cria e ocupam todos os espaços de nossa intimidade.</p><p>No dia 17 de outubro de 1980, Octávio de Faria participava de um</p><p>almoço de atribuição do prêmio literário Fernando Chinaglia, no clube</p><p>Ginástico Português, quando sobreveio um derrame cerebral fatal. Octávio</p><p>partiu para a eternidade legando-nos uma obra portentosa.</p><p>Qual o perfil existencial de Octávio?</p><p>Eis como ele mesmo se define: “sinto-me cristão, católico, católico</p><p>mesmo, até às entranhas e no sangue que me corre nas veias.” E mais: “sou um</p><p>católico que é ou pretende ser romancista.”</p><p>Coisa totalmente diferente, me parece. Um autêntico romance não deve</p><p>ser “católico”, isto é, visar a fazer moral católica - que é matéria dos manuais de</p><p>apologética. Acontece, porém, que se o romancista, pessoalmente, for católico,</p><p>e se escrever com total sinceridade, fatalmente seu romance terá de ser</p><p>classificado como “católico”. Testemunhando sua verdade íntima, sendo</p><p>absolutamente sincero na forma como mostra o mundo - o</p><p>universo que Deus</p><p>criou - e, sobretudo, como funciona, como se afasta e como se aproxima de</p><p>Deus, de suas leis, o romancista estará certo, mas não poderá deixar de ser</p><p>classificado como “romancista católico”, ou melhor, como um romancista que</p><p>é católico.</p><p>Dedicou-se plenamente à sua vocação de escrever, como Marcel Proust e,</p><p>no Brasil, Antonio Carlos Villaça. O múnus de escritor sufocou, com plena</p><p>consciência dessa opção, quaisquer outras possibilidades de seu viver.</p><p>Comenta-se o estilo octaviano apontando-lhe um certo desleixo. Octávio</p><p>não se defende. Apenas acentua o empenho de seu viver-escrevendo: “trabalho</p><p>muito, mas trabalho quando quero e sem nenhum horário rígido, prefixado.”</p><p>E adiante, assente: “uma literatura com alma pode dar-se ao luxo de descuidar-</p><p>se em alguma medida da perfeição do estilo.”</p><p>Mario de Andrade, após ler Mundos mortos., o primeiro volume da</p><p>Tragédia burguesa, editado em 1937, escreveu a Octávio: “seu livro é muito bem</p><p>escrito, numa linguagem natural que a gente nem percebe que é boa, tanto faz</p><p>ela em não aparecer.”</p><p>Antonio Carlos Villaça, no mesmo sentido, sustenta que “há alguma coisa</p><p>de definitivo num texto, mesmo imperfeito, mesmo inacabado”, para</p><p>acrescentar “a arte literária requer uma espécie de liberdade interior”.</p><p>Os reparos ao estilo de Octávio são recorrentes. Uma ou outra exceção</p><p>confirma o veredicto. É bem de ver que a espontaneidade no ato de escrever é</p><p>conatural à obra de Octávio. Ceder aos rogos de um purismo neste caso talvez</p><p>equivalesse a lhe malbaratar a criatividade. Só o impulso de transferir para o</p><p>papel as emoções, os sofrimentos pungentes, os dramas de consciência no</p><p>preciso momento de seu nascimento poderiam ditar regras ao autor.</p><p>Foi copiosa e farta a colaboração de Octávio de Faria em revistas e</p><p>periódicos. A Ordem, do Centro Dom Vital, fundada em 1921 por Jackson de</p><p>Figueiredo, passará a receber a colaboração de Octávio a partir de 1927. A</p><p>Literatura, dirigida por Augusto Frederico Schmidt, abriu as portas ao</p><p>romancista carioca com sua crítica literária e de cinema. Letras e Artes, Leitura,</p><p>Revista Acadêmica, Boletim Ariel, Pelo Brasil, Hierarquia, Revista de Estudos Sociais</p><p>e Panorama acolheram escritos do romancista que madrugara para as letras.</p><p>Suas primeiras obras respiram temáticas de cunho marcadamente</p><p>político: Maquiavel e o Brasil, (1931) e Cristo e César (1937). O livro Destino do</p><p>socialismo (1933) recolheu as surpresas da era das ideologias e processou as</p><p>confidências políticas de Octávio. É bem de ver que o autor partiu de</p><p>convicções socialistas para, logo após, com elas romper e, numa época de</p><p>opções radicais, ancorar no porto do outro lado de sua visão inicial.</p><p>A ideologia pende para a adoção de certezas, por constituir vezes sem</p><p>conta um sistema apriorístico e até acrítico de ideias de deficiente</p><p>organicidade. Havendo se desligado do socialismo, passou Octávio a lhe ver os</p><p>escolhos e as deficiências estruturais. Criticou igualmente o liberalismo, aí</p><p>restringindo seu espaço de escolha política.</p><p>Na década de 1930, Alceu, com sua persuasão consistente, desviou o</p><p>jovem escritor da militância convidativa e o romancista enveredou</p><p>definitivamente para a sua genuína vocação de romancista - uma vitória da</p><p>literatura. O ciclo político manifestado nos bancos universitários, e que</p><p>prosseguiu com a publicação dos três livros citados, haveria de ceder</p><p>decisivamente com a publicação do primeiro dos quinze romances que</p><p>compõem a obra imortal de Octávio, Tragédia burguesa. O envolvimento com</p><p>temas políticos nunca o levou à militância. Foi talvez um passo ideológico,</p><p>numa curva da história em que as escolhas eram radicais de um lado e de outro</p><p>dos extremos em conflito, nesta espécie de hemiplegia na expressão de</p><p>Raymond Aron4. Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras,</p><p>Octávio de Faria explicita a sua verdadeira prioridade, aquilo que constitui o</p><p>solo preferencial de seu caminhar existencial: a defesa do Espírito.</p><p>Neste primeiro período de sua fecunda vida intelectual, Octávio se</p><p>empolgou com a nova arte: o cinema. Em Fan, órgão oficial do Chaplin Clube,</p><p>que havia fundado, publica dois ensaios, O cenário e o futuro do cinema e</p><p>Signiicação do Far-West, respectivamente em 1928 e 1930 e, em 1964, publicou</p><p>Pequena história do cinema. Imaginou os passos do progresso humano e se fixou</p><p>nas surpresas que adviriam da sétima arte. Seguiu a palavra de Bergson5: “o</p><p>mecanismo de nosso conhecimento é de natureza cinematográfica.” Daí seu</p><p>fascínio por Chaplin, que costumava afirmar que “dar voz ao cinema é o</p><p>mesmo que colocar palavras numa sinfonia de Beethoven”, para acrescer</p><p>“estão arruinando a grande beleza do silêncio”.</p><p>Octávio não via diferença entre escritores e diretores de filmes, ambos</p><p>contribuindo igualmente para a cultura. Além de ser a arte do século XX, o</p><p>cinema é testemunho da liberdade humana.</p><p>Houve um interregno no caminho de Octávio ao se lançar à desafiante</p><p>tarefa de dramaturgo, quando publicou Três tragédias à sombra da cruz (1939).</p><p>De minha parte, julgo quase impossível para um cristão cavar fundo, com</p><p>sua pena, o mistério da cruz, tal o envolvimento ontológico do escritor com a</p><p>dimensão do desafio. Octávio enfrentou o óbice visceral e produziu três</p><p>tragédias à sombra da cruz.</p><p>Das três, Judas é a mais comovente. Nela, o dramaturgo recolhe as fortes</p><p>emoções que povoaram a alma de Judas. Seus pais são as personagens</p><p>principais. Simão de Iscariotes, pai de Judas, sem atentar para a transcendência</p><p>da traição, antessala do magno acontecimento da história dos homens, diz ao</p><p>filho “amanhã não te lembrarás de nada”; “tudo se esquece, filho... Tudo...</p><p>Nada fica no coração dos homens por muito tempo”. “Nem o remorso, nem o</p><p>sofrimento, nada...” Mas Judas processa a sua tormenta: “a face do Mestre, a</p><p>face beijada por mim, não me sai dos olhos...”; “meu desespero é maior do que</p><p>qualquer esperança”. Teologicamente está fixado o limite que nem Deus pode</p><p>transpor. O perdão é pleno para quem se abre ao amplexo do amor divino. A</p><p>rejeição total da mão estendida para o perdão exclui o homem do espaço da</p><p>recuperação moral e espiritual e sela o divino respeito pela liberdade conferida</p><p>aos mortais.</p><p>Mais uma vez, em seus escritos Octávio confere ao homem o recanto da</p><p>escolha plenamente assumida e o desdobramento existencial que dela decorre.</p><p>Octávio tinha verdadeiro fascínio pela poesia. Parafraseando Nietzsche se</p><p>pergunta: será que “nós temos a poesia para não morrer da realidade?” O</p><p>romancista e crítico aproxima a poesia do sofrimento, chegando a avançar que</p><p>“o poeta é um enviado que vem de Deus aos homens para lhes contar o seu</p><p>sofrimento, a sua caminhada pela terra”. Assim se confere ao poeta uma</p><p>missão sagrada.</p><p>Em seu livro Dois poetas (1935), Octávio desvela a contribuição de</p><p>Augusto Frederico Schmidt e de Vinicius de Morais. Os aplausos ao Canto da</p><p>noite (1934) suplantam os limites da generosidade: “Não me resta a menor</p><p>dúvida - dos livros de poesia escritos na nossa língua - dos que eu conheço</p><p>pelo menos, e dos vivos como de mortos - Canto da noite é o maior.”</p><p>Talvez o entusiasmo promanasse da consciência do romancista de que</p><p>nele estivesse embutida a vocação de poeta que não emergiu. Afinal, a poesia</p><p>não se confunde com o versejar. Versos vazios de poesia se acumulam em</p><p>antologias à espera do ostracismo.</p><p>Octávio, com seu suporte filosófico, bem sabe que não se podem</p><p>impunemente segregar poesia e filosofia como se foram universos</p><p>incompossíveis, medindo apenas a distância entre a metáfora e o conceito.</p><p>É o momento de abordarmos a grande obra da vida do romancista</p><p>carioca: a Tragédia burguesa, o cerne de seu legado.</p><p>Essa monumental obra, em que pôs todo o seu engenho e arte, foi</p><p>prevista para vinte volumes, depois reduzida a quinze.</p><p>O plano estava concluído quando da publicação do primeiro volume,</p><p>Mundos mortos, em 1937. Trata-se do mosaico mais completo da sociedade</p><p>carioca dos anos vinte e trinta. Ao primeiro romance haveriam de seguir-se Os</p><p>caminhos da vida (1939), O Lodo das ruas (1942),</p><p>O anjo de pedra (1944), Os</p><p>renegados (1947), Os loucos (1952), O senhor do mundo (1957), Atração, O retrato</p><p>da morte (1961), A montanheta, Ângela ou As areias do mundo (1963), A sombra de</p><p>Deus (1966), O cavaleiro da Virgem (1971), O indigno (1976), O pássaro oculto</p><p>(1979). Atração e a Montanheta somente foram publicados após a morte de</p><p>Octávio.</p><p>Este painel literário se alça a um patamar universal pela temática</p><p>profundamente humana que a impregna e não pelo momento fugaz de uma</p><p>crise da burguesia carioca das décadas de 1920 e 1930. Suas personagens</p><p>ganham vida na pena ágil de Octávio, por maneira a que os reconheçamos</p><p>como se foram seres vivos diante de nós, com suas paixões, seus dramas de</p><p>consciência ou sua inconsciência ética, e até seu intento por vezes angélico de</p><p>perfeição. Todas as paixões humanas aí são desentranhadas, vividas ante</p><p>nossos olhos atônitos, que não desgrudam da leitura que abrasa a alma do</p><p>leitor, que acompanha com frêmito o desenrolar de biografias sempre à beira</p><p>do precipício, a sinalizar situações-limite - tal a dramaticidade de seus</p><p>impulsos voltados para uma negatividade que parece tantas vezes impor-se a</p><p>seres humanos desamparados de esperança e mais propensos a sorver o cálice</p><p>existencial bem amargo que lhes é ofertado. A fé, a paixão, o amor verdadeiro,</p><p>o adultério, o aborto, a dedicação, o perdão, a graça, o pecado, comparecem</p><p>com os matizes diferenciais das personagens esculpidas com invulgar mestria a</p><p>nos revelar a grandeza e miséria do homem.</p><p>A obra ciclópica mescla com originalidade os grandes temas da</p><p>interioridade pessoal e os desvãos da vida social, numa rara harmonia de</p><p>tratamento psicológico com a visão global da sociedade em processo de</p><p>decadência moral e espiritual.</p><p>Pela vastidão e profundidade do projeto, Tragédia burguesa pode ser</p><p>comparada ao painel de grandes romancistas como Balzac, Proust, Faulkner,</p><p>Dostoievski. Por suas páginas, as personagens Branco, Carlos Eduardo, Padre</p><p>Luis, Remi, Pedro Borges, Ivo, Ângela, Lisa Maria e dezenas de tantos outros</p><p>desfilam com suas entranhas cinzeladas com tal vigor que passam a viver</p><p>conosco ao longo da vida, até porque o projeto nasceu no dealbar da trajetória</p><p>do autor,já inteiramente concebido. Durante décadas, Octávio nos manteve</p><p>atentos à sua grandiosa obra romanceada, iniciada em 1937 e concluída em</p><p>1977. Quarenta anos de plena dedicação e mesmo devoção ao seu gigantesco</p><p>projeto o consagrou como um dos maiores romancistas brasileiros. Mesmo</p><p>quando apenas os dois primeiros volumes da grande obra haviam vindo a</p><p>lume, já Mário de Andrade, emitiu o juízo altamente encomiástico ao opus</p><p>magnum de Octávio de Faria: (ele) “já nos deu dois romances de grande valor,</p><p>obras que pela sua originalidade e força criadora estão entre as principais da</p><p>nossa ficção. Só nossa?”</p><p>Muitos críticos se debruçaram sobre a obra ficcionista de Octávio de</p><p>Faria. Seu amigo fraterno, Adonias Filho, soube captar a riqueza metafísica do</p><p>romancista, ao sublinhar “o encontro de Octávio de Faria com a ficção</p><p>existencialmente inquiridora e contemporânea de Mauriac6, Bernanos7,</p><p>Chesterton8, Graham Greene9”. E situa a criatura “na condição de sofrimento</p><p>entregue à própria liberdade para a salvação, herdeira de pecados, solidão e</p><p>angústia”. Assinala ainda que “o ficcionista se move em torno de um valor</p><p>ético, de uma consciência moral e de um sentido psicológico que se associa à</p><p>introspecção. E é a introspecção que, provocando um certo impulso</p><p>metafísico, conduz o romance em direção ao roteiro de Deus, sua motivação</p><p>fundamental. O romance... dirige todos os seus movimentos para Deus”.</p><p>Villaça aponta três figuras mais expressivas do mundo mural de Octávio:</p><p>o padre, o adolescente, o demônio. E continua o saudoso escritor, “o demônio</p><p>não é folclórico, mas teológico, tragicamente verdadeiro sem uma</p><p>negatividade absoluta, em seu élan de tudo pervadir, até as entranhas da alma</p><p>humana, neste mister poderoso de aluir as bases da condição humana,</p><p>retirando-lhe a razão de ser”.</p><p>Deus e o demônio terçam as armas e afinam sua acuidade para mais bem</p><p>inspirarem o humano agir das personagens. É onde se reflete o influxo de</p><p>Georges Bernanos e Julien Green10 no desempenho ficcionista de Octávio e</p><p>por ele, de certo modo reconhecido. Escreveu o autor em A Ordem, órgão do</p><p>Centro Dom Vital: “A religião de Bernanos procura mostrar Deus e o caminho</p><p>do paraíso. A de Green o diabo e o caminho do inferno.”</p><p>Ao tratar da composição romanesca em Octávio de Faria, Eduardo</p><p>Portella lhe reconhece o alcance metafísico, sem descuidar do sentido social e</p><p>da “fruição dramática”. Realça o esforço octaviano para “resistir à derrocada do</p><p>espírito nas malhas da razão instrumental”, num mundo empobrecido por</p><p>perdas do paraíso, das ilusões e da linguagem, das ideologias. Em uma simples</p><p>frase, Portella resume com raro senso de penetração crítica, ao assentir: “o que</p><p>a ideologia desfez, a arte refez.”</p><p>Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, Octávio</p><p>sintetiza o seu escopo fundante: “no pequeno horizonte de minha visão</p><p>pessoal, outro ideal não tive, em toda a minha já hoje longa vida, senão esse de</p><p>viver sem trair o espírito, de manter sempre acesa essa fidelidade que aprendi</p><p>no berço e que meus mestres, os de meninice e os de maturidade, os de vida</p><p>ensinada como os de vida vivida, sempre me fizeram colocar acima de tudo...”</p><p>“Minha geração foi uma geração que lutou, que sofreu, que sangrou, que</p><p>se consumiu nessa batalha em torno da fidelidade ao espírito. E, se muitos</p><p>erros cometeu, ao se deixar levar a posições extremadas quase inumanas às</p><p>vezes, frequentemente fronteiriças dos piores abismos - os que ladeavam a</p><p>direita e os que ladeavam a esquerda - não duvideis, um só instante, de que</p><p>somente uma preocupação a norteava: essa obsessão intimorata na defesa do</p><p>Espírito.”</p><p>O mosaico complexo dos dramas que se entrelaçam aponta para um</p><p>realismo subjetivo, na expressão de Alfredo Bosi, mas que, a meu juízo, não</p><p>descura o enfoque social que se percebe em torno da introspecção</p><p>predominante.</p><p>Há uma riqueza de personagens que habita o universo romanesco de</p><p>Octávio: Branco (o sofrido ser em busca de uma perfeição impossível), o Padre</p><p>Luis (o conselheiro de todos, a absorver os dramas dilacerantes dos</p><p>personagens que nele perseguem o intento de encontrar uma paz já então</p><p>inatingível), Paulo Borges (o sedutor insensível aos mínimos reclamos éticos),</p><p>Ângela (a moça solitária prestes a se deixar envolver em tramas</p><p>diabolicamente arquitetadas), Rení, (a infeliz encarnação do mal, alma</p><p>catalisadora do Senhor do Mundo), Carlos Eduardo, (um adolescente que</p><p>desapareceu conservando a sua inteireza), Ivo (flutuando entre os degraus do</p><p>pecado como forma de alcançar, adiante, a possível perfeição), e dezenas de</p><p>outros figurantes da tragédia esmiuçados pelo romancista.</p><p>Branco é nome indicativo de um roteiro existencial. Fala da pureza</p><p>ansiada, só detectada nas fímbrias dos romances de Octávio.</p><p>É o adolescente que timbra em viver a retidão moral, um jovem católico</p><p>impregnado pela busca de perfeição, sabendo embora que os seus pares não</p><p>haverão de poupá-lo do rodamoinho das paixões, nem ele conseguirá</p><p>distanciar-se da negatividade que envolve toda uma geração da classe</p><p>burguesa. Ivo parece empreender a mesma caminhada. Mas o autor nos</p><p>adverte, num cotejo entre Branco e Ivo: “o que Branco não compreende em</p><p>relação a Ivo é que Ivo pertence a essa espécie de pessoas que precisam</p><p>experimentar, um por um, todos os caminhos errados para então, no final,</p><p>aceitar livremente o caminho certo (conclusão que, naturalmente, só se tira</p><p>depois que se acaba de ler toda a Tragédia burguesa...). Mas Branco, que pensa</p><p>um momento nisso, logo no início, não pode compreender esse modo de ser</p><p>de Ivo. Experimentar todos os caminhos significa, para Branco, perder-se,</p><p>perder-se inevitavelmente. Pois ele pensa, de acordo com a sua natureza, que,</p><p>na prática, o número de caminhos do mal é infinito. Uma série de</p><p>combinações misteriosas faz com que nunca ninguém (assim pensa Branco,</p><p>sempre de olhos</p><p>abismados na sua natureza) chegue a considerar esgotados os</p><p>caminhos do mal. E recomeça sempre. E não se salva nunca. Inútil insistir:</p><p>basta lembrar que, para Branco, o grande perigo é justamente sair do caminho</p><p>certo.”</p><p>Carlos Eduardo foi ceifado em sua inocência e, na visão cristã, a perda</p><p>implica em redução humana significativa. É a comunhão dos santos, vaso</p><p>comunicante entre todos os homens neste sobe e desce da contradição que</p><p>permeia a terra dos homens.</p><p>Padre Luis está numerosas vezes no olho dos furacões que ocorrem à sua</p><p>volta neste auto-aniquilamento da burguesia, sim, mas, sobretudo, de almas</p><p>jovens que jamais encontram a paz, fruto de uma ordem interior buscada,</p><p>porém nunca alcançada. Parece haver uma dicotomia, ou melhor, um</p><p>maniqueísmo vindo de Pascal e que vincou o tecido existencial de Octávio,</p><p>transplantado para as folhas em branco. Antonio Carlos Villaça atira a barra</p><p>mais longe e chegar a falar de jansenismo presente na visão cristã de Octávio.</p><p>Ou então, como se o romancista vivesse circundado pelos muros da fortaleza</p><p>de Carcassonne, plena de cátaros a secretar como albigenses que eram a</p><p>heresia tisnada de maniqueísmo, e haja sido assediado sem proteção diante da</p><p>sedução do Senhor do Mundo. Como todos os reducionismos, a propensão em</p><p>abrir espaço para o demônio se mostra nos romances de Octávio com todo o</p><p>seu cortejo de jogos em que a sedução prima sobre as demais manifestações da</p><p>imperfeição conatural aos homens.</p><p>As dicotomias cristalizam o real, impedem o espírito de navegar em</p><p>águas mais amplas e abertas a um olhar perquiridor prenhe de profundidade.</p><p>Aqui, não. É o padre Luis vivendo as tragédias de uma classe burguesa em</p><p>processo de autoflagelação permanente. Em sua solidão, o reverendo recorre a</p><p>todos os argumentos e mesmo se vale de artifícios para redesenhar algumas</p><p>almas (na maioriajovens), jovens que buscam ou pressentem a aproximação,</p><p>não de uns seres abstratos, com que Aristóteles nos presenteou, e sim à cata do</p><p>Deus vivo e não do Deus dos filósofos. O padre acolhe confidências, numa</p><p>escuta privilegiada. A verdade é que o sacerdote vive a sua via crucis. As</p><p>personagens são as estações que o católico persegue nas igrejas e capelas a nos</p><p>falar a linguagem do sofrimento ontológico de muitos que vivem,</p><p>pascalianamente, gemendo, nesta certeza paulina de que a crucifixão de Jesus</p><p>Cristo está em marcha. Nós a estamos completando diuturnamente. Assim,</p><p>Ele está a nosso lado, em vigília e na acolhida da misericórdia. Branco, Pedro</p><p>Borges, Ângela, Rení, Ivo, Lisa Maria, Paulo Torres e tantos, tantos outros</p><p>recorrem ao padre Luis, cuja alma se despedaça no silêncio de seu refugio em</p><p>que a reflexão sobre os destinos que transitam pelos corredores de seu habitat</p><p>faz contraponto com suas preces tingidas do sangue das dores, melhor dizendo</p><p>do lodo das ruas.</p><p>Octávio se imiscui na narrativa e o faz com vigor. São momentos ou</p><p>instantes privilegiados em que a tragédia firma o seu domínio e parece aluir as</p><p>bases de sustentação das personagens. É como se ele, com sua interveniência,</p><p>esperasse trazer um halo de paz às almas sofridas, às carnes dilaceradas, aos</p><p>espíritos flutuando sem destino ao sabor de suas paixões incontidas e</p><p>incontroláveis. Corre um frêmito qual grito de socorro e o escritor comparece</p><p>em lágrimas à cena do romance e lhe empresta a sua solidariedade, feita de</p><p>permanente atenção à alteridade. Parece em tais momentos que a fé se estiola</p><p>no palco escuro em que a vida não mais clama por si mesma, mas se entrega</p><p>perdida aos ventos impiedosos do tempo vivido, da culpa que teima em</p><p>habitar o coração das personagens, da malignidade que emerge dos dramas</p><p>pungentes que bosquejam a arena do romance-mar. O mal por tal maneira se</p><p>insinua e mesmo por vezes domina o cenário que somos tentados a cuidar que</p><p>o Senhor do Mundo já não deixa espaço para o Bem. Com Octávio, o demônio</p><p>faz sua entrada na literatura brasileira, como sublinhou Villaça. E nós</p><p>adicionaríamos: pela porta da frente. Já o Deus escatológico comparece como</p><p>um centro das súplicas, das preces sofridas e do conselho do padre para</p><p>prosseguir na caminhada em que encontra muitos ouvidos moucos, já</p><p>desembarcados do sentido da vida, despovoados axiologicamente porque</p><p>entregues à desesperança.</p><p>O embate entre a luz e as trevas cifra e mesmo perpassa o projeto global e</p><p>nos aponta para as fronteiras da santidade, convite aberto a todos, mas de</p><p>difícil praticagem.</p><p>Octávio, ao buscar os caminhos da vida - para ele, da santidade - respira</p><p>as dores do mundo, mergulha na condição humana e parece secretar um certo</p><p>pessimismo cristão. Pudera, não foram Pascal, Kierkegaard, Nietzsche, Bloy os</p><p>seus inspiradores mais frequentes?</p><p>Octávio mergulhou nas profundezas do mistério existencial e parece se</p><p>identificar com as personagens, designadamente Branco. Diz ele: “muitas vezes</p><p>me pergunto se não estou caminhando para fazer de Branco eu mesmo. Vou,</p><p>aos poucos, metendo no personagem tantas coisas que são minhas - e que não</p><p>estavam absolutamente no personagem inicial - que não sei como acabará.”</p><p>As dimensões multifárias da cultura de Octávio nunca obscureceram a</p><p>sua vocação medular de romancista, para quem “o verdadeiro romancista não</p><p>morre. Se morreu, não era romancista”. Assinalamos o pessimismo cristão de</p><p>Octávio, que tangencia o desespero. Este terá sido o vinco de seu recado. Mas,</p><p>ao fim da obra ciclópica, no fecho do último volume da Tragédia burguesa,</p><p>Octávio se vê diante de Branco, na prisão, ele o cavaleiro da Virgem, o ser</p><p>vocacionado para a santidade sofrida, e se insinua na gravidade do momento</p><p>uma réstia de luz e o jovem prossegue em sua oração “cada vez mais longe do</p><p>mundo, da lógica ensandecedora dos seres. É quase madrugada. E, a seus pés,</p><p>desfeito, jaz o Príncipe do Orgulho... É cedo, é manhã quase, é aurora... e os</p><p>pássaros já começaram a cantar, em mim, em todos nós”.</p><p>O romancista excepcional nos confia, nas derradeiras linhas de sua</p><p>majestosa contribuição literária, a mensagem de que o mal, no início de um</p><p>novo dia, terá sido ultrapassado e a aurora firmado o seu vigor. E, agora sim,</p><p>os pássaros poderão cantar livremente simbolizando, mesmo no fundo do</p><p>abismo, a Presença pela qual almejam as almas sequiosas de amor, esperança e</p><p>justiça. Esta foi a derradeira mensagem de Octávio de Faria, ora homenageado,</p><p>no centenário de seu nascimento.</p><p>NOTAS DOS CURADORES</p><p>1 Outrance - Do francês, Excessivo.</p><p>2 Léon Henri Marie Bloy - Escritor católico francês, conhecido por seu romance Le Désespéré.</p><p>3 Praeter - Do latim, Além de.</p><p>4 Raymond Aron - Filósofo, sociólogo e comentarista político francês.</p><p>5 Henri Bergson - Filósofo e diplomata francês, laureado com o Nobel de Literatura de 1927.</p><p>6 François Charles Mauriac - Escritor francês, prêmio Nobel de Literatura de 1952.</p><p>7 George Bernanos - Escritor e jornalista francês.</p><p>8 Gilbert Keith Chesterton, mais conhecido como G. K. Chesterton - Escritor, poeta, filósofo,</p><p>dramaturgo, jornalista, palestrante, teólogo, biógrafo, literário e crítico de arte inglês.</p><p>9 Henry Graham Greene - Jornalista e escritor inglês, com uma obra composta de romances, contos,</p><p>peças teatrais e críticas literárias e de cinema.</p><p>10 Julien Green - Escritor norte-americano de expressão francesa.</p><p>U</p><p>Luiz Paulo Horta,</p><p>mestre do jornalismo</p><p>e da música</p><p>m menino ouvia rádio, sem cessar, até que a sua mãe o acordasse da</p><p>viagem musical. E ele ouvia um simples sanfoneiro. Aos cinco anos</p><p>recebeu de presente um cordeon. E, sem professor, aprendeu a tocá-lo por</p><p>conta própria.</p><p>E dedilhava o seu novo brinquedo no portão de sua casa, em Laranjeiras.</p><p>Até que o levaram a se exibir numa quermesse que pretendia levantar fundos</p><p>para a construção da igreja do Cristo Redentor. O mestre do jornalismo e da</p><p>música, Luiz Paulo Horta, acadêmico, descendente de José de Alencar e do</p><p>Visconde de Ouro Preto, disse à época a respeito: “sempre penso em invocar</p><p>esta cena quando chegar ao Juízo Final. Ajudei a construir uma igreja!”</p><p>A vida de Horta ganhou novo impulso musical, quando, aos oito anos,</p><p>recebeu um piano de presente</p><p>de seu avô paterno, Paulo Parreiras Horta,</p><p>médico pesquisador que trabalhou com Oswaldo Cruz. Frise-se que sua avó</p><p>materna era excelente pianista e seu pai, apaixonado por ópera.</p><p>Ao ver o neto dedilhando com agilidade o piano, o generoso avô</p><p>aconselhou-o a estudar com Magda Tagliaferrro. A família, com temor</p><p>pragmático de que um artista não teria condições de se sustentar, esfriou a</p><p>sugestão. O que não impediu Luiz Paulo de seguir em frente com sua vocação</p><p>e frequentar a Pró Arte. E assim, ignorando os conselhos divorciados do seu</p><p>pendor, tocava de ouvido Chopin, sinfonias de Beethoven, os concertos de</p><p>Brandenburgo.</p><p>Aos dezessete anos, sobreveio-lhe uma situação-limite de que jamais se</p><p>recuperou completamente: a perda de sua mãe. Naquele então, Horta havia</p><p>iniciado o curso de direito, sem convicção, ou qualquer laivo de entusiasmo.</p><p>No horizonte, uma nova luz o atraiu - o jornalismo. Com armas e bagagens</p><p>partiu para o novo desafio ao qual se manteve fiel por toda a vida. Registre-se</p><p>que, desde os dez anos, Luiz Paulo vinha se devotando à leitura com afinco, a</p><p>revelar as duas faces de sua vida intelectual e profissional articuladas: as letras</p><p>e ojornalismo, numa imbricação indissociável.</p><p>Sobre a nova vida de jornalista, escreveu: “por incrível que pareça, foi a</p><p>minha salvação: foi um fio terra, num período de angústia e desorientação.”</p><p>Outro dado relevante viria se somar ao ingresso nas lides impressas: a</p><p>Rua da Matriz. Deram-se dois encontros decisivos, o primeiro com a família</p><p>Barretto Filho, cujo pater familias haveria de se tornar o mestre inconteste de</p><p>Luiz Paulo, ao longo de toda a vida, em que pesasse a diferença de trinta anos</p><p>entre eles. José Barretto Filho, professor e escritor de fôlego, era homem de</p><p>vasta cultura e superior inteligência, que tem sua biografia condecorada com</p><p>um texto sobre a sofrida correspondência entre Jackson de Figueiredo e Alceu</p><p>Amoroso Lima, um belo e consistente estudo sobre Machado de Assis, além de</p><p>romances e ensaios de múltipla natureza. Professor da PUC, jurista de raro</p><p>talento, educador, filósofo e historiador da cultura hindu, dele fui colega no</p><p>Conselho Federal de Educação e no magistério superior e posso testemunhar a</p><p>grande lacuna que significou o seu desaparecimento. Pois foi ele quem</p><p>orientou Horta nos passos mais consistentes de seu percurso intelectual,</p><p>designadamente na problemática filosófica e nas questões de fronteira entre a</p><p>filosofia e a religião.</p><p>Entre os dois havia uma geração de diferença, o quejamais constituiu</p><p>óbice a uma relação intelectual e espiritual particularmente frutífera. O</p><p>Oriente perpassava a Weltanschauung do velho mestre. Para Horta, o Oriente,</p><p>longe de distanciá-lo de suas convicções mais impregnadas da fé em que se</p><p>educou, sussurrava-lhe um fenômeno religioso totalmente despojado da</p><p>rotina, do hábito. É que, por vezes, o cristianismo poreja em alguns fiéis uma</p><p>espécie de banalização indevida, longe da solidez teórica e espiritual que</p><p>herdamos dos grandes luminares, designadamente dos místicos que, segundo</p><p>Henri Bergson1, eram dotados de um bom senso superior. Assim pensando,</p><p>Luiz Paulo disse, certa feita, que foi nas tradições mais profundas do Oriente</p><p>que encontrou o seu nervo metafísico. É que tais descobertas reveladoras não</p><p>se haviam submetido ao dogmatismo da razão, ou melhor, a um racionalismo</p><p>pretensioso e mesmo pueril. O mistério conservou toda a sua inteireza em seu</p><p>espírito e lhe propiciou uma abertura d’alma, sem a qual, nem a filosofia, nem</p><p>a religião nos permitem respirar o ar puro de uma verdade que para nós acena</p><p>como forte luz a balizar nossos caminhos.</p><p>Mas o velho Barretto haveria de ensejar outro encontro decisivo para a</p><p>vida de Luiz Paulo, com Cecília, dileta filha do mestre. Os Barrettos eram seus</p><p>vizinhos. Moravam em uma rua surpreendente, porquanto nela habitavam</p><p>famílias particularmente numerosas. Além dos Barrettos, que tinham doze</p><p>filhos, os Lacombes abrigaram um pequeno clube de treze filhos e os Assis</p><p>Ribeiro, doze, e os Horta, nove irmãos. Pudera, era a Rua da Matriz!</p><p>Cecília, filha de Barretinho, como o chamávamos, era toda graça e pureza</p><p>angélica. Casados, Cecília e Luiz Paulo percorreram um caminho pleno de</p><p>felicidade, até que o Senhor a chamou para o seu convívio. Um ilustre monge</p><p>me disse recentemente que a presença de Cecília no Colégio de Santo Bento</p><p>foi uma luz que lá penetrou profundamente e deixou marcas indeléveis.</p><p>A perda de sua mãe fez com que Luiz Paulo se afastasse da fé familiar. Seu</p><p>pai quase se tornou monge beneditino, ao tempo em que uma leva de homens</p><p>talentosos tomou hábitos, como Dom Marcos Barbosa, Dom Irineu Pena,</p><p>Dom João Evangelista, oriundos de profissões diversas. A formação católica de</p><p>Horta sofreu abalos e levou-o à contestação radical e ao cultivo do marxismo,</p><p>à época quase inevitável. Era o seu tributo a um sarampo ideológico, à época,</p><p>manifestamente epidêmico.</p><p>A filosofia fez parte do cardápio, mas alguma voz sibilara que o</p><p>racionalismo não dava conta das profundas indagações do espírito humano.</p><p>Seria talvez uma espécie de geometria do espírito, e não o seguro condutor da</p><p>inteligência ao núcleo dos problemas essenciais com que se defronta o homem.</p><p>A razão raciocinante e suas deficiências conduziram Horta intuitivamente a</p><p>dela se apartar em suas pretensões excessivas à explicação do real em sua</p><p>inteireza. Isto sem jamais negar o valor da inteligência, em seu sentido</p><p>etimológico.</p><p>É quando ingressa em sua vida intelectual e espiritual o casal Maritain2,</p><p>cujos livros à época eram muito lidos nos meios católicos. Raissa Maritain, em</p><p>Les grandes amitiés</p><p>3, traça um retrato fidedigno das oscilações espirituais e das</p><p>conquistas do chamado Renouveau Catholique. Isto após o difícil momento</p><p>existencial vivido por Jacques e Raissa, no Jardin des plantes</p><p>4. Ali, bem perto da</p><p>casa em que Peter Wust5 se hospedou para frequentar os intelectuais católicos</p><p>franceses, concluíram osjovens pensadores que, se a vida carecesse de sentido,</p><p>como então acreditavam, nada mais racional do que pôr fim à existência. O</p><p>gélido pacto de morte se viu superado pelo fogo da fé que incendiou suas</p><p>almas jovens.</p><p>Adiante se dará a ruptura dos intelectuais católicos com o historicismo</p><p>impositivo e mesmo uma avaliação desfavorável da preeminência da própria</p><p>história. Delineando o perfil dos sorbonards</p><p>6, Raissa escreveu: “a história</p><p>tornara-se para eles uma espécie de ciência-rainha, que herdava, sem poder</p><p>carregá-los, todos os direitos da metafísica repudiada; e eles ainda a tornaram</p><p>mais arrogante ao pretender transformá-la em ciência exata, cobrando dela a</p><p>explicação definitiva da vida do pensamento, através de uma pesquisa das</p><p>fontes que fugira sem fim de causa acidental em causa acidental.”</p><p>Deu-se então o encontro com o fogoso Léon Bloy7, que, em vez de</p><p>teoria, trazia o seu compromisso sem volta com a plena doação de seu viver ao</p><p>Caminho, à Verdade e à Vida. Horta declarou que Léon Bloy “não era uma</p><p>teoria, e sim uma grande verdade de carne e osso”.</p><p>A decepção com o racionalismo o fez volver os olhos para a sua infância,</p><p>quando, deslumbrado, observava as formigas e aranhas do jardim e o barulho</p><p>dos bambus sacudidos pelo vento que deixava a sua alma em enlevado estado</p><p>poético.</p><p>Cabe aqui devolver a palavra a Luiz Paulo para narrar o milagre de uma</p><p>descoberta transcendente que vivenciou: “passeando uma tarde pelo terraço de</p><p>nossa casa, notei que o brilho do sol poente e a luz pálida do crepúsculo se</p><p>combinavam, imprimindo à aproximação da noite uma beleza fora do comum</p><p>e um encanto desconhecido. As próprias paredes da casa vizinha pareceram</p><p>transfiguradas. Erguendo o véu da vulgaridade que envolve o mundo</p><p>cotidiano, seria acaso o poente o mago autor desse milagre? Não. Eu bem</p><p>discernia a causa de tudo na impressão produzida em minh’alma por esse</p><p>espetáculo: aquela visão de beleza eclipsara a minha consciência de mim</p><p>mesmo. Até então, ao ritmo diário da vida, o Eu me atravancava a consciência,</p><p>alterando e encobrindo toda a perspectiva. Naquele instante, ao contrário,</p><p>esse</p><p>Eu passara para o segundo plano, e pude então distinguir o mundo sob seu</p><p>verdadeiro aspecto. Tudo nele cintilava de beleza e de alegria. Morrera a</p><p>vulgaridade.”</p><p>É um instante privilegiado, que fala fundamente da densidade do</p><p>mistério que se aninha no mais recôndito de nosso ser. Daí a visão hortiniana</p><p>do cristianismo que “não foi inventado para ser o governo do mundo”, porque</p><p>“continua a ser um mistério”. Para “penetrar esse mistério (...) o orgulho da</p><p>inteligência é um obstáculo real”.</p><p>A força gravitacional da imanência não se aninhara na alma de Luiz</p><p>Paulo, mesmo em instantes cinzelados pelos apelos da desesperança. É que</p><p>uma inspiração maior se alojara nas fímbrias do seu ser a falar de valores</p><p>superiores. Como olvidar o pensamento de Jean Baudrillard8: “o velho sistema</p><p>de valores substituído pela troca generalizada de mercadorias só nos levou à</p><p>impossibilidade de troca”?</p><p>O trecho da experiência quase mística de Horta é o início de uma</p><p>caminhada, prenúncio de um encontro definitivo com a fonte única de toda a</p><p>inteligibilidade e de toda a bondade. É todo um roteiro ajustado à forte palavra</p><p>de São João da Cruz: “para que possa ser tudo, deseje ser nada. Para que possa</p><p>ter tudo, deseje ter nada.”</p><p>Não se cuida aqui de despojar o homem de sua dignidade, de sua</p><p>autonomia, de sua liberdade. Menos ainda de lhe cortar as asas para os grandes</p><p>voos existenciais. E sim de retirar-lhe os grilhões que o prendem à epiderme</p><p>da realidade, às conjunturas passageiras e fugazes que nos desviam o olhar do</p><p>genuíno foco - o núcleo do nosso próprio ser, aquele que nos permite uma</p><p>aproximação ontológica com o outro e, sem a qual, a vida fenece, se estiola e</p><p>mesmo murcha. Bem sei que Luiz Paulo subscreveria tais veredas conducentes</p><p>ao grande sertão que nos espera (rosianamente falando), o plano em que nosso</p><p>destino poderá superpor-se à nossa vocação.</p><p>O novo século nos vem revelando um mundo conexo e interdependente.</p><p>É o momento de homens e mulheres embebidos numa visão humanista</p><p>forcejarem por tornar mais amiudado o diálogo interpessoal e entre nações</p><p>aptos a lograrem o entendimento, a concórdia e a paz. A voz dos humanistas</p><p>se faz crescentemente necessária.</p><p>Se for verdade que o pensar e o ler vivem e respiram uma circularidade</p><p>mutuamente enriquecedora, cabe perquirir o sulco das leituras de Horta.</p><p>A filosofia que temos depende do filósofo que somos, repetia Georg</p><p>Simmel9, e encontrá-la no recesso do nosso ser implica em acompanhar</p><p>delicadamente os momentos em que a criação começa a fazer morada em</p><p>nosso espírito, sem nos darmos conta das sementes que se vão plantando sub-</p><p>repticiamente em nosso espírito.</p><p>Quais teriam sido as sementes que se alojaram nas dobras da alma de Luiz</p><p>Paulo? Para começar, mencionemos a trindade universal do seu mundo de</p><p>leituras, Cervantes, Dostoievski e Thomas Mann. Escritores de ideias (mesmo</p><p>Cervantes) que abriram de par em par as portas para a complexidade da alma</p><p>humana, apresentando-a em suas células mais recônditas, por vezes com uma</p><p>tocante simplicidade.</p><p>O romance Dom Quixote talvez seja uma espécie de introdução quase</p><p>obrigatória para se penetrar nos recantos mais profundos da alma humana,</p><p>como que sintetizando a bellum intestinum</p><p>10 entre o realismo e o sonho, o</p><p>racionalismo e a livre imaginação, a filosofia lastreada no puro bom senso e</p><p>aquela que se abre ao mistério e aos desafios das dúvidas que precedem as</p><p>adesões à busca de horizontes sem limites, da prosa que poetiza as belezas do</p><p>existir.</p><p>Páginas de Dostoievski nos falam de uma sofrida existência imersa em</p><p>tragédias cercadas de lances do cotidiano, em que emerge, com frequência,</p><p>uma abertura de almas, com diálogos de raro alcance ontológico. Luiz Paulo</p><p>sentiu o baque causado pela leitura de O idiota do escritor russo. E não resistiu</p><p>à tentação de ler muitas outras obras do romancista russo, dentre as quais há</p><p>que citar Os irmãos Karamazov e Crime e Castigo. Estavam lançadas as bases</p><p>sólidas para outras buscas que geraram o jornalismo literário que Horta</p><p>encarnou com aisance</p><p>11 inconfundível.</p><p>A atração pela obra de Thomas Mann, confessou Horta sem rebuços,</p><p>promanou da sua paixão pela música. O escritor alemão, que abandonou a sua</p><p>pátria para fugir da tirania dominante no país, e que haveria de horrorizar o</p><p>mundo inteiro, proferiu, em Zurique, uma conferência intitulada</p><p>“Sofrimentos e grandeza de Richard Wagner”. A fúria despertada pelo</p><p>pronunciamento do escritor levou-o a buscar abrigo no exterior.</p><p>Mais tarde, Thomas Mann publicaria o seu último livro, o famoso Doutor</p><p>Fausto, em que o herói, Adrian Leverkuhn, é um compositor em crise</p><p>existencial, vítima de impiedosa sífilis, vista como o símbolo para a doença da</p><p>própria Alemanha. É a barganha faustiana. No entanto, o que importa é frisar</p><p>que o aureolado romancista alemão buscava um novo sistema de composição.</p><p>O que gerou um sério problema, pois fora perseguir um sistema de</p><p>composição que outro não era senão o dodecafonismo, a música dos 12 sons.</p><p>Sobreveio a acusação de plágio de Schoenberg, quando a desarmonia entre</p><p>dois gigantes entrou pela porta dos fundos.</p><p>Na verdade, Thomas Mann foi por Horta avaliado como uma mistura de</p><p>lirismo com uma certa seriedade alemã que ele havia encontrado na música.</p><p>No século XVII (no seu entender mais rico do que o subsequente), Luiz Paulo</p><p>pinçou Fénelon12, místico que escreve com a dignidade de um Racine. Outro</p><p>místico que lhe atraiu a atenção, Newman, sacudiu os ingleses com a sua</p><p>conversão ao catolicismo, ao abandonar a Igreja Anglicana, após anos de</p><p>estudo, reflexão crítica e permanente oração.</p><p>Podemos mencionar, em obediência ao paralelismo música/ literatura,</p><p>sua admiração por Jane Austen13, sobre quem escreveu: ela “parece realizar nas</p><p>letras um certo ideal mozartiano - leveza, graça, espírito, tudo isso</p><p>embrulhado no mais puro classicismo. E como o classicismo é necessário para</p><p>temperar os nossos ardores românticos”. Chesterton14 e seu estilo original</p><p>atraíram a sua atenção pelas surpresas dos paradoxos criativos e a mestria de</p><p>uma dialética primorosa.</p><p>Luiz Paulo frequentou famosos romancistas católicos, como François</p><p>Mauriac15, para quem “o romancista é, de todos os homens, aquele que mais se</p><p>parece com Deus: é o imitador de Deus”, além de George Bernanos16 e</p><p>Graham Greene17. Sem mencionar aquele que fundamente penetrou na alma</p><p>de várias gerações pela radicalidade de seu compromisso com a fé, o já citado</p><p>Léon Bloy. A turbulenta e vivaz caminhada espiritual do trágico romancista</p><p>constituiu para Horta “uma aventura pessoal de que Eu não conheço limites”.</p><p>Em seu baú de admirações há também um lugar especial para Jorge Luís</p><p>Borges.</p><p>Fixando o olhar em nossa literatura, avulta com vigor em sua admiração</p><p>Machado de Assis, o verdadeiro milagre brasileiro e fundador da cadeira 23,</p><p>que Luiz Paulo ocupou na Academia Brasileira de Letras.</p><p>Lima Barreto é também objeto de sua atenção e integra a trindade</p><p>literária tão identificada com a alma da Cidade Maravilhosa, juntamente com</p><p>Machado de Assis, Lima Barreto e Carlos Heitor Cony.</p><p>A Academia Brasileira de Letras vem abrigando, desde sua fundação,</p><p>literatos e cultores das mais diversas áreas do saber e das mais diversas</p><p>profissões. Com Machado de Assis, Joaquim Nabuco e outros escritores de</p><p>nomeada, a novel instituição entendeu de gerar um convívio culturalmente</p><p>múltiplo entre seus membros por maneira a se constituir num grupo</p><p>representativo dos valores intelectuais da vida brasileira. Romancistas, poetas,</p><p>críticos literários, contistas aqui convivem com sociólogos, historiadores,</p><p>cientistas, filósofos, teólogos, cultores de ciências humanas e sociais e de</p><p>diversas artes. E também profissionais da educação, da medicina, do direito, da</p><p>comunicação, e de numerosos outros campos da atividade humana.</p><p>Horta ingressou no jornalismo em momento de desencanto e dele colheu</p><p>a emulação para superar o nonsense daqueles dias cinzentos. Trabalhou nos</p><p>grandesjornais desta cidade trepidante. Astros da profissão, muitos dos quais</p><p>escritores renomados, chefiavam redações</p><p>obstante o distanciamento a que se obrigou de qualquer parcela</p><p>do poder político ou econômico.</p><p>Muitos ângulos de sua polifórmica personalidade poderiam ser</p><p>explorados. Cuido, no entanto, que um, em particular, mereceria real</p><p>destaque, e mais bem configuraria a sua marca frisante. Trata-se de seu retrato</p><p>moral.</p><p>Há que consignar primacialmente, dentre as atitudes éticas fundamentais,</p><p>de que fala Dietrich von Hildebrand3, o respeito. É bem de ver esta atitude</p><p>sempre presente no ínclito patrício. A acolhida ao próximo, sua quase devoção</p><p>ao ouvir o outro, o reconhecimento da presença do irmão moldaram o quadro</p><p>referencial do comportamento ético do grande tribuno e jurista. A seu ver, a</p><p>presença ascendia da mera categoria social do convívio para subir ao patamar</p><p>ontológico. Para Sobral Pinto, o outrojamais constituía ameaça à sua</p><p>autonomia como pessoa. Toda presença era a priori visualizada como</p><p>enriquecimento. O encontro representava, assim, não uma cumplicidade, mas</p><p>o desabrochar da inter-relação como uma reciprocidade de consciências. Do</p><p>respeito ao outro emergia espontaneamente o respeito institucional, que</p><p>Sobral Pinto cultivou com rara firmeza. Jamais confundiu a liberdade com a</p><p>manifestação supra-axiológica da arrogância individual.</p><p>Ao respeito se alia a fidelidade, neste elenco de virtudes peregrinas de que</p><p>Sobral Pinto constituiu inquestionável arquétipo. Há uma fidelidade</p><p>superficial ligada aos hábitos que delineiam o nosso ser mais visível. São</p><p>fidelidades parciais e incompletas, mas nem por isso menos relevantes.</p><p>Incompletas sim, mas indispensáveis para a composição do mosaico de nossas</p><p>vidas. No fundo, porém, encontram-se raízes que transcendem as</p><p>circunstâncias, que sulcam avidamente a terra, para aí depositar valores e</p><p>princípios que atravessam as nossas histórias, os nossos episódios e permeiam</p><p>o nosso existir como um todo. É a fidelidade essencial a retratar a vida e a sua</p><p>continuidade, em meio ao tumulto do vir-a-ser em que se afinam os</p><p>instrumentos do nosso quotidiano. É o sim definitivo, que não encobre os</p><p>talvez, as tergiversações, hesitações, idas e vindas do viver convivendo. É a</p><p>afirmação do eu substancial, feito de história e consistência, de grandeza e de</p><p>miséria, no dizer de Pascal4.</p><p>A fidelidade mais profunda é, por sua natureza, criadora. Isto porque,</p><p>graças a ela, o homem se liga ao plano superior, que passa a constituir o seu</p><p>referencial permanente. No dinamismo do existir, a fidelidade a princípios e</p><p>valores cria a atmosfera da persistência no ser o que devemos ser.</p><p>Aproxima a vocação do destino. Aplaina as arestas para o voo definitivo.</p><p>Sem volta. Havia em Sobral Pinto a expressão constante do ser fiel ante o</p><p>devir das circunstâncias. Raramente encontradiça, esta virtude nele se instalou</p><p>como em terra nativa. Vincou o seu ser por maneira a caracterizá-lo e até</p><p>permitir antevisões de seu comportamento. Não havia brechas em sua alma. A</p><p>solidez de suas convicções patenteava à saciedade a plenitude do sim à Vida.</p><p>Sorvia cada minuto como se fora o único. Voltava-se para seu interlocutor</p><p>como se dele esperasse a palavra perene. Isto porque alcançara os altiplanos</p><p>das existências consagradas.</p><p>Impende sublinhar o agudo senso de responsabilidade do grande jurista e</p><p>indomável defensor dos direitos humanos. Nele sempre encontramos a vigília</p><p>moral como atitude básica de seu existir. Responsabilidade é, antes de tudo, a</p><p>resposta que damos ao apelo ao ser-mais. A frivolidade do homem</p><p>inconsciente se situa do outro lado do viver dos que fogem da rotina, da mera</p><p>reiteração de atos habituais para se alçarem à afirmação existencial como</p><p>construção do destino a partir da vocação. Esta se posta à espreita como</p><p>convite a que podemos dar ou não adequada resposta. O sim definitivo é</p><p>exceção. Pois habitamos, antes, a região sinuosa do talvez. Só os grandes</p><p>espíritos se animam a dar o seu adeus à disponibilidade. E Sobral Pinto foi um</p><p>deles. Toda a sua vida atesta, irrefragavelmente, o assentimento permanente</p><p>aos valores fundantes de sua opção estrutural à qual se manteve sempre fiel.</p><p>Jamais primou pela acomodação, pelo compromisso enquanto fuga à grande</p><p>escolha. Seu itinerário retilíneo, aqui e ali, oferece aos críticos superficiais</p><p>matéria-prima para distorções convidativas. Sobral, no entanto, marcou seu</p><p>caminhar com o sinete inconcusso da certeza e do amor. Certeza no ideário</p><p>cristão que abraçou sem rebuços, proclamando-o sempre que emergia a</p><p>oportunidade. Amor, no sentido de não discriminar pessoas, só exprobando o</p><p>mal. Odiar o pecado e amar o pecador, repetia invariavelmente. Daí a sua rica</p><p>correspondência à espera de publicação devidamente autorizada pela família.</p><p>Governantes, homens simples do povo, colegas de profissão, a todos</p><p>Sobral Pinto dedicava a mesma atenção. Sua humildade visceral o levava a</p><p>considerar, efetivamente, todos os homens iguais em dignidade. E assumia a</p><p>cota de responsabilidade diante dos grandes e pequenos episódios da vida,</p><p>numa linha de coerência linear, poucas vezes encontrada mesmo nos</p><p>itinerários de homens de escol.</p><p>Porejava nobreza moral, a ponto de fazer calar as multidões com sua voz</p><p>e seu exemplo exuberante de devoção às causas maiores da fé e da pátria.</p><p>O homem é aurora e crepúsculo, luz e sombras. Os descompassos</p><p>assinalam diuturnamente o nosso trilhar e, por vezes, nos fazem perder o</p><p>sentido e a direção. Sujeitos também às circunstâncias, há seres humanos que</p><p>mais bem se equilibram entre o ser e o devir, evidenciando de forma</p><p>exponencial o peso de sua opção metafísica. Atingir este nível pressupõe a</p><p>veracidade. Nada mais nos atrai no ser humano do que a transparência, de um</p><p>lado, e o recolhimento, do outro. A transparência das atitudes, do olhar, do</p><p>viver, enfim. Resta, porém, um escaninho da alma longe da intrujice, da</p><p>intromissão. Este misto de mostrar-se e ocultar-se resume o claro-escuro em</p><p>que devemos pôr as nossas complacências. É que há uma intimidade do eu</p><p>prenhe de possibilidade de ser, mas infenso às arremetidas da bisbilhotice em</p><p>que se comprazem os seres ávidos de romper a barreira do respeito ao outro.</p><p>Em Sobral Pinto, as duas facetas surgem como paradoxos, mas selam também</p><p>a harmonia interior, sem a qual a alma se transforma numa vitrine e perde a</p><p>atmosfera feita de autenticidade e de profundidade.</p><p>A arrogância, a mentira, o fingimento constituem óbices intransponíveis</p><p>à veracidade como atitude ética basilar.</p><p>Se por vezes não podemos prever a posição a ser adotada por alguém,</p><p>pelo menos deveremos ser capazes de saber aquilo que ele não fará. O limiar</p><p>ético deve transparecer do conjunto da vida. No caso de Sobral, suas atitudes</p><p>eram previsíveis, e não apenas o negativo do retrato. Não apenas o avesso do</p><p>bordado. Ambos os lados emergiam com meridiana clareza de sua</p><p>personalidade nimiamente afirmativa, exemplarmente íntegra.</p><p>Um homem marcado pelo destino a desempenhar papel de singular</p><p>relevo na vida nacional, e cuja vida representou uma sequência de</p><p>manifestações exuberantes de fé em valores perenes, poderia facilmente</p><p>deixar-se levar pelos aplausos fugazes. Mas a humildade que nele</p><p>reconhecemos nasceu da bondade que lhe era conatural.</p><p>Amor ao próximo, sem qualquer discriminação. Amor à Igreja fundada</p><p>por Jesus Cristo. Amor à Pátria. O próximo sempre nele visualizou o gigante a</p><p>lutar pelos direitos de quantos a ele recorressem, sem outro intuito que não o</p><p>de fazer prevalecer o império do direito e da ordem. Esta não era por ele</p><p>encarada de forma geométrica e canhestra. Ordem, para Sobral, abrangia os</p><p>infinitos espaços da criação. Ordem como harmonia, ordem como sintonia de</p><p>contrários. Ordem como síntese compreensiva de valores. À Igreja dedicou o</p><p>melhor de seus esforços na defesa das teses basilares do ideário plantado há</p><p>dois mil anos no coração dos homens, e que atrai até os que nele julgam não</p><p>crer. O seu amor à Igreja o levou a acompanhar e seguir de perto os passos do</p><p>Vigário de Cristo e do Bispo de sua cidade, de quem veio a ser o confidente</p><p>privilegiado. O pastor desta grande cidade, o ínclito Dom Eugênio Sales,</p><p>e, assim, contribuíam para a</p><p>formação de novas gerações de jornalistas. Pode-se dizer que Elio Gaspari,</p><p>Wilson Figueiredo, Luiz Alberto Bahia, Heráclio Salles e Luiz Garcia deram o</p><p>fulcro de sua experiência e o prepararam para asjornadas que iria trilhar e de</p><p>que se tornou um dos expoentes. O Correio da Manhã, O Jornal do Brasil, O</p><p>Globo marcaram os 45 anos de sua atividadejornalística. Os fatos relevantes do</p><p>País e do exterior pervadem o espaçojornalístico e demandam interpretações.</p><p>Daí a extensão cultural que se exige dos profissionais da comunicação.</p><p>Cabe recordar a palavra de Wickham Steed, um antigo editor do The</p><p>Times, de Londres: “ojornalista ideal seria aquele que, tendo dominado e</p><p>assimilado a sabedoria dos antigos, as filosofias dos mais modernos, o</p><p>conhecimento dos cientistas, a mecânica dos engenheiros, a história da sua</p><p>própria e a das outras épocas, bem como os principais fatores da vida</p><p>econômica, social e política, fosse capaz de guardar todas essas coisas em sua</p><p>mente e fornecer tanto quanto delas pudesse ser prontamente digerido por</p><p>seus milhões de leitores, em proporção a um desejo que ele adivinharia.”</p><p>Há uma pressão constante nas redações o que levou T. S. Eliot a</p><p>obtemperar: “há espíritos com os quais tenho uma estreita afinidade; não se</p><p>põem a escrever senão sob a pressão de uma oportunidade imediata, ou</p><p>somente sob essa pressão atingem o seu melhor rendimento. É tal disposição</p><p>de espírito que me proponho considerar como característica do jornalismo.”</p><p>Entre nós, o jornalismo se transformou na ponte conducente às letras.</p><p>Escritores nasceram na desafiante tarefa de comunicar fatos e opinar nas</p><p>redações dos periódicos. A Academia Brasileira de Letras acolheu vários</p><p>escritores, sendo que inúmeros deles provieram da imprensa. Houve</p><p>acadêmicos que nasceram como escritores nas redações de jornais e revistas.</p><p>Outros foram articulistas sistemáticos ou esporádicos. Todos se beneficiaram</p><p>do dinamismo do cotidiano do jornalismo.</p><p>Ao longo de mais de quatro décadas Horta espraiou as chispas de talento</p><p>de sua pena brilhante. Escrever é um ato existencial prioritário nas curvas da</p><p>historicidade dos autenticamente vocacionados para as lides literárias. E ele o</p><p>foi, porque escrever é comunicar-se, é estender a mão ao outro para tocá-lo</p><p>em sua sensibilidade. É convidar o próximo para o diálogo silencioso e</p><p>fecundo de almas em busca de comunhão. Cuido caber repisar a respeito a</p><p>pergunta que o saudoso amigo e escritor Antonio Carlos Villaça formula para</p><p>si mesmo: “Que é escrever, para o escritor? Escrever é, para mim, a única</p><p>forma de conviver. E, pois, de viver e de conviver. Transviver.”</p><p>Escrever é, para Horta, uma constante busca da verdade e não das</p><p>certezas periféricas que nos iludem a inteligência e a distraem da tarefa mais</p><p>consistente de perquirir e sondar o núcleo do ser que, essencialmente, se situa</p><p>no imo d’alma e está aberto ao outro e à transcendência. Ninguém possui a</p><p>verdade, ela vive dentro de nós e pervade todos os nossos espaços. Como</p><p>sentenciou Hans Urs von Balthasar18, “a verdade é sinfônica”. Ela unifica a</p><p>multiplicidade de dimensões da pessoa e lhe dá respaldo ontológico e</p><p>vivificador. A orquestra precisa de um maestro, mas também de cada</p><p>instrumento com funções bem definidas e sem qualquer deles o conjunto</p><p>sinfônico não nos oferta a harmonia que nos encanta. A verdade por igual</p><p>carece de espaço e de amplitude para a sua vigência em nosso espírito, sem as</p><p>limitações de uma visão fundamentalista que lhe tolhe a torrente de energia</p><p>que nos enche a alma de enlevo.</p><p>Não foi à toa que Luiz Paulo partiu do jornalismo cultural para a filosofia</p><p>e a teologia, além de haver se devotado à música como linguagem divina.</p><p>Nesse sentido, foi um ponto de encontro do jornalista com o literato. As</p><p>fronteiras entre ambos nem sempre são nítidas. Isto porque o jornalismo é</p><p>encarado como uma forma de, sem adiposidade, revelar os dados em sua</p><p>pureza quase absoluta. Para Émile Boivin19, citado por Helio Consololaro,</p><p>Homero é visto como o primeiro repórter ao narrar na Ilíada os combates</p><p>entre gregos e troianos. A verdade é outra: a obra é perenemente literária,</p><p>como, entre nós, o são Os Sertões de Euclides da Cunha, os romances de Rachel</p><p>de Queiroz, as obras de Guimarães Rosa e de Machado de Assis, nascidas</p><p>muita vez em jornais e revistas.</p><p>Alceu Amoroso Lima visualiza o jornalismo como um gênero literário e,</p><p>efetivamente, o é, pelas peculiaridades das escritas que nos chegam, em</p><p>periódicos de boa feitura, regadas de figuras de retórica e com fluência natural.</p><p>É bem de ver que, hoje, o jornalismo retrata a fugacidade do dia-a-dia. As</p><p>interpretações constituem um bálsamo para mitigar a massa de informações</p><p>que superlotam a nossa retentiva e atulham a nossa memória.</p><p>Luiz Paulo Horta foi umjornalista pleno que, partindo de dados objetivos,</p><p>palmilhou a via opinativa de uma rica muticulturalidade. Assim, é que</p><p>literatos, filósofos, teólogos, cultores das ciências humanas e sociais pulularam</p><p>em seu universojornalístico a revelar a amplitude de sua cultura e a marcante</p><p>sensibilidade em cinzelar o perfil daqueles que merecem o destaque que ele</p><p>lhes atribuiu.</p><p>Ele certamente não partilhou da assertiva de Flaubert e Proust que</p><p>desmerecem o papel do jornalismo. Pelo contrário, tenderia a concordar com</p><p>o parecer de Paulo Mendes Campos que não acreditava no talento do escritor</p><p>sem que ele tivesse passado pela imprensa.</p><p>As Artes vêm ganhando crescente espaço na Academia. O cinema teve o</p><p>reconhecimento de seu valor nesta augusta Casa mais que centenária. Já a</p><p>música ensaiou seus primeiros passos tempos depois, com a implantação do</p><p>projeto Literatura e Música de Câmara e, desde então, vem ampliando sua</p><p>presença entre nós. Com Luiz Paulo, a música entrou triunfalmente na</p><p>Academia Brasileira de Letras e nos brindou com uma programação mais rica</p><p>e variada a atestar o seu papel de relevo na vida cultural da Cidade</p><p>Maravilhosa, com reflexos em todo o País. Especialmente graças à internet,</p><p>que permite a todos o acesso às atividades de nossa programação.</p><p>A música preenche largos espaços de nossa intimidade espiritual. Ela tem</p><p>o condão de abrir a porta do céu, no sentir de Baudrillard. Sentenciou Marcel</p><p>Proust que “a música é talvez o exemplo único do que teria podido ser - se não</p><p>tivesse havido a invenção da linguagem, a formação das palavras, a análise das</p><p>ideias - a comunicação das almas”.</p><p>A obra musical de Luiz Paulo Horta é consistente e se desdobra em</p><p>muitos livros, sem falar em crônicas que os aficionados acompanham com</p><p>desusado interesse, dada a extraordinária sensibilidade que revela e um</p><p>conhecimento penetrante do tecido musical.</p><p>Citemos as obras mais importantes: Música clássica em CD - guia para uma</p><p>discoteca básica, Sete noites com os clássicos - para entender os estilos musicais da</p><p>Renascença ao Modernismo, Villa-Lobos - uma introdução,Música nas Esferas e o</p><p>Dicionário Grove de Música. O dicionário foi editado em 20 volumes. É bem</p><p>curial assinalar o desafio de reduzi-lo a um volume, com as opções acertadas</p><p>para o registro dos vultos da música em obediência a uma justa hierarquia.</p><p>A opção radical de Horta pela música tem um sabor platônico: “ginástica</p><p>para o corpo, música para o espírito.” É uma visão de quem absorveu</p><p>plenamente a tese basilar do primado do espírito. Assim é que Platão fala da</p><p>música como “amor da beleza”. E infere daí que “aquele que tem alma musical</p><p>poderá amar todos os homens”. Esta é a essência do modo hortiniano de ser:</p><p>buscar a harmonia entre os homens mercê da prévia harmonia dos espíritos</p><p>que a música possibilita.</p><p>Na galeria dos grandes da música clássica, em que ele caminhou com a</p><p>desenvoltura de quem se reclina em sua poltrona favorita, é manifesta a</p><p>preferência pela trindade Bach, Mozart e Beethoven.</p><p>Ficamos a dever a Bach a edificação de uma estrutura que orientou os</p><p>pósteros de maneira decisiva. Qual um balizamento indispensável ao caminhar</p><p>da música em sua crescente afirmação do barroco ante o classicismo e o</p><p>romantismo.</p><p>No estudo das correntes</p><p>musicais mais relevantes ao longo do tempo,</p><p>apontou em Haydn o verdadeiro pai do classicismo - a base sobre a qual se</p><p>assentaram as inovações revolucionárias de Mozart e de Beethoven. Em</p><p>relação ao último, frisou tratar-se de “um caso único”, pois ele fez “a ligação</p><p>entre o antigo e o moderno”. Beethoven foi uma de suas paixões. Para ele, o</p><p>velho mestre “continua a usar tudo o que o classicismo tem de bom. A saber,</p><p>um admirável sentido da forma e a capacidade de dominar as emoções”.</p><p>Beethoven soube temperar o seu mundo tempestuoso e a serenidade que se</p><p>lhe seguiu, à semelhança de Goethe.</p><p>Coube a Schopenhauer “assegurar à música um primado absoluto em</p><p>relação às demais artes pelo seu inconfundível caráter metafísico”. É imediata a</p><p>ilação de que as filosofias e as artes mantêm um vínculo por vezes mal</p><p>encoberto, mas nem por isso menos relevante.</p><p>A atenção de Horta jamais olvidou a música brasileira, e, nela, sempre</p><p>destacou o vulto sem rival de Villa-Lobos: “ele está para a música brasileira</p><p>como Bach para a música alemã: tudo parece começar por ele.”</p><p>A rica biografia de Luiz Paulo no jornalismo e na música o situa no</p><p>elevado conceito em que é tido pela intelligentzia</p><p>20. Mas ele ainda nos reservou</p><p>uma surpresa: durante dez anos formou grupos voltados ao estudo da Bíblia.</p><p>Os encontros ocorriam às segundas-feiras, à noite, em sua residência, com</p><p>cerca de quarenta participantes, em média. As portas da casa ficavam abertas e</p><p>qualquer pessoa podia comparecer aos encontros, sem convite prévio. As</p><p>sessões eram precedidas de minuciosa preparação dos textos a serem lidos e</p><p>comentados, dos comes e bebes e, surpreendentemente, sempre apareciam</p><p>cadeiras qualquer que fosse o número dos presentes. Havia como que o</p><p>milagre da multiplicação de cadeiras. Em tudo Luiz Paulo e Cecília</p><p>evidenciavam a riqueza da fé e a plena abertura de alma aos outros.</p><p>Os círculos bíblicos se tornaram famosos e a leitura de trechos do livro</p><p>sagrado conduzia maviosamente a interpretações e análises múltiplas, com a</p><p>participação de todos, bem ao seu feitio aberto ao outro. Esta riqueza nos foi</p><p>revelada no livro A Bíblia: um diário de leitura.</p><p>Certa feita, uma das participantes não pôde sopitar uma observação,</p><p>quando Luiz Paulo atravessava momentos tempestuosos. Ele lhe respondeu:</p><p>“eu entendo a vida como um dom e tudo isto que venho sofrendo faz parte</p><p>deste dom maravilhoso.” Este pensamento de raro peso existencial retrata a</p><p>sua convicção de alma.</p><p>Foi um itinerário luminoso em que a cultura e a fé se uniram e</p><p>propiciaram um enriquecimento espiritual que gerou significativo aumento</p><p>no número de seujá grande contingente de admiradores. Isto porque nada</p><p>mais profundo do que o transbordamento do Eu quando nele avulta a verdade</p><p>que escapa à visão epidérmica do mundo e das pessoas. E Horta porejou este</p><p>universo que preserva a autonomia do pensar e do crer e entre ambos</p><p>estabelece os elos recônditos nem sempre percebidos. Com criatividade,</p><p>buscou sempre construir uma ponte entre o Antigo e o Novo Testamento,</p><p>frequentemente havida como inexistente ou, pelo menos, insuficientemente</p><p>sólida para evidenciar a continuidade de um processo que nos levou ao</p><p>cristianismo.</p><p>Luiz Paulo Horta foi acolhido de braços abertos na Academia Brasileira</p><p>de Letras em 2008, na plena convicção de que lhe aportaria a preciosa</p><p>contribuição de sua cultura e ameno convívio. Totalmente empenhado em</p><p>prosseguir na senda até então trilhada, com patente privilégio conferido ao</p><p>jornalismo, à música e à sua confissão religiosa, ele refez o seu itinerário</p><p>afetivo com a vivaz e gentiljornalista Ana Cristina Reis, e se reencontrou</p><p>consigo mesmo no patamar da grande paz e alegria a que a fé e o amor</p><p>inevitavelmente conduzem.</p><p>A música havia de impregnar-lhe a alma propiciando uma harmonia</p><p>interior que lhe marcou o espírito, ditando-lhe o comportamento e mesmo</p><p>firmando um comprometimento definitivo com o que eu chamaria “a beleza</p><p>da ética” e através dela, com a verdade ampla.</p><p>Santa Tereza de Ávila repetia constantemente que “um santo triste é um</p><p>triste santo”. A memória de Luiz Paulo confirma a assertiva de que vivem à</p><p>nossa volta santos que não se identificam para que neles o obriguemos a força</p><p>coercível de sua condição excepcional. Até porque eles vivem à nossa volta,</p><p>enriquecem nossos dias e nos apontam caminhos inovadores para o nosso</p><p>caminhar. E eles veem o que vemos, aquilo que nós não vemos. E enquanto</p><p>nós vivemos em meio a problemas que por vezes angustiam, os santos</p><p>respiram a atmosfera diáfana das soluções. Eles cruzam o nosso existir e</p><p>forcejam para que não os reconheçamos como seres de exceção, dada a</p><p>simplicidade e mesmo leveza de sua passagem para este mundo.</p><p>A harmonia interior de Luiz Paulo Horta, resultante do conúbio entre as</p><p>três dimensões do seu existir, produziu um ser de exceção, hoje entregue à</p><p>transcendência, a cuja inspiração o escritor carioca deve o brilho de sua</p><p>contribuição cultural e pessoal de elevado porte.</p><p>NOTAS DOS CURADORES</p><p>1 Henri Bergson - Filósofo e diplomata francês, laureado com o Nobel de Literatura de 1927.</p><p>2 O casal Maritain - O pensador humanista francês Jacques Maritain, juntamente com Raíssa Maritain,</p><p>é influenciado por São Tomás de Aquino.</p><p>3 Lesgrandes amitiés - Do francês, Grandes amizades.</p><p>4 Jardin des Plantes - Do francês, Jardim das Plantas.</p><p>5 Peter Wust - Filósofo existencialista alemão.</p><p>6 Sorbonards - Alunos da Sorbonne.</p><p>7 Léon Henri Marie Bloy - Escritor católico francês, conhecido por seu romance Le Désespéré.</p><p>8 Jean Baudrillard - Sociólogo e filósofo francês.</p><p>9 Georg Simmel - Sociólogo alemão. Professor universitário admirado por seus alunos, sempre teve</p><p>dificuldades em encontrar um lugar no seio da rígida Academia do seu tempo.</p><p>10 Bellum intestinum - Do latim, Guerra civil.</p><p>11 Aisance - Do francês, Facilidade.</p><p>12 François Fénelon, pseudônimo de François Salignac de La Mothe-Fénelgon, também conhecido</p><p>como “O Cisne de Cambrai” - Teólogo católico, poeta e escritor francês.</p><p>13 Jane Austen - Proeminente escritora inglesa.</p><p>14 Gilbert Keith Chesterton, mais conhecido como G. K. Chesterton - escritor, poeta, filósofo,</p><p>dramaturgo, jornalista, palestrante, teólogo, biógrafo, literário e crítico de arte inglês.</p><p>15 François Charles Mauriac - Escritor francês, prêmio Nobel de Literatura de 1952.</p><p>16 George Bernanos - Escritor e jornalista francês.</p><p>17 Henry Graham Greene - Jornalista e escritor inglês, com uma obra composta de romances, contos,</p><p>peças teatrais e críticas literárias e de cinema.</p><p>18 Hans Urs von Balthasar - Sacerdote, teólogo e escritor suiço, é considerado um dos mais importantes</p><p>teólogos do século XX.</p><p>19 Émile Boivin - Pintor francês.</p><p>20 Intelligentzia - termo que usualmente refere-se a uma categoria ou um grupo de pessoas envolvidas</p><p>em trabalho intelectual complexo e criativo direcionado ao desenvolvimento e disseminação da</p><p>cultura, abrangendo trabalhadores intelectuais.</p><p>A</p><p>O legado de</p><p>Alceu Amoroso Lima</p><p>lceu Amoroso Lima nasceu na cidade do Rio de Janeiro, no dia 11 de</p><p>dezembro de 1893. Sua educação fugiu ao formalismo da escola. A um</p><p>único educador foi confiada a sua formação inicial, ao professor João Koptcke,</p><p>que se revelou um educador moderno. Não se limitou o mestre petropolitano a</p><p>ensinar as primeiras letras a Alceu. Despertou-lhe a curiosidade, a admirar a</p><p>riqueza do real. Lançou em seu espirito sementes de insatisfação; a tendência a</p><p>descobrir o ser oculto na aparência das coisas. A admiração, esta mola</p><p>propulsora da ciência e, sobretudo, da sabedoria, instalou-se definitiva e</p><p>confortavelmente na alma do jovem, e jamais haverá de abandoná-lo em seus</p><p>quase noventa anos de profícua e fecunda existência. O despertar para a vida,</p><p>para o milagre do dia-a-dia, afastou-o da educação formal, o que justifica sua</p><p>confissão de que nunca se sentiu atraído pela rotina escolar. Será um mestre</p><p>consumado, mas nunca foi ou quis ser um bom aluno. Esta rebeldia contra o</p><p>convencional, o formal, já entremostrava a primazia que a liberdade irá ocupar</p><p>em seu espirito. Ele assim trilhou</p><p>os primeiros passos de sua vida, penetrou no</p><p>mundo das letras - que deveria percorrer, ao longo de sua vida, como bem</p><p>poucos intelectuais do país. O Colégio Pedro ll constituiu o segundo patamar</p><p>de sua educação. E a Faculdade Nacional de Direito completaria o ciclo</p><p>educacional. O autodidatismo faz o resto. Ou seja: moldou uma das mais</p><p>equipadas culturas de nosso panorama, reconhecido por gregos e troianos.</p><p>Aos vinte anos de idade, havia visitado a Europa quatro vezes.</p><p>Frequentou o Collège de France, e lá ouviu maravilhado algumas conferências</p><p>de Henri Bergson1, um dos maiores filósofos do século XX. Talvez daí haja</p><p>captado, com suas poderosas antenas, a metafisica espiritualista à qual iria</p><p>aderir mais tarde.</p><p>Uma de suas características era a alegria, que passava a todos à sua volta.</p><p>Era um homem de bem consigo mesmo. A turbulência dos problemas e das</p><p>circunstâncias não parecia toldar aquele horizonte, dominado por um absoluto</p><p>equilíbrio. Quantas e quantas vezes assisti à missa das seis e meia do Padre</p><p>Leonel Franca e lá estava ele, com seu poderoso Missal.</p><p>O respeitado polígrafo - igualmente conhecido sob o pseudônimo de</p><p>Tristão de Athayde - leu milhares de livros, havendo sido mesmo, em alguns</p><p>casos, o primeiro entre nós a nos pôr em contato com autores do País e do</p><p>Exterior, depois unanimemente consagrados.</p><p>Alceu jamais se considerou especialista em alguma das múltiplas áreas do</p><p>conhecimento abrangidas por sua vasta cultura. Timbrou em se definir como</p><p>um autodidata. Comprazia-se em se afirmar um amador. A assertiva é</p><p>verdadeira, se analisada a sua trajetória pelos bancos escolares. Vista, porém,</p><p>na perspectiva de sua concepção global, outra será a conclusão. É certo que</p><p>suas obras se espraiam por quase todos os domínios do conhecimento,</p><p>nomeadamente na área das ciências humanas e sociais, da Filosofia, da</p><p>Teologia e da Literatura. São oitenta e cinco livros, milhares de artigos, outro</p><p>tanto de conferências, que atestam a posição ímpar de Alceu Amoroso Lima</p><p>como grande intelectual e incontestável líder de sua geração. Para alguns, é o</p><p>maior pensador latino-americano. Certamente, o maior pensador cristão do</p><p>continente abaixo do Rio Grande.</p><p>Cuidamos que a sua amplitude de conhecimentos fale menos de uma</p><p>erudição esclerosada do que de um pensamento sempre em ebulição. Nossa</p><p>conclusão é que ele foi um pensador, um filósofo. Não o estamos a catalogar</p><p>no rol dos filósofos sistemáticos. Nada mais longe do seu intento e da sua</p><p>própria evolução intelectual do que a adoção de um sistema com um princípio</p><p>diretor e teses a ele vinculadas por estrita travação lógica. Não, Alceu foi um</p><p>filósofo enquanto pensou a realidade na linha de seus fundamentos. Viu-a</p><p>como problemática e não dogmaticamente. Levantar problemas, inquirir,</p><p>sondar os meandros de uma realidade fugidia e dinâmica. E visualizá-los em</p><p>seus diversos ângulos, com predomínio frisante da tríade que o haveria de</p><p>acompanhar a vida inteira. Para ele, as questões ensejam três aspectos a serem</p><p>considerados, ou posições opostas a serem superadas por uma síntese</p><p>compreensiva. Ele foi um pensador, e não apenas um crítico das letras, das</p><p>ideias, num sentido marcadamente profissional e estrito. Sua concepção global</p><p>está necessariamente presente em suas considerações sobre densos problemas</p><p>do homem e de seu destino, ao mesmo passo que igualmente emerge no</p><p>estudo e na análise de questões conjecturais, de momento, mas</p><p>invariavelmente iluminados por essa amplitude de compromisso com o</p><p>universal.</p><p>Um pensamento pode ser pinçado para melhor caracterizar a visão que</p><p>Alceu nos apresenta como essencial, conatural ao seu ser de eleição: “o espírito</p><p>é sempre universal por natureza.” Havendo aderido à Filosofia de Jacques</p><p>Maritain2, que lhe serviu de suporte especulativo, Alceu nos acena com o</p><p>primado do espirito e infere daí a universalidade de sua visão do mundo. Além</p><p>disso, suas ideias o conduziram, em todos os domínios abarcados por seu saber</p><p>universal, à totalidade, que é outra categoria filosófica por excelência.</p><p>Problematicidade e totalidade cifram e configuram o universo filosófico. Em</p><p>ambas as categorias, se adentrou como em terra nativa.</p><p>Asseverou Georg Simmel3 que a filosofia que temos depende do filósofo</p><p>que somos. A imbricação do homem com a obra se faz particularmente no</p><p>legado de Alceu. Seu itinerário foi vincado pelo drama de uma conversão</p><p>religiosa a que não faltaram traços vizinhos da tragédia interior, vivida com a</p><p>coragem de afrontar a vida e a morte.</p><p>O sim haveria de resultar o lento e sofrido processo existencial. Seria o</p><p>coroamento de uma angústia metafísica que tomou de assalto o seu prodigioso</p><p>espírito. Mas, por isso mesmo, o sim traduziu e consubstanciou a adesão plena</p><p>e definitiva à Verdade, ante a qual oscilaram o seu pensamento, a sua vontade</p><p>e a sua sensibilidade. As potências do eu gemeram ante o medo de</p><p>comprometer-se. Pois sabia o mestre cristão que, como declarou o seu mentor</p><p>intelectual e espiritual, o saudoso padre jesuíta Leonel Franca, “com o</p><p>Absoluto não se regateia. Quem não deu tudo, não deu nada”. Daí o adeus à</p><p>disponibilidade de expressar com meridiana clareza a opção radical. Aquela</p><p>que assinalará os seus passos em direção ao ser-mais, à morada perene em que</p><p>se haveriam de aquietar os anseios supremos das mais fundas dobras de sua</p><p>alma.</p><p>Este itinerário penoso e angustiado de seu espírito teve o</p><p>acompanhamento fraterno de Jackson de Figueiredo - fundador do Centro</p><p>Dom Vital e da revista A Ordem - e do padre Leonel Franca - fundador da</p><p>Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Com Jackson, manteve</p><p>assídua correspondência, em que dúvidas e quase desespero vincaram sua</p><p>biografia de forma indelével. De um lado, a firmeza, a certeza de Jackson no</p><p>relativo à verdade da fé. De outro, o kierkegaardiano4 Alceu, a sofrer as dores</p><p>e o traumatismo de uma fé que se ensaiava nas dobras de sua alma atribulada.</p><p>Chegou o instante em que Jackson não mais dispunha de arsenal teológico</p><p>para solver as dúvidas mais profundas e derradeiras do amigo. Surge como</p><p>uma luz na escuridão a figura invulgar do padre Franca. O sábio jesuíta, mercê</p><p>de seu cabedal excepcional para a época, haveria de oferecer as respostas às</p><p>perguntas finais de um grande espírito. E assim dá o passo definitivo. Embarca</p><p>na grande aventura da vida como doação. Da vida como vigilância do espirito.</p><p>Da vida como respeito à Verdade. É a conversão. Talvez a mais sofrida, a mais</p><p>angustiante nos fastos da Igreja no Brasil. Mas, por outro lado, a mais rica em</p><p>consequências para a fé revelada. Pois Alceu passou a significar o refúgio da</p><p>verdade no turbilhão de vozes desconectadas com o verdadeiro real, o</p><p>Absoluto.</p><p>Com a trágica morte de Jackson de Figueiredo, tragado pelas ondas</p><p>revoltas da Gruta da Imprensa, no Rio de Janeiro, em 4 de novembro de 1928,</p><p>Alceu aceitou o convite para presidir o centro Dom Vital e assumiu a direção</p><p>da revista A Ordem. Em sua primeira fase, o mais importante instituto de</p><p>cultura católica mesclava questões filosóficas e teológicas com análises sobre o</p><p>cotidiano da política. O novo presidente rasgou o véu do templo e meteu a</p><p>ombros a gigantesca tarefa de conferir universalidade à cultura católica. Sua</p><p>obra bem revela este escopo, pois foram se sucedendo estudos que, em seu</p><p>conjunto, moldaram uma verdadeira e ambiciosa Summa assistemática, uma</p><p>visão unitária e não reducionista do saber. Uma fenomenologia paciente a</p><p>caminhar para uma construção filosófica de caráter global. Esta foi a sua marca</p><p>registrada, ajustificar a tese de que, por de trás do aparente descompasso de</p><p>seus escritos, nem sempre obedientes a um estilo aprimorado, avulta uma</p><p>unidade final.</p><p>Alceu Amoroso Lima pertence à galeria dos imortais de nossa cultura.</p><p>Seu alentado e rico opus está à nossa disposição, a fim de que nele aprendamos</p><p>as lições imorredouras do viver conscientemente a nossa condição humana.</p><p>Nas marchas e contramarchas da evolução de seu pensamento emergiu</p><p>para ti nossos olhos atônitos o drama existencial de uma alma ávida de</p><p>plenitude, sabendo</p><p>embora que o homem pascalianamente5 é feito de</p><p>grandeza e de miséria. O grande pensador nos legou a mais ampla obra</p><p>espectral do pensamento cristão e uma das mais densas afirmações da crítica</p><p>literária de nosso continente.</p><p>Alceu nos conta que sua evolução se deu da idade das formas para a fase</p><p>das ideias, finalizando pela era dos acontecimentos. Primeiramente, foi o</p><p>crítico literário, que nos legou alentados volumes que não deixaram de</p><p>considerar, de maneira original, as obras mais relevantes da Literatura</p><p>universal. Sua crítica foi construtiva e isenta, profunda e sempre renovada.</p><p>Foi um descobridor de talentos. Tinha uma fina sensibilidade para captar</p><p>valores novos, que invariavelmente estimulou, com a generosidade própria</p><p>dos espíritos superiores. Daí por que sua crítica granjeou tantos admiradores.</p><p>É que o aureolado mestre soube ficar equidistante dos extremos do louvor</p><p>excessivo e gratuito e da contundência exagerada dos críticos que não</p><p>suportam o confronto com autores dos quais nos dão notícia e que, por vezes,</p><p>os suplantam pela originalidade de seus escritos. Alceu era diferente.</p><p>Timbrava em analisar com isenção e objetividade autores e obras, com único</p><p>propósito de fazer crítica literária séria, sem incidir no subjetivismo</p><p>escorregadio.</p><p>Depois, sobreveio o período da análise e crítica das ideias, em que os mais</p><p>diversos ramos do conhecimento se viram subitamente vasculhados em todos</p><p>os seus escaninhos, com surpreendente competência. Filosofia, Teologia,</p><p>Direito, Economia, História, Política e outros campos do saber receberam</p><p>primoroso tratamento nas dezenas de obras e milhares de artigos e</p><p>conferências que nos legou.</p><p>Finalmente, emerge voltado para conjuntura, especialmente a partir de</p><p>1964, como crítico do regime militar então instaurado. Nele se depositaram a</p><p>confiança e a esperança de muitos, pois seus escritos resistiram a pressões e</p><p>traduziram as restrições ao arbítrio.</p><p>Uma vida com três ênfases distintas: a crítica literária, a crítica das ideias</p><p>e a era dos acontecimentos. Sucederam-se sim, mas também se interpenetram,</p><p>a evidenciar o sinete da unidade que permeou a caminhada de Alceu. Uma</p><p>vida em três vidas bem vividas. Abertas à divergência. À procura da verdade</p><p>nas densas nuvens da história humana.</p><p>O ilustre pensador sorveu a relatividade dos acontecimentos com olhos</p><p>postos no duradouro, quando não no eterno. Parecia sempre querer infletir na</p><p>ação o mais profundo do seu ser, a explicitar o transbordamento de sua alma</p><p>na vivência dos valores esposados e intensamente vividos.</p><p>Em síntese, diríamos que se afirmou através de um intelectualismo</p><p>lúcido, de um espírito libertário e de uma visão da realidade em forma triádica.</p><p>Não surpreende que haja vivido três vidas em uma, nem que a Trindade</p><p>Divina nele encontra-se uma acolhida tão profunda.</p><p>Alceu Amoroso Lima morreu no dia 14 de agosto de 1983, em</p><p>Petrópolis, cercado pelo carinho dos seus e pelo conforto espiritual da Igreja.</p><p>Deixou-nos um legado: sua vida exemplar e suas obras repassadas de</p><p>ensinamentos. E um continuador: Cândido Mendes6 que, em boa hora,</p><p>fundou o Centro Alceu Amoroso Lima Para a Liberdade a fim de aprofundar</p><p>suas ideias e lhe perpetuar a memória.</p><p>Sua vida não foi linear. Não foi marcada por um itinerário geométrico,</p><p>com script previamente delimitado. Há uma dinâmica em seu percurso, a</p><p>evidenciar o quanto o escritor se ajustou ao seu tempo, evoluindo em</p><p>obediência ao enriquecimento crescente de seu convívio com os seus</p><p>contemporâneos, neste permanente anseio de convivência intelectual e de</p><p>constante desejo de assinalar a personalidade do outro, mercê de aguçada</p><p>sensibilidade. Nele não encontramos o racionalista frio. Detectamos</p><p>facilmente em sua obra uma paixão sadia da inteligência, sem os arroubos</p><p>apologéticos tão comuns nos críticos ensimesmados.</p><p>Entendo que, como intelectual, Alceu foi alguém que sobretudo nos</p><p>interpelou; a sua obra é de interpelação. Ele nos fustiga e nos provoca a</p><p>respeito dos temas mais candentes da nossa época - da psicologia à economia,</p><p>do direito à Sociologia, da Filosofia à crítica literária. O melhor seria dizer o</p><p>que ele não foi.</p><p>Quando ele abriu os olhos para a cultura brasileira, viu uma</p><p>intelectualidade católica sem expressão, em que até ser intelectual católico</p><p>parecia uma impossibilidade teórica, a tal ponto que a religião era praticada,</p><p>pelo menos regularmente, pelas senhoras e crianças que as acompanhavam,</p><p>enquanto tímidos maridos ficavam na soleira da Igreja, gerando aquele</p><p>comentário conhecido de que, à época, havia um Sacramento unicamente</p><p>destinado aos homens, A Ordem. No Brasil, um Sacramento apropriado apenas</p><p>às mulheres: a Eucaristia. Os homens dele não se aproximavam.</p><p>A mentalidade que grassava através do positivismo, cientificismo - que</p><p>não medrara talvez tão fortemente em outras plagas, até nas de origem - fez</p><p>com que o Dr. Alceu vivesse a perplexidade do seu agnosticismo, chegasse à</p><p>tortura do dilema referido pelo padre Ávila, recordando as cartas trocadas</p><p>entre o Dr. Alceu e Jackson de Figueiredo: o mágico não seria o necessário</p><p>condutor do sério.</p><p>O ambiente que encontrou quando se adentrou no estudo do</p><p>pensamento brasileiro era de marcado tradicionalismo dentro da Igreja.</p><p>Cândido Mendes referiu-se ao fato de que Alceu, por exemplo, chegou até a</p><p>recomendar aos cristãos, aos católicos, que adotassem ou ingressassem no</p><p>integralismo e que isso fora cobrado dele ao longo da vida. Ora, essa cobrança</p><p>não faz sentido nenhum e não faz porque, se formos volver os passos para a</p><p>década de 1930, o que vamos encontrar é o maniqueísmo ideológico, graças ao</p><p>qual aqueles que tinham a sensibilidade social optavam pelo marxismo,</p><p>enquanto aqueles que, por exemplo, cuidavam de aderir a uma forma política</p><p>que expressasse o seu espiritualismo um tanto vago muitas vezes embarcavam</p><p>no integralismo, como San Tiago Dantas7, Dom Hélder Câmara8 e tantos</p><p>mais. Outros aderiram ao movimento por questão de nacionalismo, com</p><p>vários matizes.</p><p>Da mesma forma, o marxismo adotado por uns não era igual ao de</p><p>outros. O marxismo de Carlos Lacerda9, por exemplo, aos 17 anos, era muito</p><p>mais feito e voltado para a ação do que para o pensamento. Recordo-me que</p><p>eu morava nessa época em Petrópolis, quando soube que um jovem de 17 anos</p><p>havia se jogado no rio, ali no centro da cidade, após trocar tiros com as facções</p><p>integralistas. Alceu escapou desse maniqueísmo e, se não fosse sua condição de</p><p>líder católico - ele próprio o diz -, talvez tivesse sido marcado indelevelmente</p><p>pelo dilema. É preciso que se diga isso para se compreender a estreiteza do</p><p>nosso horizonte da década de 1930.</p><p>Cabe aqui um parêntese. A década de 2010-2020 parece estar de volta à</p><p>radicalização do diálogo. Abriu-se, assim, uma nova atuação de Alceu, que não</p><p>se deixou embair pelo convite da fácil e superficial ideologia de um lado nem</p><p>de outro.</p><p>Na época em que Jackson funda o Centro Dom Vital, engaja-se também</p><p>na política. Dono de uma personalidade forte, a tal ponto que pôde atrair</p><p>Alceu Amoroso Lima. Tristão, porém, a pouco e pouco, coloca o pé no freio e,</p><p>gradativamente, vai deixando funcionar as suas próprias antenas. O centro</p><p>Dom Vital, que passa a presidir, após a morte de Jackson, ganha nova</p><p>dimensão, a da universalidade. Só que essa universalidade é muito especial. É o</p><p>leque da tentativa de captar a realidade em todos os seus escaninhos. Eu diria</p><p>que é a universalidade inacabada, assim como a Sinfonia inacabada, de</p><p>Schubert, assim como o mármore lavrado da Aurora, de Michelangelo.</p><p>Alceu abraçou inicialmente o maritainismo, que exerceu uma grande</p><p>influência na América Latina. A pouco e pouco ele se afasta, por dois motivos.</p><p>Primeiro, as discrepâncias no concernente à posição da própria Igreja;</p><p>segundo, no que diz respeito ao cunho rigidamente tomista de Maritain, que</p><p>no meu entender era menos tomista do que adepto de João de Santo Tomás10.</p><p>Conquanto ele nunca tenha dito isso, sinto nele uma falta de adesão àquilo que</p><p>se chama a grande corrente do pensamento francês: “La Philosophie de</p><p>L’Esprit”</p><p>11</p><p>. Esse</p><p>movimento, que nasceu em 1934, sob a inspiração de</p><p>Lavelle12, Le Senne13 e Mounier14, afirma claramente, primeiro, o primado do</p><p>espírito, a liberdade como uma construção, liberdade como uma conquista. E</p><p>depois o grande diálogo solidário, ou seja, o reconhecimento do outro. É essa</p><p>ideia de solidariedade que vai estender-se e é por ele incorporada. É, mais</p><p>ainda, a mediação ética de sua obra. Nisso não há uma gota de oportunismo,</p><p>não há uma concessão, qualquer que seja, a modismos; não há a gordura da</p><p>ostentação. É o intelectual autêntico. E o que faz o intelectual autêntico? Uma</p><p>das duas coisas, ou as duas: ou ele é um intelectual-denúncia, ou é um</p><p>intelectual-testemunho. E ele foi essas duas coisas, desempenhou os dois</p><p>papéis. E conseguiu impor-se como pensador católico.</p><p>Leonel Franca, vivendo uma época polêmica, era o trator que abrira o</p><p>caminho. Alceu pôde ser mais suave. De tal maneira que lhe foi possível ser</p><p>objeto de críticas extremamente severas e, não obstante, nos ter ensinado a</p><p>linguagem da doçura, no concernente às pessoas que o criticavam.</p><p>Mas a verdade é que ele está diante de nós. Nem cedeu à interpretação</p><p>religiosa do político, nem à interpretação política do religioso; nem cedeu à</p><p>tecnocracia, nem a uma secularização absoluta. Ele soube ser não somente um</p><p>intelectual católico, e católico até a última dobra de sua alma, como também</p><p>um intelectual que soube separar o adjetivo do substantivo, sempre que se</p><p>fazia necessário. E isso não é tarefa fácil. Por isso Alceu pôde exercer uma</p><p>extraordinária influência, em que pese toda essa universalidade não</p><p>sistemática das suas ideias, que gerou também uma série de críticas nos meios</p><p>educacionais.</p><p>É imperioso ressaltar a presença de Alceu, com justiça considerado o</p><p>leigo exemplar na Igreja do Brasil. Toda discussão a propósito dessa assertiva</p><p>encontra sua comprovação histórica mercê da leitura das cartas trocadas entre</p><p>ele e Gustavo Corção. Essa correspondência nasceu, por parte de Alceu, como</p><p>o desenrolar de seu penoso processo interior a respeito da fé religiosa à qual</p><p>ele retornou depois de exaurir ponto por ponto o ideário religioso que</p><p>provocou nele maciça dose de pessimismo kiekegaardiano. Daí emergiu um</p><p>Alceu robustecido em suas convicções religiosas, forte o suficiente para</p><p>guindá-lo à posição de líder do laicato católico brasileiro. O seu desempenho</p><p>nessa posição líder inconteste assegurou-lhe respeito para sua liberdade</p><p>intelectual, traduzido pela não ingerência do regime militar, a partir de 1964,</p><p>em suas publicações.</p><p>Tendo sido Alceu um leigo católico exemplar, julgamos pertinente</p><p>discorrer sobre a vocação e desafio de tal posição.</p><p>O leigo dentro da Igreja tem que ser respeitado pela sua sacralidade. Com</p><p>o batismo, há uma espécie de unção sacral de todos nós e dela não devemos</p><p>abdicar nunca. Cabe-nos todo respeito, é claro, ao magistério da Igreja, mas</p><p>tudo há de passar pelo crivo da nossa individualidade.</p><p>Nós somos pessoas, não somos autômatos. Então, como pessoas, vamos</p><p>adiante responder diante de Deus pelas nossas opções. E se temos dons, se</p><p>temos riquezas, cada dom que nós tivermos implica uma missão, uma tarefa,</p><p>uma obrigação, e por ela havemos de responder. Há um compromisso</p><p>existencial em cada um de nós. Cada itinerário nosso é diferente do outro, mas</p><p>nossa mão deve sempre estar estendida para o outro. Não importa o que ele</p><p>pense, não importa o que ele sinta; qualquer que seja o seu pensamento e a sua</p><p>religião, a sua raça, a sua cor política, ele é um irmão. Então, o leigo cristão é</p><p>alguém que acolhe o outro até porque sabe que o outro é o espelho de si</p><p>mesmo.</p><p>Para delimitar os contornos da atuação do leigo no mundo hodierno,</p><p>impõe-se, preliminarmente, bosquejar, em rápidas pinceladas, a configuração</p><p>do mundo em que as ações do leigo se desdobrarão, por maneira a evitar o</p><p>duplo escolho da alienação e do engajamento desligado da matriz de sua</p><p>necessária alimentação.</p><p>Quais seriam hoje as dominantes do quadro? E quais foram ontem as</p><p>ideias-força que impulsionaram homens e instituições a agir?</p><p>No mundo antigo, a arte e a natureza constituíram os conceitos basilares</p><p>em torno dos quais tudo parecia girar. No período medieval, os temas centrais</p><p>foram Deus e a religião. Já na época moderna, a ciência, a tecnologia e o</p><p>homem são ideias cruciais em torno das quais convém articular a significação</p><p>da vida humana.</p><p>Ocorre que o progresso da ciência e da tecnologia, que atônitos</p><p>contemplamos, em alguns espíritos gerou a convicção de que elas abarcariam</p><p>todas as possibilidades de compreensão e de explicação do real. É a</p><p>ideologização do saber científico-tecnológico.</p><p>Assim, bem avisado andou Max Scheler15, ao obtemperar que “a ciência</p><p>não tem o poder de preencher o vazio que surge em nosso espírito e em nosso</p><p>coração, quando a religião transmitida é abandonada. A religião e a metafísica</p><p>podem ser destruídas apenas por outra religião e outra metafísica”.</p><p>O homem não é, mas se faz através dos atos livres pelos quais se</p><p>constitui. E, dada a vertiginosidade do evolver de sua afirmação como centro</p><p>da realidade, o homem de hoje é contemporâneo do futuro.</p><p>Há, porém, algumas características a serem pinçadas neste breve retrato</p><p>do homem vivenciado com a busca da lucidez e, ao mesmo tempo, marcado</p><p>pelo sofrimento de se sentir carente de sentido.</p><p>A busca de sentido nos tempos de hoje se vê confrontada com três óbices.</p><p>Primeiramente, visualiza-se, com especial presença, um certo “dogmatismo do</p><p>desejo”. Este não tem limite e engloba direções até eventualmente conflitantes.</p><p>Nem ditames da convivência emperram o mecanismo que gera a exigência do</p><p>desejo como mola propulsora da ação. Daí para a socialização do egoísmo é</p><p>um passo. E que enseja a visualização da vida social como um imenso</p><p>arquipélago de solidões, atualmente magnificado pelas mídias sociais.</p><p>Em segundo lugar, o quadro bem mais se compreende, no momento em</p><p>que emerge, com meridiana clareza, a perplexidade ideológica atual. A ela há</p><p>de se adicionar uma marcada “homeopatia axiológica”, que responde, em</p><p>grande parte, pela nítida perda de sentido em que vivemos.</p><p>Um terceiro aspecto a ressaltar é que essa breve fenomenologia da crise</p><p>do homem se torna ainda mais pungente quando forcejamos por compreender</p><p>o homem na perspectiva de um humanismo pluridimensional. Impende</p><p>captar-lhe uma vez mais “a presença do mistério”, em obediência à asserção de</p><p>Simone Weil16, de que há uma parte superior de nossa alma que se alimenta de</p><p>fome.</p><p>Ao homem atormentado deste século se apresentam, na arena</p><p>especulativa, convites que promanam seja das filosofias da finitude, seja de</p><p>idealismos alienantes, seja de filosofias havidas como abertas, mas restritas ao</p><p>campo epidérmico da busca de sentido enquanto hermenêutica.</p><p>O grande desafio a ser diuturnamente enfrentados pelos leigos, hoje,</p><p>consiste em falar a linguagem do sempre na dimensão do agora. O então</p><p>Monsenhor Montini se perguntou certa feita: “Para que serviria dizer o que é a</p><p>verdade, se não nos fizéssemos compreender pelos homens deste tempo?”</p><p>Estamos, paradoxalmente, ligados à Alte bedeutung</p><p>17 de que falava</p><p>Heidegger e ao necessário aggiornamento’</p><p>18 tão fortemente presente no</p><p>Concílio Vaticano II. Há duas tentações que o leigo deve evitar e, suplantando</p><p>seus limites, nelas buscar a inspiração paradigmática de seu agir. De um lado, o</p><p>angelismo19, que, partindo do abstracionismo metafísico - base de uma</p><p>antropologia filosófica vazia -, inviabiliza o diálogo entre a verdade e a</p><p>história. De outro, o relativismo historicista, com fortes tons de cunho</p><p>sociologista, que, muitas vezes, responde por um corte com a abertura possível</p><p>para o transcendente. O leigo deve conviver com os contrários, mercê de uma</p><p>dialética constitutiva, e não de uma dialética da contradição.</p><p>É judiciosa, no particular, a consideração de Maurice Blondel20: “o ritmo</p><p>trinitário de Hegel21 agrada-me muito. Mas, qualquer que seja a altura da tese</p><p>e da antítese, a ideia cristã, cada vez mais compreendida e mais desenvolvida,</p><p>fornece sempre uma síntese superior.”</p><p>A visão mais elevada enseja maior compreensão. Como salientava</p><p>Emerson22, “para compreender bem uma coisa qualquer, é preciso descer</p><p>sobre elas de mais alto.”</p><p>Convém resguardar o espaço do leigo no mundo subdesenvolvido. Aqui</p><p>se impõe, com especial ênfase, um tipo de engajamento a refletir a convicção</p><p>de que Igreja, como depositária da Mensagem, responde a uma necessidade</p><p>histórica.</p><p>Releva notar que o individualismo extremado, de um lado, integra o</p><p>mosaico do real. Mas, como sublinha lapidarmente Cândido Mendesjace à la</p><p>gamme restreinte des rôles imposés par la grande sociétécontemporaine, la prétention</p><p>à un comportement individuel est un archaisme</p><p>23. O leigo vive no mundo que põe</p><p>realce na afirmação da individualidade, no culto da subjetividade física e</p><p>psíquica. De outra parte, a história não promana da ação principal e decisiva</p><p>de personalidades excepcionais. A complexidade do real sociocultural impede e</p><p>mesmo inviabiliza a emergência da excepcionalidade.</p><p>É neste mundo horizontal que cabe ao leigo pregar o vertical. Daí a</p><p>magnitude do desafio.</p><p>Sabemos, porém, que a Igreja não cristaliza a sua Mensagem. Põe suas</p><p>complacências na atualização de seu diálogo com o homem e o mundo.</p><p>João Paulo II o afirmou, sem rebuços: “O espírito tem continuado a</p><p>rejuvenescer a Igreja, suscitando novas energias de santidade e de participação</p><p>em tantos leigos fiéis. Prova-o, entre outras coisas, o novo estilo de</p><p>colaboração entre sacerdotes, religiosos e fiéis leigos; a participação ativa na</p><p>liturgia, no anúncio da palavra de Deus e na catequese; a multiplicidade de</p><p>serviços e tarefas confiados aos fiéis leigos e por eles assumidas; o radioso</p><p>florescimento de grupos, associações e movimentos de espiritualidade e de</p><p>engajamento laicais.”</p><p>A diversidade de atividades desenvolvidas pelos leigos os torna presentes</p><p>em praticamente todos os segmentos da sociedade. E mais. Há missões que</p><p>lhes cabem por completo, às quais os religiosos e sacerdotes não tem acesso.</p><p>Destaca-se, por exemplo, a atividade político-partidária. Nela o leigo ocupa</p><p>espaço e a relevância da missão dispensa maiores análises. É certo que cabe</p><p>também à Igreja um papel particular na vida política. Cuido que se trataria</p><p>antes de emitir juízos éticos sobre a política, por maneira a fornecer adequada</p><p>orientação no relativo a questões que, respeitando o homem e seus direitos</p><p>naturais, apontem para o seu ser-mais.</p><p>A enfática afirmação, colhida na Exortação Apostólica Christiideles, revela</p><p>o quanto evolveu a coparticipação do laicato na vida da Igreja. Mormente no</p><p>mundo secularizado e consumista em que vivemos, este papel se torna vital,</p><p>uma vez que, em certos casos e em circunstâncias especiais, o leigo, mais do</p><p>que o religioso ou o sacerdote, constitui a fonte natural entre a Mensagem e o</p><p>homem atual. A dimensão religiosa não está presente em parcelas ponderáveis</p><p>das populações, nomeadamente urbanas. A dificuldade de dialogar, a</p><p>competição desenfreada, o isolamento voluntário ou compulsório, a pressão</p><p>uniformizadora da mídia, o aumento desmesurado dos níveis de aspiração</p><p>socioeconômica, o abandono dos parâmetros da fé e sua substituição por</p><p>formas imprecisas de misticismo impelem o homem para uma vida marcada</p><p>pelo imediatismo. A tarefa do leigo se vê, assim, opulentada pela grave</p><p>responsabilidade de fazer reviver em seu cotidiano aquilo que já não é mais o</p><p>cotidiano de seus coetâneos.</p><p>O leigo constitui, hoje, sem sombra de dúvida, a ponte maior entre os</p><p>homens em sociedade. A Palavra, de que a Igreja é depositária, ficaria adstrita</p><p>ao mundo da hierarquia, caso não viessem os leigos a aproximar os homens da</p><p>Mensagem. Nas fábricas, nas universidades, nos sindicatos, nas empresas, nas</p><p>famílias, em todas as modalidades associativas, profissionais ou filantrópicas,</p><p>os leigos, ao cumprirem suas tarefas específicas, poderão dar seu testemunho,</p><p>viver a sua vida, os seus valores, fazerem-se eco da Palavra.</p><p>É preciso jamais olvidar que o Verbo se fez carne. A encarnação é o</p><p>mistério que fala mais de perto à humana condição. Por ele se percebe o</p><p>sentido da missão do leigo. Ele é o homem de carne e osso, de que fala</p><p>Unamuno24. O ser entre seres iguais em dignidade, aos quais deve a palavra</p><p>como compromisso de vida.</p><p>Não se pode falar de Alceu sem se mencionar o nome do intelectual mais</p><p>respeitado nos meios católicos latino-americanos, Candido Mendes. Com</p><p>efeito, Alceu versou os grandes desafios do século passado, dando aos seus</p><p>pronunciamentos a clareza e a certeza das afirmações de espírito de escol. E</p><p>com o enriquecimento oriundo da leitura das obras de Alceu e Maritain, esse</p><p>leigo católico pôde aprofundar sua visão universal, assim garantindo a solidez</p><p>de suas convicções.</p><p>A missão dos leigos se expressa por ações como: viver sua fé no meio dos</p><p>homens eventualmente sem fé, encarnar valores que nem sempre se</p><p>compadecem com os padrões sociais em vigor. Articular-se em forma dialogal</p><p>com todos os homens na horizontalidade do reconhecimento da igualdade em</p><p>dignidade. Ser fermento do alimento oferecido munificientemente pelo</p><p>Altíssimo a todos os homens.</p><p>Essa missão sempre se cumprirá no mundo sulcado por conflitos e</p><p>contradições. Num mundo sofrido e, por vezes, doente. No paradoxo da visão</p><p>cristã, o sofrimento pode ser uma tarefa, como salientou Peter Henrici25.</p><p>O cristão busca a unidade, sempre que nele se aplainam as arestas da</p><p>alma. Disse-o Louis Lavelle: ces sont les consciences le plus élevées qui sont lesplus</p><p>malheureuses. Ces sont lesplus avides d,unité; mais elles sentent plus vivement</p><p>qu’aucune autre leur déchirement intérieur.</p><p>26</p><p>Lançado no mundo, o homem é um ser situado que, segundo Newman,</p><p>promana ex umbris et imaginibus ad veritatem</p><p>27. Aos leigos compete aluminar</p><p>caminhos, abrir espaço dialogal, interagir com o outro, ser de seu tempo para</p><p>suplantá-lo em seu destino transtemporal. Que os homens de hoje vislumbrem</p><p>nos leigos impregnados da Mensagem a capacidade de lhes dizer a Palavra -</p><p>fonte única da verdade, de bem e de belo.</p><p>Palmilharmos a estrada que Alceu Amoroso Lima trilhou. Seguir suas</p><p>pegadas: eis o desafio que lhe fazemos, para que ele não se perca no limbo dos</p><p>pensadores olvidados.</p><p>NOTAS DOS CURADORES</p><p>1 Henri Bergson - Filósofo e diplomata francês, laureado com o Nobel de Literatura de 1927.</p><p>2 Jacques Maritain - Filósofo francês católico de orientação tomista.</p><p>3 Georg Simmel - Sociólogo alemão</p><p>4 Kierkegaardiano - Referente ao dinamarquês Soren Kierkegaard, considerado o primeiro filósofo</p><p>existencialista.</p><p>5 Pascalianamente - significa “de acordo com Pascal” - Blaise Pascal, filósofo e teólogo francês.</p><p>6 Candido Mendes - Filósofo carioca, membro da Academia Brasileira de Letras.</p><p>7 San Tiago Dantas - Jornalista e escritor carioca.</p><p>8 Dom Hélder Câmara - Bispo católico pernambucano.</p><p>9 Carlos Lacerda - Jornalista e político carioca.</p><p>10 João de Santo Tomás - Filósofo e teólogo dominicano português, que viveu no século XVII.</p><p>11 La Philosophie de L’Esprit - do francês, A Filosoia do Espírito.</p><p>12 Louis Lavelle - Filósofo francês.</p><p>13 René Le Senne - Filósofo e psicólogo francês.</p><p>14 Mounier - Ensaísta católico francês</p><p>15 Max Scheler - Filósofo alemão.</p><p>16 Simone Weil - Filósofa francesa.</p><p>17 Alte Bedeutung - Do alemão, Verdadeira signiicação, que aqui tem o sentido de perene.</p><p>18 Aggiornamento - Do italiano, atualização, que aqui tem o sentido de passageiro.</p><p>19 Angelismo - Exagero de espiritualismo.</p><p>20 Maurice Blondel - Filósofo francês.</p><p>21 Georg Wilhelm Friedrich Hegel - Filósofo alemão.</p><p>22 Ralph Waldo Emerson - Filósofo e poeta americano.</p><p>23 Face à lagamme restreinte des rôles imposés par la grande société contemporaine, la prétention à un</p><p>comportement individuel est un archaisme - Do francês, Diante do restrito leque de papéis imposto pela</p><p>grande sociedade contemporânea, a reivindicação do comportamento individual é um arcaísmo.</p><p>24 Miguel de Unamuno y Jugo - Ensaísta, romancista, dramaturgo, poeta e filósofo espanhol. Foi</p><p>também deputado entre 1931 a 1933 pela região de Salamanca.</p><p>25 Peter Henrici - Padre jesuíta</p><p>e filósofo suíço.</p><p>26 Ces sont les consciences leplus élevées qui sont lesplus malheureuses. Ces sont lesplus avides d}unité; mais elles</p><p>sententplus vivement quaucune autre leur déchirement intérieur - Do francês, As consciências mais elevadas</p><p>são as mais infelizes, mas as mais ávidas por unidade. São as que sentem mais fortemente do que qualquer</p><p>outro o seu rasgo interior.</p><p>27 Ex umbris et imaginibus ad veritatem - Do latim, Das sombras e imagens em direção à verdade.</p><p>E</p><p>A personalidade forte de</p><p>Rachel de Queiroz</p><p>Minhas (personagens) mulheres são danadas, não são?</p><p>Talvez seja ressentimento do que não sou e gostaria de ser.</p><p>Apesar de Rachel de Queiroz ser considerada uma das mais</p><p>importantes escritoras brasileiras do século XX, quando lhe</p><p>perguntavam sobre sua literatura, Rachel respondia:</p><p>Antes de mais nada, sou uma jornalista.</p><p>m momentos conturbados, quando tudo está desesperançado ou</p><p>supostamente perdido, um país sempre pode recorrer aos seus grandes</p><p>nomes do passado: os ingleses a Shakespeare, os franceses a Molière, os</p><p>alemães a Thomas Mann e o Brasil a Rachel de Queiroz.</p><p>Mulher marcante no imaginário nordestino, líder para as feministas,</p><p>mesmo sem levantar bandeiras. Há uma outra parte de Rachel que temos que</p><p>encontrar: a mãe de belos e preciosos livros de seu povo, a mulher que aguava</p><p>sua fazenda com enxurradas de palavras. Rachel foi profundamente ligada à</p><p>sua terra e à sua gente.</p><p>Em sua pele, em suas rugas se escreveu muito mais do que palavras, se</p><p>escreveu a história da seca, esta epopeia de dissabores, mesmo ela não</p><p>acreditando (“eu sou a pessoa menos épica do mundo. Meus livros sempre</p><p>foram muito condensados”). Com a regularidade dos fatos da natureza, a seca</p><p>renova periodicamente a sua nefasta presença em vastas regiões do País. Essa</p><p>geografia da seca está profundamente entranhada no corpo de Rachel. Uma</p><p>bela figura humana.</p><p>Descendente de famílias tradicionais do Ceará, filha de Daniel de Queiroz</p><p>e de Clotilde Franklin de Queiroz, e parente do escritor José de Alencar,</p><p>presenciou, aos 5 anos de idade, a terrível seca de 1915 e migrou com a família</p><p>para o Rio de Janeiro. Lembro-me sempre dela falando de suas frequentes</p><p>mudanças de domicílio, que ora era encontrada em Fortaleza ou Belém, ora</p><p>em Quixadá ou no Rio de Janeiro. “No fim de 1919, terminava uma grande</p><p>seca, no Ceará. Nossa família vinha de uma experiência de migração para o</p><p>Pará; durou dois anos a experiência que se alongoujustamente por causa da tal</p><p>seca. Em outubro de 1919 voltamos à terra, pai, mãe, três filhos e um por</p><p>nascer. Nosso destino seria o sertão, mas isso no momento era impossível. A</p><p>seca arrasara tudo: gado, terra e gente.”</p><p>Participante da cultura da década de 1930, ela foi uma das mais bem-</p><p>sucedidas, a chamada “brasilidade nordestina”, que tem à frente Gilberto</p><p>Freyre, criador da expressão. Em sua crônica O incrível centenário, diz ela: “para</p><p>nós, nordestinos, principalmente os que tínhamos maior contato com</p><p>Pernambuco, Gilberto Freyre era uma espécie de orago. O homem que tinha</p><p>descoberto o processo com que se fizera a civilização daquela região (...). A</p><p>publicação de seu Casa Grande & Senzala foi praticamente um escândalo. As</p><p>relações dos patriciados com os escravos africanos e a população local eram</p><p>vistos sob ângulo inédito.”</p><p>Suas palavras são como cenas de filme, aliás uma de suas paixões.</p><p>Imagine-se o leitor carecido de intimidade com o nordeste seco. E esse leitor</p><p>se depara com uma escritora menina/mulher que lhe lança imagens carregadas</p><p>de força, tal qual os irmãos Lumière1 o fizeram com a famosa cena em que um</p><p>trem, em movimento, parecia estar vindo diretamente em direção à plateia</p><p>desavisada, o que a fez sair em desabalada corrida. Assim também Rachel faz as</p><p>pessoas pularem da cadeira com o realismo de seu nordeste árido e sofrido.</p><p>Rachel dizia que adorava as atrizes e seu modo de representar. Ela, uma</p><p>atriz das letras, da seca, do árido, ainda está no palco, só que agora aplaudida</p><p>por grandes plateias e não mais aquela tímida menina dos anos 30.</p><p>Quando olhava para Rachel em nossas andanças de carro, saindo da</p><p>Academia, às vezes olhava para seu rosto forte, de marcas assimiladas à obra</p><p>de arte e tentava me lembrar de onde e quando a encontrei pela primeira vez.</p><p>Na verdade, conheci Rachel de Queiroz bem antes de conhecê-la</p><p>pessoalmente, uma vez que várias pontes de amizade já se haviam estabelecido.</p><p>Designadamente eu citaria Adonias Filho, Octávio de Faria e meu irmão mais</p><p>velho Moacyr. A contingência de os três tanto dela falarem, aliado ao fato de</p><p>eu ter lido suas obras, fizeram com que meu primeiro encontro com ela fosse,</p><p>na verdade, um reencontro.</p><p>Diz-se que a personalidade de Rachel de Queiroz era extremamente forte</p><p>- e é verdade - e alguns concluíam daí que ela poderia ser havida como</p><p>“poderosa”. Aí está o equívoco. Era, sim, firme, mas meiga. “O inimigo do meu</p><p>texto sou eu. Quem não é exigente e cai na complacência está perdido. Quem</p><p>achar que o texto está bonito, está perdido... Entrego o livro para o editor</p><p>morrendo de medo.”</p><p>Ela viveu e respirou o clima da amizade porque ela viveu a verdadeira</p><p>amizade tal qual concebida por Aristóteles. Ela dizia: “Eu gosto de gente.” E</p><p>assim viveu, convivendo. Os amigos e familiares sempre a definiram como</p><p>uma mulher firme, com visões políticas muito bem marcadas, o que se pode</p><p>atestar em uma de suas frases impactantes:</p><p>“Eu nunca fui uma moça bem-comportada. Pudera, nunca tive vocação</p><p>pra alegria tímida, pra paixão sem orgasmos múltiplos ou pro amor mal</p><p>resolvido, sem soluços. Eu quero da vida o que ela tem de cru e de belo. Não</p><p>estou aqui pra que gostem de mim. Estou aqui pra aprender a gostar de cada</p><p>detalhe que tenho.”</p><p>No início da sua vida, perpassou em seu horizonte uma espécie de sono</p><p>ideológico, muito rápido. Depois, ela se refugiou por uma inteligente posição</p><p>de comodismo, no que dizia ser o anarquismo. Ela mesma sorria ao se afirmar</p><p>como tal.</p><p>Encontrei um juízo crítico sobre a Rachel em Alfredo Bosi. Dizia ele que</p><p>a curva ideológica da escritora poderá parecer estranha, e mesmo paradoxal,</p><p>mas explica-se muito bem se inserida no roteiro do tenentismo que a</p><p>condicionou, porque verbalmente revolucionária em 1930, sentimentalmente</p><p>liberal e esquerdizante em face da ditadura de Vargas, passada a Segunda</p><p>Guerra acabou se identificando com a defesa passional das raízes do próprio</p><p>país, do seu próprio chão, com o que se aproximaria de Gilberto Freyre.</p><p>Como ela entrou para a Academia, uma pessoa tão simples, tão</p><p>despojada? Como viria parar na Casa de Machado de Assis, a Casa da</p><p>Tradição, a Casa do Fardão? Ela explicou: “Adonias e Octávio de Faria</p><p>insistiam muito em que eu entrasse.” Ela, então, em certo momento,</p><p>perguntou-lhes: “deem-me uma única razão para eu entrar na Academia,</p><p>porque não vejo nenhuma.” Então, um dos dois teria dito: “ao entrar, você vai</p><p>conviver com seus amigos, que são muitos.” Ela aquiesceu em se candidatar,</p><p>mas teve o cuidado em dizer: “está bem. Vou para minha fazenda Não Me</p><p>Deixes, ou melhor, agora me deixem ir para minha fazenda.” Para lá ela se foi, e</p><p>de lá os amigos a trouxeram para a Academia.</p><p>Ela foi eleita em 4 de agosto de 1977 e tomou posse em 4 de novembro</p><p>do mesmo ano. No discurso de posse, declarou: “Não entrei para a ABL por ser</p><p>mulher. Entrei porque, independentemente disso, tenho uma obra.”</p><p>É importante assinalar aqui o seu acendrado amor à língua portuguesa,</p><p>tal qual falada e escrita no Brasil. Certa feita um editor português endereçou-</p><p>lhe carta um tanto arrogante, pela qual, ao solicitar autorização para</p><p>publicação de uma de suas obras, ele dizia ser indispensável a adaptação à</p><p>ortografia, certas expressões deveriam ser mudadas, etc. Essa carta gerou uma</p><p>resposta sob a forma de uma bela crônica em que Rachel, nos idos de 1955,</p><p>disse: “não haverá, na ideia dessas alterações mais uma questão de prestígio do</p><p>que de necessidade?” e acrescentou: “ousaria um editor do norte ou do sul</p><p>propor alterações nas páginas do paraibano José Lins do Rego, para que o</p><p>entendessem os gaúchos,</p><p>ou nas do gaúcho Simões Lopes para o entendessem</p><p>os paraibanos?” Claro que não.</p><p>E disse mais: “Meu caro amigo português, talvez essa ideia o irrite, mas a</p><p>verdade é que, hoje, a sua língua é um patrimônio tanto nosso quanto seu. Sei</p><p>que o trabalho de formá-la, assim bela e nobre, foi dos portugueses. Mas,</p><p>também, já há quatrocentos anos que a amamos e apuramos a nosso modo... e</p><p>hoje ela faz parte essencial da nossa vida de povo, tal como faz parte da sua.”</p><p>Rachel foi uma genuína feminista, mas o seu feminismo era ditado pela</p><p>consciência precoce de que cabia à mulher outro posto na sociedade. Ela, por</p><p>assim dizer, preludiou a situação menos inconfortável da mulher nos dias</p><p>hodiernos, porque o século XX fez emergir a consciência do feminino.</p><p>“Podem escandalizar-se os sociólogos e toda a gente mais: para o século</p><p>XXI, eu prevejo a vitória social das mulheres. As mulheres deixarão de ser o</p><p>elemento secundário na sociedade e na família para assumir a vanguarda de</p><p>todos os atos e de todos os acontecimentos. (...) Como já salientei, tudo indica</p><p>essa evolução sensacional: as mulheres penetrando em todos os setores da</p><p>atividade masculina. (...) E eu só queria viver mais 100 anos para ver a</p><p>reabilitação definitiva das mulheres, tão certo como 3 e 3 são 6.”</p><p>Rachel foi jornalista, teatróloga, romancista, legando-nos um punhado de</p><p>obras não apenas para retratar o Nordeste sofrido, mas revelando-nos a</p><p>condição humana em sua universalidade. Releva notar que Rachel aproximou</p><p>o povo da literatura e a literatura do povo, a tal ponto que nós podemos</p><p>perceber, em suas obras, os falares regionais, porque ela tinha esse talento</p><p>invulgar de fazer com que cada personagem falasse de uma forma diferente.</p><p>Isso se nota de forma muito particular na sua obra-prima, no meu entender, o</p><p>Memorial de Maria Moura. Era uma mulher corajosa e de fina ironia, e</p><p>permanentemente tomando parte da vida política do Brasil, não nos cargos -</p><p>que os desdenhou todos que lhe foram oferecidos - mas, na verdade, ela soube</p><p>compreender que ao escritor cabem certas responsabilidades no tocante à vida</p><p>política do país, que é a condução dos negócios públicos.</p><p>Acredito que se possa mencionar um aspecto que eu diria metafísico</p><p>embutido na alma de Rachel. Não nos seus escritos, mas nas suas conversas.</p><p>Eram muitos telefonemas que trocávamos desde os anos de 1981-82, quando</p><p>realmente nossa convivência se amiudou, até a sua partida em 2003. Ela</p><p>sempre levantava uma questão de cunho religioso e apresentava suas dúvidas.</p><p>Ela mesma dava-lhes a resposta que lhe acudia, imaginava que eu pudesse</p><p>eventualmente dar-lhe outra resposta e assim corria a nossa conversa.</p><p>Foi, na verdade, O Quinze, que ela escreveu ainda mal saída do fim da</p><p>adolescência, que a celebrizou, mas Caminho de Pedras revela seu pendor</p><p>socialista de cunho libertário. A obra As Três Marias desnuda um marcante</p><p>lado psicológico da autora, e em Dôra, Doralina, para ela sua melhor obra,</p><p>sempre me dizia isso, a vida suplanta a morte. Finalmente, o Memorial de</p><p>Maria Moura, a sua obra-prima, a grande mulher que arrosta todas as</p><p>consequências de sua opção e se entrega a ela, tudo sendo capaz de doar. O</p><p>romance termina com um episódio na Casa Forte e uma frase típica de Rachel:</p><p>- Se tiver que morrer lá, eu morro e pronto. Mas ficando aqui, eu morro</p><p>muito mais.</p><p>Rachel de Queiroz escreveu o livro O Quinze, sua obra-prima, escondida</p><p>dos pais, na adolescência. Ela tinha problemas pulmonares e a mãe, temendo</p><p>que a filha ficasse tísica, mandava que fosse dormir cedo. Mas, quando todos</p><p>da casa já haviam se deitado, Rachel ia para a sala com o caderno do colégio e</p><p>um lápis, e assim, a luz da lamparina testemunhou o nascimento de sua</p><p>carreira como escritora, nas páginas de O Quinze.</p><p>A publicação deste livro em 1930, em modesta tiragem de mil exemplares</p><p>com recursos financeiros próprios, recebe críticas positivas de intelectuais de</p><p>São Paulo e do Rio de Janeiro, e confere à escritora o Prêmio da Fundação</p><p>Graça Aranha, consagrando-a como personalidade literária no país. Com o</p><p>prêmio, o débito de 2000 contos com seus pais, pela edição do livro, foi</p><p>saldado.</p><p>Elogiado por grandes críticos literários da época, foi de Augusto</p><p>Frederico Schmidt2 a crítica mais conhecida:</p><p>“Acabo, agora mesmo, de ler um romance e não resisto à tentação de</p><p>sobre ele dizer algo, de comunicar o entusiasmo de que estou possuído, de</p><p>chamar a atenção para um livro que vem revelar a existência de um grande</p><p>escritor brasileiro, inteiramente desconhecido. Grande escritor que é uma</p><p>mulher, incrivelmente jovem. Refiro-me ao O Quinze, de Rachel de Queiroz.”</p><p>Manuel Bandeira chamou-a de nata e flor de nosso povo. Já o escritor</p><p>Graciliano Ramos duvidou da autoria do texto de Rachel: “Durante muito</p><p>tempo, ficou-me a ideia idiota de que ela era homem, tão forte estava em mim</p><p>o preconceito que excluía as mulheres da literatura.”</p><p>Rachel fez e faz o Brasil olhar para a seca, para a situação calamitosa em</p><p>que viviam milhares de nordestinos. Inúteis se nos afiguram as farpas ou as</p><p>susceptibilidades que entremostram o distanciamento entre pessoas e</p><p>instituições respeitáveis, no tratamento que dispensam a matéria de tal</p><p>magnitude, que machuca a alma e o estomago de milhões de patrícios nossos.</p><p>A demora em tomar consciência do sofrimento representado pelo flagelo</p><p>bem maior da fome que atormenta milhares de famílias no Nordeste brasileiro</p><p>sustenta o provérbio: “o ladrão não fica difamado quando rouba para saciar a</p><p>fome.” São Paulo Apóstolo chega a sustentar: “... se o teu inimigo tiver fome,</p><p>dá-lhe de comer.”</p><p>O itinerário percorrido pela Igreja vem sendo marcado por uma</p><p>constante vigilância no relativo à justiça social. Leão Xlll3 nos advertia para o</p><p>fato de que “enquanto em mãos de poucos se acumulam riquezas imensas, as</p><p>classes trabalhadoras iam gradualmente caindo em condições de crescente</p><p>mal-estar”. Paulo VI enfaticamente sustentou: “os povos da fome interpelam</p><p>hoje de maneira dramática os povos da opulência.” João Paulo ll, em sua</p><p>encíclica Sollicitudo rei socialis</p><p>4, chama a atenção à tentação da violência ante o</p><p>quadro de injustiça social. Em discurso aos representantes da ciência e da</p><p>cultura na Universidade das Nações Unidas de Hiroshima, asseverou que a</p><p>construção de um mundo mais justo é um imperativo moral.</p><p>O movimento “Pão para o Mundo” enfaticamente declara, em documento</p><p>assinado por representantes de diversas confissões religiosas, que “a</p><p>eliminação da fome e das suas causas tem fundamental significado moral”.</p><p>A situação de milhões de brasileiros que tangenciam o limiar da fome</p><p>estrutural ainda não despertou a sociedade e o governo. Políticos profissionais</p><p>persistem em obter verbas para superar a fome em seus Estados, com o intuito</p><p>primacial de mantê-la, a fim de assegurar os seus mandatos, o seu poder, a sua</p><p>riqueza. Onde estão os verdadeiros líderes da região a lutar corajosamente</p><p>contra o status quo, correndo todos os riscos de afrontar os poderosos da</p><p>região? Rachel de Queiroz, com sua alma agreste, com seus olhos encharcados</p><p>de água, fez chover no árido sertão. Sua voz lutou contra os donos do poder.</p><p>Foi lá, veio de lá, gritou e resistiu. Ela fez parte do partido comunista “o que</p><p>aconteceu é que eu me “liberei” mais cedo, assim que pude, depois que o</p><p>Partido Comunista, no qual eu militava, quis mudar João Miguel. Não aceitei e</p><p>rompi com o PC.”</p><p>Em vez de realçar a força do governo para coibir eventuais invasões de</p><p>supermercados por levas de famintos, caberia ao governo revelar sensibilidade</p><p>social e mostrar-se decidido a encaminhar soluções imediatas para a gravidade</p><p>da atual seca, e planejar com seriedade medidas de médio e longo prazo para</p><p>vencer definitivamente o terrível flagelo. Sabe-se que a tecnologia já dispõe de</p><p>arsenal para fazer face à desgraça da falta de água.</p><p>Poucos vêm a público para assegurar um futuro melhor para os famintos</p><p>de hoje ou de amanhã. O farisaísmo plantou raízes nas supostas políticas</p><p>contra a seca. Vez por outra um açude, uma época de eleição, dá o sinal de sua</p><p>graça. Mas as</p><p>providências de longo espectro, assecuratórios da desejável</p><p>justiça social para centenas de municípios vítimas da seca, estão de longe de</p><p>serem tomados. Não é mais hora de conversar, mas de agir. A fome nordestina</p><p>não pode esperar!</p><p>Provérbio francês reza que la faim chasse le loup du bois</p><p>5. É de bom alvitre</p><p>levar a sério a voz dos famintos. Ao seu lado está a sociedade, nomeadamente</p><p>suas instituições mais respeitáveis e respeitadas. Que a classe política acorde a</p><p>tempo de acudir os flagelos, abrindo-lhes de par em par as portas da caridade</p><p>fraterna, pensando-lhes as feridas da alma e ofertando-lhes o alimento capaz</p><p>de lhes assegurar uma vida digna da condição de seres humanos. Isto antes que</p><p>o desespero se transforme em único conselheiro confiável das multidões</p><p>famintas e quase totalmente entregues à própria sorte.</p><p>É esse Brasil em carne viva que nos oferece aos olhos a grande escritora</p><p>Rachel de Queiroz. Essa coragem denunciadora de Rachel não é de se</p><p>espantar, uma vez que ela é filha do Ceará, um estado com tradição de</p><p>pioneirismo no protagonismo feminismo.</p><p>Em 1799, no Ceará, pela primeira vez uma mulher foi nomeada</p><p>professora: D. Ana Clara da Encarnação foi designada para ensinar às meninas</p><p>as “prendas do lar”, já que o ensino ficava restrito às elites. Naturalmente, as</p><p>mulheres não teriam o mesmo ensino que os homens mesmo na universidade.</p><p>Anos mais tarde, Rachel, por fazer parte desta elite, tem em sua casa os</p><p>melhores livros na biblioteca de seu pai.</p><p>Rachel de Queiroz, desde suas primeiras publicações, inclusive como</p><p>jornalista, acumulou inúmeras vitórias, com um grande sucesso no mercado,</p><p>que lhe garantiu reedições em quase vários países. Teve uma atividade</p><p>prolífica como tradutora, foram muitos anos traduzindo obras de grande valor</p><p>de nomes como Dostoievski, Honoré de Balzac, Agatha Christie, Emile Bronte</p><p>e tantos outros. Ela traduz do francês, inglês, espanhol, italiano, só não o faz</p><p>da língua de Dostoievsky. Dramaturga, cronista, radialista. E, finalmente, o</p><p>ápice de sua carreira: ter sido a primeira mulher a se eleger como membro da</p><p>Academia Brasileira de Letras. O Brasil celebrou o fato em escala nacional.</p><p>Heloísa Buarque de Hollanda é certeira quando diz: “foi a única escritora</p><p>mulher aceita como representante do movimento modernista. Foi uma das</p><p>primeiras mulheres a se propor, com sucesso, uma vida independente e livre.</p><p>Foi uma mulher que escolheu e determinou seu destino afetivo, existencial,</p><p>literário, profissional, político. Foi uma mulher que viveu de e para o ofício de</p><p>escrever.”</p><p>Esse breve relato serve de ilustração para mostrar que a mulher demorou</p><p>a se inserir no cenário nacional de modo geral e para pertencer aos quadros de</p><p>instituições de amplo reconhecimento. Ao longo dos seus primeiros 117 anos</p><p>de sua existência, a Academia de Letras do Ceará, somente elegeu onze</p><p>mulheres para ocupar suas cadeiras. Na Academia Brasileira de Letras, fundada</p><p>em 1897, no Rio de Janeiro, Raquel de Queiroz, cearense, foi a primeira</p><p>mulher a ingressar, em 1977. Para decepção das feministas da época, a</p><p>escritora não abraçou nenhuma causa do gênero.</p><p>Durante o período que vai de 1931 a 1933, Rachel de Queiroz fez parte</p><p>do Partido Comunista do qual fora expulsa como trotskista6, convicta de que o</p><p>stalinismo traíra o leninismo e a revolução transformara-se em simples</p><p>fascismo soviético. Assim é narrado em seu livro de memórias, escrito a duas</p><p>mãos com sua irmã Maria Luiza de Queiroz: “Quando nele entrei, o Partido</p><p>mal completara dez anos de vida no Brasil. E já havia uma rede de comunistas</p><p>pelo país inteiro: onde a gente chegava, encontrava amigos. (...) Era mister dar</p><p>provas durante anos, principalmente no que se referia à submissão ideológica</p><p>ao stalinismo. Pois essa foi a fase mais temível do stalinismo, logo depois da</p><p>morte de Lenin. Quando me tornei trotskista, Trótsky já fora, havia três anos,</p><p>expulso da Rússia.”</p><p>Após a decretação do Estado Novo, é detida, acusada de subversão, e seus</p><p>livros são queimados em Salvador. Após a morte da única filha, vítima de</p><p>septicemia aos 18 meses de idade, e da separação do marido, muda-se para o</p><p>Rio de Janeiro, em 1939.</p><p>O romance João Miguel é o único da autora com nome masculino. Esse</p><p>livro causa o rompimento da autora com o Partido Comunista, pois a obra não</p><p>é aceita por sua cúpula, que acha inadmissível que um operário tire a vida de</p><p>outro operário e propõe à Rachel que altere essa e outras questões.</p><p>Rachel não concorda com a censura ao texto e edita a obra “sem tirar</p><p>nenhuma vírgula”. Ela sabia que estava na marca do pênalti e que o partido</p><p>reagia com violência máxima os que o afrontavam. Certa vez, quando</p><p>caminhava no Centro do Rio de Janeiro, estugou o passo e percebeu que</p><p>estava sendo perseguida por um homem. Para sua sorte, um bonde se</p><p>aproximava naquele instante e ela, no afã de livrar-se do perseguidor, corre</p><p>em direção ao dito transporte e nele salta, deixando o homem perplexo e sem</p><p>ação.</p><p>Lembro-me de quando a convidei para proferir uma conferência na</p><p>Universidade Gama Filho e ela respondeu-me: “Tarcísio, eu não sou</p><p>conferencista, o que posso fazer é dar a palavra ao público e ele me pergunta o</p><p>que quiser, sem limite de qualquer natureza.” Foi um sucesso a sua</p><p>apresentação. Todos os ouvintes, animados pela popularidade da autora e por</p><p>suas respostas sem censura alguma, a ovacionaram.</p><p>Uma história aprazível para se contar e que explana a alma de Rachel é</p><p>sua amizade com José Lins do Rego. Eram muito amigos e as obras</p><p>convergiam no relevo do nordeste. Rachel só confessa que não leu a obra de</p><p>José Lins depois que ele se foi porque, por uma questão de amizade, ela nunca</p><p>lhe declarou que não o havia lido.</p><p>Até os dias de hoje, os livros não chegam ao seu destino por falta de uma</p><p>boa base escolar. Nesse particular, Rachel nos diz:</p><p>“Nas escolas, onde O Quinze é adotado, os meninos o detestam. No meu</p><p>colégio, tive que ler Os Sertões, de Euclides da Cunha, e detestava.”</p><p>Isso porque ambos os autores não podem ser lidos sem preparo, sem</p><p>qualquer formação intelectual. Euclides da Cunha esplende em nossas letras</p><p>como um fenômeno à parte. Tanto que, dificilmente, se conseguirá classificá-</p><p>lo. Mais parece um Unamuno7 redivivo a exclamar: “querem me classificar,</p><p>dizendo ‘é um idealista’, ‘um realista’! Yo soy Dom Miguel de Unamuno e basta!”</p><p>Euclides é uma espécie única, em que múltiplas facetas dizem bem de sua</p><p>genialidade. Há os que distinguem a genial obra do autor talentoso. Não</p><p>importa a precisão da tese in ieri. E, sim, o reconhecimento do papel que a</p><p>monumental obra-prima desempenhou em formatar a nossa identidade. Os</p><p>dois brasis que não se entendiam, o litorâneo e o do interior não haviam</p><p>encontrado sequer um vagido de intercâmbio profundo. O sertanejo sempre</p><p>fora abandonado à própria sorte, espécie de quase réprobo em sua própria</p><p>terra. Isolado viveu, cresceu e espargiu suas crendices, seus valores, seus</p><p>costumes, formando um núcleo rígido e forte, persistindo em não reconhecer</p><p>os que lhe ignoraram a presença. O fenômeno ganhou espaço maior, quando</p><p>da fase de transição entre a monarquia e a república. Isto porque a abolição da</p><p>escravatura não veio acompanhada de medidas destinadas a bem preparar o</p><p>país para uma convivência frutífera com os ex-escravos, que se viram</p><p>entregues ao próprio azar de uma vida sem rumo, sem amparo, o que explica,</p><p>até hoje, a ignorância que os afastou das benesses da civilização, o que também</p><p>nos faz compreender, até hoje, a ignorância de parcela expressiva de nossa</p><p>população, aí se incluindo os pardos, os mestiços e mesmo muitos brancos que</p><p>vivem em comunidades pobres. Aí a cor da pele já não traduz um fator apto a</p><p>configurar o perfil de um brasileiro, senão que a pobreza carimbada no nível</p><p>socioeconômico traduz melhor o distanciamento entre as classes sociais.</p><p>O forte vínculo de Euclides da Cunha à sua formação filosófica levou-o a</p><p>visualizar, nos remanescentes e saudosistas da monarquia, a expressão de</p><p>retardo cultural desta, o que afastou o escritor fluminense dos jagunços, que</p><p>seguiam o seu</p><p>guia carismático, Antônio Conselheiro, a invulgar figura de</p><p>homem firme e corajoso. O Conselheiro, em sua serenidade, acolhia e</p><p>orientava quantos dele se aproximavam, constituindo um farol em meio à</p><p>escuridão de uma vida agreste, pobre e mesmo miserável.</p><p>Ao afiançar que o sertanejo é antes de tudo um forte, Euclides se</p><p>penitencia de um julgamento severo, nos idos de sua formação e afirmação</p><p>intelectual. O contato com a realidade cruel das refregas de Canudos irá mudar</p><p>e muito sua opinião sobre a gente sertaneja, que ofereceu um exemplo na</p><p>história de uma comunidade destemida e valente a sorver, até o fim de seus</p><p>dias, uma fidelidade aos compromissos com a sua civilização, com os seus</p><p>valores, com os seus ideais compaginados na pertinácia de um líder</p><p>carismático.</p><p>Já Rachel percebeu a valentia destemida dos sertanejos desde sempre e</p><p>desvelou-a com alma e sangue.</p><p>E nos diz: “Faz anos que não vou a Guaramiranga. Morreram os tios,</p><p>morreu a maioria dos primos, a gente vai se fazendo velha. Mas basta evocá-la,</p><p>para suscitar o sonho de paraíso, vindo das recordações de infância e</p><p>adolescência. Creio que a serra, e especialmente Guaramiranga, continua a ser</p><p>o resort privilegiado... Mas a alma da serra, o cheiro da serra, as crianças de</p><p>face cor de maçã, tudo isso ainda deve permanecer. Qualquer dia vou lá,</p><p>conferir.”</p><p>Essa foi a grande Rachel de Queiroz, que sempre estará entre nós pela</p><p>força de sua obra e pela magnitude de sua invulgar personalidade. Inspirando-</p><p>nos no próprio nome de sua fazenda, poderiamos dizer: Rachel, não nos</p><p>deixes!</p><p>NOTAS DOS CURADORES</p><p>1 Irmãos Lumière - Auguste Marie Louis Nicholas Lumière e Louis Jean Lumière foram os inventores</p><p>do cinematógrafo, sendo frequentemente referidos como os pais do cinema.</p><p>2 Augusto Frederico Schmidt - Poeta da segunda geração do Modernismo brasileiro; falou de morte,</p><p>ausência, perda e amor em seus poemas.</p><p>3 Leão Xlll, O.F.S. - Nascido Vincenzo Gioacchino Raffaele Luigi Pecci Prosperi Buzzi, foi papa de 20 de</p><p>fevereiro de 1878 até a data de sua morte, em 20 dejulho de 1903.</p><p>4 Sollicitudo rei socialis - Do latim, A preocupação social.</p><p>5 La faim chasse le loup du bois -Do francês, A fome expulsa o lobo da mata.</p><p>6 Trotskista - O trotskismo é uma doutrina marxista baseada nos escritos do político e revolucionário</p><p>ucraniano Leon Trótsky. É formulada como teoria política e ideológica, apresentada como vertente</p><p>do comunismo por oposição ao stalinismo.</p><p>7 Miguel de Unamuno y Jugo - Ensaísta, romancista, dramaturgo, poeta e filósofo espanhol. Foi</p><p>também deputado entre 1931 a 1933 pela região de Salamanca.</p><p>Este livro foi composto na fonte Bulmer MT</p><p>Regular, em abril de 2019.</p><p>Capa</p><p>Folha de Rosto</p><p>Página de Créditos</p><p>Sumário</p><p>Prefácio - Domicio Proença Filho</p><p>A fidelidade ética de Sobral Pinto</p><p>Carlos Heitor Cony e as dimensões do ser</p><p>Nélida Pinon e o poder da sua criação literária</p><p>Coelho Neto ou o culto à palavra</p><p>A universalidade de João Guimarães Rosa</p><p>O recado literário de Ana Maria Machado</p><p>A aragem metafísica do romance de Octávio de Faria</p><p>Luiz Paulo Horta, mestre do jornalismo e da música</p><p>O legado de Alceu Amoroso Lima</p><p>A personalidade forte de Rachel de Queiroz</p><p>com</p><p>lucidez captou de imediato as virtudes que ornaram o grande líder católico e</p><p>nele depositava confiança irrestrita, por sabê-lo fiel modelar.</p><p>Este foi o perfil moral de Sobral Pinto. Singelo, mas sincero, e</p><p>certamente aquém dos méritos do ilustre Presidente do Centro Dom Vital, ao</p><p>qual devotou suas energias criadoras e emprestou o enorme prestígio de sua</p><p>vida ilibada.</p><p>Sobral Pinto não morreu. Jamais desapareceram os modelos, como tais</p><p>descritos por Max Scheler5. Nem faria sentido enaltecer-lhe os méritos, a não</p><p>ser para lhe seguir os exemplos.</p><p>Sobral Pinto vincou no solo firme da ética a sua vida profícua. Deixou-</p><p>nos assim um convite aberto a todos os homens de boa vontade e que sabem</p><p>ou pressentem que o bem está acima de todos nós como uma luz a acenar para</p><p>nós a Transcendência a que devemos tender. Que a nossa vocação se</p><p>transforme em destino - tal seria a derradeira mensagem de Heráclito</p><p>Fontoura Sobral Pinto.</p><p>NOTAS DOS CURADORES</p><p>1 Texto publicado originalmente na Revista A Ordem. Vol. 84. Jan/Dez 1993. Editorial: Homenagem a</p><p>Dom Eugênio de Araujo Sales; pp. 89-95. Discurso na missa de corpo presente.</p><p>2 Karl Theodor Jaspers - Filósofo e psiquiatra alemão, estudou medicina e, depois de trabalhar no</p><p>hospital psiquiátrico da Universidade de Heidelberg, tornou-se professor de psicologia da Faculdade</p><p>de Letras dessa instituição.</p><p>3 Dietrich von Hildebrand - Filósofo e teólogo católico, nascido na Itália, filho de Adolf von Hildebrand,</p><p>escultor alemão de renome. Foi professor universitário e sofreu a influência de Max Scheler e de</p><p>Edmund Husserl. De origem protestante, converteu-se ao catolicismo romano em 1914.</p><p>4 Blaise Pascal - Matemático, físico, inventor, filósofo e teólogo católico francês. Prodígio, Pascal foi</p><p>educado por seu pai. Seus primeiros trabalhos dizem respeito às ciências naturais e às ciências</p><p>aplicadas. Contribuiu significativamente para o estudo dos fluidos.</p><p>5 Max Ferdinand Scheler - Filósofo alemão, conhecido por seu trabalho sobre fenomenologia, ética e</p><p>antropologia filosófica, bem como por sua contribuição à filosofia dos valores.</p><p>E</p><p>Carlos Heitor Cony e</p><p>as dimensões do ser</p><p>1</p><p>sta casa e, com ela, o país vivem momentos de sofrimento, dada a</p><p>consciência que temos do vazio pela perda irreparável de um mestre das</p><p>letras, nascido na Cidade Maravilhosa em 14 de março de 1926. A criança</p><p>tinha dificuldade de falar espontaneamente, a ponto de ter de recorrer a seu</p><p>pai para vencer o precoce desafio de penetrar no domínio que viria a dedicar</p><p>toda a sua vida.</p><p>Na verdade, consta que esteve mudo até os 5 anos de idade, quando</p><p>estava na praia de Icaraí e viu um avião vindo em sua direção. Nesse momento</p><p>começou a gritar e gritar. Foi quando viram que tinha voz! Até amadurecer</p><p>sua fala, no entanto, confundia as letras. Era capaz de falar jorgueta em vez de</p><p>gorjeta. Seu pai, então, resolveu assumir a sua alfabetização e, a partir daí,</p><p>cuidou também de toda a sua escolarização inicial, provavelmente consciente</p><p>de que o filho enfrentaria dificuldades em uma escola regular.</p><p>Adiante, com 12 anos incompletos, ingressou no Seminário</p><p>Arquidiocesano São José, que lhe assegurou uma sólida e diversificada cultura,</p><p>mesclando línguas clássicas, modernas, além do português, da matemática e da</p><p>música. A alma de artista consumado de Cony bem explica o seu gosto pela</p><p>música, com destaque para o valor que ele emprestava às óperas. Ocasiões</p><p>houve em que Cony a muitos surpreendeu dedilhando um velho piano do</p><p>apartamento em que morava.</p><p>Ainda tinha atração duradoura pela filosofia, sem falar nos</p><p>questionamentos que tangenciam habitualmente a filosofia e a teologia. Por</p><p>vezes, os conflitos oriundos de sua intimidade espiritual o conduziam a um</p><p>convite para o incerto trilhar do reino das dúvidas, no qual jamais pôs as suas</p><p>complacências. Daí dimanam perplexidades sobre a direção de seu espírito, o</p><p>que realmente impressionava em seu imo d,alma. Era o arraigado desejo de se</p><p>tornar padre. Percebem-se frequentes referências ao nome de Deus, o que</p><p>acentua ainda mais a dificuldade de fixar os limites de suas convicções</p><p>religiosas. Isto sem registrar também a possibilidade da vida interior mais solta</p><p>e distante de quaisquer dogmatismos. O tema é recorrente no percurso</p><p>sinuoso e pleno de genialidade de Cony.</p><p>Sua passagem pelo Seminário São José marcou profundamente toda a sua</p><p>trajetória de vida. Jamais podemos imaginar um Cony totalmente divorciado</p><p>de sua formação religiosa. Por vezes, cronistas superficiais sustentavam como</p><p>tese segura de que Cony era ora cético, ora agnóstico. Mas a verdade é que ele</p><p>sempre foi espiritualmente alimentado por suas raízes religiosas.</p><p>Além de formação religiosa, o Seminário forneceu-lhe as bases para</p><p>tornar-se um homem de ampla cultura. Adulto, frequentou colegas da pena</p><p>como Alceu Amoroso Lima e Octávio de Faria. A sadia curiosidade que</p><p>cultivou preparou-o para versar sobre os mais diversos temas do país e do</p><p>mundo e para percorrer os mais diversos gêneros literários. Explica também o</p><p>fato de haver logrado êxito, quer como mestre em literatura, quer como autor</p><p>de livros e temas litúrgicos, quando convidado por Dom Eugênio Sales em</p><p>múltiplas ocasiões. Do ponto de vista filosófico, embora oriundo de uma raiz</p><p>de cunho tomista, evoluiu sua visão de mundo para um moderno</p><p>agostinianismo.</p><p>Para lançar luz a outra de suas facetas, cabe aqui recordar a lúcida palavra</p><p>de Otto Maria Carpeaux2: “o autor esconde atrás da máscara de um cinismo</p><p>feroz um sentimentalismo nato.”</p><p>E, de fato, marca frisante de Cony foi sem dúvida a dimensão</p><p>sentimental. Assim, tem cabimento mencionar a presença, em sua vida, de sua</p><p>cadelinha Mila, cujo desaparecimento levou-o a um luto fechado e a</p><p>momentos de lágrimas a lhe escorrer pela face. Isto em nada se assemelha a um</p><p>sentimentalismo ingênuo e piegas, pois o escritor timbrava em manter sólidos</p><p>os vínculos de amizade sincera e profunda que cultivava especialmente com</p><p>certos intelectuais.</p><p>No concernente à copiosa e brilhante obra de Cony, principiou-a com o</p><p>romance Ventre (1958), aos 32 anos de idade. O título do escritor se nos</p><p>afigura como uma luz para se lhe compreender os avultados escritos</p><p>posteriores. É que a originalidade do estilo de Cony autoriza-nos a vislumbrar,</p><p>antes mesmo do nascimento, a riqueza do potencial que se aninhava no ventre</p><p>materno.</p><p>Ao longo de seus 91 anos de vida, Cony escreveu 17 romances, 4 contos,</p><p>7 crônicas, 6 ensaios biográficos e 8 obras infanto-juvenis. Cony pervade com</p><p>liberdade as diversas áreas geográficas do Rio. Ele tudo percebe na intuição de</p><p>uma globalização da Cidade Maravilhosa, pois era essencialmente universal e</p><p>afeito a todas as possibilidades de escrever. Compreendê-lo pressupõe,</p><p>também, o convívio com a simplicidade de vida familiar.</p><p>É oportuno frisar que Cony escrevia num ritmo veloz. Seu segundo</p><p>romance, A verdade de cada dia (1959), por exemplo, foi escrito em apenas</p><p>nove dias.</p><p>No entanto, ele ficou por quase 23 anos sem escrever (19731995). O fim</p><p>desse período coincide com a época em que estava eu pensando em escrever</p><p>um livro sobre filosofia e, ao imaginar como seria o livro, pela primeira vez</p><p>concebi o título antes de detalhar seu conteúdo. Se chamaria Quase ilosoia.</p><p>Fiquei apurando esta ideia, mas acabei desistindo porque Cony saiu de seu</p><p>jejum produtor justamente com o belo romance Quase memória (1995). Coube-</p><p>me apenas aplaudi-lo.</p><p>É impossível referir à pletora de textos que compõem as opera omnia</p><p>3 de</p><p>Cony. Melhor nos parece pinçar alguns títulos havidos como fundamentais</p><p>para a compreensão da espinha dos escritos que traduzem a diversidade</p><p>temática que percorrem múltiplos gêneros literários, sem falar dos ensaios de</p><p>cunho histórico, teológico, filosófico. É conveniente não olvidar a fixação de</p><p>seu olhar permanentemente voltado para a realidade brasileira.</p><p>Para Cony, no princípio do mundo humano, a fala fez-se língua,</p><p>linguagem escrita e estilo de escrever, mas não podemos esquecer de que</p><p>sempre se fala de todos os seres. Em Quase memória, por exemplo, a linguagem,</p><p>segundo ele próprio, “flutua” pelo fato de não ter se policiado: fluiu entre a</p><p>linguagem de reportagem, de crônica e de ficção. Foi tão bem-sucedido e</p><p>abrigava tanta riqueza que pôde gerar um filme homônimo também de</p><p>sucesso.</p><p>Com isso, Cony não cedeu aos rogos de uma coisificação do real e, sim,</p><p>tratou de buscar o encontro sempre perseguido de afastar-se do plano do</p><p>mundo, em uma espécie de realismo fantástico, no qual os limites entre</p><p>realidade, memória e ficção são indistintos.</p><p>Quando Cony iniciou sua carreira como escritor, o livro, em suas</p><p>palavras, “era considerado uma coisa sagrada, quase um totem”. Em sua</p><p>maturidade, porém, ousou romper com a literatura, com a moral, os bons</p><p>costumes e a condição humana. “Lavei as mãos. Daí (o livro) Pilatos”, disse ele,</p><p>“era a consciência da inutilidade da minha luta”.</p><p>O livro, considerado por ele o livro de sua vida, sofreu duras críticas, mas</p><p>Cony delas não fez caso porque não tinha medo de errar. “O nosso Mestre</p><p>deu-nos livre arbítrio para errar o passo e o compasso, e dobrar as esquinas</p><p>erradas”, asseverou ele, e completou, em outra ocasião, “Não levarei saudade</p><p>de mim mesmo, dos meus fracassos e dívidas”.</p><p>No entanto, em seu derradeiro romance, A morte e a vida, em que a</p><p>eutanásia é vista polifonicamente pelos diferentes personagens, todos havidos</p><p>de razão, Cony parece palmilhar uma senda que leva o leitor a convocar a</p><p>espiritualidade para o debate, uma vez que não há controvérsia sobre a morte</p><p>se nela não houver o ingrediente de transcendência.</p><p>Mais eloquente do que isso é o que ele declarou como sendo o epitáfio de</p><p>sua lápide: “Aqui não jaz Carlos Heitor Cony. Porque, realmente, aquele que</p><p>for para debaixo da terra não vai ter nada comigo do que sou hoje e do que</p><p>represento.” Não diria isso se não acreditasse na espiritualidade que transcende</p><p>a matéria.</p><p>Após haver produzido uma obra quantitativa e qualitativamente</p><p>excepcional, Cony viu-se convidado a proferir conferências versando sobre os</p><p>desafios da globalização. Sem descurar o enfrentamento dos mais sutis temas</p><p>concernentes ao nosso torrão natal, é bem de ver que Cony resistiu o quanto</p><p>pôde a se deixar dominar pelos alentados convites que timbrou, quanto</p><p>possível, em recusar. Mas a insistência venceu a barreira em diversas ocasiões.</p><p>Sua opção pela vida laica revela a necessidade de aquietar o impulso</p><p>religioso. Neste caso, temos Cony em busca de uma pacificação espiritual,</p><p>desde que consideremos seu distanciamento de opções rígidas relativas à</p><p>dimensão anímica. Para ele, o percurso existencial radica-se na liberdade.</p><p>Quando ele intenta em descobrir o fio da Ariadne de sua vocação, opta por</p><p>não apelar para a liturgia e sua Beleza intrínseca e explica sua escolha dizendo</p><p>que sentiu-se atraído para a vida monástica por visualizar-se “numa atmosfera</p><p>bonita e difícil”.</p><p>E foi então que sua vida ganhou novo sentido: uma atividade jornalística</p><p>de vulto e uma excepcional produção literária. Tal intensidade produtiva</p><p>explica, ao longo dos anos, a repercussão em seu declínio de saúde. Na década</p><p>de 1990, um indesejável câncer o acometeu, conquanto o inimigo houvesse</p><p>sido vencido pela cirurgia. No início deste século, no entanto, sobreveio a</p><p>enfermidade sem cura que atingiu o seu sistema linfático. Os planos da febril</p><p>entrega de sua vida, como que disputassem uma posição prioritária em sua</p><p>biografia, aqui a delicada questão encontrou seu desfecho na firme assertiva do</p><p>próprio autor, ao sustentar sine formidine erroris</p><p>4: “eu não fui o jornalista que</p><p>se transformou em escritor, fui um escritor que se transformou em jornalista.”</p><p>Por ocasião de sua posse, cabia-me o múnus de encerrá-la na qualidade</p><p>de presidente da Casa, o que fiz com as seguintes palavras: “em nossos diálogos</p><p>Cony mencionava muitas vezes a palavra Deus. Tendo em vista os diversos</p><p>caminhos trilhados pelo escritor carioca, cuidei mais adequado pairar a</p><p>questão religiosa, mormente levando em conta o fato de haver deixado</p><p>instruções para a família e para a ABL para que suas cinzas fossem lançadas no</p><p>Seminário São José. Cony se manteve impávido ante a momentosa questão de</p><p>sua vida, ou seja, se haveria ou não sentido para o humano existir.”</p><p>NOTAS DOS CURADORES</p><p>1 Texto de discurso proferido em 14 de março de 2018, na Academia Brasileira de Letras.</p><p>2 Otto Maria Carpeaux, nascido Otto Karpfen - Jornalista, ensaísta, crítico literário, crítico de arte,</p><p>crítico de música e historiador literário austríaco naturalizado brasileiro.</p><p>3 Opera omnia - Do latim, Obras completas.</p><p>4 Sine formidine erroris - Do latim, Sem o medo de errar.</p><p>C</p><p>Nélida Pinon e o poder</p><p>da sua criação literária</p><p>orria o ano da Graça de 1976. Ao tempo, a Academia Brasileira de Letras</p><p>ainda não se beneficiava da presença de escritoras. O grande poeta</p><p>Carlos Drummond de Andrade, num momento de rara inspiração, estugou o</p><p>passado da história, e vislumbrou o ano do centenário da ABL. Imaginou que</p><p>o Timão ainda estivesse confiado ao ínclito presidente Austregésilo de</p><p>Athayde. Então, com a luz exclusiva dos poetas, sentenciou: no ano de</p><p>centenário da ABL, o presidente Athayde deveria durante 10 minutos confiar</p><p>a presidência a uma escritora.</p><p>À época, o poeta explicitava um sentimento cavalheiresco, sem que lhe</p><p>fosse possível visualizar radiosa realidade do centenário real. O imaginário</p><p>correu célere ao encontro da senda do real.</p><p>Hoje, a Academia Brasileira de Letras se ajusta à modernidade e desmente</p><p>a tese de que a tradição é refratária ao progresso. Fiel às profundas raízes da</p><p>nossa cultura, a ABL inova e preludia os passos da sociedade brasileira, ao</p><p>eleger como sua Presidente a brilhante acadêmica Nélida Pinon.</p><p>Crescentemente, a sociedade brasileira vai abrindo espaços à atuação da</p><p>mulher, que emerge com o ímpeto criativo e sensível a humanizar a vida do</p><p>país.</p><p>Nélida Pinon é mulher exuberantemente portadora das virtudes que</p><p>ornam a alma feminina, na generosidade dos atos de entrega à sua vocação e</p><p>na sensibilidade do perene reconhecimento e acolhida das diferenças. Sua</p><p>acuidade atesta irrefragavelmente a presença do sonho que se faz realidade e</p><p>da realidade que se transmuda em sonhos, nesta tensão entre ser e parecer que</p><p>constitui o imperativo dinâmico do ser a caminho de seu dever/ser.</p><p>Professora, jornalista, escritora, Nélida Pinon inaugurou a disciplina</p><p>Criação Literária em nossas plagas e ampliou a sua atuação magisterial em</p><p>diversas universidades dos Estados Unidos e do México. Hoje, detém a cátedra</p><p>de literatura Brasileira da universidade de Miami.</p><p>É grande o número de prêmios literários com que foi aquinhoada e não</p><p>menor o elenco de suas publicações, que se espraiam pelo mundo em múltiplas</p><p>traduções, consolidando o prestígio literário do Brasil no plano internacional.</p><p>No centenário da Academia Brasileira de Letras, quiseram os deuses que</p><p>uma rainha das letras lhe dirigisse os destinos. E os deuses não são apenas</p><p>eternos. São também infalíveis.</p><p>Ao receber o convite de Nélida Pinon para recepcioná-la na Academia de</p><p>Filosofia, dois sentimentos me dominaram o espírito, o da honra em saudar</p><p>uma grande dama da literatura contemporânea, e o da satisfação em penetrar</p><p>na densa floresta de seus escritos, quando me defrontei com o prazer de os ler</p><p>ou de reler.</p><p>Nélida Pinon é nome estelar no firmamento literário brasileiro, com</p><p>significativa presença internacional. A repercussão de suas obras é consectário</p><p>natural de seu estilo marcado por originalidade inquestionável, e servida pela</p><p>majestade das metáforas criativas que constituem como que um leit motiv de</p><p>seu consistente labor literário. A riqueza de seu modo de ser, que se reflete em</p><p>seus escritos, promana de um hibridismo étnico e cultural que lhe povoa o</p><p>espaço interior, prenhe de busca de um lugar inédito no universo da escrita.</p><p>Uma simples conversa com Nélida sinaliza, ora para uma expressão feliz, ora</p><p>para uma comparação fecunda, ora para uma ideia nova. Não há monotonia</p><p>em seus textos de ficção ou em seus pronunciamentos ao ensejo de solenidades</p><p>- e que se contam às dúzias - ou em conversas leves</p><p>a lhe vincar o percurso</p><p>luminoso em palcos que se oferecem de par em par a quem mantém domínio</p><p>de elevado corte vocabular.</p><p>Nélida é escritora de duas pátrias - a Galiza e o Brasil, afinal fundidas</p><p>numa só. A Galiza, povoada de lendas, explica a fecundidade do repositório de</p><p>histórias e de episódios que parece fundirem fatos e partículas de memória</p><p>fecunda. A narrativa de Nélida diz muito da origem céltica de sua família.</p><p>Ela própria nos expõe seu nervo cultural: “sou brasileira recente.” Em</p><p>seus devaneios, a escritora chega a imaginar o próprio desembarque na Praça</p><p>Mauá, no início, quando aqui aportaram os seus avós, com o ímpeto conatural</p><p>aos imigrantes. Nélida sente que a memória lhe falta para desenhar o perfil da</p><p>terra, estrangeira para seus avós, e que assim não fixou o seu almoxarifado de</p><p>lembranças da terra da promissão então inaugurada por seus ascendentes. Não</p><p>houve, nem há hoje qualquer resquício de um processo de legitimação da</p><p>nacionalidade: Nélida é nossa e, por isso, dela não abrimos mão. Ela integra o</p><p>novo rico filão cultural, dos mais expressivos em nossa galeria de imortais da</p><p>cultura, do eterno agora que ela vive e sorve com a sofreguidão inerente aos</p><p>espíritos inundados de criatividade e de comunicação. Sua riqueza interior lhe</p><p>permite acolher e ser acolhida na espontaneidade de um ser para conviver,</p><p>cinzelar encontros e reencontros. A muitas vezes acadêmica que hoje</p><p>recebemos nesta novel Academia Brasileira de Filosofia por sua exuberante</p><p>obra risca o mundo sideral porque nela se percebe a variedade de influxos e de</p><p>construções oriundas de certo surrealismo. Também se podem detectar</p><p>aproximações à fenomenologia existencial, uma vez que Nélida jamais se</p><p>aparta da vivência concreta de cunho intersubjetivo.</p><p>Ao adentrar esta Casa de Filósofos, Nélida lhe acrescenta novo sopro de</p><p>vida e mesmo de glória. Assim foi quando de seu ingresso na Academia</p><p>Brasileira de Letras e ao ensejo de sua exemplar presidência da instituição</p><p>mítica de nossa cultura. Vamos rebobinar o filme desta morada cultural em</p><p>que luziram e mesmo até pontificaram alguns dentre os mais talentosos</p><p>homens de letras do País.</p><p>Escritores de nomeada, periódicos literários, jornais de circulação seletiva</p><p>vêm ornamentando suas colunas com palavras encomiásticas à grande dama</p><p>de nossas letras. Assim, o New York of Books aponta Nélida como “a maior</p><p>escritora brasileira”. “A imaginação de Nélida a coloca na categoria de gênio” é</p><p>a opinião do periódico Publishers Weekly.</p><p>Um dos magnos nomes da literatura latino-americana, Carlos Fuentes,</p><p>enriquece os comentários à nossa confreira, ao assentir: “a magia de Nélida</p><p>Pinon consiste em aliar imaginação e compaixão, para dar a seus personagens</p><p>e seus leitores uma pele com temperatura igual à deles.”</p><p>O saudoso Celso Furtado com precisão obtemperou: “pelas mãos firmes</p><p>de Nélida, atrevemo-nos a enfrentar o desconforto da paixão de inventar,</p><p>conscientes do preço a pagar pela inexcedível liberdade de criar.”</p><p>Reconhecidamente severo em suas avaliações culturais, o jornal</p><p>parisiense Le Monde assinala que “Nélida Pinon aparece, sem contestação,</p><p>como um dos maiores temperamentos da cultura brasileira, não hesitando</p><p>jamais em se engajar em todas as formas de luta para consolidar sua</p><p>originalidade.”</p><p>Na New York Times Books Review, colhe-se o comentário judicioso:</p><p>“Nélida Pinon fez de sua república não apenas aqueles de uma família, mas de</p><p>todo o Brasil e talvez de toda a América Latina.”</p><p>Razão assiste a Giovanni Pontiero1 ao ponderar que “críticos</p><p>familiarizados com a moderna literatura brasileira podem asseverar que a</p><p>Nélida Pinon falta a linguagem do último, Guimarães Rosa, ou a coerência</p><p>temática e a consistência de Clarice, a quem ela se assemelha em seus escritos.</p><p>Mas o talento criativo de Nélida Pinon está fora de questão e os fios</p><p>condutores da imaginação pelos quais ela surfa carregam uma refrescante nota</p><p>de ironia e de otimismo subentendido.”</p><p>O crítico Luiz Costa Lima discute a questão da repressão ao domínio da</p><p>ficção exercido pela razão como detentora da verdade e impregnada pelo</p><p>discurso teológico ou filosófico. Em suas palavras, “isto levou a uma posição</p><p>subalterna da poesia, que ele chamou de discurso do fingimento. Assim, a</p><p>razão moderna exerce um veto à ficção”.</p><p>Talvez este quadro sirva para configurar o universo literário de Nélida.</p><p>Havendo haurido uma severa educação religiosa em escolas e institutos</p><p>confessionais, Nélida policiou sua obra de tal impacto primacial, rompendo</p><p>aparentemente com a tradição que lhe inspirou os primeiros passos; a seguir</p><p>navegou nas águas borrascosas em que o entrechoque da fé original e os</p><p>reclamos da imperfeição inerente à condição humana a exercerem os seus</p><p>direitos de cidadania passaram a exigir o seu lugar ao sol. E, afinal, pontificou</p><p>em numerosas criações literárias, sempre regadas por um estilo próprio,</p><p>absolutamente original. É bem de ver que a direção artística de Nélida não</p><p>pode ser apreendida sem recurso à imaginação. A realidade parece interpor-se,</p><p>mas a autora obtempera que “a realidade na qual acreditamos é a</p><p>convencional... Eu sou contra a convenção, ela pode pôr em dúvida tudo. Com</p><p>a imaginação não se aceita o dogma, ela destrói a convenção. O poder tem</p><p>pavor à imaginação... Cada vez que o poder agrilhoa o homem, a imaginação o</p><p>liberta”. Este traço marcante de Nélida aponta-lhe a trilha da transgressão</p><p>como inerente ao seu modo de ser, sem os adereços demagógicos que</p><p>acompanham muita manifestação libertária. Cuidamos que a geografia</p><p>literária de Nélida não abriga fronteiras à conduta humana, nem aceita os</p><p>controles severos da imigração e da alfândega. É o reino da liberdade tout</p><p>court</p><p>2.</p><p>Temas complexos encontram em sua pena ágil palavras que ferem o</p><p>núcleo da ideia, da concretude existencial ou da ilusão. Assim, Nélida se refere</p><p>à sua relação imediata com o Ser supremo: “com Deus eu me entendo; com os</p><p>homens é mais difícil.”</p><p>Ante a perplexidade do homem hodierno e os reclamos da pós-</p><p>modernidade, Nélida faz sua opção. Não repousa tranquilamente no mar</p><p>plácido das verdades feitas, nem se submete sem resistências à ditadura da</p><p>razão pura. Razão que ela respeita e da qual também se alimenta. Mas a ela não</p><p>se adstringe. Escolheu vereda mais sensível e nada geométrica da afetividade.</p><p>Por isso afirma sem rebuços: “a fé é um alvoroço do coração.”</p><p>Nélida passeia por temas como palavra, livro, eternidade, mito e método</p><p>costurando esses universos por vezes díspares com um mesmo alinhavo</p><p>pessoal que tanto encanta como instiga.</p><p>A palavra é o instrumento de que se vale para rabiscar os painéis</p><p>humanos, porque, para ela, “nenhuma palavra sai ilesa. Nasce ela contaminada</p><p>pela índole do seu criador. O escritor, porém, longe de superficializar a língua,</p><p>fornece-lhe ao som da guitarra de cinco cordas paredes com que reforçar a</p><p>vitalidade do pensamento e da imaginação”.</p><p>O livro se abre para a escritora como um cofre prenhe de mistérios. Há</p><p>na estante obras que tentam fisgá-la. Mas elas remanescem frias e distantes,</p><p>levando Nélida a assentir: “só tenho mortos na minha estante. Alguns ainda</p><p>respiram, embora saibamos... que já se aproxima para eles o prazo da rendição</p><p>total. Tenho ainda alguns mortos recentes que nos abandonaram sem dizer</p><p>para onde foram, esquecidos de deixar o endereço. Toco, emocionada, nesses</p><p>mortos com lombada, capa dura e letras impressas.”</p><p>Com a eternidade nas fibras de seu ser, corpo, mente, espírito, a escritora</p><p>se volve para a velhice e tece o seu comentário em sua perplexidade ante o</p><p>tempo fugidio: “a velhice é a alma do tempo. Para quem tem tempo e para</p><p>quem tem alma.”</p><p>Se para muitos o mito nos aparta da realidade, Nélida soube perscrutar-</p><p>lhe a sentido, ao afiançar: “a narrativa mítica tem o mérito de devolver-nos ao</p><p>epicentro do sagrado.”</p><p>Cuido que Nélida recolheria a palavra de Guimarães Rosa: “... meu</p><p>método implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de</p><p>nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu</p><p>sentido original.”</p><p>Cabe vasculhar</p><p>o rico filão das obras nelidianas. Nélida nelas trabalha</p><p>com ardor e devoção, por isso as escreve e reescreve muitas vezes. Basta deixá-</p><p>la falar: “meu texto é basicamente provisório, uma vez que, ao remetê-lo à</p><p>nova versão, ganha ele dimensões mais profundas. Cada versão é uma máscara</p><p>abatida em direção ao rosto verdadeiro.”</p><p>A obra inaugural do roteiro ficcional de Nélida foi Guia-mapa de Gabriel</p><p>Arcanjo, que já revela patente densidade existencial. Nélida ainda em tenra</p><p>idade se abalança à tarefa de cinzelar os perfis de Mariella e do Arcanjo Gabriel</p><p>em que avulta a problemática do pecado e da carne e transparecem laivos</p><p>literários próximos do estilo de Clarice Lispector, uma de suas admirações</p><p>cintilantes. É o existencialismo leigo de Nélida que abre alas para a</p><p>imaginação, seu esporte preferido.</p><p>O embate extremado entre o bem e o mal ingressa na obra de Nélida em</p><p>Madeirafeita cruz, que põe a nu duas personagens em sua discrepância</p><p>estrutural ante a trágica linha divisória entre os dois planos radicais da</p><p>condição humana, nas figuras de Pedro e Ana. Pedro poreja a leveza da</p><p>espiritualidade e Ana se enrosca em sua malignidade, consubstanciada numa</p><p>a/imoralidade que nela floresce espontaneamente.</p><p>O fundador narra a saga de um herói, o americano Joe, que, inspirado no</p><p>poeta colombiano Camilo Torres, parte para a luta revolucionária que fixou</p><p>como o seu destino inelutável.</p><p>No dizer de Nélio Pólvora, A casa da paixão é a fisiologia da paixão. O</p><p>amor sensual atinge o seu paroxismo, o que leva Nelly Novaes a falar de um</p><p>romance quase apocalíptico. Nélida deixa fluir a atmosfera dos mundos em</p><p>plena ebulição.</p><p>Tebas do meu coração é uma sátira original e envolvente em que, como</p><p>sempre, o tempo não demarca a narrativa, menos ainda a escraviza. Nélida se</p><p>vale de sua liberdade criativa e projeta um desenho dos habitantes da cidade</p><p>que talvez seja Brasília. A própria autora nos desvenda o mistério da urbs:</p><p>“Santíssimo (é o nome da cidade) é como eu vejo o pensamento brasileiro,</p><p>fracionado, fragmentado, diluído, cheio de contradições, ambíguo, um</p><p>verdadeiro esfarelamento do mundo verbal. E à medida que se chega ao fim,</p><p>sente-se a desintegração de tudo.”</p><p>Nélida se mescla à narrativa em A força do destino. O leitor se pergunta:</p><p>qual o lugar do narrador? Acaso ele terá deixado livre parte de seu território</p><p>ao autorizar uma presença de personagem que cria uma situação ficcional</p><p>altamente original e plena de sugestões a encobrir o possibilismo de um</p><p>retorno à normalidade das relações tecidas na narrativa?</p><p>O pão de cada dia é registro aparentemente episódico e fenomenológico de</p><p>um cotidiano fugaz. A verdade é bem outra. Não cuida de aforismos, que é</p><p>movido mais frequentemente por uma aragem ética ou moral. Nélida parece</p><p>retomar fragmentos como cintilações de sua inventiva aguçada, momentos</p><p>privilegiados do existir e do viver a nos realçar, muitas vezes, a magnitude das</p><p>ilusões. Não ilusões perdidas, mas encontradas nas esquinas do existir das</p><p>almas profundas.</p><p>Eduardo Portella nos chama a atenção para O presumível coração da</p><p>América como “obra do escritor-cidadão, agente e ator da cena pública”. Nela,</p><p>Nélida, em discursos de rara beleza, secreta a sua veia política, como corolário</p><p>de suas convicções libertárias que a tornaram uma das mais fortes</p><p>personalidades de nossa cultura, com sulcos profundos na edificação de uma</p><p>sociedade plural, justa e ética.</p><p>A república dos sonhos explora a gênese brasileira e se adentra na aventura</p><p>de fincar raízes na terra acolhedora. Pinta com mestria a ousadia dos</p><p>migrantes - seus ancestrais - e o fluir da vida atual da terra que soube recebê-</p><p>los. Trata-se de uma metáfora do Brasil desenhado com mãos talentosas.</p><p>Nélida entende chegado o momento de romper a carapaça do Oriente</p><p>Médio e nos brinda com Vozes do deserto. Ancorada na região instigante e</p><p>desafiadora, berço do monoteísmo, a autora revive as lendas que pervadem os</p><p>espaços arenosos para encontrar um novo conceito de fé. Emerge um deus</p><p>distante, aristotélico. Mas o deserto incita à aventura e alvoroça a imaginação.</p><p>Talvez tais relatos proclamem o apogeu da literatura criativa e revolucionária</p><p>de Nélida.</p><p>Em suas obras, a romancista nos permite visitar sua função fabuladora,</p><p>que não se enreda nas filigranas das literatices insossas. Antes, perfilha o</p><p>encontro com os desvãos da existência e os acenos a caminhos traçados com a</p><p>sinuosidade das estradas montanhosas que respeitam as curvas perigosas mas</p><p>necessárias a quem ousa aproximar-se dos mistérios e enigmas.</p><p>Nélida nos fala de duas admirações literárias, suas e nossas, as confreiras</p><p>Lygia e Rachel. “Lygia é uma sarça ardente. No uso da palavra e na rigorosa e</p><p>intransigente defesa da causa humana. Tem o coração ferido como todos nós,</p><p>mas nem por isso abdicou da decência e da integridade. Ao longo de solidária</p><p>amizade, sempre a vejo generosa, límpida, compassiva. Enfrenta a adversidade</p><p>com extremada elegância. Tem visível no rosto a rara marca da grandeza. No</p><p>seu refinado texto, o enigma da vida parece desvendar-se. Os mínimos</p><p>detalhes ali pulsam, há que ouvi-los sempre.”</p><p>De Rachel há que recordar o primeiro encontro. “Meus únicos recursos</p><p>eram dezessete anos e o primeiro romance. À Rachel de Queiroz pareceram-</p><p>lhe suficientes. Foi logo me emendando e na bandeja veio a lição implacável:</p><p>se queria destino de escritora, aprendesse desde agora a expurgar do texto as</p><p>impurezas, até mesmo as frases amadas, a cancelar os arrebatos primeiros,</p><p>essas facilidades com que eventualmente se é premiado. Eu tremia de emoção,</p><p>não lhe chegara à porta atraída apenas por sua glória, mas especialmente por</p><p>sua intrepidez. Uma mulher que exaltara sua extraordinária juventude com</p><p>um livro como O quinze. Ela era o segundo escritor que eu amava de perto.</p><p>Tristão de Athayde fora a emoção permanente nos encontros matinais e</p><p>diários, ele a caminho da missa, eu buscando o colégio, de saías curtas, os</p><p>olhos arregalados. Rachel, porém, trouxe-me a realidade, ainda que com chá,</p><p>biscoitos e dizendo “minha flor”. Sua ameaça de que talento se converte em</p><p>inimigo se não for bem cuidado, pois defendia ela ouro de lavra fina, tornou-</p><p>se uma sentença. Difícil, mas generosa. Não quis me agradar, visando quem</p><p>levasse adiante a memória do seu nome. Dedicou-se por algumas horas a</p><p>salvar-me e dar sentido ao futuro. “Para que eu regressasse à casa mais forte,</p><p>onde pude chorar sem ela jamais ter suspeitado.”</p><p>Numerosos e relevantes prêmios lhe foram conferidos, no País e no</p><p>exterior. Em muitos casos, Nélida inaugurou a galeria de escritores de língua</p><p>portuguesa a receber a láurea. Assim, podemos considerá-la uma embaixadora</p><p>da cultura luso-brasileira e à qual tanto fica a dever o Brasil. Sua presença é</p><p>reconhecida pelo mundo afora, dada sua contribuição migrante para o nosso</p><p>torrão natal.</p><p>A crítica acolheu a obra de Nélida distinguindo-a com títulos de elevado</p><p>peso cultural. No País, pelo conjunto da obra, granjeou Nélida os prêmios</p><p>Golfinho e Nestlé, O prêmio Mário de Andrade traduziu o reconhecimento de</p><p>sua obra A casa da paixão; O famoso prêmioJabuti, de Letras, se deveu a Vozes</p><p>do deserto, o melhor romance de 2005; prêmio Walmap pelo romance O</p><p>fundador, para não mencionar senão os mais importantes.</p><p>No plano internacional, o elenco é suculento e expressivo. Para nos</p><p>cingirmos aos últimos anos, há que referir o prêmio Juan Rulfo pelo conjunto</p><p>da obra, conferido, em Guadalajara, sendo que a laudatio coube a Carlos</p><p>Fuentes; após um interregno, cinco novos prêmios concedidos: o ibero-</p><p>americano de Narrativa Jorge Isaacs, de Cali, igualmente pelo conjunto da</p><p>obra. Nélida foi o primeiro autor de língua portuguesa e a primeira mulher a</p><p>receber o galardão; sobreveio o prêmio Rosalía de Castro, também pelo</p><p>conjunto da obra em língua portuguesa, concedido pelo Pen Clube da Galiza;</p><p>já o prêmio internacional Menéndez Pelayo foi entregue pessoalmente pela</p><p>ministra espanhola de educação, havendo proferido a laudatio Mário Vargas</p><p>Llosa; a universidade de Oklahoma agraciou Nélida com o Prêmio</p><p>Puterbaugh.</p><p>Antes foram escolhidos Octávio Paz, Carlos Fuentes e Mário</p><p>Vargas Llosa, o que diz do valor da láurea conquistada por nossa patrícia. Em</p><p>2005, Nélida atingiu o ápice da glória com a concessão do prêmio Príncipe de</p><p>Astúrias, em Letras.</p><p>Universidades de vários países cuidaram de reconhecer o desempenho</p><p>literário de Nélida. Daí sua galeria de títulos de doctor honoris causa. Nos anos</p><p>de virada do século XX para o século XXI, as universidades Atlantic na</p><p>Flórida, Poitiers, na França, Santiago de Compostela, na Espanha, Rutgers,</p><p>dos Estados Unidos e de Montréal, no Canadá, expressaram o seu</p><p>reconhecimento pela portentosa obra nelidiana.</p><p>Após as transformações ocorridas nos anos 1960 e 1970, emergiram</p><p>novas formulações do feminismo. A par de seus desdobramentos nos diversos</p><p>domínios do saber e do agir, em literatura se nota uma clara distinção entre as</p><p>versões francesa e anglo-americana do complexo problema. No primeiro caso,</p><p>detecta-se a presença da psicanálise, especialmente lacaniana. No segundo, na</p><p>visão de Lucia Zolin, o que se busca é “denunciar a arbitrariedade e a</p><p>manipulação das representações da imagem feminina na tradição literária”.</p><p>As metáforas permeiam a obra de Nélida. Dão-lhe vigor e riqueza. A</p><p>autora reconhece, porém, que o homem sobreleva a metáfora, o que lhe</p><p>permite ancorar seu ser num patamar superior. E é aí que se situa a</p><p>necessidade inquestionável de firmar a igual dignidade do homem e da</p><p>mulher. Vale dizer, a igualdade jurídica, social, econômica, cultural de ambos</p><p>os sexos dimana da igualdade ontológica sempre presente na obra ficcional de</p><p>Nélida, bem assim em seus escritos assertivos.</p><p>Nélida tem plena consciência de que a emergência do feminino operou</p><p>profunda transformação na fisionomia humana a partir do século XX. E o</p><p>desfile de mulheres à testa de governos, de parlamentos, de tribunais, de</p><p>universidades, nas ciências e nas letras, em empresas, em múltiplas profissões</p><p>liberais, no amplo mercado de trabalho atesta a complexidade do novo</p><p>feminismo e suas promessas para os dias vindouros. Nesta matéria, Nélida é</p><p>contemporânea do futuro.</p><p>Ao se proclamar brasileira recente, Nélida realça sua legitimidade, mas</p><p>nem por isto denega o apport galego em sua vida partilhada. A opção da alma e</p><p>da língua em favor do português, segundo Nélida, a inaugurou na</p><p>humanidade. A verdade é que foi a intensidade de seu viver brasileiro que lhe</p><p>demarcou a prioridade inarredável. O que prevalece é o império da palavra, e</p><p>esta é a mesma que baliza nosso idioma na pena de Camões, de Machado de</p><p>Assis, de Eça de Queiroz, de Guimarães Rosa e de Clarice Lispector.</p><p>O habitat de Nélida é a palavra pertinazmente buscada, por vezes sofrida,</p><p>escrita com sangue, se assim o exigir a arte que a devora. Há uma atração</p><p>irresistível pela condição humana vivenciada em sua esfuziante angústia,</p><p>angústia que prefigura um otimismo escondido a falar de sua fé no ser</p><p>humano. O texto nelidiano emerge com força indômita de uma criatividade</p><p>desafiadora a se considerar o procedimento comedido dos cânones literários.</p><p>A personalidade de Nélida exala alegria. A grande escritora ama a vida,</p><p>sorve-a com ardor e irradia o privilégio de existir que ela poreja nesse viver</p><p>com que tão bem a retrata. Não há como obliterar a sedução, sua marca</p><p>registrada. Pelo olhar, a palavra, o gesto fraterno, o toque convidativo à</p><p>reciprocidade de consciências, Nélida traça um roteiro existencial</p><p>pavimentado pela afetividade.</p><p>Nada mais refratário à escritora do que a submissão em quaisquer de suas</p><p>manifestações. Ela se afirma altaneira mesmo quando percorre os desvãos da</p><p>conduta humana, pois nela os juízos de valor não seguem a rotina do</p><p>romanticamente correto. Antes, desafia as fronteiras da mediania, porque</p><p>Nélida nasceu para respirar o ar das planuras em que se alteiam os montes</p><p>brilhantes da inventiva literária. Seu horizonte não são as categorias do espaço</p><p>e do tempo, porque se alojam num mundo em que o real e o mítico se dão as</p><p>mãos para que ambos pousem na consistência existencial de suas personagens.</p><p>NOTAS DOS CURADORES</p><p>1 Giovanni Pontiero - Acadêmico e tradutor de ficção portuguesa, principalmente das obras do escritor</p><p>português José Saramago.</p><p>2 Tout court - Do francês, Simplesmente.</p><p>A</p><p>Coelho Neto ou</p><p>o culto à palavra</p><p>simples menção a Coelho Neto despertava reações apaixonadas. Seu</p><p>nome gerava comentários encomiásticos e, às vezes, ferinos. É certo,</p><p>contudo, que Coelho Neto figurou na galeria dos grandes escritores da</p><p>literatura pátria. Versou todos os gêneros literários e sua pena prolífica</p><p>assombrava o mundo das letras mercê da variedade e riqueza de seu estilo.</p><p>Palavras entregues ao olvido renasceram em seus escritos, a revelar o seu</p><p>domínio da língua que nos irmana e à qual devemos, e muito, a unidade</p><p>nacional.</p><p>Passado um já longo período coberto pelo silêncio, de seu</p><p>desaparecimento, Coelho Neto não tem seu nome relembrado pelas novas</p><p>gerações. Daí porque cabe inventariar a sua biografia, recordar a sua vasta</p><p>contribuição à literatura brasileira, sua presença obrigatória nos fatos</p><p>marcantes da história de meados do século dezenove e das primeiras três</p><p>décadas do século vinte que serviram de espaço para o seu pleno desabrochar.</p><p>Seu nome sofreu o desgaste que acompanha personalidades excepcionais,</p><p>o que gerou um esquecimento de suas obras, até que, no ano do seu centenário</p><p>de nascimento, Otávio de Faria, com particular empenho, promoveu a sua</p><p>reabilitação. Com isso, queria significar que aos leitores caberia a tarefa de</p><p>proceder a uma avaliação das obras de Coelho Neto, pois os seus detratores se</p><p>dispensavam do esforço honesto de lê-las. A cortina do silêncio desceu mais</p><p>uma vez no horizonte de nossas letras, pelo que adequado nos pareceu o</p><p>momento de proceder à sua, não diria reabilitação, mas apenas ensejo a que</p><p>revivamos os passos de sua inequívoca presença literária no País, e mesmo</p><p>fora dele.</p><p>Henrique Maximiano Coelho Neto nasceu em Caxias, no Estado do</p><p>Maranhão, aos 21 de fevereiro de 1864. Sua biografia o registra como</p><p>professor, político,jornalista, romancista, contista, crítico, teatrólogo,</p><p>memorialista e poeta. É o fundador da cadeira número 2 desta Academia, a que</p><p>tem como patrono Álvares de Azevedo. A curta trajetória deste tinha o selo</p><p>comum à época de tantos escritores precocemente convocados para o</p><p>encontro com a morte, como que sedenta de tê-los em seu regaço. Álvares de</p><p>Azevedo insere-se entre os poetas de breve percurso, nos quais Lygia</p><p>Fagundes Telles vislumbrajovens talentosos escritores que morrem cedo como</p><p>sinal de seu romantismo visceral.</p><p>Coelho Neto era filho único de Antônio da Fonseca Coelho, português, e</p><p>de Ana Silvestre Coelho, índia. Aos seis anos, seus pais se transferiram para o</p><p>Rio de Janeiro. Aí frequentou o famoso Colégio Pedro II, então Ginásio</p><p>Nacional, onde recebeu esmerada formação clássica. Lá eram lentes figuras de</p><p>escol de nossa cultura, podendo afiançar-se que o nível dos estudos se</p><p>assemelhava ao ministrado em faculdades de ciências e letras. No terceiro</p><p>grau, principiou seus estudos na área médica, de que logo abriu mão para, a</p><p>seguir, se matricular na Faculdade de Direito de São Paulo, entidade presente</p><p>em biografias estelares de nossa literatura. Seu temperamento arrebatado</p><p>levou-o a se transferir para outro centro de excelência, em Recife, onde cursou</p><p>o primeiro ano da famosa Faculdade de Direito. Nessa ocasião, teve o</p><p>privilégio de conhecer Tobias Barreto. É quando se dá seu retorno à capital</p><p>paulista. Em sua segunda estada em São Paulo, abriu-se para Coelho Neto o</p><p>universo da participação, pelo que o escritor maranhense se deu plenamente às</p><p>ideias abolicionistas e republicanas. Resolveu interromper seus estudos na</p><p>famosa Faculdade de Direito, volvendo à antiga capital federal, o verdadeiro</p><p>celeiro de talentosos intelectuais, que viam, na Corte, o tópos de suas</p><p>ascensões. Logo integrou o luzidio grupo de Olavo Bilac, Luís Murat,</p><p>Guimarães Passos, Paula Ney.</p><p>Tornou-se êmulo de José do Patrocínio, pena e oratória fulgurantes,</p><p>como expoente da luta contra</p><p>a escravidão, que tanto retardou nossa</p><p>afirmação civilizatória e cultural. Até hoje, pagamos o elevado preço nessa</p><p>sucessão de equívocos que vêm freando a nossa afirmação como país</p><p>efetivamente culto e dono de seu destino. E, além disso, real propulsor de</p><p>singular civilização tropical.</p><p>Coelho Neto veio a se casar com Maria Gabriela Brandão, filha do</p><p>educador Alberto Olympio Brandão. A união gerou quatorze filhos, sete dos</p><p>quais cedo falecidos. A família numerosa bem explica a vida laboriosa de um</p><p>dos mais lidos imortais desta Academia.</p><p>Em seu currículo, vamos vê-lo secretário do Governo do Estado do Rio</p><p>de Janeiro, Diretor dos Negócios do Estado, professor de História da Arte na</p><p>Escola Nacional de Belas Artes e de Literatura Dramática na Escola de Arte</p><p>Dramática e, posteriormente, seu diretor. Foi deputado federal pelo Maranhão</p><p>em 1909 e, em 1917, reeleito. Seu senso cívico o levou a ocupar a secretaria-</p><p>geral da Liga de Defesa Nacional.</p><p>É de realçar-se o fato incomum de sua aprovação como professor de</p><p>Literatura Brasileira do Colégio Pedro II, sem a exigência de concurso, por</p><p>parecer assinado por Sílvio Romero, João Ribeiro e Capistrano de Abreu. A</p><p>Congregação do Colégio levou em conta a classificação, em primeiro lugar, de</p><p>Coelho Neto em concurso extremamente difícil realizado em Campinas, em</p><p>que concorreu com Batista Pereira e Alberto de Faria. As provas se sucederam</p><p>com temas desafiadores: elementos estáticos da literatura brasileira, análise</p><p>literária da Eneida, livro VII, versos 689-703; síntese histórica das literaturas</p><p>românticas, influência destas sobre a literatura portuguesa, e finalmente</p><p>Bucólica, Écloga IV, v. I a 26, de Virgílio.</p><p>Impede cinzelar brevemente a cultura vigente à época de Coelho Neto</p><p>para mais bem lhe compreendermos a contribuição enriquecedora à cultura</p><p>brasileira.</p><p>Vencida a batalha da abolição e implantada a república, os intelectuais</p><p>perderam o ímpeto por causas maiores. No plano internacional, a I Guerra</p><p>Mundial se insere entre os dados complexos a desafiar as inteligências da</p><p>época. Analisando a atmosfera cultural daquele então, Bosi nos fala de um</p><p>decadentismo configurado “na água morna de um estilo ornamental, arremedo</p><p>da belle époque europeia e claro signo de uma decadência que se ignora”. É meio</p><p>hábil para a emergência de uma forma estética que mal encobre um certo</p><p>vazio de conteúdo. Daí a literatura como sorriso da sociedade - na expressão</p><p>de Afrânio Peixoto - foi um passo.</p><p>Coelho Neto poderia ser tragado por tal período despossuído de um</p><p>sentido mais profUndo. O que explica as opiniões conflitantes sobre o seu</p><p>desempenho literário.</p><p>Mas afinal: quem foi Coelho Neto? Seus críticos e mesmo detratores</p><p>ombreiam com quantos lhe apontaram méritos excepcionais. Parece que</p><p>chegaram a não lhe reconhecer a presença literária à época em que o escritor</p><p>maranhense palmilhou pertinazmente os múltiplos gêneros literários.</p><p>Talvez caiba referir aqui as mais festejadas ou desencorajadoras críticas à</p><p>opulenta obra de Coelho Neto, principiando Humberto de Campos: “O Sr.</p><p>Coelho Neto não é, em verdade, apenas um escritor: é uma literatura.” Ou</p><p>mencionar, inicialmente, dois juízos críticos de valores conflitantes para que</p><p>nos acuda ao espírito estarmos trilhando terreno de difícil praticagem. De um</p><p>extremo a outro, cuidamos que não se poderá idoneamente negar a</p><p>exuberante presença de Coelho Neto em nossa cultura. Surpreende-nos a</p><p>distância abissal de dois escritores sobre o romancista maranhense. Basta</p><p>recorrer a Lima Barreto e a Otávio de Faria. Escreveu o primeiro: Coelho</p><p>Neto “é o sujeito mais nefasto que tem aparecido no nosso meio intelectual”. O</p><p>segundo nomeava o escritor maranhense “o maior romancista brasileiro”.</p><p>Na cultura pré-modernista destacam-se três nomes estelares: Rui,</p><p>homem público e homem de letras. Euclides, procurador do solo e do homem</p><p>brasileiros. O terceiro terá sido Coelho Neto, pela abrangência de sua obra,</p><p>que percorreu praticamente todos os gêneros literários e o tornou o maior dos</p><p>prosadores brasileiros no reconhecimento de homens de grande valor,</p><p>ocorrido em 1928.</p><p>Conta Paulo Coelho Neto que, no “estrangeiro, a obra de Coelho Neto</p><p>tem merecido estudos e apreciações honrosíssimos de um grande número de</p><p>escritores e críticos literários, tais como - em Portugal: Fialho de Almeida,</p><p>Maria Amalia Vaz de Carvalho, Manuel de Sousa Pinto, Julio Dantas, João de</p><p>Barros, Afonso Lopes Vieira, Raul Martins e Henrique Perdigão; - na França:</p><p>Dr. P. Rovelly, Victor Orban, Phileas Lebesgue, Manoel Gahisto, George</p><p>Normandy e Jean Duriau; - na Alemanha: Martin Brusot, em três estudos,</p><p>publicado no Zeitgeist - suplemento literário do Berliner Tageblatt, no</p><p>Litterarische Echo, de Berlim, e no Aus Fremden Zungen, de Berlim, e mais</p><p>Anthon Krause e Carl A. Nerlich; - na Inglaterra: J. C. Oakenfull e Rudyard</p><p>Kipling; - na Itália: Giulio de Médici; - na Suécia: Karl August Hagbert; - nos</p><p>Estados Unidos: Marie Robinson Wright, Isaac Goldberg e Percy Alvin</p><p>Martin; - na Argentina: Martin Garcia Mérou, Benjamin de Garay, Guillermo</p><p>Estrella, Manoel Galvez, P. Nunez Arca e Luiz Onetti de Lima; - no Uruguai;</p><p>Drs. Victor Perez Petit e Carlos Martinez Vigil; - no Chile: Julia Garcia</p><p>Gamez; e em Angola: Barbosa Rodrigues.</p><p>No Brasil, a obra literária de Coelho provocou inúmeras citações e</p><p>comentários enaltecedores de Rui Barbosa, Euclides da Cunha, Machado de</p><p>Assis, Sílvio Romero, Antônio Lobo, João do Rio, Medeiros e Albuquerque,</p><p>João Ribeiro, Luís Murat, Nestor Victor, Humberto de Campos, Luís Carlos,</p><p>Martins Fontes, Ramiz Galvão, Almachio Diniz, Veiga Miranda, Félix</p><p>Pacheco, Miguel Couto, Augusto de Lima, Oliveira Lima, Péricles de Moraes,</p><p>João Luso, Fernando de Azevedo, Fernando de Magalhães, Celso Vieira,</p><p>Alcides Maya, João Neves da Fontoura.</p><p>Suas obras ganharam o mundo em onze idiomas - português, francês,</p><p>inglês, alemão, italiano, espanhol, russo, sueco, sírio, esperanto e japonês. Seus</p><p>trabalhos foram divulgados em todo o Brasil e na Argentina, Uruguai, Chile,</p><p>Paraguai, Estados Unidos, Portugal, França, Alemanha, Itália, Bélgica, Suécia,</p><p>Rússia, Síria, Japão e África portuguesa.</p><p>Eis diversas opiniões sobre a grandiosa obra de Coelho Neto:</p><p>Um dos mais consagrados representantes da nossa cultura.</p><p>RUI BARBOSA - Excerto de uma carta a Coelho Neto - 16/1/1918.</p><p>Coelho Neto é um grande virtuose da prosa. Não conheço na literatura brasileira</p><p>outro que lhe seja superior na faculdade da expressão.</p><p>NESTOR VICTOR - A crítica de ontem.</p><p>Se se excetuar Rui Barbosa, e só falando nos mortos, ninguém foi talvez mais</p><p>castiço na sua linguagem e, simultaneamente, mais brasileiro no tema das suas</p><p>obras.</p><p>HENRIQUE PERDIGÃO - Dicionário universal de literatura, Portugal.</p><p>Coelho Neto é no Brasil o que Rudyard Kipling é na Inglaterra, o homem que</p><p>joga com maior número de palavras.</p><p>JOÃO DO RIO - O momento literário.</p><p>Machado de Assis assim se refere a Coelho Neto: “Coelho Neto tem o</p><p>dom da invenção, da composição, da descrição e da vida, que coroa tudo. É dos</p><p>nossos primeiros romancistas, e, geralmente falando, dos nossos primeiros</p><p>escritores.”</p><p>E sobre O Sertão igualmente se expressa o grande Machado: “Coelho Neto</p><p>ama o sertão, como já amou o Oriente, e tem na paleta as cores próprias de</p><p>cada paisagem. Possui o senso da vida exterior. Dá-nos a floresta, com os seus</p><p>rumores e silêncios, com os seus bichos e rios, e pinta-nos um caboclo que,</p><p>por menos que os olhos estejam acostumados a ele, reconhecerão que é um</p><p>caboclo.”</p><p>Josué Montello - “Considerado com justiça entre as mais altas figuras de</p><p>nossas letras, tanto pelos valores formais de seus livros quanto pela extensão</p><p>de sua bibliografia, Coelho Neto poderia ser apontado, dois anos após a</p><p>publicação de Turbilhão, como o primeiro prosador da literatura brasileira, por</p><p>morte de Machado de Assis.”</p><p>Brito Broca - “A hostilidade que Coelho Neto vem encontrando nas</p><p>gerações novas, de 1922 para cá, resulta, em grande parte, do fato de elas</p><p>desconhecerem a obra ou conhecerem-na de maneira bastante falha e</p><p>superficial. A produção</p>

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