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Clarissa Comin Teoria da Literatura II C larissa C om inISBN 978-65-5821-214-0 9 786558 212140 Código Logístico I000689 Teoria da Literatura II Clarissa Comin IESDE BRASIL 2023 Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br © 2023 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: GNT STUDIO/shutterstoct 23-81981 CDD: 809.1 CDU: 82-1.09 CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃONAPUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ C727t Comin, Clarissa Teoria da literatura II / Clarissa Comin. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2023. Inclui bibliografia ISBN 978-65-5821-214-0 1. Gêneros literários. 2. Poesia - História e crítica. I. Título. Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439 13/01/2023 18/01/2023 Clarissa Comin Doutora, mestra e bacharela em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Produção de Material Didático para EAD pela Faculdade Claretiano. Professora no Ensino Superior. Professora de francês e preparadora de textos. Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO 1 Introdução à poesia 9 1.1 O que é poesia? 10 1.2 Poesia, oralidade e musicalidade 14 1.3 A poesia e a épica 17 1.4 Poesia e sociedade 21 2 Aspectos formais do poema 27 2.1 Os versos 27 2.2 As rimas 33 2.3 Formas fixas 35 2.4 Figuras de linguagem 41 3 Poesia brasileira dos séculos XVIII e XIX 47 3.1 Arcadismo 48 3.2 Romantismo 53 3.3 Parnasianismo 59 3.4 Simbolismo 61 4 Poesia brasileira dos séculos XX e XXI 68 4.1 Modernismo 69 4.2 Concretismo 75 4.3 Geração marginal 79 4.4 Poesia contemporânea 83 5 Poesia e outros discursos 89 5.1 A noção do belo e a poesia pós-guerra 90 5.2 Poesia escrita por mulheres 97 5.3 Poesia e intermidialidade 101 Resolução das atividades 105 Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! A literatura é uma arte, e isso não é uma frase dita da boca para fora. Assim como a música, o cinema, a pintura e a fotografia, a expressão literária também é uma manifestação artística. Talvez porque seu estudo figure nos currículos escolares a afirmação pareça exagerada, mas a verdade é que o texto literário é uma forma de expressar o (des)encantamento com o mundo por meio de um uso inventivo das mesmas palavras que usamos em nosso cotidiano. Dito isso, vem a pergunta: o que é poesia? Para respondermos, veremos como a noção de poesia foi sofrendo alterações no decorrer dos séculos, desde a Arte Poética de Aristóteles até o entendimento atual que a crítica estabelece sobre o gênero. Com isso, a hermenêutica acerca da poesia não nos parece produtiva, justamente porque o conceito, assim como a língua e a sociedade, está em constante remodelação. Em vez disso, preferimos pensar: do que o poema é capaz? Quais seus afetos e efeitos sobre nós leitores? Com base nessas perguntas, no primeiro capítulo, Introdução à poesia, exploramos o conceito de poesia. Para isso, analisamos as mais importantes artes poéticas da Antiguidade Clássica e alguns poemas épicos importantes para a tradição literária ocidental. Além disso, trabalhamos a ligação entre poesia e oralidade, bem como sua relação com o contexto de produção poética. Na sequência, o segundo capítulo, Aspectos formais do poema, oferece um panorama formal, apresentando ferramentas para análise do poema e sua estrutura. O objetivo é nos familiarizarmos com o vocabulário técnico requerido na análise de poesia. Com isso, vemos a noção e os tipos de versos, estrofes, rimas, formas fixas, além de algumas figuras de linguagem recorrentes nos poemas. Por sua vez, no terceiro capítulo, Poesia brasileira dos séculos XVIII e XIX, estudamos a poesia brasileira desde seus primórdios, começando pelo Arcadismo, no século XVIII, APRESENTAÇÃOVídeo 8 Teoria da Literatura II passando pelo Romantismo e suas três fases, pelo Parnasianismo de Olavo Bilac e, por fim, pelo Simbolismo de Cruz e Sousa. Já no quarto capítulo, Poesia brasileira dos séculos XX e XXI, sobrevoamos os principais momentos poéticos da poesia nesse período, passando pelo Modernismo de 1922, pelo Concretismo paulistano, pela Geração Marginal carioca e pela engajada e experimental poesia contemporânea. Isso tudo será feito a partir da análise de diversos poemas em suas respectivas estéticas. Por último, o quinto capítulo, Poesia e outros discursos, aborda a poesia em contato com a sociedade – em específico, a poesia escrita no período Pós-Segunda Guerra Mundial –, com os discursos feministas – nos quais analisamos poetas brasileiras do século XX – e com a intermidialidade, tratando da poesia concreta e contemporânea, influenciada pelas redes sociais. Bons estudos! Introdução à poesia 9 1 Introdução à poesia Nem sempre a poesia foi como a conhecemos hoje, manifestada em poemas com uma estrutura baseada em versos, estrofes e rimas. Ela de- riva da lírica, um dos três gêneros literários básicos, sendo os outros o épico e o drama. A lírica surgiu na Grécia Antiga e recebeu esse nome devido à sua ligação com a música – a lira e a flauta eram instrumentos que acompanhavam a récita dos textos. Nesse sentido, a poesia moderna é um dos desdobramentos da lírica. Começaremos com a compreensão do que é poesia com base em ar- tes poéticas e seus usos sociais. Em seguida, veremos a relação da poesia com a oralidade, ligada ao período pré-escrita. Depois, analisaremos tre- chos de poemas épicos importantes para a tradição da literatura ociden- tal, como as obras A Divina Comédia, Os Lusíadas e O Uraguai, identificando os traços poéticos e narrativos em cada uma delas. Por fim, compreen- deremos as relações entre a poesia e a construção do caráter nacional. Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • compreender o que é poesia com base em artes poéticas e seus usos sociais; • entender a relação da poesia com a oralidade, ligada ao perío- do pré-escrita; • analisar trechos de poemas épicos importantes para a tradição da literatura ocidental, como A Divina Comédia, Os Lusíadas e Fausto, identificando traços poéticos e narrativos em cada um deles; • compreender as relações entre a poesia e a construção do ca- ráter nacional. Objetivos de aprendizagem 10 Teoria da Literatura II 1.1 O que é poesia? Vídeo Assim como os demais conceitos em Literatura, a poesia também é um desses de difícil definição. Podemos, por um lado, apegar-nos a explicações de cunho mais formal – a poesia é um subgênero da lírica e manifesta-se por meio de algumas formas fixas: o soneto, a trova, a ba- lada, o rondó, a sextina e o haicai. Por outro lado, é possível usar a ima- ginação e atribuir ao caráter poético a ideia daquilo que é sublime e inspirador. O uso do vocábulo sublime é retomado com nova acepção no século XVIII e torna-se um novo conceito estético, diferente do belo. O sublime está ligado à sensibilidade proporcionada pela grandiosida- de e pelo arrebatamento causados pelos elementos da natureza. É comum ouvirmosdois quartetos e dois tercetos, em sequência. A métrica mais comum traz versos decassílabos, sejam eles heroicos ou sáficos. Nesse sentido, podemos dividi-los em três formatações clássicas possíveis conforme o Quadro 3. https://bancoderimas.com/ https://bancoderimas.com/ 36 Teoria da Literatura II Quadro 3 Tipos de sonetos Tipo de soneto Distribuição dos versos Soneto italiano ou petrarquiano Duas estrofes de quatro versos e duas com três versos. Soneto inglês ou shakespeareano Três quartetos e um dístico (estrofe com dois versos). Soneto monostrófico Única estrofe com catorze versos. Fonte: Elaborado pela autora. Com essa compreensão inicial, vejamos o que consiste em um sone- to, uma trova, uma balada, um haicai e um cordel. 2.3.1 O soneto O soneto italiano é o modelo mais conhecido de todos. Vejamos um exemplo escrito por Manuel Bandeira (BANDEIRA, 2013, p. 114). A A A A B B B B C C C D D D Soneto italiano Frescura das sereias e do orvalho, Graça dos brancos pés dos pequeninos, Voz das manhãs cantando pelos sinos, Rosa mais alta no mais alto galho: De quem me valerei, se não me valho De ti, que tens a chave dos destinos Em que arderam meus sonhos cristalinos Feitos cinza que em pranto ao vento espalho? Também te vi chorar… Também sofreste A dor de ver secarem pela estrada As fontes da esperança… E não cedeste! Antes, pobre, despida e trespassada, Soubeste dar à vida, em que morreste, Tudo, – à vida, que nunca te deu nada! Os dois quartetos que introduzem o soneto formam um sistema de rimas ABBA. Por sua vez, os dois tercetos que findam o soneto compõem a segunda parte do sistema de rimas por meio do padrão CDC DCD. Segundo Massaud Moisés (2013), o soneto italiano já era praticado pelo poeta italiano Dante Alighieri, mas foi Petrarca que lhe conferiu a for- ma e conteúdo como conhecemos hoje, acrescentando a chave de ouro, o último verso do soneto que encerra em si a ideia principal do poema. Aspectos formais do poema 37 Já o soneto inglês foi idealizado pelo dramaturgo William Shakespeare. No que diz respeito à temática, os sonetos ingleses vão além de evocações à Musa, pois também tratam de política, de sexualidade e de sentimentos universais aos seres humanos. Ele é composto por três quartetos e um dísti- co e seu esquema rímico mais usado é ABAB/CDCD/EFEF/GG. A presença de uma última estrofe com dois versos torna a leitura mais aprazível, contendo nela a chave de ouro. Porém, há estudiosos que se recusam a chamar esse modelo de soneto, pois ele não obedece ao modelo petrarquiano. 2.3.2 A trova Pensar em trova é pensar em Trovadorismo. A etimologia de trovado- rismo nos leva ao latim, em que trova significa torquere, torcer, imprimir movimento de rotação. Ou ainda do grego tropos que seria modo, tom, que se converteu em sinônimo de compor uma música. Com base nisso, entendemos o motivo, durante a Idade Média, de a trova ser sinônimo de canção, ou seja, poesia e letra de canção estavam no mesmo patamar. Desse modo, a trova apresenta uma forma fixa: uma monóstrofe com- posta por quatro versos e uma quadra escrita em versos heptassílabos, ou seja, em redondilhas maiores. Suas rimas podem organizar-se em: ABAB, ABCB, ABBA ou AABB. No entanto, é importante não a confundirmos com quadra, pois, apesar de ambas contarem com quartetos, a quadra não tem versos ou rimas fixos, enquanto a trova obedece a um engenho específico. 2.3.3 A balada A balada surge na França durante o século XIV, no período medieval, mas sua conformação moderna surge no final do século XVIII na Alema- nha. Assim como as trovas, as baladas eram escritas para serem can- tadas e musicadas. São compostas por três oitavas e uma quadra (ou quintilha). No que diz respeito à métrica, seus versos são octassílabos. Além disso, ela apresenta a repetição do mesmo verso ao final de cada estrofe (o refrão), sendo esse um recurso utilizado em sua poética. Os parnasianos praticaram bastante esse modelo, que representava um desafio poético, contrapondo-se à liberdade exagerada dos poetas român- ticos, que se afastaram das formas fixas de até então. Vejamos um exemplo de balada escrita pelo poeta francês, François Villon (POUND, 2014, p. 85). 38 Teoria da Literatura II Balada dos enforcados Irmãos humanos que ao redor viveis, Não nos olheis com duro coração, Pois se aos pobres de nós absolveis Também a vós Deus vos dará perdão. Aqui nos vedes presos, cinco, seis: Quanto era cara viva que comia Foi devorado e em pouco apodrecia. Ficamos, cinza e pó, os ossos, sós. Que de nossa aflição ninguém se ria, Mas suplicai a Deus por todos nós. Se dizemos irmãos, vós não deveis Sentir desprezo, embora condenados Tenhamos sido em vida. Bem sabeis: Nem todos têm os sentidos sentados. Desculpai-nos, que já estamos gelados, Perante o filho da Virgem Maria. Que seu favor não nos falte um só dia Para livrar-nos do inimigo atroz. Estamos mortos: que ninguém sorria, Mas suplicai a Deus por todos nós. [...] Um dos padrões clássicos, além da rigidez da estrutura do modelo, é a presença e repetição do refrão ao final das estrofes. 2.3.4 O haicai De acordo com Nunes (2019, p. 15), “Um haikai (ou hai-kai ou haicai) é um poema conciso, que aborda temas simples, frequentemente liga- dos à natureza, com economia verbal e objetividade”. Esse subgênero literário tem origem no Japão durante o século XVI. Além disso, o gran- de expoente do haikai foi o poeta Bashô. É por meio dele que o gênero é consolidado, com autonomia e singularidade, e passa a influenciar as gerações posteriores, inscrevendo-se como um dos momentos mais importantes da poética japonês. Em termos técnicos, o haicai é definido como um poema curto, de três versos, com cinco, sete e cinco sílabas poéticas, ou seja, duas re- dondilhas menores e uma redondilha maior, e sem rimas. Os haicais tradicionalmente não têm títulos. Vejamos um exemplo de haicai escri- to por Bashô (ESCAMANDRO, 2017). O site Kakinet, construído em 1996, é um espaço dedicado exclusivamente aos haicais. A escolha do nome caqui – um fruto japonês – para o nome do site deve-se à fácil aclima- tação dele no Brasil, assim como a prática poética do haicai. O site traz infor- mações como concursos literários de haicai, uma biblioteca de obras nesse estilo e um fórum agitado que mobiliza poetas e leitores. Disponível em: https://www. kakinet.com/cms. Acesso em: 24 nov. 2022. Site https://www.kakinet.com/cms https://www.kakinet.com/cms Aspectos formais do poema 39 Ipê / des / flo / ri / do 1 2 3 4 5 Sa / biá / des / ce / do / ga / lho 1 2 3 4 5 6 7 Som / de fo / lhas / se / cas. 1 2 3 4 5 1 2 3 Percebemos nesse tipo de poema o uso de vocábulos simples e de fácil compreensão. Além disso, os haicais geralmente retratam paisa- gens da natureza e aludem a estações do ano, evocando ora o sol, ora a chuva, ora a neve. Também são caracterizados, ainda, pelas seguintes temáticas: bucolismo, solidão, serenidade, espírito zen, não intelectua- lidade. O haicai cria imagens de modo sintético, mimetizando os pró- prios ideogramas (ou kanjis) japoneses, que são compostos geralmente por justaposição de palavras. Vejamos alguns exemplos. 明 (claridade) = 日(sol) + 月(lua) 男 (homem) = força (力) + campos de arroz (田) No Brasil, o haicai abrasileirou-se. Com as imigrações japonesas en- tre o final do século XIX e começo do século XX, a cultura nipônica passa a exercer forte influência cultural em nosso país. É com o movimento modernista que a prática do haicai se inaugura oficialmente na literatu- ra brasileira, com os haicais de Guilherme de Almeida (ALMEIDA, 2002, p. 135). O poeta vai inserir títulos, usar rimas e abordar uma temática mais moderna em seus haicais, como podemos ver a seguir. Par de rimas interpoladas entre o substantivo e o verbo do primeiro e terceiro verso. Par de rimas internas entre o pronome indefinido ninguém e o substantivo trem.Símbolos da modernidade em contraposição às temáticas tradicionais do subgênero. Histórias de algumas vidas Noite. Um silvo no ar. Ninguém, na estação. E o trem Passa sem parar. A A B Posteriormente, o movimento concretista vai desenvolvê-lo e o poe- ta Paulo Leminski torna-se um grande nome do haicai brasileiro. O poe- ta abandona os títulos, a métrica e adota jogos de rimas distintos, sem perder de vista a simplicidade e objetividade do haicai. Influenciado pela publicidade, alguns de seus haicais assemelham-se a slogans. 40 Teoria da Literatura II Slogans são feitos com expressões concisas, fáceis de memorizar, como amo muito tudo isso. Nesse caso, podemos perceber a presença de aliterações (repetição de sons consonantais) /m/ e /t/ e assonâncias (repetição de sons vocálicos) /o/ e /i/, que são recursos mnemônicos – utilizados desde a Grécia Antiga – no nível formal e sonoro que ajudam a fixar a frase na mente da pessoa. Vejamos como isso acontece em Leminski (2015, p. 240) no seguinte exemplo. tudo dito, nada feito, fito e deito Presença das assonâncias: /a/ /e/ /i/ /o/ Presença das aliterações: /d/ /f/ /t/ 2.3.5 O cordel O subgênero cordel tem origens portuguesas, introduzido no Brasil no século XVIII, e está ligado a histórias da tradição local, conhecidas pela população daquele local. Vale-se de uma linguagem coloquial, per- meada por expressões regionais, a presença do humor é constante, e é escrito em versos (quadras, redondilhas, entre outros). Seus maiores expoentes vêm de estados como Ceará, Alagoas, Per- nambuco, Pará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Etimologicamente cor- del vem do latim chorda, corda, e do grego khorde, que significa tripa ou corda. Seu sentido literário advém da ideia da corda em que os livri- nhos são expostos e divulgados. Segundo Matos (2008), o cordelista está entre o escritor e o bardo – aquele que canta sua narrativa, à semelhança de Homero, autor de Ilíada e Odisseia. Nas palavras da pesquisadora, o cordel “exerce efei- to encantatório sobre seus leitores/ouvintes, um encanto transmitido pela palavra viva, grafada no papel e inscrita na voz” (MATOS, 2008, p. 151). Além disso, os cordéis são comercializados em praças públi- cas e feiras, vendidos pelos próprios autores que costumam “cantá-los” para atrair a atenção dos leitores. Um dos cordelistas mais famosos é o cearense Patativa do Assaré. Seu pseudônimo remete à voz semelhante a do pássaro, patativa, e o patronímico da cidade de origem do escritor, Assaré, no interior do Ceará. De origem humilde, Patativa começa a escrever cedo e retrata as agruras da realidade dos nordestinos. Sua fama veio quando Luís Gonzaga musicou seu poema A triste partida (2022). Aspectos formais do poema 41 Setembro passou Outubro e Novembro Já tamo em Dezembro Meu Deus, que é de nós, Meu Deus, meu Deus Assim fala o pobre Do seco Nordeste Com medo da peste Da fome feroz Ai, ai, ai, ai Presença de redondilha menor: Se / tem / bro / pas / sou. Presença de rimas pobres. Presença de rimas ricas. Por exemplo, entre nós (pronome) e feroz (adjetivo). Presença de marcas coloquiais e orais, por exemplo, tamo e a repetição da interjeição ai. 2.4 Figuras de linguagem Vídeo As figuras de linguagem são largamente usadas na poesia justamente por seu caráter conotativo, que significa uma aproximação subjetiva entre duas palavras, diferente da denotação, em que as palavras são usadas tais quais seus significados no dicionário, detendo-se ao sentido literal. Nesse sentido, podemos dizer que as figuras de linguagem são plu- rissignificativas, pois seu entendimento vai além de uma interpretação de modo literal. Se escrevemos o céu acordou sorrindo, significa que o dia está bonito, sem nuvens, com sol, temperatura amena, pois sabemos que o céu não sorri, posto que essa é uma faculdade do ser humano. As figuras de linguagem mais conhecidas são a metáfora, a compa- ração, a hipérbole, a prosopopeia, a metonímia e a sinestesia. Apesar de nos determos em seus usos junto aos poemas, elas também podem ser usadas em textos em prosa, dependendo do efeito de sentido que pretende-se provocar no leitor. A metáfora é uma das mais conhecidas figuras de linguagem. Do grego metaphora (transferência) que vem de metapherein (troca de lu- gar). Desmembrando esse último vocábulo, temos meta (além) e phe- rein (levar ou transportar). Ou seja, a metáfora significa o deslocamento de um significado para outro, sem ser uma comparação explícita. No poema Rosa de Hiroshima (MORAES, 2009, p. 253) de Vinícius de Mo- raes, aparecem várias metáforas em torno da palavra rosa. O contexto de escrita do poema é a bomba jogada pelos EUA na cidade de Hiroshima, no Japão, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Vejamos um trecho dele. 42 Teoria da Literatura II Mas oh não se esqueçam Da rosa da rosa Da rosa de Hiroshima A rosa hereditária A rosa radioativa Estúpida e inválida [...] [...] A rosa é usada como metáfora da bomba, que no momento de sua queda formou, no ar, a imagem de uma rosa com sua fumaça. Alusão à radioatividade da bomba e seu caráter cancerígeno, que foi passado através das gerações. A comparação, também chamada de símile, diferente da metáfo- ra, trabalha com a analogia explícita entre dois termos. Geralmente, ela traz conjunções ou locuções conjuntivas comparativas: tão, quanto, como, tal qual, assim como, tanto quanto, entre outras. Por exemplo, no poema Desencanto de Manuel Bandeira (BANDEIRA, 2013, p. 54). Eu faço versos como quem chora De desalento... de desencanto [...] – Eu faço versos como quem morre. O eu lírico transmite seu sentimento de tristeza ao confessar que, assim como uma pessoa que está chorando, ele escreve seus versos, ou seja, em sofrimento. Por fim, em um tom mais dramático, diz que escreve com urgência, como quem está à beira da morte. A hipérbole é figura de linguagem que exprime o exagero da signifi- cação. Usamos bastante no dia a dia, em expressões, por exemplo, mor- rer de fome ou congelando de frio. Desse modo, o exagero é proposital, pois visa enfatizar a relevância da informação, ou convencimento, como em “todo mundo sabe quem é Pelé”. Um exemplo disso é o poema So- neto do amor total (MORAES, 2009, p. 299) do poeta Vinícius de Moraes. E de te amar assim, muito e amiúde É que um dia em teu corpo, de repente Hei de morrer de amar mais do que pude [...] Alusão ao lugar comum da experiência amorosa, cara ao Romantismo, que é a morte por amor. A prosopopeia, também chamada de personificação, é usada para indicar características humanas em objetos inanimados. De acordo com o escritor Cesar Aira (2007), podemos dizer que a base da ficção é justamente essa, pois é quando o autor concede vida própria a seres e lugares até então inexistentes. Vamos encontrá-la amplamente nas fábulas infantis nas quais ani- mais ganham vida e aludem a características humanas. Vejamos o poema O amor bate na aorta (ANDRADE, 2015, p. 195) do poeta Carlos Drummond de Andrade. Falta uma cota aqui Aspectos formais do poema 43 Mas oh não se esqueçam Da rosa da rosa Da rosa de Hiroshima A rosa hereditária A rosa radioativa Estúpida e inválida [...] [...] A rosa é usada como metáfora da bomba, que no momento de sua queda formou, no ar, a imagem de uma rosa com sua fumaça. Alusão à radioatividade da bomba e seu caráter cancerígeno, que foi passado através das gerações. A comparação, também chamada de símile, diferente da metáfo- ra, trabalha com a analogia explícita entre dois termos. Geralmente, ela traz conjunções ou locuções conjuntivas comparativas: tão, quanto, como, tal qual, assim como, tanto quanto, entre outras. Por exemplo, no poema Desencanto de Manuel Bandeira (BANDEIRA, 2013, p. 54). Eu faço versos como quem chora De desalento... de desencanto [...] – Eu faço versos como quem morre. O eu lírico transmite seu sentimento de tristeza ao confessar que, assim como uma pessoa que está chorando, ele escreve seus versos, ou seja,em sofrimento. Por fim, em um tom mais dramático, diz que escreve com urgência, como quem está à beira da morte. A hipérbole é figura de linguagem que exprime o exagero da signifi- cação. Usamos bastante no dia a dia, em expressões, por exemplo, mor- rer de fome ou congelando de frio. Desse modo, o exagero é proposital, pois visa enfatizar a relevância da informação, ou convencimento, como em “todo mundo sabe quem é Pelé”. Um exemplo disso é o poema So- neto do amor total (MORAES, 2009, p. 299) do poeta Vinícius de Moraes. E de te amar assim, muito e amiúde É que um dia em teu corpo, de repente Hei de morrer de amar mais do que pude [...] Alusão ao lugar comum da experiência amorosa, cara ao Romantismo, que é a morte por amor. A prosopopeia, também chamada de personificação, é usada para indicar características humanas em objetos inanimados. De acordo com o escritor Cesar Aira (2007), podemos dizer que a base da ficção é justamente essa, pois é quando o autor concede vida própria a seres e lugares até então inexistentes. Vamos encontrá-la amplamente nas fábulas infantis nas quais ani- mais ganham vida e aludem a características humanas. Vejamos o poema O amor bate na aorta (ANDRADE, 2015, p. 195) do poeta Carlos Drummond de Andrade. Falta uma cota aqui Olha: o amor pulou o muro amor subiu na árvore em tempo de se estrepar. Pronto, o amor se estrepou. [...] [...] A figura de linguagem é constituída por meio da atribuição de várias ações ao amor, como se ele fosse uma pessoa. A metonímia é uma figura de linguagem em que um vocábulo é usado fora de seu contexto usual, pois ele apresenta uma relação objetiva, seja material, seja conceitual, ou contígua, com o conteúdo ou o referente em questão. Em outras palavras, significa usar uma palavra em alusão à outra. Por exemplo, ela pode ocorrer entre matéria e objeto, como na ex- pressão “ele está me devendo uma prata”. Prata, o material, está no lu- gar de dinheiro. Ela também pode ser usada na relação pessoa por coisa: “adorava seu Van Gogh na parede”. Nesse caso o nome do pintor holan- dês é usado para referir-se aos seus quadros. Ou ainda a consequência pela causa, como na expressão: “você respeite meus setenta anos!”, ou seja, respeite minha experiência de vida advinda da idade avançada. Por fim, temos a sinestesia. Consiste em uma intersecção de sensa- ções físicas. É a associação de palavras ou expressões que combinam diferentes sensações em uma expressão só. Vemos essa associação em expressões cotidianas, como “cheiro doce” (combinação de olfato e paladar), ou em “olhar frio” (visão e tato). Por sua vez, o Simbolismo fez bastante desse jogo de linguagem em seus poemas, isso traz uma experiência sensível e corpórea ao poema. Vejamos o poema Vogais, do simbolista francês Arthur Rimbaud (CAMPOS, 1993). A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul, vogais, Ainda desvendarei seus mistérios latentes: A, velado voar de moscas reluzentes Que zumbem ao redor dos acres lodaçais; E, nívea candidez de tendas areais, Lanças de gelo, reis brancos, flores trementes; I, escarro carmim, rubis a rir nos dentes Da ira ou da ilusão em tristes bacanais; U, curvas, vibrações verdes dos oceanos, Paz de verduras, paz dos pastos, paz dos anos Que as rugas vão urdindo entre brumas e escolhos; O, supremo Clamor cheio de estranhos versos, Silêncio assombrados de anjos e universos; - Ó! Ômega, o sol violeta dos Seus olhos! Os termos evocados pelo eu lírico mesclam elementos que competem à visão, tato e/ou audição, constituindo o caráter sinestésico do poema. 44 Teoria da Literatura II CONSIDERAÇÕES FINAIS O poema é uma entidade móvel que se apresenta de diferentes mo- dos. Os diversos estilos, no nível temático e formal, servem para expressar diferentes ideias. Desse modo, a opção por um soneto ou haicai diz muito sobre o projeto estético do autor. De todo modo, apesar da epocalidade desses estilos, sabemos que é possível escrevermos sonetos ingleses no século XXI, assim como havia versos livres e soltos no século XVIII. Além disso, entender a estrutura de um poema é o primeiro passo para analisarmos o poema, mas nosso olhar deve ir além da técnica. É com o exercício constante de poesia e crítica poética que afinamos nosso olhar como estudiosos de Letras. A poesia ao mesmo tempo que comove também põe medo, sempre parece difícil dizer algo inteligente sobre um poema, como se para isso fosse necessário entender o que o autor quis dizer. No entanto, esse pressuposto é equivocado, afinal após a publi- cação a obra ela já não pertence mais ao poeta, mas à comunidade de leitores e críticos que, juntos, constroem as leituras possíveis dessa obra. ATIVIDADES Atividade 1 Leia o haicai a seguir e analise-o de acordo com sua forma e conteúdo. Borboletas e aves agitam voo: nuvem de flores. Atividade 2 Analise o poema de Vinicius de Moraes levando em consideração o uso das figuras de linguagem e seu estilo formal. Soneto de fidelidade De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive) Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. Aspectos formais do poema 45 Atividade 3 De acordo com os traços que compõem um poema, analise for- malmente o seguinte poema de Baudelaire. A uma passante A rua ia gritando e eu ensurdecia. Alta, magra, de luto, dor tão majestosa, Passou uma mulher que, com mãos sumptuosas, Erguia e agitava a orla do vestido; Nobre e ágil, com pernas iguais a uma estátua. Crispado com um excêntrico, eu bebia, então, Nos seus olhos, céu plúmbeo onde nasce o tufão, A doçura que encanta e o prazer que mata. Um raio… e depois noite! – Efémera beldade Cujo olhar me fez renascer tão de súbito, Só te verei de novo na eternidade? Noutro lugar, bem longe! é tarde! talvez nunca! Porque não sabes onde vou, nem eu onde ias, Tu que eu teria amado, tu que bem sabias! REFERÊNCIAS AIRA, C. Pequeno manual de procedimentos. Curitiba: Arte & Letra, 2007. ALI, M. S. Versificação da língua portuguesa. São Paulo: Edusp, 2006. ALMEIDA, G. Encantamento, Acaso, Você. Campinas: EDUNICAMP, 2002. ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia. São Paulo: Cia das Letras, 2015. ANJOS, A. Eu e outras poesias. São Paulo: Lumme Editor, 2015. BANDEIRA, M. Antologia poética. São Paulo: Global editora, 2013. BILAC, O. Obra reunida. São Paulo: Nova Aguilar, 1997. BRASIL. Hino Nacional. Planalto, 2022. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituicao/hino.htm. 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Além disso, foi só com a imprensa que as obras passaram a ser publicadas em escalas maiores e tornar-se acessíveis aos leitores, que aumentaram graças à construção de colégios com a vinda da família real para a capital do país. A partir disso, estudamos neste capítulo os quatro movimentos ex- pressivos da literatura brasileira nos últimos quatro séculos – sob o ponto de vista da poesia –, entendendo a importância de cada um deles para a consolidação de um modelo contemporâneo de escrita poética. Começaremos pelo Arcadismo, conhecendo as suas características e seus precursores: Claudio Manuel da Costa e Tomás Antonio Gonzaga. Em seguida, abordaremos as três gerações românticas e suas características, a partir da análise de poemas de Gonçalves Dias, Aluísio Azevedo e Castro Alves. Depois, teremos o Parnasianismo, aprendendo suas características e refletindo sobre a discussão da ideia da arte pela arte, analisando poemas de Olavo Bilac e Alberto de Oliveira. Por fim, chegaremos ao Simbolismo, vendo suas aproximações com o Simbolismo francês a fim de perceber as semelhanças entre ambos ao analisar poemas de Cruz e Sousa. Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • conhecer as características do Arcadismo e seus precursores; • conhecer as três gerações românticas e suas características; • conhecer características do Parnasianismo e refletir sobre a dis- cussão da ideia da arte pela arte; • conhecer os pressupostos do Simbolismo no Brasil e compará-lo com o Simbolismo francês para perceber as semelhanças. Objetivos de aprendizagem Ta ni a An is im ov a de si gn /S hu tte rs to ck Ta ni a An is im ov a de si gn /S hu tte rs to ck 3.1 Arcadismo Vídeo O Arcadismo tem esse nome apenas no contexto da literatura brasi- leira. No restante do mundo, essa escola artística e literária é chamada de Neoclassicismo – ou Ilustração –, movimento que retoma ideias de be- leza das culturas grega e latina. São eles o culto à forma, à racionalidade, às proporções fixas, entre outros aspectos exaltados. Agregue-se a isso um desejo de evasão da realidade cotidiana devido ao crescimento das cidades, o que se demonstra em poemas cujos eu líricos exaltam a simpli- cidade da vida no campo e o bucolismo de modo idealizados. A temática pastoral opõe-se à vida urbana, sendo assim um espaço de evasão, onde seria possível recobrar a euforia de viver, mitigada pelo caos das cidades. Diferentemente do que estamos acostumados – ver a arte como criação de um gênio individual –, o Arcadismo busca o verossímil. Nas palavras de Alfredo Bosi (2015, p. 56), essa ideia, “herdada da poética renascentista, tem por fundamentos a noção de arte como cópia da natureza e a ideia de que tal mimese se pode fazer por graus”. A consciência da ficcionalidade permite um jogo mais livre com as personagens recorrentes desse estilo, que são os pastores, as pastoras e as mulheres da nobreza, inatingíveis aos eu líricos. Para Candido (2012), Neoclassicismo, Ilustração e Arcadismo imiscuem- -se e acabam sendo usados como sinônimos, embora o crítico afirme re- correr a Arcadismo por ser um termo menos carregado e mais afeito ao contexto brasileiro. Ainda segundo Candido (2012, p. 43), Ilustração é “o conjunto das tendências ideológicas próprias do século XVIII, de fonte in- glesa e francesa na maior parte: exaltação da natu- reza, divulgação apaixonada do saber, crença na melhoria da sociedade por seu intermédio, confiança na ação governamental para pro- mover a civilização e o bem-estar coletivo”. O Neoclassicismo, por sua vez, é oriundo de Portugal, que toma o termo de emprésti- mo da Espanha e da Inglaterra. Praticado pela arcádia lusitana (1756), o objetivo era “rede- finir a imitação direta dos gregos e roma- nos” (CANDIDO, 2012, p. 43). O Arcadismo opunha-se à dramaticidade e verborragia imiscuir: misturar-se, ligar-se, intrometer-se (PRIBERAM, 2022). Glossário 4848 Teoria da Literatura IITeoria da Literatura II Poesia brasileira dos séculos XVIII e XIX 49 barroca, marcada pelas inversões sintáticas, pelo excesso de adjetivos e pela retórica hermética. Os poetas árcades resgatam valores estéticos ine- rentes à prosa, como “clareza, ordem lógica, simplicidade, adequação ao pensamento. Esta reconquista da naturalidade dá feições de clássico ao período, pois se liga a uma estética segundo a qual a palavra deve exprimir a ordem natural do mundo e do espírito” (CANDIDO, 2012, p. 46). O excesso de racionalidade do arcadismo, crítico, suspeitoso em re- lação à ideia de “inspiração” ou “gênio criador”, fez dele um movimento polêmico. Vejamos algumas características da poesia árcade: Elementos da mitologia (ninfas) Exaltação da pureza, beleza, natureza e ingenuidade Eu lírico pastoral Ficcionalização consciente do eu lírico bucólico Rumdecor/Shutterstock O lirismo árcade traz uma lição dos modelos greco-romanos, inspirados nas obras de Virgílio. Tomando-os como modelos, evidencia-se o caráter de fingimento consciente do poeta árcade. Há a “despersonalização do lirismo, graças ao uso de temas e personagens antigos como veículo da emoção” (CANDIDO, 2012, p. 53). Se essa consciência da ficcionalização resolve a ques- tão de um moxo fixo e ideal, por outro lado, nas palavras de Candido (2012, p. 55), há “a perda da capacidade de observar diretamente a vida e uma visão algo superficial tanto da natureza exterior quanto humana”. 50 Teoria da Literatura II Cláudio Manuel da Costa foi nosso primeiro poeta árcade com a obra mais bem-acabada. Sua formação humanística e literária – sobre- tudo portuguesa e italiana – foi importante para os poemas que ele escreveu. A forma escolhida pelo poeta foi o soneto italiano – ou pe- trarquiano –, com dois quartetos e dois tercetos. Bosi (2015) aponta para a influência dos sonetos camonianos nos cancioneiros de Claudio Manuel da Costa (1966, p. 19). Vejamos o se- guinte exemplo em Soneto I. Para cantar de amor tenros cuidados, Tomo entre vós, ó montes, o instrumento; Ouvi pois o meu fúnebre lamento; Se é, que de compaixão sois animados: Já vós vistes, que aos ecos magoados Do trácio Orfeu parava o mesmo vento; Da lira de Anfião ao doce acento Se viram os rochedos abalados. Bem sei, que de outros gênios o Destino, Para cingir de Apolo a verde rama, Lhes influiu na lira estro divino: O canto, pois, que a minha voz derrama, Porqueao menos o entoa um peregrino, Se faz digno entre vós também de fama. A A A A B B B B C C C D D D A forma clássica do soneto, que é construído por dois quartetos seguidos de dois tercetos. As rimas, ao final de cada verso, são interpoladas, ou seja, o primeiro verso rima com o quarto e segundo com o terceiro. Evocam-se as figuras da mitologia grega, como Orfeu e Anfião, bem como Apolo, o deus do sol e das artes. Por sua vez, Tomás Antônio Gonzaga, assim como Cláudio Manuel da Costa, tomou parte da Inconfidência Mineira e tal fato é relevante para compreendermos uma de suas obras mais conhecidas, as Cartas chilenas, um poema satírico que criticava violentamente o governo co- lonial que explorava o povo e as riquezas do Estado. Essa obra foi escri- ta pouco antes de estourar a Inconfidência e circulava em manuscritos pela cidade de Vila Rica. Vejamos um exemplo a partir dos seguintes versos (GONZAGA, 1996, p. 72): Poesia brasileira dos séculos XVIII e XIX 51 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Versos escritos em decassílabos brancos, antecipando a tendência métrica que se consolidou no Romantismo. [...] [...] Presença de sinalefas , sendo elas um fenômeno em que há a queda da vogal devido a próxima palavra também se iniciar com uma, produzindo uma síntese entre as duas vogais. A / mi /go / Do / ro / teu, / pre / za / do A / mi / go, A / bre os / o / lhos, / bo /ce / ja, es / ten / de os / bra / ços, E / lim / pa / das / pes / ta / nas / car / re / ga / das O / pe /ga / jo / so hu / mor, / que o / so /no a / jun / ta. Cri / ti / lo, o / teu / Cri / ti / lo é / quem / te / cha / ma; Er / gue a / ca / be / ça / da en / go / ma / da / fro / nha. A / cor / da, / se ou / vir / que / res / cou / sas / ra / ras. Que / cou / sas, / (tu / di / rás), / que / cou / sas / po / des Con / tar, / que / va / lham / tan / to, / quan / to / va / le Dor / mir / a / noi / te / fri / a em / mo / le / ca / ma, Quan / do / sal / ta a / sa / rai / va / nos / te / lha / dos, E / quan / do o / Su / do / es / te, e os / ou / tros / ven / tos Mo / vem / dos / tron / cos / os / fron / do / sos / ra / mos? Outra obra muito famosa de Gonzaga é Marília de Dirceu. Trata-se de uma obra de teor biográfico, na qual Gonzaga relata seu idílio com a noiva Maria Doroteia Joaquina de Seixas Brandão, a quem chama em seus poemas de Marília. Na vida real, o casal não pode ficar junto: Marília tinha 18 anos e Tomás, 42. A família da jovem desaprovava o casamento devido à diferença de idade entre ambos. O casamento foi cancelado porque, no dia, Gonzaga é preso em decorrência da Inconfidência Minei- ra, sendo posteriormente exilado em Moçambique. 52 Teoria da Literatura II O longo poema divide-se em três partes: a primeira traz 33 liras 1 , cujos refrãos assemelham-se entre si; a segunda parte conta com 38 liras – pro- vavelmente escritas durante o período em que Gonzaga passou preso; a terceira e última parte tem 9 liras e 13 sonetos. A lira é um tipo de poema com forma fixa, composta por versos decassílabos e estrofes com cinco versos – uma quintilha. Além disso, a lira conta com rimas assonantes – ou seja, com a mesma terminação sonora – ao final de cada verso. Na primei- ra lira (GONZAGA, 2013, p. 11), encontramos os seguintes versos. Eu, Marília, não sou algum vaqueiro, Que viva de guardar alheio gado; De tosco trato, de expressões grosseiro, Dos frios gelos e dos sóis queimado. Tenho próprio casal e nele assisto; Dá-me vinho, legume, fruta, azeite; Das brancas ovelhinhas tiro o leite E mais as finas lãs, de que me visto. Graças, Marília bela, Graças à minha estrela! A A B B C C E E D D Nesta lira, é visto um conjunto de rimas: ABAB / CDDC / EE, com rimas pobres entre alguns versos. É possível entrever no poema alguns aspectos do Romantismo, como a idealização da mulher amada. Por nunca ter consumado seu amor com Marília, ela é endeusada constantemente, como no verso “Graças à minha estrela”. [...] Há alguns termos em latim que se tornaram recorrentes no contexto da poesia árcade: fugere urbem (fuga da cidade), carpe diem (aproveitar o dia), locus amoenus (paisagem ideal) e aurea mediocritas (espírito medíocre, mas medíocre, neste caso, não tem o significado que conhecemos, de algo desprezível, mas sim de medius, ou seja, mediano). A ideia de evasão da cidade tem justamente a ver com o início do processo de urbanização das cidades mais influentes economicamente. Como antídoto a isso, o poeta bucólico busca o lugar aprazível, que é o campo, onde encena a figura do pastor bucólico que vive no tempo da natureza, mais desacelerado. É nesse lugar, também, que ele se permite praticar a aurea mediocritas, vivendo uma vida simples e sem excessos. A ideia de que se vive apenas uma vez não deve ser entendida em seu senso comum, como sinônimo de aproveitar todas as oportunida- des e fazer tudo que nos aparece pela frente. Ao contrário, esse mote árcade remete à finitude da vida, ou seja, uma vez que a vida é breve, ela deve ser fruída com atenção e calma, dando atenção às pequenas coisas da vida, como as manifestações da natureza. Estrofe de cinco versos, sendo o segundo e o quinto decassílabos e os demais hexassílabos, com um esquema fixo de rimas consoantes. 1 O filme Os inconfidentes, é baseado nos Autos da Devassa em decorrência da Inconfidência Mineira, movimento cujo objetivo era a independência do Brasil. O longa retrata os precedentes da revolta, contando com membros do clero, intelectuais, escritores – entre eles Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa. O personagem principal é Tiradentes, o único que admitiu todos os seus atos, enquanto os demais esquivaram-se de qualquer responsa- bilidade, o que levou à morte do líder. Direção: Joaquim Pedro de Andrade. Brasil: Grupo Filmes, 1972. Filme Poesia brasileira dos séculos XVIII e XIX 53 3.2 Romantismo Vídeo O Romantismo foi um movimento literário que teve início na Inglaterra e no território onde hoje fica a Alemanha, no final do século XVIII. O movimento responsável pela difusão do Romantismo foi o Sturm und Drang – em portu- guês, tempestade e ímpeto –, entre as décadas de 1760 e 1780, na Alemanha. Segundo Ginsburg (2019), seus idealizadores iam contra a rigidez intelectual e estética proposta pelo Classicismo, movimento que precedeu o Romantismo. O Romantismo situa-se em um contexto sócio-histórico de grandes acontecimentos. Vemos a consolidação do capitalismo industrial, a insur- reição de movimentos populares – como a Primavera dos Povos –, a cons- tituição dos Estados-nações, o enfraquecimento da lógica cristã – na qual o divino regia os acontecimentos no mundo, e não a História e a sociedade. Nas palavras de Ginsburg (2019, p. 15): “O discurso histórico sofre mudan- ça revolucionária. Deixa de ser meramente descritivo e repetitivo, para se tornar basicamente tanto interpretativo quanto formativo, genético”. A Revolução Francesa certamente foi o episódio mais marcante do período. A deposição da monarquia e do clero em nome de um poder que se volta para a mão da burguesia e do povo foi um ponto de infle- xão que viria inspirar acontecimentos como a independência dos EUA, por exemplo, que, por sua vez, influenciaria a independência do Brasil. Nesse cadinho assoma-se também a nova concepção de sujeito, que se distancia da lógica cristã, guiada pela ideia de predestinação, e vai ao encontro da ideia de individuação. Ou seja, cada qual é livre e responsável pela própria vida, pois somos indivíduos singulares e úni- cos. Assim, nasce a figura do artista como um gênio, que recebe um dom inefável para executar com perfeição seu trabalho. Essa imagem torna o artista, ao mesmo tempo,um gênio e um pária so- cial. Segundo as diretrizes do capitalismo, em que você vale o que produz, o artista torna-se uma excrescência, ou seja, inútil. O valor da arte passa a ser questionado. Até aquela altura, os artistas eram em sua maioria financia- dos por mecenas, assegurando, assim, estabilidade financeira para produ- zirem sua arte. Com o fim da aristocracia, o artista precisa se sustentar de alguma forma, e nem sempre será com o fruto de sua arte autoral. No contexto brasileiro, o Romantismo coincide com a chegada da famí- lia real portuguesa e, na sequência, a independência do país. Foi no início cadinho: recipiente em material refratário usado em reações químicas e altas temperaturas (PRI- BERAM, 2022). Glossário do século XIX que se desenvolveu uma imprensa nacional, intensificando a publicação e circulação de livros, assim como o surgimento dos primeiros cursos superiores, que passariam a agregar grupos de escritores. 3.2.1 Os três momentos do Romantismo no Brasil A primeira vertente do Romantismo no Brasil tem caráter indianista e nacionalista. Como vimos, a independência de Portugal motivou a literatu- ra a forjar um caráter nacional por meio da arte. Era preciso forjar nosso herói nacional e, nesse sentido, nada mais evidente que os indígenas, po- vos originários de nosso território. Além disso, é neste momento que a crí- tica literária no Brasil se consolida, como observa Antonio Candido (2004). Desse período, destacam-se dois poetas: Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias. O primeiro é considerado nosso grande escritor após um marasmo literário que vinha desde o Arcadismo. Apesar da imagem idealizada do indígena em seus poemas, vemos neles uma beleza su- blime “porque construíram dele uma imagem arbitrária, que permitiu recolher no particular da realidade brasileira a força dos sentimentos e das emoções comuns a todos os homens” (CANDIDO, 2004, p. 21-22). Dentre suas obras, destacamos o poema heroico I-Juca Pirama, que narra sobre o prisioneiro de uma tribo inimiga que, contrariando o heroís- mo inflexível do índio convencional, se humilha para ter a vida salva, a fim de poder continuar guiando o pai cego. Mas este o maldiz por isso, e ele acaba lutando com denodo para tornar-se digno do sacri- fício ritual. O movimento do poema é expresso pela variação de me- tros e ritmos em diferentes combinações. (CANDIDO, 2004, p. 40) Vejamos a abertura do poema (MAGALHÃES, 2013, p. 72): No meio das tabas de amenos verdores, Cercadas de troncos — cobertos de flores, Alteiam-se os tetos d’altiva nação; São muitos seus filhos, nos ânimos fortes, Temíveis na guerra, que em densas coortes Assombram das matas a imensa extensão. O uso das aliterações em /t/ /r/ nos dão a sensação de pés batendo no chão, tal qual uma dança indígena ritual, na qual o compasso de batalha é posto dessa maneira. [...] O segundo poeta é Gonçalves Dias, o qual, por sua vez, Bosi (2015) considera diferente de seus demais contemporâneos devido à tradição lusitana, permeada por lirismo, na qual ele se apoia, diferenciando-o dos demais, que optam por referências francesas. marasmo: ausência de atividade ou de acon- tecimentos relevantes (PRIBERAM, 2022). Glossário Da pi ta rt/ Sh ut te rs to ck 5454 Teoria da Literatura IITeoria da Literatura II OK -S AN A/ Sh ut te rs to ck OK -S AN A/ Sh ut te rs to ck Seu poema indianista mais importante é Os timbiras, poema épico escrito em 1856 e cujo objetivo era igualar-se a Os Lusíadas. O poema destaca feitos heroicos do povo timbira, pintado de maneira idealizada e heroica. Dias usa versos brancos – ou seja, sem rimas – e diversas expressões na língua tupi. Além disso, seu poema mais conhecido é Canção do exílio (DIAS, 2012, p. 91). O eu lírico encontra-se distante de sua terra natal – no caso, o Brasil – e sente saudades dela ao compará-la com o lugar onde está – nesse caso, Portugal. O eu lírico exalta as belezas naturais de sua terra natal – Brasil. Canção do exílio Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar – sozinho – à noite – Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras; Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar – sozinho – à noite – Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que eu desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu’inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá. Poesia brasileira dos séculos XVIII e XIXPoesia brasileira dos séculos XVIII e XIX 5555 O segundo momento do Romantismo é chamado de Ultrarromantis- mo. Segundo Candido (2004), a maioria dos poetas eram extremamen- te jovens e muitos deles morreram precocemente. O ultra que figura como prefixo refere-se a um exagero nas características do Romantis- mo. Se a idealização é uma tônica do período, os jovens poetas aqui vão exagerá-la de modo doloroso e melancólico, sobretudo por meio da idealização da mulher amada e inatingível. Há um foco absoluto no eu lírico, demonstrando como a individualidade era um aspecto importante. Além disso, há um desdém para com hierar- quias, como aquelas representadas pela Pátria, Igreja e Tradição. Segundo Bosi (2015), Álvares de Azevedo foi o melhor poeta desse momento român- tico. Sua obra caracteriza-se pela exploração do sonho e o desejo de evasão da realidade. O objetivo é evocar atmosferas, ora mórbidas, ora sensuais. No que diz respeito a aspectos formais, Candido (2004, p. 47) afirma que “é o momento de avanço da musicalidade no verso; quanto aos te- mas, manifesta-se pouco interesse pelo patriotismo ornamental e pelo indianismo, permanecendo vivo o sentimento da natureza e surgindo a atração pela morte”. Isso fica evidente no poema de Azevedo (2015, p. 119), Se eu morresse amanhã, escrito em seu leito de morte, após um acidente sofrido durante um passeio a cavalo. Se eu morresse amanhã, viria ao menos Fechar meus olhos minha triste irmã; Minha mãe de saudades morreria Se eu morresse amanhã! Quanta glória pressinto em meu futuro! Que aurora de porvir e que manhã! Eu perdera chorando essas coroas Se eu morresse amanhã! Que sol! que céu azul! que doce n’alva Acorda a natureza mais louçã! Não me batera tanto amor no peito Se eu morresse amanhã! Mas essa dor da vida que devora A ânsia de glória, o dolorido afã… A dor no peito emudecera ao menos Se eu morresse amanhã! ar vit al ya ar t/ Sh ut te rs to ck O caráter mórbido evidencia-se na repetição contínua do verso que dá título ao poema. A conjunção condicional se evidencia apenas um flerte com a própria morte, um vislumbre daquele que deseja saber o que ocorreria no mundo sem sua presença. 5656 Teoria da Literatura IITeoria da Literatura II Poesia brasileira dos séculos XVIII e XIX 57 Outro poeta singular do período foi Casimiro de Abreu. Segundo Bosi (2015), Abreu destoa dos demais românticos devido a uma desci- da de tom no que diz respeito ao uso da linguagem – singela e objetiva – e dos assuntos – saudade, ternura e natureza. No nível formal, “Casimiro desdenha o verso branco e o soneto, pre- fere a estrofe regular, que melhor transmite a cadência da inspiração doce e meiga” (CANDIDO, 2012, p. 511-512). Exemplo disso é seu mais conhecido poema, Meu oitos anos (ABREU, 2010, p. 34): Oh! / que / sau / da / des / que / te / nho Da au / ro / ra / da / mi / nha / vi / da, Da / mi / nha in / fân / cia / que / ri / da Que os / a / nos / não / tra / zem / mais! Que a / mor, / que / so / nhos, / que / flo / res, Na / que / las / tar / des / fa / guei / ras À / som / bra / das / ba / na / nei / ras, De / bai / xo / dos / la / ran / jais! 1 2 3 4 5 6 7 1 2 3 4 5 6 7 1 2 3 4 5 6 7 1 2 3 4 5 6 7 1 2 3 4 5 6 7 1 2 3 4 5 6 7 1 2 3 4 5 6 7 1 2 3 4 5 6 7 A métricado poema é fixa, em redondilhas maiores, ou seja, versos com sete sílabas poéticas. A escolha visa facilitar o processo mnemônico do poema, ressaltando a sua musicalidade. A temática da infância idealizada é o ponto fulcral do poema, repleto de pontos de exclamação que acentuam a dramaticidade do eu lírico. [...] Não há um esquema fixo de rimas, ou seja, faz-se o uso do verso solto, característico do Romantismo, que vai contra os modelos clássicos prescritivos. A B B C C E E D O terceiro momento do Romantismo é chamado de Condoreirismo. Seus poetas eram em sua maioria abolicionistas e tratavam de temáticas ligadas aos horrores da escravização e poemas libertários. Nesse momento, a preo- cupação com o contexto social agudizou-se, distanciando-se, assim, dos dois momentos românticos, alheios à realidade ou entusiastas das idealizações. Segundo Candido (2012), o grande poeta desse período foi, sem dúvida, Castro Alves. Ele está para a temática dos escravizados assim como Gonçal- ves Dias está para temas indianistas. Com Castro Alves, dá-se um movimen- to de superação da dicção romântica de até então – pautada pelos exageros e dramas individuais. O drama que interessa a Alves é o da própria condição humana como vítima dos acontecimentos sócio-históricos que a circundam. Segundo Ramos (2005), Castro Alves foi o último expoente do movi- mento romântico no Brasil. Depois dele, seguiram-se apenas poetas que A geração condoreira – ou Condoreirismo – tem esse nome por causa da forte influência recebida pelo poeta francês Victor Hugo, que escolheu o condor como símbolo de liberda- de. É uma ave nativa da Cordilheira dos Andes – curiosamente, um animal típico da América do Sul – que consegue sobrevoar grandes altitudes. Saiba mais 58 Teoria da Literatura II imitavam o seu estilo, sem acrescentar nada de novo no nível formal. Em Alves vislumbram-se aspectos do Parnasianismo, que daria a tônica no fazer poético a partir de 1870. Se em Álvares de Azevedo vemos um flerte com a morte, em Castro Alves revela-se um imenso gosto pela vida, como nos mostra o poema Mocidade e Morte (ALVES, 2005, p. 89). Oh! / Eu / que / ro / vi / ver, / be / ber / per / fu / mes Na / flor / sil / ves / tre, / que em / bal / sa / ma os / a / res; Ver / mi / nh’al / ma a / de / jar / pe / lo in / fi / ni / to, Qual / bran / ca / ve / la / n’am / pli / dão / dos / ma / res. No / sei / o / da / mu / lher / há / tan / to a / ro / ma... Nos / seus / bei / jos / de / fo / go há / tan / ta / vi / da... O poema dispõe de uma métrica clássica fixa, os decassílabos heroicos – acentuados na sexta e na décima sílabas poéticas. As rimas não são obrigatórias, mas quando ocorrem são assonantes, ao final dos versos, como em ares e mares. As reticências indicam um momento de pausa e reflexão, sendo elas uma marca recorrente no Parnasianismo, e o uso das exclamativas reforça o caráter dramático do poema – Castro Alves também escreveu peças de teatro. [...] A B B C E D 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 1 2 2 3 3 4 4 5 5 6 6 7 7 8 8 9 9 10 10 No entanto, certamente seu poema mais conhecido é Navio negreiro, que faz parte de um poema épico mais extenso, chamado Os escravos. O poema retrata e denuncia com crueza a situação dos povos africanos trazidos à força para o Brasil pelos colonizadores portugueses que os vendiam como escravos. O poema é dividido em seis partes e conta com uma métrica in- definida e versos brancos, ou seja, sem rimas evidentes. A opção por esse estilo formal possibilita uma maior amplitude de efeitos sonoros e estéticos pretendidos pelo poeta. Na primeira e segunda partes, o eu lírico avista a navegação à distância sem saber aonde ia e ouve dela um canto. Na terceira parte, por meio do olhar de um albatroz, o eu lírico percebe que o canto era de sofrimento. Assim, percebemos como Castro Alves conjuga talento poético no nível formal e conteudístico ao tratar de um tema social relevante à época, que era a abolição da escravidão no Brasil, e ao falar sobre a liberdade, imagem cara ao movimento abolicionista. No curta-metragem homônimo ao poema, o renomado cineasta bra- sileiro, Humberto Mauro, faz uma adaptação do poema Meus oito anos, do poeta Casimiro de Abreu. O poema é musicado e temos como personagem principal um homem adulto que se lembra, com nostalgia, da sua infância. A ideia do curta- -metragem é apresentar uma outra versão – visual e musicada – de um dos poemas mais conhecidos da literatura brasileira. Direção: Humberto Mauro. Brasil: Instituto Nacional de Cinema Educativo. Rio de Janeiro, 1956. Filme 3.3 Parnasianismo Vídeo O Parnasianismo foi um movimento literário que ocorreu apenas na poesia. Podemos aproximá-lo do Realismo – cujas obras são todas em prosa, especialmente em romances. Ambos movimentos vieram como uma resposta ao excesso de subjetividade e – na palavra dos parnasia- nos ortodoxos – à escrita “desleixada” dos românticos. Se o Realismo é marcado pela escrita objetiva e pelo desejo de retratar a realidade social, o Parnasianismo quer a síntese poética por meio do uso de formas fixas, como o soneto, e falar sobre coisas concretas, como ob- jetos ligados ao universo Clássico – por exemplo, vasos, estátuas e demais peças arquitetônicas. Segundo Bosi (2015), o marco do Parnasianismo foi a publicação do livro Fanfarras, de 1882, escrito pelo poeta Teófilo Dias. Podemos listar algumas características do Parnasianismo, como: des- crição lapidar (mimese pela mimese), impessoalidade diante dos assuntos e objetos tratados, gosto pelas formas tradicionais, como o soneto, marca- das por métricas e rimas (ricas, raras e preciosas) e o lema “arte pela arte”, segundo o qual o poema não precisava voltar-se ao mundo exterior para ser compreendido, seu significado encerrava-se em si mesmo. Dos seus poetas, destacam-se dois nomes importantes. O primei- ro deles é Alberto de Oliveira. Seus poemas pretendiam uma inflexão poética em reação ao Romantismo: ao invés de focar em imagens sub- jetivas, agora era o momento de valorizar a visão do real. A predileção de Oliveira por objetos, sobretudo os vasos, reforça uma “arte sobre a arte” (BOSI, 2015, p. 221). A partir disso, o poema é, ao mesmo tempo, sua forma e conteúdo, ambos ambicionando a perfeição. Vejamos um exemplo disso em Vaso chinês (OLIVEIRA, 2007, p. 72): O nome da escola par- nasiana remete às suas origens francesas. Isso mesmo! O Parnasianismo é um movimento literário francês e seus primeiros poetas foram publicados em coletâneas da revista Le Parnasse Contemporain. O nome do periódico evoca o Monte Parnaso, na Grécia, onde ficava a antiga cidade de Delfos, morada do deus Apolo e de suas nove musas, entre elas Calíope, musa da poesia épica. Saiba mais Estranho mimo aquele vaso! Vi-o, Casualmente, uma vez, de um perfurmado Contador sobre o mármor luzidio, Entre um leque e o começo bordado. Fino artista chinês, enamorado, Nele pusera o coração doentio Em rubras flores de um sutil lavrado, Na tinta ardente de um calor sombrio. O poema adota a forma de soneto, com um esquema de rimas ABAB / BABA. Há o uso de rimas raras, que aproximam palavras de diferentes classes gramaticais e campos semânticos, gerando uma sonoridade mais evidente quando lida em voz alta. É o que acontece em Vi-o e luzidio. Há o uso de vocábulos refinados, como rubras ao invés de vermelhas. Ou, ainda, mármor no lugar de mármore. [...] A A A A B B B B Poesia brasileira dos séculos XVIII e XIXPoesia brasileira dos séculos XVIII e XIX 5959 60 Teoria da Literatura II O segundo poeta – provavelmente o mais conhecido – é Olavo Bilac. Segundo Bosi (2015, p. 227), um dos grandes trunfos de Bilac era “dizer com fluência as coisas mais díspares, que o tocam de leve, mas o bas- tante para se fazerem, em suas mãos, literatura”. Tomando tais assuntos como ensejos paraexercícios literários, ele falava de modo eloquente sobre índios, guerras, fazer poético e episódios da tradição greco-latina. No livro Via Láctea há um de seus mais famosos e lapidares sonetos, o de número XIII (BILAC, 1996, p. 151). Pertencente à primeira fase da obra de Bilac, o poema ainda carrega consigo laivos de lirismo e um eu lírico que se permite comover diante do leitor. Vejamos o poema para melhor enxergarmos os aspectos formais dele: “Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, pálido de espanto... E conversamos toda a noite, enquanto A via-láctea, como um pálio aberto, Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro pelo céu deserto. Direis agora: “Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem, quando estão contigo?” E eu vos direi: “Amai para entendê-las!” Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas. A A A A B B B B C C E E D D A forma clássica do soneto mantém-se: dois quartetos e dois tercetos, com esquemas de rimas, respectivamente: ABAB / BABA / CDC / EDE. Há a presença das rimas ricas, entre classes gramaticais diferentes, como em amigo (substantivo) e contigo (pronome). O eu lírico não lança mão de uma comoção à moda romântica. Pelo contrário, aqui prevalece a abstração – o eu lírico conversa com as estrelas. Há o uso da chave de ouro – o verso final do soneto onde se encerra a sua ideia central. Percebemos que o Parnasianismo de Bilac, diferentemente de seu colega de geração, Alberto de Oliveira, permite-se uma conjugação en- tre um eu lírico que experimenta o mundo ao mesmo tempo que vai fazê-lo por meio do uso ostensivo da norma culta. O livro Bilac vê estrelas marca a estreia do biógrafo e jornalista Ruy Castro na ficção em prosa. Nesse romance vemos a ficcionalização fantasiosa do poeta Olavo Bilac e demais personagens his- tóricas do Rio de Janeiro à época, como José do Patrocínio e o aviador Santos Dumont. CASTRO, R. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. Livro Poesia brasileira dos séculos XVIII e XIX 61 3.4 Simbolismo Vídeo Assim como o Parnasianismo, o Simbolismo teve origem na França e manifestou-se apenas na poesia, sem correspondente em prosa. Segun- do Bosi (2015), o Simbolismo é uma reação ao excesso de cientificismo e racionalismo nas letras. Seu contramovimento é integrar a poesia ao transcendental, adquirindo assim um certo caráter místico. Movimento se- melhante foi visto durante o Romantismo, que reagiu ao rigor neoclássico. Os dois movimentos – Simbolismo e Romantismo – “exprimem o desgosto das soluções racionalistas e mecânicas”, assim como “recu- sam a limitar a arte ao objeto, à técnica de produzi-lo”. Além disso, “es- peram ir além do empírico e tocar, com a sonda da poesia, um fundo comum que susteria os fenômenos” (BOSI, 2015, p. 263). O Simbolismo recebe esse nome por causa de um poema de Baudelaire (2013, p. 93) chamado Correspondências. A natureza é um templo onde vivos pilares Podem deixar ouvir confusas vozes: e estas Fazem o homem passar através de florestas De símbolos que o veem com olhos familiares. Como os ecos do além confundem os rumores Na mais profunda e tenebrosa unidade, Tão vasta como a noite e como a claridade Harmonizam-se os sons, os perfumes e as cores. Há perfumes frescos como carnes de criança Doces como oboés, ou verdes como as campinas. E outros, corrompidos, mas ricos e triunfantes Que possuem a efusão das coisas infinitas Como o sândalo, o almíscar, o benjoim e o incenso, Que cantam o êxtase, do espírito e dos sentidos. O espaço das florestas é permeado por simbologias passíveis de experimentação através dos sentidos (sons, perfumes e cores). No contexto europeu, o Simbolismo funciona como um desejo de evasão de um mundo que se industrializa e individualiza-se cada vez mais rápido, sendo a poesia um dos poucos refúgios para os artistas que foram deixados à margem desse processo de explosão econômi- 62 Teoria da Literatura II ca. Por isso, os simbolistas também são chamados de decadentistas por- que eles “voltavam as costas ao prestígio das realidades ‘positivas’ e se apoiavam em uma fé puramente verbal, em uma liturgia magramente literária, enfim, numa ‘oração’ veleitária e narcisista” (BOSI, 2015, p. 266). Já no contexto brasileiro, Bosi (2015) afirma que o Simbolismo é uma continuação do Parnasianismo, pelo menos no que tange ao nível técnico. Além disso, o crítico sublinha que a escola não teve no Brasil a mesma relevância que no contexto europeu. Uma vez que o país era afeito aos moldes realistas, um movimento que se recusava a ver o entorno social conflituoso não teve muito apelo. O simbolista brasileiro mais importante foi Cruz e Sousa. Ele inaugu- rou o movimento com seu livro de poemas Broquéis (1893). Diferente- mente dos demais poetas que viemos comentando até aqui, ele tinha pais que foram escravizados e foi apenas graças a um tutor que adquiriu educação formal. Todavia, cedo o tutor faleceu e Cruz e Sousa passou a se desdobrar em mil para prover seu sustento e o da família. Morreu aos 36 anos, de tuberculose, em 1898. Sua obra foi reconhecida apenas postumamente, já no século XX, pelo sociólogo francês Roger Bastide. Assim como os parnasianos, Cruz e Sousa tematizou o sofrimento do poeta diante de seu leitor no poema Acrobata da dor (CRUZ E SOUSA, 2008, p. 413). O acrobata em questão encena, ao mesmo tempo, o palhaço e o próprio poeta, que dá o seu melhor – com “macabras piruetas d’aço” – por uma escrita perfeita a um público que lhe exige cada vez mais. O uso de vocábulos requintados é uma tônica do Simbolismo, assim como do Parnasianismo. Neste poema temos: gravoche (do francês, que em português é zombeteiro), estertor (respiração pesada) e estuoso (ardente). Nos versos cinco e seis há o uso da figura de linguagem hipérbato, que é a inversão da ordem sintática tradicional no português: sujeito + verbo + complemento. Gargalha, ri, num riso de tormenta, como um palhaço, que desengonçado, nervoso, ri, num riso absurdo, inflado de uma ironia e de uma dor violenta Da gargalhada atroz, sanguinolenta, agita os guizos, e convulsionado salta, gavroche, salta, clown, varado pelo estertor dessa agonia lenta... pedem-te bis e um bis não se despreza! vamos! retesa os músculos, retesa nessas macabras piruetas d’aço... E embora caias sobre o chão, fremente afogado em teu sangue estuoso e quente ri,! Coração, tristíssimo palhaço. O filme Cruz e Sousa: o poe- ta do desterro ficcionaliza a vida do poeta simbolista Cruz e Sousa. A ação se passa no Rio de Janeiro, no momento em que ele conhece e se apaixona por Gavita, mulher que trabalhava no teatro. Ela passa a ser uma fonte de inspiração para o poeta, que ao mesmo tempo se vê às voltas com uma sociedade racista e elitista. Por ser negro, tem seu ingresso na Academia Brasileira de Letras (ABL) vetado. Vemos, ainda, o final triste de Cruz e Sousa, acometido por uma tu- berculose e sem recursos financeiros para tratá-la. Direção: Sylvio Back. Brasil: RioFilme, 1998. Filme Poesia brasileira dos séculos XVIII e XIX 63 Outro poeta que merece destaque no período é o mineiro Alphonsus de Guimaraens. Sua poesia pode ser vista como a mais simbolista de todas, pois é carregada de uma aura religiosa permeada por símbolos cristãos, como anjos, santos, Jesus, entre outros. Apesar disso, como aponta Bosi (2015), Guimaraens também é lido pela crítica como um neorromântico, pois uma das temáticas centrais de sua obra é a mu- lher amada e inacessível, bem como a morte e a solidão. Diferente- mente de Cruz e Sousa, o vocabulário de Guimaraens é mais acessível e sintético, além de não haver presença de rimas raras ou preciosas. Todavia, o eu lírico vai encarar essas questões de modo resiliente e não dramático, como vemos em Álvares de Azevedo. Um de seus poemas mais famosos é Ismália(GUIMARAENS, 2001, p. 85). O poema, cujo eu lírico põe-se a narrar o destino de Ismália, é pon- tuado por temas caros ao poeta: a dualidade corpo e alma, religiosidade, elementos da natureza e a loucura, como visão deturpada de mundo. Em- bora isso não esteja no poema, supõe-se que Ismália – cuja etimologia de seu nome, do grego, é desejo de amar – suicida-se devido a uma decepção amorosa. Vejamos o poema para destacarmos outros aspectos dele. Quando Ismália enlouqueceu, Pôs-se na torre a sonhar… Viu uma lua no céu, Viu outra lua no mar. No sonho em que se perdeu, Banhou-se toda em luar… Queria subir ao céu, Queria descer ao mar… E, no desvario seu, Na torre pôs-se a cantar… Estava perto do céu, Estava longe do mar… E como um anjo pendeu As asas para voar… Queria a lua do céu, Queria a lua do mar… O poeta permite-se a liberdade de abandonar a forma soneto e compõe o poema em cinco estrofes com quatro versos cada. Há a recorrência de assonâncias, como em “Queria a lua do mar” e “As asas para voar”, com a recorrência da vogal /a/, intensificando a musicalidade do poema. (Continua) 64 Teoria da Literatura II As asas que Deus lhe deu Ruflaram de par em par… Sua alma subiu ao céu, Seu corpo desceu ao mar… O poeta permite-se a liberdade de abandonar a forma soneto e compõe o poema em cinco estrofes com quatro versos cada. CONSIDERAÇÕES FINAIS A noção de escolas literárias está entranhada em nossas memórias esco- lares. A organização linear dos períodos que tratamos aqui – Arcadismo, Ro- mantismo, Parnasianismo e Simbolismo – deve-se a uma escolha pragmática: facilitar o entendimento dos alunos. Todavia, nós, professores de Literatura Bra- sileira, não podemos perder de vista o que há de artificial nessa categorização. É preciso fazer com que os alunos percebam a simultaneidade entre os períodos, ou seja, enquanto havia poetas escrevendo no estilo simbolista, também havia poetas românticos. Isso quer dizer que não há um momento específico na história cronológica que podemos precisar como o começo e o fim de um momento literário. O que há são tendências. Por isso que mesmo nos anos 1940 ainda havia no Brasil poetas escrevendo junto aos moldes parnasianos, por mais anacrônico que isso possa parecer. Nesse sentido, cabe problematizar a ideia de um cânone. Ora, as obras mais importantes de cada período literário são escolhidas por aqueles que detêm algum tipo de poder simbólico: acadêmicos, críticos literários, beletristas. Todavia, essa é uma construção artificial. Atualmente, assis- timos a um grande trabalho conjunto de resgate de poetas do passado que ficaram marginalizados por não obedecerem ao cânone da época, geralmente machista, racista e elitista. ATIVIDADES Atividade 1 Leia o poema Amor de Álvares de Azevedo e, a partir dele, identi- fique a qual momento literário pertence. Em seguida, proceda a uma análise formal e conteudística desse poema. Amor Amemos! quero de amor Viver no teu coração! Sofrer e amar essa dor Que desmaia de paixão! (Continua) Poesia brasileira dos séculos XVIII e XIX 65 Na tu’alma, em teus encantos E na tua palidez E nos teus ardentes prantos Suspirar de languidez! Quero em teus lábios beber Os teus amores do céu! Quero em teu seio morrer No enlevo do seio teu! Quero viver d’esperança! Quero tremer e sentir! Na tua cheirosa trança Quero sonhar e dormir! Vem, anjo, minha donzela, Minh’alma, meu coração... Que noite! que noite bela! Como é doce a viração! E entre os suspiros do vento, Da noite ao mole frescor, Quero viver um momento, Morrer contigo de amor! Atividade 2 Compare os poemas, Livre, de Cruz e Sousa, e Língua Portuguesa, de Olavo Bilac, identificando seus pontos de aproximação e suas diferenças. Justifique sua resposta. Livre Livre! Ser livre da matéria escrava, arrancar os grilhões que nos flagelam e livre penetrar nos Dons que selam a alma e lhe emprestam toda a etérea lava. Livre da humana, da terrestre bava dos corações daninhos que regelam, quando os nossos sentidos se rebelam contra a Infâmia bifronte que deprava. Livre! bem livre para andar mais puro, mais junto à Natureza e mais seguro do seu Amor, de todas as justiças. Livre! para sentir a Natureza, para gozar, na universal Grandeza, Fecundas e arcangélicas preguiças. Língua Portuguesa Última flor do Lácio, inculta e bela, És, a um tempo, esplendor e sepultura: Ouro nativo, que na ganga impura A bruta mina entre os cascalhos vela… Amo-te assim, desconhecida e obscura, Tuba de alto clangor, lira singela, Que tens o trom e o silvo da procela E o arrolo da saudade e da ternura! Amo o teu viço agreste e o teu aroma De virgens selvas e de oceano largo! Amo-te, ó rude e doloroso idioma, Em que da voz materna ouvi: “meu filho!” E em que Camões chorou, no exílio amargo, O gênio sem ventura e o amor sem brilho! 66 Teoria da Literatura II Atividade 3 Leia o poema Lira II de Tomás Antônio Gonzaga e analise-o de acordo com seu contexto de produção. Atente, ainda, para os aspectos formais do poema. Lira II Esprema a vil calúnia muito embora Entre as mãos denegridas, e insolentes, Os venenos das plantas, E das bravas serpentes. Chovam raios e raios, no meu rosto Não hás de ver, Marília, o medo escrito: O medo perturbador, Que infunde o vil delito. Podem muito, conheço, podem muito, As fúrias infernais, que Pluto move; Mas pode mais que todas Um dedo só de Jove. Este Deus converteu em flor mimosa, A quem seu nome dera a Narciso; Fez de muitos os Astros, Qu’inda no Céu diviso. Ele pode livrar-me das injúrias Do néscio, do atrevido ingrato povo; Em nova flor mudar-me, Mudar-me em Astro novo. Porém se os justos Céus, por fins ocultos, Em tão tirano mal me não socorrem; Verás então, que os sábios, Bem como vivem, morrem. Eu tenho um coração maior que o mundo! Tu, formosa Marília, bem o sabes: Um coração..., e basta, Onde tu mesma cabes. REFERÊNCIAS ABREU, C. Obra completa. Rio de Janeiro: G. Ermakoff, 2010. ALVES, C. Espumas flutuantes. 5. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005. AZEVEDO, A. Melhores poemas de Álvares de Azevedo. São Paulo: Global, 2015. BAUDELAIRE, C. As flores do mal. São Paulo: Cia. das Letras, 2013. BILAC, O. Poesias. São Paulo: Martins Pontes, 1996. BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. 50. ed. São Paulo: Cultrix, 2015. CANDIDO, A. O Romantismo no Brasil. 2. ed. São Paulo: Humanitas, 2004. CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 13. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2012. COSTA, C. M. Poemas. São Paulo: Cultrix, 1966. Poesia brasileira dos séculos XVIII e XIX 67 CRUZ E SOUSA, J. Obra completa: poesia. Jaraguá do Sul: Avenida Gráfica e Editora, 2008. v. I. DIAS, G. I-Juca Pirama: os Timbiras e outros poemas. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2012. GINSBURG, J. O Romantismo. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019. GONZAGA, T. A. Cartas chilenas. São Paulo: Cia. das Letras, 1996. GONZAGA, T. A. Marília de Dirceu. São Paulo: DCL, 2013. GUIMARAENS, A. Melhores poemas de Alphonsus de Guimaraens. 4. ed. São Paulo: Global, 2001. MAGALHÃES, G. Gonçalves de Magalhães. Brasília: Imprensa Oficial, 2013. (Série Essencial). OLIVEIRA, A. Melhores Poemas Alberto de Oliveira. São Paulo: Global, 2007. RAMOS, J. P. Espumas revisitadas. In: ALVES, C. Espumas flutuantes. 5. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005. (Apresentação). 68 Teoria da Literatura II 4 Poesia brasileira dos séculos XX e XXI A poesia do século XX vem para quebrar paradigmas e refundar as bases do que consideramos como um poema. No contexto europeu, surgem diversas vanguardas artísticas com ímpeto disruptivo, inclusive reverberando no Brasil. São elas o Expressionismo de Anita Malfatti e Edvard Munch, o Surrealismo de Salvador Dalí, o Dadaísmo de Marcel Duchamp e o Cubismo de Guillaume Apollinaire. Cada uma delas, à sua maneira, incorporou um novo aspecto e ponto de vista diante do que era considerado arte, além de questionar sua utilidade. Essas correntes, que se manifestaram em diferentes campos, influenciaramo mundo in- teiro, inclusive o Brasil. Por conta disso, exploramos desdobramentos dessas mudanças no contexto da poesia brasileira. Começamos com as poéticas de vanguarda, da famosa Semana de 1922 em São Paulo, cujos poetas principais são Oswald de Andrade, Mario de Andrade e Raul Bopp. Em seguida, passa- mos para o Concretismo, corrente poética dos anos 1950 cujo foco são os poemas visuais. A partir dele, nos detemos na análise das obras de Augusto e Haroldo de Campos. Na sequência, tratamos da Geração Marginal, movimento dos anos 1960 e 1970, cujos poetas eram jovens e divulgavam suas obras por meio de edições artesanais, vendidas de modo independente. Vemos como eles se aproximam de algumas premissas do Modernismo de 1922 a par- tir da análise de poetas como Paulo Leminski, Ana Cristina Cesar e Cacaso. Por fim, damos um pulo para o século XXI, com o objetivo de estudar suas tendências, vertentes e usos das técnicas. Para isso, analisamos poe- mas de Arnaldo Antunes e Tatiana Pequeno. Poesia brasileira dos séculos XX e XXI 69 Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • conhecer a poesia das vanguardas; • compreender a poesia concreta e a sua estética; • conhecer a poesia dos anos 1960-1970 e seus principais representantes; • conhecer a poesia contemporânea e suas tendências. Objetivos de aprendizagem 4.1 Modernismo Vídeo O Modernismo deve ser visto, antes de mais nada, sob o escopo de sua multiplicidade. Ele se manifestou em diversas correntes no início do século XX – Futurismo, Dadaísmo, Cubismo, Surrealismo e Expressionismo – e por meio de distintas manifestações artísticas – lite- ratura, cinema, artes plásticas, música, entre outras. Mesmo sob essas influências, o Modernismo no Brasil deu-se de modo singular, aclima- tando-se segundo nossas demandas e realidade local. Segundo Schwartz (2008), o Modernismo brasileiro é inaugurado com a exposição de pintura de Anita Malfatti, em 1917. Após temporada na Europa, a pintora volta com quadros influenciados pelo Expressionismo alemão e tem uma recepção negativa dos críticos de arte da época. A mais famosa crítica sobre o trabalho de Malfatti é a de Lobato (2023), em um texto chamado Paranoia ou mistificação, publicado no mesmo ano. O argumento de Lobato é de que as telas de Malfatti eram fruto de um estado de consciência alterado – paranoicas –, inteligíveis ape- nas para quem tem um perfil psicótico. Com isso, o autor patologiza a arte moderna, em defesa de um conceito clássico sobre o belo. A mistificação fica por conta da apreciação desses quadros fora do am- biente dos hospícios. Quem os julga belos estão mistificando algo que sequer tem valor artístico. nu vo la ne vic at a/ Sh ut te rs to ck Essa anedota é importante para compreendermos o choque que as novas tendências de vanguarda provocaram no meio artístico do Brasil, ainda muito conservador e apegado à doutrina parnasiana. No campo literário a consolidação modernista vem com Paulicéia desvairada, de Mário de Andrade, publicada em 1922. O prefácio dessa obra – deno- minado Prefácio interessantíssimo – traz uma espécie de manifesto, sob o nome de desvairismo. Por sua vez, Andrade (2013, p. 59-60) relata: “Quando sinto a impul- são lírica escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escre- vi [...] Maomé apresentava-se como profeta; julguei mais conveniente apresentar-me como louco”. Ou seja, o projeto estético do livro é deixar-se levar pelo inconscien- te – o que revela a influência que o psicanalista alemão Sigmund Freud exerceu sobre Andrade. Por sua vez, o mote da loucura – “julguei mais conveniente apresentar-me como louco” (ANDRADE, 2013, p. 9) – faz ace- no jocoso à apreciação negativa de Lobato aos quadros de Malfatti. Se no Modernismo tudo parecia difuso e incompreensível, Andrade, por sua vez, propôs-se a tarefa de dar sentido ao não sentido. Um dos poemas mais importantes de Paulicéia desvairada é Ode ao burguês (ANDRADE, 2013, p. 87), conforme analisamos a seguir. Eu insulto o burguês! O burguês-níquel, O burguês-burguês! A digestão bem-feita de São Paulo! O homem-curva! o homem-nádegas! O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, é sempre um cauteloso pouco-a-pouco! [...] No nível formal, há a presença de versos livres (sem uma métrica exata) e ausência de rimas assonantes (sem repetição de sons vocálicos), sendo esses traços característicos da poesia moderna. O eu lírico exorta a figura do burguês, que não apenas detinha o capital – “o burguês níquel” – e explorava uma massa de trabalhadores, como também era responsável pela manutenção de um padrão de estética antiquado, nada afeito à novidade. 7070 Teoria da Literatura IITeoria da Literatura II Poesia brasileira dos séculos XX e XXI 71 Mário de Andrade desenvolve um gosto pela pesquisa cultural sobre o Brasil. Em suas duas viagens mais importantes – uma ao Nordeste e outra ao Norte –, o poeta procede a um estudo etnológico 1 dos bra- sileiros dessas regiões, compilado no volume O turista aprendiz publi- cado em 1927. Essa empreitada faz parte do projeto estético de cunho nacionalista empreendido por Mário de Andrade. Um dos poemas em que expressa esse desejo por unificação do povo brasileiro está em Eu sou trezentos... (ANDRADE, 2013, p. 295). Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta, As sensações renascem de si mesmas sem repouso, Ôh, espelhos, ôh Pirineus, ôh caiçaras! Se um deus morrer, irei no Piauí buscar outro! [...] A multiplicação do eu lírico remete ao desejo dele de encerrar em si os seus semelhantes, a despeito das diferenças. Conforme Lafetá (2004, p. 357) aponta, o “eu artificial e uno do século XIX dá lugar a um eu múltiplo e desagregado, de um subjetivismo exagerado”. O eu lírico conclama o povo dos Pirineus – cordilheira que separa a Península Ibérica da Europa –, que podem ser vistos como os diversos imigrantes que chegavam à cidade de São Paulo, além de conclamar os povos originários daquela terra, os caiçaras. A religiosidade, que tem presença forte no Brasil, é visível no último verso. Este faz intertextualidade com uma cantiga popular nordestina, O meu boi morreu, que tem o seguinte trecho: “O meu boi morreu o que será de mim / Mande buscar outro, oh Morena / Lá no Piauí”. Fora isso, a alta voltagem lírica é uma marca constante nos poemas de Mário de Andrade. Em 1927, ele publica Losango caqui, seu terceiro livro, em que a imagem da bandeira, aludida aqui em seu losango, é feita da costura de retalhos coloridos, como uma roupa de arlequim – roupa colorida geralmente repleta de retalhos em formato de losangos coloridos. Essa imagem pintada por Andrade é a mostra da multiplici- dade empreendida pelo poeta: a de vários “Brasis” abrigados sob uma mesma roupagem, um sentimento idealista de unificação que passava, sobremaneira, pelo português brasileiro. Outro poeta incontornável foi Oswald de Andrade. Conhecido por seus dois primorosos manifestos, a princípio, é lembrado mais pe- las anedotas acerca de sua vida privada – o casamento com a pinto- ra Tarsila do Amaral e com a intelectual Pagu, os modos refinados de quem mandava lavar a roupa fora do Brasil, entre outras curiosidades – do que pela sua contribuição literária, política e filosófica. Etnologia é uma área de estudo da antropologia que pesquisa e analisa da- dos coletados após uma observação social e cul- tural de uma região/povo para, depois, compará-la com outras culturas. 1 72 Teoria da Literatura II Segundo Schwartz (2008), as vanguardas modernistas eram marcadas por seus manifestos, assim como o Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924), assinado por Oswald. De caráter prescritivo, o texto baliza as novas for- mas de fazer poesia e valoriza sua cultura justamente naquilo que há de primitivo nela. Oswald não pretende diluir as diferenças, mas sim acen- tuá-las para mostrar como nosso Modernismo era singular, justamente porque uma canção, uma apresentação artística ou até mesmo um fato cotidiano é poético. Isso deve-se a uma palavra derivada de poético: poiético. Sua etimologia grega nos ensina que o vocábulo está relacionado a um fazer e produzir criativos (PRIBERAM, 2022). Ou seja, mesmo a poesia inspirada no dia a dia das ruas tem o poder de nos encantar porque elas criam algo. Há um processo ativo de feitura que está para além da mera inspiração ou espontaneidade. Outro aspecto que norteia a discussão é a utilidade da poesia, sobre- tudo na contemporaneidade, posto que ela disputa espaço com várias formas de entretenimento. Segundo Moisés (2019, p. 34-35), “O único propósito que nos move é o misto de curiosidade e perplexidade suge- rido em sua abertura”. Sem querer defini-la ou conceituá-la, o autor afir- ma que “a poesia nos ensina a ver como se víssemos pela primeira vez”. Nas palavras de Oswald de Andrade, em seu manifesto antropo- fágico: “A poesia existe nos fatos” (ANDRADE, 2018, p. 166). Isto é, ela está no cotidiano, tudo pode ser assunto para poesia, não apenas sen- timentos e eventos sublimes. Em outra obra de Oswald, Pau Brasil, ele compartilha os seguintes versos por meio do poema 3 de Maio: Aprendi com meu filho de dez anos Que a poesia é a descoberta Das coisas que eu nunca vi (ANDRADE, 1990, p. 99) M oQ cC a/ Sh ut te rs to ck Com esses exemplos, tanto teóricos quanto poéticos, entrevê-se que a poesia não é algo passível de definição – visto que tais entendimentos mu- dam de acordo com o contexto sócio-histórico no qual se inserem. O que nos interessa, fundamentalmente, é perguntar: do que a poesia é capaz? 1.1.1 Estética e poética A poética é um dos assuntos tratados por uma área da filosofia cha- mada estética – do grego aesthesis, que significa sensibilidade. Ambas se debruçam sobre as criações artísticas de modo geral. O estudo dessas questões remonta às diversas Artes Poéticas que foram escritas desde a Grécia Antiga, sendo a de Aristóteles a mais reconhecida. Segundo Rosenfield (2006), a diferença entre os dois conceitos pode ser estabelecida da seguinte forma: a estética aprofunda-se naquilo que é visual, como a forma e as imagens, e ocupa-se do belo e não belo das obras de arte em geral, ou seja, qual emoção cada uma delas é capaz de provocar em seu espectador ou leitor; no caso da poética, seus interesses são as narrativas, ou seja, a literatura. Da poética deriva-se o ato poético – indissociável da experiência estética –, cujas noções podem se manifes- tar nas demais produções artísticas que não somente as literárias. O estudo dessas questões remonta às diversas Artes Poéticas que foram escritas desde a Grécia Antiga, sendo a de Aristóteles a mais re- conhecida. Para o filósofo, a boa escrita era fruto de um bom uso da técnica, como ele preconiza a respeito das tragédias gregas. Platão, por sua vez, crê no belo como sinônimo de verdade. Por isso, condena as poéticas por serem elas imitações de situações que não foram vividas pelos seus autores. Acreditando em um mundo das ideias, onde A educação na Grécia Antiga, destinada aos homens e não escravos, pautava-se na ginástica e na poesia. Obras como a Ilíada e a Odisseia eram absorvidas por meio de um processo mnemônico de canto e repetição e ajudavam os alunos a ler e escrever. O objetivo des- sas leituras era também ensinar valores éticos e morais por meio das histórias e dos destinos das figuras retratadas. Saiba mais de lc ar m at /S hu tte rs to ck Introdução à poesiaIntrodução à poesia 1111 12 Teoria da Literatura II reside a verdade sobre os sentidos, Platão afirma que os poetas fazem um desserviço no que diz respeito ao alcance do real. Nesse sentido, em sua pólis ideal o poeta seria expulso, pois, para ele, a arte em geral está ligada a emoções e sentimentos que distorcem e influenciam as pessoas. 1.1.2 As artes poéticas Platão foi o primeiro filósofo a teorizar sobre a arte – entendendo-a aqui como belas-artes. Para ele, a arte é uma poética, ou seja, a arte de criar imagens. No que diz respeito à relação entre a arte e a natureza (sendo ela a realidade empírica na qual vivemos), Platão (2006) enxerga a arte como imitação, reduzindo-a à mera cópia da aparência. Nos livros II, III e X da República, o filósofo tece críticas àquilo que chama de poesia (epopeia, comédia, tragédia e poesia ditirâmbica 1 ). Sua Teoria das Ideias vai de encontro à noção de mimesis 2 , pois ela es- taria longe da verdade, uma vez que nem sempre imita as coisas per- feitamente. Nesse sentido, para Platão, a poesia é apenas ilusão e deve ser extirpada da cidade ideal concebida por ele. Para Platão, o termo poesia não era empregado apenas para referir-se à lírica, mas também à poesia mimética (épica e trágica). A alcunha de poeta enquanto ofício surge apenas no século V a.C. Para você ter uma ideia, Homero, autor dos poemas épicos Ilíada e Odisseia, era visto como um aedo (termo sinônimo a rapsodo, um cantor e contador de rapsódias, isto é, de fragmentos e excertos de epopeias ou peças – va- lendo-se sempre de acompanhamento musical – no contexto da Grécia Antiga), aquele que cantava feitos gloriosos de heróis e deuses por meio da intervenção de uma Musa. Trata-se de um coral can- tado em louvor ao deus Dionísio (Baco). 1 O termo em grego remete à imitação, ou seja, à ação de imitar/reproduzir algo da natureza na ficção. 2 I a m S tra ho r/ Sh ut te rs to ck Introdução à poesia 13 Não podemos levar em consideração as declarações de Platão sobre a poesia como arte poética, afinal o filósofo não se dedicou a escrever uma de fato. Nesse sentido, temos em A poética de Aristóteles (ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO, 2014) essa primeira empreitada. A obra trata de diferentes manifestações artísticas – poesia, dança, canto, teatro – e ti- nha a ver com os diversos modos de imitação, ou seja, Aristóteles vê na mimesis uma potência criativa, que vai além da mera cópia. Cabe ressaltarmos que desde a Grécia Antiga até o início da Mo- dernidade as artes poéticas tinham como objetivo prescrever ou nor- matizar regras e procedimentos para realizar uma verdadeira obra de arte. O julgamento ponderava não apenas a forma, mas também os assuntos tratados – nobres, caso se voltassem para o belo, justo e verdadeiro; ou inferiores, caso falassem sobre eventos triviais da vida cotidiana. A esse respeito, Aristóteles afirma: “A comédia [...] é a imita- ção de pessoas inferiores; não, porém, com relação a todo vício, mas sim por ser o cômico uma espécie de feio” (ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO, 2014, p. 23-24). Indo em direção oposta a Platão, Aristóteles encara a mimesis sob outro viés: “a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim quais coisas podiam acontecer, possí- veis no ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade” (ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO, 2014, p. 28). Nesse senti- do, o que está em jogo é a noção de verossimilhança, ou seja, aquilo que tem aparência de verdade, que é plausível ou prová- vel (PRIBERAM, 2022), mas sem tolher a parte criativa do autor. Agora passemos à Arte Poética escrita pelo poeta romano Horácio. Na verdade, o manuscrito é uma carta à família dos Pisões na qual tece considerações acerca da arte da escrita. Nessa carta, o poeta critica a produção dos gregos, que não é um bom modelo a ser seguido pelos romanos. Apesar disso, há várias semelhanças entre sua Poética e a de Aris- tóteles. Logo na abertura da carta, Horácio chama atenção para a coerência interna de uma obra – embora não utilize o termo aristotélico de verossimilhança. Em seguida, exalta as epopeias homéricas como modelos de imi- tação a serem seguidos. Dado importante é a consideração feita por Horácio a respeito do uso das palavras ao afirmar que “muitas pala- Originalmente, A Poética de Aristóteles, em sua base, foi escrita para orga- nizar as aulas ministradas aos seus alunos do Liceu, ou seja, ela não foi pro- duzida parase dar no Brasil. É a partir desse manifesto que Oswald de Andrade formula sua noção filosófica de antropofagia, inspirada nos relatos canibais de algumas so- ciedades indígenas. Nesse caso, a devoração do inimigo (sempre os mais valorosos, cabe lembrar) – a cultura europeia que nos influenciava – seria para assimilar suas qualidades ao mesmo tempo que as mesclar com as nossas características nacionais. Para Schwartz (2008, p. 165): “Oswald descobre o primitivo em sua própria terra e transforma sua descoberta num gesto revolucionário: ‘Bárbaro e nosso’”. Seu livro inaugural foi Pau Brasil, em 1925. A primeira seção da obra – História do Brasil – faz intertextualidade com a carta de Pero Vaz de Caminha, do século XVI, enviada ao rei de Portugal após acharem o que vi- ria a ser o Brasil. Oswald vai fazê-lo de modo sintético e irônico, marcas ca- ras à sua poética. Cada quadra funciona como um instantâneo fotográfico que mostra um episódio da chegada portuguesa (ANDRADE, 1990, p. 69). A DESCOBERTA Seguimos nosso caminho por este mar de longo Até a oitava da Páscoa Topamos aves E houvemos vista de terra OS SELVAGENS Mostraram-lhes uma galinha Quase haviam medo dela E não queriam pôr a mão E depois a tomaram como espantados Apesar de usar trechos literais da carta, não podemos chamar os poemas de Oswald de plágio. Afinal, o fato de ele deslocar o contexto – de uma carta oficial para um livro de poesia – já muda a interpretação do leitor. Além disso, ele corta o texto da carta em versos sintéticos, convidando-nos a ler sob outro viés. Além disso, Oswald também é conhecido pelo seu poder de síntese, o que fez com que críticos como Antonio Candido (2011) chamassem seus poemas de pílulas ou piadas. Vejamos alguns exemplos de poe- mas e excertos da poesia de Andrade (1974, p. 157-171). amor humor o capoeira – Qué apanhá sordado? – O quê? – Qué apanhá? Pernas e cabeças na calçada O poder de síntese abre o poema para inúmeros significados, como em amor. Notemos que a escolha vocabular, apesar de convergir em uma rima pobre, justapõe as palavras de campo semântico diferentes. Vemos em cena o lado dramaturgo de Oswald de Andrade, que começou sua carreira escrevendo para o teatro. O poema, composto de diálogos, traz uma cena que se assemelha a uma composição cubista, na qual apenas fragmentos da cena são mostrados, cabendo ao leitor reuni-los em uma interpretação unívoca. Por fim, tratemos de Raul Bopp. Ele foi um modernista de segunda hora, integrando a chamada segunda dentição modernista, formada por Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Pagu e Antônio Alcântara Machado. Esse momento foi marcado pelo Manifesto Antropófago de 1928, no qual Schwartz (2008, p. 172) enxerga Oswald da seguinte maneira: “Ao contrário das preocupações estéticas presentes no Manifesto da Poesia Pau Brasil, Oswald privilegia agora as dimensões revolucionárias e utó- picas. [...] O objeto estético se desloca para o sujeito social e coletivo”. Voltando ao modernista Bopp, assim como Mário de Andrade, também traz consigo o signo da viagem. Desde jovem residiu em di- ferentes cidades pelo Brasil – com apreço especial pela Amazônia –, sempre atento à cultura e manifestações populares, tomando nota em seus cadernos, traçando uma verdadeira arqueologia dos dizeres brasileiros. Além disso, como diplomata Bopp viveu em cidades como Lima, Berna e Los Angeles. Sua principal obra foi o livro de poemas Cobra Norato, publicado em 1931. A história faz parte do folclore regional de algumas regiões do Amazonas, sobre um herói que deseja casar-se com a filha de uma rainha. Para isso, ele mata a Cobra Norato e veste-se com a pele dela – momento em que temos a noção de antropofagia, ou seja, incorporar O romance Opisanie świata, de Stigger, é um diário de viagem e um reencontro entre Opalka e seu passado, o Brasil. Ambientado nos anos 1930, o enredo gira em torno de Opalka, polonês que viveu durante um tempo na Amazônia, e seu filho, Natanael, que está muito doente e pede que o pai vá visitá-lo. O título, que significa descoberta do mundo, em polonês, é a tradução dada na Polô- nia para a obra As viagens de Marco Polo, publicada no século XIII. STIGGER, V. São Paulo: Cosac Naify, 2013. Livro ro m i4 9/ Sh ut te rs to ck ro m i4 9/ Sh ut te rs to ck Poesia brasileira dos séculos XX e XXIPoesia brasileira dos séculos XX e XXI 7373 74 Teoria da Literatura II o que há de melhor no inimigo – e percorre a Amazônia até chegar à sua amada e desposá-la. Fora isso, no decorrer das 33 partes do livro, so- mos apresentados à vastidão e à exuberância da flo- ra e da fauna da região. Massi (2014, p. 25) considera a obra como “uma narrativa que se vale da técnica da montagem, ora valorizando o conjunto, ora privilegiando as partes”. Isto é, cada poema é um fotograma, um dos painéis que compõe a narrativa. Vejamos o primeiro poema dessa obra (BOPP, 2014, p. 185-186). Um dia eu hei de morar nas terras do Sem-fim Vou andando caminhando caminhando Me misturo no ventre do mato mordendo raízes Depois faço puçanga de flor de tajá de lagoa e mando chamar a Cobra Norato — Quero contar-te uma história Vamos passear naquelas ilhas decotadas? Faz de conta que há luar A noite chega mansinho Estrelas conversam em voz baixa Brinco então de amarrar uma fita no pescoço e estrangulo a Cobra. Agora sim me enfio nessa pele de seda elástica e saio a correr mundo Vou visitar a rainha Luzia Quero me casar com sua filha — Então você tem que apagar os olhos primeiro O sono escorregou nas pálpebras pesadas. Um chão de lama rouba a força dos meus passos. [...] No nível formal, vemos que a construção não obedece a nenhuma forma fixa. Afinal, as estrofes variam de dísticos (estrofe com dois versos rimando entre si), tercetos, quadras, além de predominar o verso livre, sem métrica fixa. Não há um esquema rímico evidente, embora a melodia seja percebida em rimas toantes, por exemplo, Luzia e filha. O uso do gerúndio reforça a ideia de ação constante. Há o recurso do diálogo por meio do qual, por exemplo, na quarta estrofe, o herói fala com a Cobra Norato, enquanto na sétima temos o herói já vestido de cobra falando com a rainha. Pattern_Repeat/Shutterstock Poesia brasileira dos séculos XX e XXI 75 Com a análise desses três poetas vimos as manifestações remodela- das das vanguardas europeias, como o Surrealismo e o Expressionismo – em Mário de Andrade e Raul Bopp – e o Cubismo e o Dadaísmo – em Oswald de Andrade. Portanto, a inventividade dos escritores conseguiu abrasileirar as referências europeias e criar uma vanguarda modernis- ta especificamente brasileira. 4.2 Concretismo Vídeo O Concretismo foi um movimento artístico que se manifestou em diversas artes, como as artes plásticas e a música. Na literatura – a poesia concreta – ele surge ao mesmo tempo na Suíça, na Suécia e no Brasil. Para Bosi (2015), foi o último grande movimento de vanguarda brasileira. Como o próprio nome sugere, trata-se de uma poética pau- tada na materialidade da palavra, incluindo aí sua dimensão visual. A exemplo das vanguardas modernistas, os poetas concretos – Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari – redigiram, em 1958, o plano-piloto para a poesia concreta, apresentando os conceitos-chave para a vanguarda. No manifesto, os autores expõem a seguinte conceituação ( CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2014, p. 74). poesia concreta: produto de uma evolução crítica de formas. Dando por en- cerrado o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal), a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural. espaço qualificado: estrutura espaciotemporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear, daí a importância da ideia de ideograma, des- de seu sentido geral de sintaxe espacial ou visual até o sentido específico (fenollosa/pound) de método de compor baseado na justaposição direta – analógica, não lógico-discursiva – de elementos.Um dos principais motes do manifesto é a abolição do verso con- vencional em nome de um poema que se construa no tempo e no es- paço, não mais de modo linear, mas constelar. Isso porque a ideia de ideograma é cara aos concretos. 76 Teoria da Literatura II A defesa do ideograma como imagem modelar para o poema con- creto é explicada pelos signatários do plano-piloto (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2014, p. 74). ideograma: apelo à comunicação não-verbal. O poema concreto comunica a própria estrutura: estrutura-conteúdo. O poema concreto é um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas. Seu material: a palavra (som, forma visual, carga semântica). A despeito da aparência de uma obra que se fecha em si mesma, considerada por críticos à época de elitista ou até mesmo alienada, certo é que o Concretismo inscreve-se em seu tempo e não foge a ele. As corridas espaciais, os meios de comunicação, a publicidade e a crença no futuro hipertecnológico estão presentes nos poemas. Nas palavras de Siscar (2010, p. 141): “A ideia da poesia como exploração daquilo que há de mais avançado tecnologicamente no presente e – por extensão problemática – como atalho para o “futuro” sempre esteve presente no Concretismo”. Além disso, a experiência passa a ser, segundo os concretistas, verbivocovisual, ou seja, ela se dá pela escrita, fala e visão. A dinamici- dade desses poemas reflete, em certa medida, um Brasil que se indus- trializava e se urbanizava rápida e caoticamente. Lembremo-nos de que à época do manifesto – não por acaso chamado de plano-piloto, remissão ao desenho arquitetônico de Brasília – a nova capital estava em construção e seria inaugurada dois anos depois, em 1960. O projeto estético do arquiteto Oscar Niemeyer prezava pelas formas lapidares, retilíneas e racionais. Augusto de Campos é o poeta concreto mais afinado às múltiplas possibilidades do poema por meio de um uso curioso e inventivo da tec- nologia. De acordo com Siscar (2010, p. 142), Campos: “apostou mais deci- sivamente, ao longo do tempo, na experimentação baseada em recursos técnicos ligados à visualidade, à sonorização, à espacialização, ao cruza- mento de mídias, acompanhando as possibilidades instrumentais que iam se abrindo com as novas máquinas produtoras de representação”. No poema de Campos (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2014, p. 162) vemos como articulam-se essas características apontadas por Siscar. O ideograma é composto da combinação de dois ou mais caracteres que convergem em um único significado, ou seja, seu sentido é atribuído por um processo de justaposição. Lembrete No site Poesia concreta temos acesso a um com- pilado de informações históricas e biográficas sobre a poesia concreta no Brasil, além dos poe- mas de seus principais criadores e textos teóri- cos e críticos sobre seus processos de produção. É possível ouvi-los recitar alguns de seus poemas e assistir a alguns deles animados e coloridos. Também há várias foto- grafias dos concretistas. Disponível em: https:// poesiaconcreta.com.br/. Acesso em: 3 jan. 2023. Site https://poesiaconcreta.com.br/ https://poesiaconcreta.com.br/ Poesia brasileira dos séculos XX e XXI 77 O poema adquire a forma de seus conteúdos, no caso o ovo e o novelo. Percebamos o gosto dos concretistas pelos substantivos concretos (ovo, novelo e jaula) e a ausência de adjetivos ou substantivos abstratos. A ausência do verso linear amplifica as possibilidades de leitura. A imagem ancestral do ovo como o início de tudo – “novo no velho” – e a vida como o centro de tudo, ao redor do qual o mundo se articula. Além disso, Augusto de Campos destaca-se na tradução de poesias, sobretudo de autores como Byron, Dickinson, Cummings e Maiakovski. A seguir temos um poema no qual várias referências populares são mobilizadas para traduzir Sol de Maiakóvski (CAMPOS, 2015). Traz em si um verso apropriado por Caetano Veloso – “gente é pra brilhar” –, que confere intertextualidade a este poema com a música Gente. A imagem geométrica circular e amarela do Sol, servindo de fundo para as letras em vermelho. Observe como a palavra tudo, ao centro, remete à força hipnótica do próprio Sol. Roberto Carlos também se apropriou de versos deste poema – “que tudo mais vá pro inferno” – na música Quero que vá tudo pro inferno. 78 Teoria da Literatura II Por sua vez, Haroldo de Campos é considerado o mais acadêmico dos três concretistas. Interessado em questões teóricas, ele seguiu carreira acadêmica e realizou mestrado e doutorado em literatura bra- sileira, com destaque na obra Macunaíma, de Mário de Andrade. Aliás, importante frisar a importância do Modernismo de 1922 para o Con- cretismo, sobretudo a figura de Oswald de Andrade. Agora, vejamos um de seus poemas, Se (CAMPOS, 2023), da sua fase concreta. Com uma síntese vocabular – os verbos nascer, morrer, renascer –, o poema de tom existencialista é construído em um jogo lúdico com as palavras que são inventadas – desmorre, desnasce ou remorre –, mas sem prejuízo semântico ao leitor. Há a organização dos vocábulos em forma de ondas que vêm e vão, remetendo ao ciclo da vida, que cresce e se desfaz assim como eles. A disposição não linear na página é mais uma característica do concretismo, bem como sua ocupação inusual do espaço da página. Portanto, percebemos como o Concretismo brasileiro estava inte- ressado não apenas em construir um novo projeto poético, no sentido formal e conceitual, mas também em dar conta de anseios humanos, como vida e morte, começo e fim do mundo, bem como a transposição de clássicos da literatura de vanguarda para a língua portuguesa. Poesia brasileira dos séculos XX e XXI 79 4.3 Geração Marginal Vídeo Em seu artigo A poesia marginal, Heloisa Buarque de Hollanda (2009, p. 1) define a poesia marginal: como um acontecimento cultural que, por volta de 1972-1973, teve um impacto significativo no ambiente de medo e no vazio cultural, promovidos pela censura e pela violência da repressão militar que dominava o país naquela época, conseguindo reunir, em torno da poesia, um grande público jovem. Com isso, percebemos o cuidado que a crítica demonstra ao abordar o tema, deixando isso evidente pela escolha da palavra acontecimento, e não movimento, vanguarda ou fenômeno. No entanto, embora Hollanda tenha sido contemporânea aos acon- tecimentos dos quais ela fala, percebemos em suas reflexões uma parcimônia crítica. Afinal, ela evita encarar a poesia marginal como um conjunto de ações organizadas exteriormente ao contexto cultural da época, como que formando uma postura reflexiva diante deste, seja para resolver alguns dos impasses locais, seja para direcionar a inte- ligência nacional. Desse modo, descrever o que ali se passou como acontecimento acaba por trazer a ideia de algo que estava no ar e que aconteceu devido a um conjunto de circunstâncias. Desse modo, Hollanda aponta para o termo marginal com o intuito de pensar aquela produção poética que ganhou destaque, sobretudo no Rio de Janeiro dos anos 1970. Apesar do esforço teórico, essa deno- minação criou bastante controvérsia, gerando discussões não apenas no âmbito acadêmico, mas também entre os poetas aí inclusos. Desse modo, o que por fim uniu esse grupo não foi um manifesto, um plano piloto ou uma postura política. Na verdade, foram circunstân- cias mais amplas: a ausência de engajamento político-partidário, a mar- ginalidade que o grupo experimentava junto aos mercados editoriais e certo descaso que exibia diante das ditas grandes obras do cânone literário (HOLLANDA, 2009). Além disso, segundo Moriconi (1996), o que unia esses poetas era o meio de divulgação de seus livros, no boca a boca, feitos em edi- ções artesanais e independentes. A maioria era jovens, universitários e muitos estudantes de Letras. O filme Bruta: aventura em versos, de caráter ensaís- tico e documental, parte de uma ligação pessoalentre a diretora, Letícia, e a poeta marginal Ana Cristina Cesar. No decor- rer do filme, assistimos a depoimentos de persona- lidades importantes para entendermos a vida e a obra de Cesar. São elas: a amiga e professora Heloisa Buarque, o amigo e poeta Armando Filho e a poeta contemporânea Alice Sant’Anna. A partir disso construímos uma imagem da poeta, mais humanizada, para além de sua obra. Direção: Letícia Simões. Brasil: Matizar, 2011. Documentário 80 Teoria da Literatura II Com a poesia marginal há um retorno à poesia versificada e lírica. Se o Concretismo abole radicalmente o verso e suprime a figura do eu lírico, os poetas marginais respondem a isso com seus poemas extremamente confessionais, de linguagem coloquial e com temáticas caras a eles – se- xualidade, resistência à ditadura, vida adulta, consumo de drogas. A partir disso, para Bosi (2015, p. 487), “dá-se nova e grande margem à fala autobiográfica, com toda a sua ênfase na livre, se não anárquica, expressão do desejo e da memória”. Por sua vez: “Repropõe-se com ardor o caráter público e político da fala poética”, além disso “Subordina-se a construção do objeto à verdade (real ou imaginária) do sujeito e do grupo”. Por sua vez, a poeta que melhor encenou essas características foi a carioca Ana Cristina Cesar. Desse modo, podemos enfatizar, entre as características, o interesse pelo universo feminino, mas no sen- tido de ironizar os pressupostos dos comportamentos geralmente atribuídos às mulheres. Um exemplo está em Conversa de senhoras (CESAR, 2013, p. 89). Não preciso nem casar Tiro dele tudo que preciso Não saio mais daqui Duvido muito Esse assunto de mulher já terminou [...] Tem alguém na casa Você acha que ele aguenta? [...] Ela é esquisita Também você mente demais Ele está me patrulhando [...] Percebemos uma polifonia, afinal há várias mulheres que falam ao mesmo tempo e muitas perguntas que ficam sem respostas ou sem um contexto. Além disso, a dicção de diálogo confere leveza ao texto, em tom coloquial, traço da Geração Marginal. No aspecto formal, percebemos a ausência de métricas ou rimas. Além disso, há o uso dos pronomes pessoais em vez de nomes próprios, o que abre ainda mais o espaço para o leitor implicar-se no texto e imaginar quem estaria por trás dessas histórias e diálogos. O primeiro verso insinua um comportamento machista, aquele da mulher que casa por dinheiro, mas o eu lírico vai invertê-lo, ao enunciar “Não preciso nem casar”. Outro aspecto é a loucura por meio do adjetivo em “ela é esquisita”. Outro aspecto é a fofoca em seu sentido pejorativo: “você mente demais”. Outro aspecto é o comportamento controlador dos homens: “Ele está me patrulhando”. Poesia brasileira dos séculos XX e XXI 81 Em Correspondência completa, Cesar (2013) joga com o tom confessional e intimista de uma longa carta, permeada por informa- ções e personagens que se confundem com pessoas que de fato con- viviam com a poeta. O jogo é justamente tensionar os limites entre os dois polos – real e ficcional. Vejamos um trecho da obra para entendermos melhor sobre essa temática (CESAR, 2013, p. 47-50). My dear, chove cântaros. Daqui de dentro penso sem parar nos gatos pingados. [...] Notícias imprecisas, fiquei sabendo. É de propósito? Medo de dar bandeira? [...] Célia disse: o que importa é a carreira, não a vida. Contradição difícil. [...] O que escrevi em fevereiro é verdade mas vem junto drama de desocupado. [...] Gil está sempre jurando ou me fazendo jurar. E depois você ainda diz que eu não respondo. Ainda aguardando. Beijo. Júlia. De partida, não nos é revelado o nome da destinatária da carta. Segundo Armando Freitas Filho (CESAR, 2013), o personagem Gil era ele mesmo, um amigo próximo de Ana Cristina Cesar, que ouviu a confissão da autora. Chief Crow Daria/Shutterstock Há vários trechos de conversas entre ambas as personagens que aparecem no excerto. O jogo com a verdade aparece em “O que escrevi em fevereiro é verdade mas vem junto drama de desocupado”. Em parte é real – apesar de não sabermos a verdade por completo –, mas devemos dar um desconto, pois há drama, ou seja, exagero por parte de quem escreve. Por sua vez, Cacaso foi um poeta atento ao contexto social e polí- tico em que vivia, a Ditadura Militar de 1964. Seus poemas, apesar da dicção singela, tocavam no tema sem ressalvas, a despeito da censura à época. É o caso de obra aberta (CACASO, 2020, p. 260), que de acordo com Martinelli Filho (2010), no que diz respeito à forma, há uma quebra de expectativas do leitor. Além de lermos o texto do Instituto Moreira Salles dedicado a Ana Cristina Cesar, é possível acessarmos os arquivos da autora. Isso torna possível conferir imagens de alguns de seus cadernos de poesia, além de áudios de Ana Cristina falando sobre sua obra. Também podemos assistir a um vídeo da amiga e professora Heloísa Buarque de Hollanda, que comenta a obra da poeta. Disponível em: https://ims.com.br/titular-colecao/ana-cristina-cesar/. Acesso em: 3 jan. 2023. Leitura https://ims.com.br/titular-colecao/ana-cristina-cesar/ 82 Teoria da Literatura II Quan / do / eu / era / cri / an / ci / nha O an / jo / bom / me / pro / te / gi / a Con / tra / os / gol / pes / de / ar. Co / mo / con / vi / ver / a / go / ra / com Os / gol / pes? / Mi / li / tar? 1 2 3 4 5 6 7 1 2 3 4 5 6 7 1 2 3 4 5 6 7 1 2 3 4 5 6 7 8 9 1 2 3 4 5 6 Os três primeiros versos são redondilhas maiores, recurso recorrente em cantigas de roda, mas os dois versos finais quebram a métrica, como modo de marcar o distanciamento dos poetas marginais de uma poética rígida e engessada. Quanto ao caráter rímico, há a rima toante entre criancinha e protegia. O jogo com a expressão golpe de ar (friagem) e golpe militar enfatizam a oposição entre uma infância leve e um presente denso, de chumbo. Temos também o militar no final do poema, que pode ser lido como verbo, ou seja, a saída pode ser ir às ruas e militar contra o golpe. Outro poeta essencial foi o curitibano Paulo Leminski. Assim como Cesar, trabalhou com tradução, crítica literária e, inclusive, composição de canções. Leminski, conhecedor de diversas línguas e tradições lite- rárias, interessou-se por haicais. Além disso, era publicitário, e a escrita ligeira e à moda de slogan são características de sua poética, que evoca a tradição oswaldiana e seus poemas-pílulas. Vejamos um exemplo de um desses poemas (LEMINSKI, 2015, p. 15). Uma vida é curta Para mais de um sonho O poema-pílula acaba sendo metatextual, pois assim como a vida o poema também é curto. O diálogo com a tradição literária também é uma constante. Conhe- cedor dos clássicos, isso aparece de modo coloquial e trivial no poema a seguir (LEMINSKI, 2015, p. 41). parar de escrever bilhetes de felicitações como se eu fosse camões e as ilíadas dos meus dias fossem lusíadas, rosas, vieiras, sermões A ausência de letras maiúsculas é uma marca da Geração Marginal, pois visa desierarquizar os termos no poema e tornar a leitura mais fluida, mimetizando a cadência da fala. O eu lírico mostra-se como um pretenso escritor frustrado, pois não faz parte desse panteão composto de Camões, Homero, Guimarães Rosa e Padre Antônio Vieira. Percebemos rimas pobres, que são propositais e evidentes, reforçando a singeleza dos versos. Poesia brasileira dos séculos XX e XXI 83 Desse modo, percebemos como a poesia marginal, a despeito da caracterização de despojamento nos assuntos e na forma de escrever, também ocupou-se de temas relevantes, como a angústia das influên- cias literárias, em Paulo Leminski, a repressão da ditadura, em Cacaso, e o jogo irônico com os papéis atribuídos tradicionalmente às mulhe- res, em Ana Cristina Cesar. 4.4 Poesia contemporânea Vídeo Sobre a temática, Beatriz Resende (2008) teceu alguns apontamen-tos sobre a literatura contemporânea no Brasil. Para ela, uma das prin- cipais características é a fertilidade, não apenas de publicações, mas também dos meios pelos quais estas se dão. A tecnologia dinamizou e ampliou as possibilidades de suporte, trazendo dispositivos de leitura, e as plataformas proporcionadas pela internet, como os blogs. Além disso, Resende (2008) destaca a pluralidade de temas – o racis- mo, o machismo, a LGBTfobia, o elitismo – e lugares de fala até então pouco abordados em nossa literatura. Ainda em uma pegada visual e tecnológica, temos um poeta debitá- rio do Concretismo brasileiro dos anos 1950 e 1960, Arnaldo Antunes. Conhecido pela sua passagem no grupo musical Titãs e Tribalistas, ele também é poeta visual. Uma de suas obras mais interessantes é o livro/ disco/vídeo NOME. Vejamos um trecho da obra (ANTUNES, 2010, p. 38). algo é o nome do homem coisa é o nome do homem homem é o nome do cara isso é o nome da coisa cara é o nome do rosto fome é o nome do moço homem é o nome do troço osso é o nome do fóssil corpo é o nome do morto homem é o nome do outro Segundo Cruz (2019), o poema é marcado pela ausência de um eu lírico e do tom filosófico que os versos adquirem no impasse insolúvel em definir o que é o homem. A indiscernibilidade está na profusão de palavras genéricas para indicar algo, como coisa, troço, outro, algo. Há uma repetição de sons vista entre os vocábulos nome e homem, enfatizando o aspecto musical. No perfil do poeta contemporâneo brasileiro Zack Magiezi é possível en- contrarmos seus poemas do Instagram. Geralmente curtos e breves, adaptados à dinâmica da rede social, os textos têm um tom singelo e traduzem algu- mas cenas cotidianas em poesia. Atualmente, Zack tem mais de um milhão de seguidores em seu perfil, tendo atingido um alcance literário sem precedentes na poesia contemporânea. Disponível em: https://www. instagram.com/zackmagiezi/. Acesso em: 3 jan. 2023. Site https://www.instagram.com/zackmagiezi/. https://www.instagram.com/zackmagiezi/. 84 Teoria da Literatura II Política, gênero e raça também são temas recorrentes da poesia contemporânea. A poeta carioca Tatiana Pequeno, professora univer- sitária e mulher negra da periferia, aposta nisso em seus poemas, com destaque para seu último livro, Onde estão as bombas, de 2019. A obra foi escrita em um contexto de acirramento político e avanço do autoritarismo, povoado por violências. A autora lança também uma luz sob a história do país, desde 1500, que foi construído à base de exploração e violência, sobretudo contra indígenas, negros e mulheres. De acordo com Pucheu (2021), trata-se de uma narratividade com uma lírica fraturada, que apresenta uma ausência de pontuação e contribui para um espaçamento que abandona a aglutinação das pa- lavras, deixando-as livres. No campo temático, as bombas explodem em poemas como museu nacional, que remete ao incêndio que em 2018 destruiu o museu mais importante do país. Conforme Pucheu (2021, p. 83) destaca, “também foi queimado o campo dos povos / talvez não haja música para extinção”. Vejamos o poema de abertura que, por sua vez, evoca a imagem da bomba e do lugar social de onde o eu lírico fala, alvejado pela violência policial nas favelas (PEQUENO, 2019, p. 9). naquele ano foram cinco tiros pow pow pow pow pow pow um sexto furou a geladeira de refrigerantes mais antigos do bar você deve ter caído para a esquerda e um homem fugiu com um cano Perceba como há a presença de rimas toantes em palavras como antigos, caído, cinco e tiros. A vogal aguda / i / aumenta a voltagem dramática do poema. No vídeo Pessoa, homôni- mo ao poema tratado no vídeo, Antunes, em vez de proceder à leitura, opta por descrever o texto em caráter metalinguístico. Enquanto os versos vão passando, ele nomeia os elementos como substantivo, ponto, oração subordinada, entre outros, apresentando outra perspectiva de leitura. Disponível em: https:// www.youtube.com/ watch?v=0W1LNy12h8Q. Acesso em: 3 jan. 2023. Vídeo Por fim, vejamos outro exemplo, dessa vez em mulher do fim do mundo (PEQUENO, 2019, p. 34). mulher a gente chuta e se a gente não derruba crava a linguagem do medo em outra que essa outras, com medo, chuta ou derruba mulher a gente mesmo queima. O eu lírico retrata a condição feminina diante do olhar patriarcal, representado por a gente. https://www.youtube.com/watch?v=0W1LNy12h8Q https://www.youtube.com/watch?v=0W1LNy12h8Q https://www.youtube.com/watch?v=0W1LNy12h8Q Poesia brasileira dos séculos XX e XXI 85 Portanto, assim como na poesia marginal, na poesia contemporâ- nea observamos, no âmbito formal, a ausência de letras maiúsculas e até mesmo pontuação. CONSIDERAÇÕES FINAIS O século XX foi, certamente, o período mais prenhe de acontecimentos históricos, culturais e tecnológicos. A sensação é de séculos em apenas um. À medida que a ciência progredia, a barbárie também. As teorias de Albert Einstein foram usadas para construir uma bomba atômica, assim como o avião de Santos Dumont virou máquina de guerra. Igualmente podemos dizer da internet, que em seus rudimentos era usada como ferramenta de espionagem. Como disse o filósofo alemão Walter Benjamin (1994), em suas teses sobre o conceito de história, todo monumento de cultura também acaba por ser um de barbárie. Isso vale para as artes de modo geral, especifi- camente para a literatura. Por sua vez, os poemas concretos escancaram em sua forma e conteúdo a sociedade de consumo dos anos 1960, assim como os poetas marginais tematizavam a repressão da ditadura militar. Desse modo, não há arte revolucionária sem forma revolucionária, conforme dizia o poeta russo Vladimir Maiakóvski. Nesse sentido, os sé- culos XX e XXI demonstraram sua capacidade antropófoga no campo lite- rário: a de absorver o que havia de melhor nos inimigos, ou ainda, nessas alteridades, a de construir algo próprio, desfazendo, assim, a noção de propriedade e autoria. Dessa maneira, as vanguardas modernistas servi- ram justamente para isto: provar que a novidade não surge do nada ou de um gênio iluminado. Na verdade, os elementos sempre estiveram ali, portanto cabe aos artistas de cada época manipulá-los de modo diferen- te, tecendo diversas narrativas. 86 Teoria da Literatura II ATIVIDADES Atividade 1 A partir do poema Canto de regresso à pátria, de Oswald de Andrade, identifique a qual momento literário ele pertence, justifi- cando por meio de uma análise formal e contextual. Minha terra tem palmares Onde gorjeia o mar Os passarinhos daqui Não cantam como os de lá Minha terra tem mais rosas E quase que mais amores Minha terra tem mais ouro Minha terra tem mais terra Ouro terra amor e rosas Eu quero tudo de lá Não permita Deus que eu morra Sem que volte para lá Não permita Deus que eu morra Sem que volte pra São Paulo Sem que veja a Rua 15 E o progresso de São Paulo. Atividade 2 Observe o poema concretista life, de Décio Pignatari, de 1957, e faça uma análise levando em consideração sua autoria e sua data de publicação. Fonte: Pignatari, 2023. Poesia brasileira dos séculos XX e XXI 87 Atividade 3 Observe o poema Não discuto, de Paulo Leminski, e disserte sobre sua temática e construção formal, de acordo com o momento literário em que foi escrito. não discuto com o destino o que pintar eu assino REFERÊNCIAS ANDRADE, M. Poesias completas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. v. 1. ANDRADE, O. Obras completas. 4. ed. 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Nesse sentido, é importante verificarmos como o recorte de raça, classe e gênero nos ajuda a ler essas obras. Inicialmente, aprenderemos sobre a poesia escrita no contexto pós- -Segunda Guerra Mundial. Para isso, analisaremos a obra de poetas re- levantes, como o brasileiro Carlos Drummond de Andrade, a polonesa Wislawa Szymborska e o romeno Paul Celan. Por meio de suas obras veremos como forma e conteúdo se articulam para dar corpo ao trauma vivido pela sociedade. Além disso, trataremos da poesia escrita por mulheres. Com base nisso, faremos um breve histórico das produções poéticas ocidentais e, em seguida, nos aprofundaremos na poesia brasileira. Inclusive apren- deremos como as teorias feministas do século XX foram importantes para nortear o fazer poético em cada uma dessas obras. Por fim, explanaremos sobre a relação entre poesia e intermidialida- de. Por meio dessa relação visamos entender como a poesia contempo- rânea se apresenta, tendo em vista o seu contato com as novas mídias tecnológicas. Para isso, analisaremos alguns poemas e aprenderemos quais são os efeitos desse contato sobre o poema. Cr is tin a Co nt i/S hu tte rs to ck Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • conhecer os poetas que escreveram nos períodos pós-Primeira e Segunda Guerras Mundiais; • analisar os poemas de Wislawa Szymborska, de Paul Celan e de Carlos Drummond de Andrade; • conhecer um histórico breve de poetas mulheres na historiografia literária ocidental e, mais especificamente, brasileira; • discutir algumas teorias feministas com base em poemas que re- tratem a condição feminina (suas vivências, medos, proibições); • analisar a poesia contemporânea com base em sua relação com as novas mídias tecnológicas e perceber quais efeitos esse encon- tro causa no poema, analisando poemas nos quais isso acontece. Objetivos de aprendizagem 5.1 A noção do belo e a poesia pós-guerra Vídeo A noção do que é belo e correto em se tratando das manifestações artísticas foi modificando-se no decorrer dos séculos. Por conta disso, cabe à Estética, disciplina da Filosofia, estudar sobre essa noção. Um exemplo disso é que, na Idade Média, Santo Agostinho, ligado ao pen- samento cristão, encara o belo como manifestação divina, sinônimo de perfeição, que deveria ser harmoniosa, proporcional e unificada. Já no período moderno, o filósofo alemão Immanuel Kant (2012) en- tende o belo como algo que se produz na relação entre o espectador e a obra. Nesse processo, o sujeito formaria a imagem do belo em sua cabeça ao ser exposto a um objeto perfeito. Nesse sentido, Kant (2012) afirma que o belo deve ser algo que agrada a todos universalmente. Sua contemplação tem uma finalidade em si mes- ma, que é esse prazer estético despretensioso. No século XX, por sua vez, temos a leitura dos filósofos alemães Adorno e Horkheimer em A dialé- tica do esclarecimento. Para eles, as obras de arte do século XX, bem como a noção de belo, foram incorporadas pelo regime de consumo capitalista. Elas passam a 9090 Teoria da Literatura IITeoria da Literatura II Poesia e outros discursos 91 servir uma lógica não mais estética, mas econômica. O belo torna-se uma construção feita por publicitários e proprietários de marcas e indústrias. O objetivo é alcançar o máximo de pessoas possível, levando-as a consumir um belo que não tem mais a ver com fruição estética. 5.1.1 A poesia moderna Adorno (2012, p. 77) vê no Romantismo uma “transfusão do coletivo no individual”. Ou seja, é nesse momento que a história se encontra com a escrita. Segundo o filósofo alemão Walter Benjamin (2011), des- de a consolidação do capitalismo industrial – e, com isso, o início da Modernidade em literatura – o lugar do artista sofre uma inflexão. Se até então ele era um profissional, bancado por mecenas, no século XIX ele passa a ser visto como alguém marginal, inútil. Isso ocorre porque a lógica produtivista do capitalismo não via como obter lucro com a arte, a não ser que ela estivesse a serviço de um estímulo ao consumo. Nesse sentido, poetas, como Charles Baudelaire (2019, p. 163), tema- tizam essa condição infernal conforme vemos no poema a seguir. A Musa em questão é a própria poesia, que se torna mesquinha, venal (vendida), por pura necessidade. A Musa Venal O eu lírico evoca a Musa e questiona como ela fará para se aquecer no inverno, trazendo a questão para termos materiais práticos, e não subjetivos. Musa do meu amor, ó principesca amante, Quando o inverno chegar, com seus ventos irados Pelos longos serões, de frio tiritante, Com que hás-de acalentaros pésitos gelados? Tencionas aquecer o colo deslumbrante Com os raios de luz pelos vidros filtrados? Tendo a casa vazia e a bolsa agonizante o ouro vais roubar aos céus iluminados? Deflagra-se a realidade mercantil. É preciso simular ser quem não é para obter “o triste pão diário”. Precisas, para obter o triste pão diário, Fazer de sacristão e de turibulário, Entoar um Te-Deum, sem crença nem favor, Ou, como um saltimbanco esfomeado, mostrar As tuas perfeições, através d’um olhar Onde ocultas, a rir, o natural pudor! Com esse exemplo percebemos como os fatores históricos, sobre- tudo financeiros, são relevantes para compreender a poesia que surgia pa se ve n/ Sh ut te rs to ck 9292 Teoria da Literatura IITeoria da Literatura II naquele momento, como uma resposta do artista em um contexto que não lhe é mais tão receptivo. 5.1.2 A poesia pós-Segunda Guerra Mundial Com uma Europa arrasada pelos horrores e genocídios da Segunda Guerra, os poetas deram conta de elaborar esse trauma coletivo em suas poesias. A relação entre poesia e sociedade é explanada por Ador- no (2012, p. 66), em Palestra sobre lírica e sociedade, ao afirmar que “a referência ao social não deve ser levar para fora da obra de arte, mas sim levar mais fundo para dentro dela”. Mais adiante, Adorno (2012, p. 67) traça uma relação entre poema, poeta e leitor, pois “só entende aquilo que o poema diz quem escuta, em sua solidão, a voz da humanidade”. Retomando o contexto do pós-guerra, Adorno (2012) julgava ser impossível escrever poesia após os horrores de Auschwitz. Para o filó- sofo, o episódio mostrava uma contradição entre a barbárie praticada pela Europa, considerada o berço intelectual do Ocidente, e a ideia de civilização moderna. Qual o tipo de Educação ensinada para aqueles que cometeram tais crimes? Diante desse impasse, Adorno aposta na impossibilidade de se praticar a poesia – esse monumento de cultura – após tanta barbárie. Nas palavras de Adorno (2012, p. 92), “escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tonou impossível escrever poemas”. Diante disso, vários poetas provaram o contrário, como é o caso da poeta polonesa Wislawa Szymborska, que estreia no contexto do stalinismo na década de 1950. Sua obra começou a ser traduzida para o português em 2011, embora tenha recebido o Nobel de Literatura em 1996. Segundo Regina Przybycien (2011), sua poesia é caracteriza- da pela reflexão ora sombria, ora irônica da condição humana após as barbáries do século XX. Não apenas Szymborska, mas também seus contemporâneos (Milosz, Herbert e Rózewicz), “mostram uma profunda consciência da falência de uma concepção evolucionista da história, na qual a huma- nidade, movida pela razão e pelo progresso, caminharia para estágios cada vez mais avançados de civilização” (PRZYBYCIEN, 2011, p. 12). Um de seus poemas mais conhecidos é Primeira foto de Hitler (SZYM- BORSKA, 2011, p. 73). Marcado pela ironia e o horror, o eu lírico faz um exercício de especulação ao contemplar um retrato do ditador criança. Poesia e outros discursos 93 O eu lírico fala de um momento antes da guerra, como quem não sabe o que vai ser do pequeno na foto. A ironia é uma forma de lidar com o trágico, de não sucumbir ao terror e à mudez impostas pela guerra. O exercício de humanização não vem sem ironias, marcadas pelo excesso de palavras no diminutivo. Visão idílica da criança que ainda não se tornou o adulto que viria a ser. Primeira foto de Hitler E quem é essa gracinha de tiptop? É o Adolfinho, filho do casal Hitler! Será que vai se tornar um doutor em direito? Ou um tenor da ópera de Viena? De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, [ esse narizinho? De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe: de um tipógrafo, padre, médico, mercador? Quais caminhos percorrerão essas pernocas, quais? Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório com a filha do prefeito? Anjinho, pimpolho, docinho de coco, raiozinho de sol, quando chegou ao mundo um ano atrás, não faltaram sinais na terra nem no céu: gerânios na janela, um sol primaveril, a música de um realejo no portão, votos de bom augúrio envoltos em papel crepom rosa, pouco antes do parto, o sonho profético da mãe: sonhar com uma pomba - sinal de boas-novas, se for pega - vem uma visita muito esperada. Toc, toc, quem é, é o coraçãozinho do Adolfinho que bate. Fralda, babador, chupeta, chocalho, o menino, com a graça de Deus e bate na madeira, é sadio, parecido com os pais, com um gatinho no cesto, com os bebês de todos os outros álbuns de família. Não, não vai chorar agora, o fotógrafo atrás do pano preto vai fazer um clique. Com base no poema, podemos ver que a história é matéria farta para a poética de Szymborska. Em mais de um momento ela retraba- lha o assunto por meio de um ponto de vista inusual, como vimos no poema analisado. Ao fazê-lo, a poeta nos convida a experimentar novas perspectivas, desestabilizando o olhar da história oficial. Além disso, embora sua escrita pareça simples e acessível, há uma artesania fina nesse processo. As escolhas vocabulares e expressões po- pulares visam atingir o máximo de leitores possível, o que a fez conheci- da amplamente em seu país de origem. Desse modo, os deslocamentos que a poeta faz dessas expressões que são lugares comuns provocam um estranhamento, residindo nisso o rebuscamento de seus poemas. 5.1.3 A poesia de Carlos Drummond de Andrade Certamente Drummond é um dos maiores poetas brasileiros do século XX. Seus poemas tornaram-se famosos no imaginário popular em versos, por exemplo, No meio do caminho e José. Essa popularida- de deve-se ao fato de que sua linguagem, na maior parte do tempo, é acessível e fluida, sem que isso deixe de lado a fina elaboração estética empreendida pelo autor. Atento aos acontecimentos históricos, o poeta refletiu sobre o pós-Se- gunda Guerra em seu reconhecido A rosa do povo, publicado em 1945. O título alude ao volume de poemas de Charles Baudelaire, As flores do mal. Tomando a rosa como símbolo do amor, Drummond vai ressignificá-la sob a chave da esperança, em torno de um povo esperançoso que se une para reconstruir o mundo. A rosa do povo é considerada a primeira obra bem-a- cabada no século XX que trata de temas sociais e históricos por meio do li- rismo. Além disso, essa é considerada a obra da maturidade de Drummond, que havia estreado em 1930, com Alguma poesia. As temáticas que atravessam essa obra vão desde à denúncia dos ma- les da guerra, passando pelas dificuldades em reconstruir o mundo, até momentos de exultante esperança com relação ao futuro, con- trapondo-se à predição sombria de Adorno, que não acredita- va em poesia após Auschwitz. Como Antonio Candido (1970) já havia apontado, em A rosa do povo vemos um eu lírico que se iguala ao mundo, um poeta que quer estar em comunhão com todos, momento raro na poesia de Drummond. Para Candido (2006), não podemos falar em poesia po- lítica no caso de Drummond, mas em uma poesia social. Ela desvela-se devido ao interesse do poeta pelo cotidiano das ruas, presente desde seu primeiro livro. Esse interesse o levou a aprofundar-se na consciência do outro, criando poe- mas em que o indivíduo se vê entranhado nos acontecimentos exteriores. Nesse sentido, o poeta trata da condição humana com base nos dramas vividos pelos indivíduos. Ilustração do poeta Carlos Drummond de Andrade. Prachaya Roekdeethaweesab/Shutterstock Prachaya Roekdeethaweesab/Shutterstock 9494 Teoria da Literatura IITeoria da Literatura II Poesia e outros discursos 95 Isso é visível no excerto do poema A morte do leiteiro (DRUMMOND, 2015, p. 151). O branco e o vermelho também dão conta dessa oposição entre guerra e paz. Há pouco leite no país, é preciso entregá-lo cedo. Há muita sede no país, é preciso entregá-lo cedo. Há no país uma legenda, que ladrão se mata com tiro. Então o moço que é leiteiro de madrugadacom sua lata sai correndo e distribuindo leite bom para gente ruim. Ladrão? se pega com tiro. Os tiros na madrugada liquidaram meu leiteiro. Da garrafa estilhaçada, no ladrilho já sereno escorre uma coisa espessa que é leite, sangue… não sei. Por entre objetos confusos, mal redimidos da noite, duas cores se procuram, suavemente se tocam, amorosamente se enlaçam, formando um terceiro tom a que chamamos aurora. [...] [...] O eu lírico relata a morte do leiteiro, que é confundido por um de seus clientes com um bandido. Com o leiteiro baleado por engano, o poema se encerra com a imagem do leite que se mistura ao sangue, entrevendo aí o leite como alimento primordial e o sangue como aquilo que nos constitui. Nesse poema podemos perceber como, assim como Adorno (2012) observou sobre a lírica no século XX, o entorno social já não escapa ao poeta, que vê no seu ofício um gesto de resistência. 5.1.4 A poesia de Paul Celan Diferente de Szymborska e Drummond, o poeta romeno Paul Celan escreve com a amargura de quem teve a vida devastada pela Guer- ra. Sobrevivente do Holocausto e de família judia, ele perdeu o avô no campo de concentração. Um de seus grandes desafios foi escrever 96 Teoria da Literatura II usando a língua alemã – sua língua materna, pois à época a Romênia fazia parte do Império Austro-Húngaro, cujo idioma de comunicação junto à comunidade judaica era o alemão. Segundo Kulisky (2017, p. 5), se Adorno enunciou que era impossí- vel escrever poesia depois de Auschwitz, Paul Celan “foi o poeta que mais se destacou como uma contraprova deste veto. Foi também, de modo quase paradoxal, o poeta que mais radicalmente questionou as condições de legibilidade da poesia”. A obscuridade na obra do poeta é mencionada por diversos críticos e tomada como uma característi- ca fundamental para analisá-la. Além disso, o caráter críptico de seu poema desvela-se por meio de imagens fortes e simbólicas, tudo para escapar à mera representação mimética da realidade. A experiência no campo só é passível de relato se sublimada pela linguagem poética. A dificuldade em compreender seus poemas revela- -se também como dificuldade de o poeta acessar e elaborar seus trau- mas. Um de seus poemas mais conhecidos, Fuga sobre a morte (CELAN, 1999, p. 72), retrata a situação daqueles que sofreram os horrores dos campos de concentração. Inclusive, ele é considerado o escrito em lín- gua alemã mais importante sobre o holocausto. Fuga sobre a morte Leite-breu d’ aurora nós o bebemos à tarde nós o bebemos ao meio-dia e de manhã nós o bebemos à [ noite bebemos e bebemos cavamos uma cova grande nos ares Na casa mora um homem que brinca com as serpentes e [ escreve ele escreve para a Alemanha quando escurece teus [ cabelos de ouro Margarete ele escreve e aparece em frente à casa e brilham as [ estrelas ele assobia e chama seus mastins ele assobia e chegam seus judeus manda cavar uma [ cova na terra ordena-nos agora toquem para dançarmos O obscuro de seus poemas encontra-se já no primeiro verso, quando o eu lírico evoca o leite breu d’aurora. Ao tornar o branco do leite – sinônimo de vitalidade, alimento primordial – um escuro indiscernível, o poeta transforma a vida em morte. É desse leite que se alimentam os judeus condenados aos campos de concentração, que cavam covas nos ares – remissão às câmaras de gás e ao horror daqueles que eram obrigados a enterrar seus iguais em covas rasas. Para Hamburger (2007, p. 307), “a nova antipoesia – produto da Se- gunda Guerra Mundial [...] – surgiu de uma aguda desconfiança de todos os recursos com os quais a poesia lírica mantivera sua autonomia”, mais adiante, ele também afirma que “grande parte da antipoesia escrita de- O filme O pianista se passa durante a Segunda Guerra Mundial e relata a história verídica do famo- so pianista judeu e polo- nês, Władysław Szpilman. Prestes a ser deportado para um campo de exter- mínio, ele é salvo por um amigo. O pianista tenta se esconder durante os anos de guerra, até o dia em que é encontrado por um oficial alemão, que decide ajudá-lo ao reconhecê-lo como pianista. É um filme que retrata a condição do artista nesse contexto ne- fasto da história ocidental. Direção: Roman Polanski. França, Alemanha, Reino Unido e Polônia: Focus Feature, 2002. Filme Poesia e outros discursos 97 pois de 1945 é seca, lacônica e austera não só porque seus autores são ‘literalistas da imaginação’”, mas porque “a própria imaginação se deparou com obstáculos de um tipo sem precedentes. A experiência do silêncio em face do indizível é um deles” (HAMBURGER, 2007, p. 332). Portanto, esse dado justifica a postura de poetas, como Celan, que veem na dicção crípti- ca um modo de subverter a ideia de belo vigente até então. On es we et lim e/ Sh ut te rs to ck 5.2 Poesia escrita por mulheres Vídeo Em seu famoso ensaio Um teto só seu, a escritora inglesa Virginia Woolf (2014) aborda a relação das mulheres com a escrita de ficção. Em uma época na qual ainda eram poucas as escritoras renomadas junto à crítica e ao mercado editorial, Woolf (2014) expõe algumas conside- rações que dão conta dessa escassez de escritoras no cânone literário. A tese principal é a de que as mulheres, subjugadas social e financei- ramente aos seus maridos, não tinham condições materiais e logísticas para seguir uma carreira artística. Consumidas pelo infindável traba- lho doméstico e de criação dos filhos, não restava tempo para que se dedicassem a outras atividades. Além disso, as mulheres não tinham acesso à educação como os homens, e mesmo a entrada delas nas uni- versidades era algo recente, do século XX. Nesse sentido, a ausência de tempo e espaço físico, como um escritório, para pensar sobre escrever dificultava o exercício dessa prática. Woolf (2014) defende que se as mulheres possuíssem renda própria não teriam o casamento como obrigação. No entanto, para isso, era preci- so que o trabalho da mulher fosse socialmente aceito, algo que começou a ser incorporado na sociedade apenas após a Segunda Guerra Mundial. Com um emprego, a mulher daria conta de sua subsistência material e contaria com um espaço privado para si, podendo escolher não constituir uma família, por exemplo, e dedicar-se à carreira como ficcionista. A ensaísta aponta para as inúmeras representações de mulheres na literatura produzida por homens, desde as tragédias gregas. O pro- blema é que essas personagens geralmente construíam uma ideia de mulher como um ser ora diabólico, ora fragilizado. Não havia uma fic- cionalização fidedigna da mulher no mundo real, que “era trancada, espancada e jogada de um lado para outro” (WOOLF, 2014, p. 66). Mais adiante, Woolf especula a existência de escritoras no decorrer dos sé- culos, mas suas obras foram esquecidas ou relegadas a segundo plano devido ao veto patriarcal imposto contra as mulheres. A mínima autonomia que vai constituindo-se a partir do século XX co- meça a permitir que as mulheres frequentem espaços e eventos públicos até então restritos aos homens. Isso é importante porque permite que es- sas escritoras se relacionem com seus pares e tenham trocas intelectuais que, quando isoladas, não eram possíveis. Desse modo, o advento do voto feminino e a abertura do mercado de trabalho para elas foram o que per- mitiu essa tímida caminhada rumo à independência das mulheres. Apesar disso tudo, percebemos como o ingresso das mulheres na literatura deu-se de modo vagaroso e conflituoso. No contexto brasilei- ro, por exemplo, apenas na década de 2010 é que autoras do século XIX começaram a ser recuperadas pela historiografia literária. Alguns no- mes são os das romancistas Maria Firmino dos Reis e Julia Lopes de Al- meida, além da poeta Francisca Júlia. Um grande nome na poesia é o de Gilka Machado, carioca que começou sua carreira no início do século XX. Sobre isso, Steffen (2019) observa que os renomados compêndios de história da literatura simplesmente omitemo nome da poeta ou, quando a citam, enxergam sua poesia como menor. Gilka sofreu o machismo da época. De acordo com Dal Farra (2017, p. 28), ela “nunca pode gozar de uma educação formal”. Fora isso, sua poesia é considerada simbo- lista, embora ela produza durante o período mo- dernista também, o que demonstra a solidez do projeto estético da poeta. Seu primeiro livro foi Cristais partidos (1915) e contou com o prefácio de Olavo Bilac. Apesar disso, seu reconhecimento deu-se apenas após a sua morte e a recente publicação de sua obra completa, em 2017. Dal Farra (2017) ratifica a tese de Vir- ginia Woolf ao apontar que o maior de- safio de Gilka foi contornar a carência de dinheiro, agravada após a morte de seu marido, sendo esse um tema recorrente em seus poemas. Outros temas recor- rentes são a maternidade, a sensualida- de e o transcendental. Enquanto poeta O termo poetisa começou a ser usado para as mu- lheres como um feminino pejorativo de poeta. No entendimento dos escrito- res da época, o título de poeta era concedido apenas para os grandes nomes da literatura, ou seja, uma mulher jamais alcançaria esse lugar. Atualmente, o termo é rejeitado pela maioria das poetas, que lutam pela equivalência de seus tra- balhos junto ao mercado editorial e crítica literária. Atenção 9898 Teoria da Literatura IITeoria da Literatura II Dr aw la b1 9/ Sh ut te rs to ck Dr aw la b1 9/ Sh ut te rs to ck Poesia e outros discursos 99 parnasiana, vale-se dos versos alexandrinos, metáforas, sinestesia e rimas raras. Vejamos como isso acontece no poema Volúpia (MACHADO, 2017, p. 153). O eu lírico confirma-se enquanto escritora. Percebemos a evocação forte aos sentidos, o veneno forte, a sensação junto à pessoa amada. O sensualismo figura desde o título do poema. Volúpia Tenho-te, do meu sangue alongada nos veios, À tua sensação me alheio a todo o ambiente; Os meus versos estão completamente cheios do teu veneno forte, invencível e fluente. [...] No período conhecido como Geração de 1945 vemos despontar vá- rias poetas, como Cecilia Meireles, Adélia Prado e Hilda Hilst. De di- ferentes maneiras, elas vão tematizar a condição da mulher escritora em uma sociedade ainda muito conservadora e patriarcal. Isso vem de encontro com a primeira onda feminista europeia, capitaneada pela filósofa e escritora francesa Simone de Beauvoir, cuja obra mais conhe- cida é O segundo sexo (1949). Nesses escritos temos a tematização da mulher nas esferas sexual, psicológica, social e política. A segunda onda feminista, entre os anos 1960 e 1970, traz reivindi- cações mais ligadas à autonomia corporal da mulher, como direitos se- xuais e reprodutivos. Influenciado pelos movimentos antirracistas nos EUA, esse momento feminista destacou-se pela pluralidade, ao aliar-se às pautas de outros grupos marginalizados. Nesse período no Brasil surge a Geração Marginal, ou Geração Mimeógrafo. Foi um movimento majoritariamente jovem e poético. Uma figura marcante do período foi a poeta Ana Cristina Cesar. Seus poemas, assim como os de seus contemporâneos, tinham como marca o uso coloquial da linguagem (inserção de gírias e expressões popula- res), sintaxe simples, versos curtos, versatilidade formal e abordagem de temas importantes para a juventude, como a repressão militar, a descoberta da sexualidade e a passagem para a vida adulta. Ana Cristina Cesar foi das poucas mulheres dessa geração a ser vali- dada pela crítica literária. Sua poesia destaca-se – e até mesmo distan- cia-se – dentre seus colegas, porque Cesar não renuncia ao rigor formal e do estudo constante. Apesar de parecerem simples, seus poemas jo- gam com intertextualidades com outras referências artísticas, como o O filme Colette conta a história real da escritora francesa Gabrielle Colette no início do século XX. Seu drama é a dificuldade em ser reconhecida como romancista em uma so- ciedade ainda machista. Para publicar suas obras, ela usa o pseudônimo do marido, também escritor, que acaba levando a fama com os escritos da esposa. Revoltada, Colette se separa dele e passa a publicar com seu nome, chegando a ser indicada para o Nobel de Literatura. É um filme interessante para conhe- cer mais essa escritora e seus dilemas face ao machismo da época. Direção: Wash Westmorelando. EUA: Number 9 Films, Bleecker Street, 2018. Filme 100 Teoria da Literatura II cinema, as artes plásticas, a escultura. No nível temático, a poeta tem como projeto estético brincar com a ideia do eu lírico intimista e con- fessional, lugar comum da mulher. Cesar explora isso escrevendo poe- mas-cartas e poemas-diários. Neles, as questões ligadas ao universo feminino são constantes, abordadas com uma fina ironia. Leiamos os seguintes versos de Samba-canção (CESAR, 2016, p. 113). Samba-canção Tantos poemas que perdi. Tantos que ouvi, de graça, pelo telefone – taí, eu fiz tudo pra você gostar, fui mulher vulgar, meia-bruxa, meia-fera, risinho modernistas arranhado na garganta, malandra, bicha, bem viada, vândala, talvez maquiavélica Escrito em versos livres e brancos, traz um eu lírico feminino que tenta de tudo para convencer seu interlocutor de que merece sua atenção. Há a intertextualidade com a música de Carmem Miranda, Pra você gostar de mim. O uso é um modo de demonstrar o cômico da situação: a mulher que faz de tudo pelo ser amado. O eu lírico feminino perpassa por todos os clichês sobre as mulheres, sob um ponto de vista patriarcal, todos em tom pejorativo. Na contemporaneidade, vemos uma poesia escrita por mulheres que dá voz às minorias junto ao conjunto mulheres. São elas escritoras negras, indígenas, lésbicas e de localidades fora do eixo Rio-São Paulo. É uma poesia engajada politicamente e que denuncia as violências co- metidas diariamente contra as mulheres. No Brasil, destacamos Jarid Arraes, Tatiana Pequeno e Lubi Prates. Há, em contrapartida, um interesse da crítica em dar conta dessa produção. Os últimos prêmios literários têm sido atribuídos a mulhe- res, algo que até poucas décadas atrás era raridade. Ainda assim a disparidade entre publicações femininas e masculinas vai levar tempo para ser estabilizada, pois será necessário que as mulheres ocupem também espaços como editoras, críticas literárias e proprietárias de li- vrarias. Apenas assim o circuito, como um todo, poderá ser repensado. Poesia e outros discursos 101 5.3 Poesia e intermidialidade Vídeo Com o advento da internet, todas as manifestações artísticas foram influenciadas. Isso está presente não apenas na literatura, mas no ci- nema – com o cinema digital, ao invés da película –, na música – que agora é fruída em aplicativos –, na fotografia – que é digital e facilmente divulgada. Poderíamos citar outros exemplos, mas esses dão conta da revolução que foi a internet e os novos suportes midiáticos no nosso modo de consumir arte. A poesia certamente foi a manifestação literária mais afetada por ou- tras mídias. Se remontarmos ao século XIX, vemos na obra O Guesa erran- te (1888), de Sousândrade, a influência do discurso dos jornais em seus poemas. O uso da página deixa de lado a formatação clássica do poema – organizado em versos e estrofes, alinhados da direita para a esquer- da, ocupando uma pequena mancha na página em branco. A dispersão e profusão de palavras pela página tem influência do poeta simbolista francês Mallarmé. Em seu famoso poema Um lance de dados, ele dispõe os versos usando diferentes fontes e tamanhos em várias páginas. Na segunda metade do século XX o movimento da poesia concreta – não apenas no Brasil, mas também muito forte na Alemanha – trouxe uma nova roupagem para os poemas. Influenciados pelo mestre Mallarmé, os concretos ousaram ainda mais, sobretudo por conta das modernizações técnicas. Os três concretistas brasileiros mais famosos, Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, ousaram com seus poemas inusuais, que eliminavam o eu lírico, o sentimentalismoe a forma comportada. Augusto de Campos, por exemplo, joga com a relação entre poesia e música e aposta nela para extrair significados verbais e visuais. Isso fica evidente no poema Lygia fingers (Figura 1). A obra Viva vaia reúne poemas escritos entre 1949 e 1979, e nela acom- panhamos o percurso de Augusto de Campos pela poesia concreta até seus experimentos com música e poesia objeto. O livro vem acompa- nhado de um CD – que também tem suas faixas disponibilizadas em site – onde dez poemas são musicalizados. Além disso, traz o poema homônimo ao livro, que é um encarte destacável do livro para ser feito de objeto, podendo ser montado e manipulado pelo leitor. CAMPOS, A. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014. Livro 102 Teoria da Literatura II Figura 1 Visualização do poema de Augusto de Campos, Lygia Fingers, em uma tela de monitor. In te lls on /S hu tte rs to ck Fonte: Campos, 2022. Vejam como o uso das cores e as palavras picotadas se entrelaçam na criação de sentidos, bem como a mistura de idiomas, proporcionan- do múltiplas leituras. Famosos dessa época são os poemas visuais (Figura 2) de Decio Pignatari, influenciado pelo discurso publicitário. A poesia concreta caracteriza-se por ser verbivocovisual, ou seja, ela apela para sua dimensão escrita, falada e vista. O poema passa a ser desenquadrado, passando a correr livre pelas páginas. Destacamos, ainda, a publicação de Carlito Azevedo, O livro das pos- tagens, ao emular o trabalho do filósofo alemão Walter Benjamin, Car- lito aposta em uma escrita fragmentária e debitária dos aplicativos de troca de mensagens que usamos hoje em dia, além da dicção cara às postagens em redes sociais. Nessa obra, acompanhamos a relação amorosa de duas pessoas que ocorre por meio de trocas de mensagens e fragmentos poéticos. O aspecto fragmentário ressalta a dinâmica própria da internet, em que o consumo de conteúdo é frenético e randômico, dificultando nossa apreensão dos sentidos. Figura 2 Visualização do poema, beba coca cola, de Decio Pignatari em uma tela de smartphone. M PF ph ot og ra ph y/ Sh ut te rs to ck Fonte: Pignatari, 2012. Poesia e outros discursos 103 Atualmente, vemos em páginas do Facebook e perfis do Instagram a divulgação de poemas que são escritos para caber no formato dessas mídias. Geralmente, esses poemas são curtos e de forte impacto visual. Portanto, é criado um meio de divulgação da poesia que já não prescin- de mais do suporte físico do livro. CONSIDERAÇÕES FINAIS A poesia do século XX mostra-se diversificada, complexa e dinâmica como também têm sido os acontecimentos históricos, sociais, econômi- cos e técnicos durante esse século. A profusão de episódios históricos e traumáticos foram abordados de diferentes modos pelas artes, tendo na poesia sua reflexão linguística. Os movimentos sociais na metade do século XX também foram im- portantes para a poesia, mostrando como é impossível distanciar uma obra de seu contexto, como ingenuamente acreditavam os formalistas russos. Na verdade, os estudos culturais mostram, portanto, como texto e contexto são interdependentes. ATIVIDADES Atividade 1 Quais as características da poesia escrita no pós-Segunda Guerra Mundial? Atividade 2 Qual o argumento de Virginia Woolf no ensaio Um teto todo seu acerca das mulheres de sua época perante a sociedade na ótica masculina? 104 Teoria da Literatura II Atividade 3 Observe o poema Lixo, luxo (1965), de Augusto de Campos, e faça uma análise que leve em consideração seu aspecto histórico, contextual e formal. REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. São Paulo: Ed. 34, 2012. ANDRADE, C. D. Nova reunião: 23 livros de poesia. São Paulo: Cia das Letras, 2015. BAUDELAIRE, C. As flores do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2019. BENJAMIN, W. Obras escolhidas III – Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 2011. CANDIDO, A. Estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas, 2006. CAMPOS, A. Lygia Fingers (1953). Augusto de Campos, 2022. Disponível em: https://www. augustodecampos.com.br/poemas.htm. Acesso em: 23 nov. 2022. CELAN, P. Cristal. São Paulo: Iluminuras, 1999. CESAR, A. C. A teus pés. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. DAL FARRA, M. L. Gilka – a mulher proibida. In: MACHADO, G. Poesia completa. São Paulo: Demônio Negro, 2017. HAMBURGER, M. A verdade da poesia. São Paulo: Cosac Naify, 2007. KANT, I. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime: ensaio sobre as doenças mentais. Coimbra: Edições 70, 2012. KULISKY, Y. O Sprachgitter de Paul Celan: uma tradução. 2017. Monografia (Graduação em Letras), Universidade Federal do Paraná, Curitiba. MACHADO, G. Poesia completa. São Paulo: Demônio Negro, 2017. PIGNATARI, D. Beba coca cola. Poesias Poemas e Versos, 2012. Disponível em: https:// poesiaspoemaseversos.com.br/decio-pignatari/. Acesso em: 23 nov. 2022. PRZYBYCIEN, R. A arte de Wislawa Szymborska In: SZYMBORSKA, W. [poemas]. São Paulo: Cias das Letras, 2011. (Prefácio) ROSENFIELD, K. Estética. São Paulo: Zahar, 2006. STEFFEN, A. C. Gilka Machado e o simbolismo. Revista Garrafa, v. 17, n. 48, p. 8-21, 2019. WOOLF, V. Um teto todo seu. São Paulo: Tordesilhas, 2014. https://www.augustodecampos.com.br/poemas.htm https://www.augustodecampos.com.br/poemas.htm https://poesiaspoemaseversos.com.br/decio-pignatari/ https://poesiaspoemaseversos.com.br/decio-pignatari/ Resolução das atividades 1 Introdução à poesia 1. Aponte as diferenças entre as epopeias da Antiguidade Clássica e as epopeias modernas. A epopeia clássica, manifestação do gênero épico, abordava grandes feitos históricos de heróis e deuses gregos. Como a impressão de livros ainda não existia, elas eram recitadas pelos aedos – como Homero – e contavam com acompanhamento musical, a fim de facilitar a memorização do público. Já as epopeias modernas, como Os Lusíadas, trazem heróis do próprio povo – nesse caso Vasco da Gama, responsável por encabeçar as navegações e conquistas territoriais portuguesas. 2. Com base nos estudos sobre artes poéticas, escolha algumas delas e estabeleça pontos em comum e de discordância entre elas. Platão foi primeiro a discorrer sobre o lugar do poeta em seu modelo de cidade ideal e é o filósofo que apresenta o ponto de vista mais díspar acerca do fazer poético e da noção de mimesis. Segundo o filósofo, pautado em sua noção de mundo das ideias, onde residira a perfeição, a poesia vai radicalmente contra suas ideias, pois ela é a imitação do que está no mundo dos sentidos, este em que vivemos, cujas sensações já são uma réplica da realidade, acessível apenas pelo mundo das ideias. Nesse sentido, o poeta é um mentiroso em segundo grau e sua arte serviria apenas para deturpar o acesso à realidade. Em contrapartida, temos filósofos, como Aristóteles e Horácio, que apresentam concepções de mimesis mais apuradas, encarando-a não como mera cópia da realidade, mas como possibilidade de criar mundos possíveis a partir de nossos conhecimentos de mundo, desde que ligados à noção de verossimilhança. 3. Discorra sobre a relação entre poesia e oralidade. Em seguida, analise como essa relação se dá junto a outros povos que não os ocidentais. Dado que a fala precede a escrita, as manifestações literárias artísticas – como as epopeias e os dramas gregos – trazem forte ligação com a oralidade. Nesse sentido, observamos que epopeias primordiais como a Ilíada e a Odisseia foram cantadas por um aedo – Homero – que recitava os versos com acompanhamento musical para facilitar a memorização dos ouvintes. Resolução das atividades 105 No que diz respeitos aos povos indígenas e quilombolas, vemos que ainda hoje, para a maioria deles, a oralidade é importante não apenas para a manutenção de suas tradições culturais e artísticas, mas também de suas histórias e mitos fundacionais. Diferentemente da passagem da fala para escrita experienciada no contexto europeu, essas populações permaneceramregistrando e transmitindo oralmente, de geração para geração, seus saberes. 2 Aspectos formais do poema 1. Leia o haicai a seguir e analise-o de acordo com sua forma e conteúdo. O poema é um haicai, modelo de escrita japonesa que se caracteriza por sua divisão em três versos, sendo dois deles redondilhas menores – o primeiro e o terceiro – e um deles em redondilha maior – o segundo. Ainda, há ausência de título e rimas. Sua temática remete à natureza e sua singeleza e delicadeza. O uso de palavras concretas e a ausência de adjetivos denotam seu forte poder de síntese. 2. Analise o poema de Vinicius de Moraes levando em consideração o uso das figuras de linguagem e seu estilo formal. A forma usada é o soneto, que consiste em quatro estrofes, sendo dois quartetos seguidos de dois tercetos, com metrificação em decassílabos heroicos (com as tônicas na sexta e décima sílabas poéticas). Além disso, há rimas ricas, ou seja, entre palavras de diferentes classes gramaticais, como em ama e chama. Temos a comparação, nos versos “Eu possa me dizer do amor (que tive) / Que não seja imortal, posto que é chama”, em que o amor é comparado à chama, dando a ideia de intensidade. 3. De acordo com os traços que compõem um poema, analise formalmente o seguinte poema de Baudelaire. Poeta Romântico, o francês Charles Baudelaire ainda usa formas fixas como o soneto. Reconhecemos por meio de seus dois quartetos seguidos por dois tercetos, ou seja, soneto petrarquiano. Além disso, os versos contêm onze sílabas poéticas. O esquema rímico não obedece a uma lógica específica. Percebemos rimas toantes na segunda estrofe, entre estátua e mata e, ainda, em tufão (substantivo) e então (advérbio). No nível contextual vemos um eu lírico melancólico que se vê deslocado em uma sociedade que se moderniza e individualiza-se. A passante é apenas mais uma na multidão, e o eu lírico sabe que é impossível reter alguma 106 Teoria da Literatura II informação sobre ela que permita revê-la. O tom mórbido vem em “só te verei de novo na eternidade?”, ou seja, após a morte. 3 Poesia brasileira dos séculos XVIII e XIX 1. Leia o poema Amor de Álvares de Azevedo e, a partir dele, identifique a qual momento literário pertence. Em seguida, proceda a uma análise formal e conteudística desse poema. O poema, escrito pelo poeta romântico Álvares de Azevedo, pertence ao Romantismo brasileiro. De modo geral, as características dessa escola literária são: presença acentuada de um eu lírico, desejo de construção de um herói nacional (no caso, o indígena), visão idealizada da mulher amada, desejo de evasão da realidade, temáticas mórbidas, amores platônicos e poemas abolicionistas, que denunciavam a situação dos povos escravizados no Brasil. O Romantismo divide-se em três momentos: Indianismo, Ultrarromantismo e Condoeirismo. O poema de Azevedo pertence ao segundo momento romântico, o Ultrarromantismo. Isso evidencia-se pela temática amorosa – que dá título ao poema –, abordada de um ponto de vista idealizado e sofrido. As palavras usadas, como “sofrer”, “desmaiar” e “morrer”, demonstram isso. Ao mesmo tempo, o amor é posto como sua redenção, como em: “No enlevo do seio teu! / Quero viver d’esperança!”. Apesar disso, o eu lírico almeja uma fuga da realidade junto à amada, a fim de que escapem às dores do mundo. No caso, essa fuga está ligada à morte de ambos: “Morrer contigo de amor!”. No nível formal, destaca-se o uso de redondilhas maiores, ou seja, versos com sete sílabas poéticas. Além disso, há rimas assonantes, ou seja, ao final de cada verso com terminações idênticas. Algumas delas podem ser vistas como pobres devido à obviedade e lugar comum, como em “beber” e “morrer” ou “sentir” e dormir”. As estrofes não seguem nenhuma forma fixa, característica do Romantismo, que visava a uma ruptura com os padrões engessados da escrita neoclássica. 2. Compare os poemas Livre, de Cruz e Sousa, e Língua Portuguesa, de Olavo Bilac, identificando seus pontos de aproximação e suas diferenças. Justifique sua resposta. O primeiro poema, escrito por Cruz e Sousa, pertence ao Simbolismo. Nele percebemos a presença de duas dimensões: uma ligada à matéria (o corpo flagelado do escravo) e outra dimensão subjetiva, relacionada à liberdade, à sublimação da realidade. Esse conflito aparece em poemas dessa escola literária. Além disso, Resolução das atividades 107 percebemos alguns vocábulos escritos com letras maiúsculas para destacar a imensidão e transcendência destes, como em “Dons”, “Natureza” e “Amor”. Essa é uma característica que vemos também no Parnasianismo, embora nele as palavras em maiúsculas tenham um sentido mais material e concreto do que místico e religioso como no poema de Cruz e Sousa. Além disso, o poema Livre é um soneto – escrito em decassílabos sáficos –, forma escolhida pelos simbolistas, assim como pelos parnasianos. Já o segundo soneto, escrito por Olavo Bilac, pertence ao Parnasianismo. A temática é a própria língua, ou seja, é um poema metalinguístico. A ideia da arte pela arte é reforçada aqui, onde o poeta ocupa-se da língua como matéria desligada de seu contexto. Temos a presença de rimas ricas, ou seja, entre classes gramaticais diferentes, e o uso de um vocabulário elevado, como em “clangor” e “procela”. O eu lírico encara o idioma simultaneamente como selvagem e primoroso. Apesar da temática, percebemos algum lirismo da parte de Bilac ao associar o português a uma lembrança de infância: “Em que da voz materna ouvi: ‘meu filho!’”. 3. Leia o poema Lira II de Tomás Antônio Gonzaga e analise-o de acordo com seu contexto de produção. Atente, ainda, para os aspectos formais do poema. Trata-se de um poema (uma lira) do árcade Tomás Antonio Gonzaga, presente na obra autobiográfica Marília de Dirceu. É uma obra escrita durante o exílio do poeta, condenado devido à sua participação na Inconfidência Mineira. Foi por causa disso que deixou de se casar com sua amada, aqui representada pela personagem Marília. O Arcadismo, escola literária da qual o poeta faz parte, tem como características a ficcionalização de um eu lírico campestre que versa sobre uma vida bucólica idealizada com a mulher amada. Além disso, há a presença de figuras caras à tradição clássica greco-romana, como Narciso, Pluto (deus da riqueza) e Jove (deus do dia), traços do Neoclassicismo. Esses deuses convivem simultaneamente com humanos. Apesar de ser uma lira, vemos que a estrutura do poema obedece a um regime singular. São quartetos compostos de dois decassílabos e dois hexassílabos e sem rimas assonantes, isso porque Gonzaga já dava mostras de características do Romantismo, como o lirismo acentuado e a liberdade formal 108 Teoria da Literatura II 4 Poesia brasileira dos séculos XX e XXI 1. A partir do poema Canto de regresso à pátria, de Oswald de Andrade, identifique a qual momento literário ele pertence, justificando por meio de uma análise formal e contextual. O poema foi escrito por Oswald de Andrade, expoente do Modernismo de 1922. Esse movimento vem como uma resposta à estética parnasiana, ainda calcada em uma escrita sóbria e racional. No poema vemos a intertextualidade e paródia com um dos poemas mais famosos da língua portuguesa, Canção do exílio, do poeta romântico Gonçalves Dias. Andrade trabalha com a quase coincidência dos versos originais, mas prefere lançar mão da ironia para isso, como ao dizer “E quase mais amores”, considerando que a comparação é entre Brasil e Portugal. Em vez de exílio saudoso, o eu lírico de Oswald retorna à pátria e está mais interessado no futuro que no passado, como evidencia os versos: “Sem que veja a Rua 15 / E o progresso de São Paulo”. 2. Observe o poema concretista life, de Décio Pignatari, de 1957, e faça uma análise, levando em consideração sua autoria e sua data de publicação. O poema de Décio Pignatari, poeta pertencente ao Concretismo brasileiro, reflete o movimento literário que tem como característicasser lida como um livro ou tratado. Curiosidade M id oS em se m /S hu tte rs to ck Escultura do busto de Aristóteles, renomado filósofo grego. 14 Teoria da Literatura II vras, que já morreram, renascerão e morrerão muitas que agora estão em voga, se o uso quiser, o uso a quem pertence o arbítrio e o direito e a regra do falar” (ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO, 2014, p. 70). A noção de elasticidade da língua é pioneira e digna de atenção. Por fim, Horácio julga o belo com base na estrutura da obra e o poe- ta como um ser que nasce com tal destino e vocação (FERREIRA, 2017). Adverte, ainda, sobre a necessidade de os poetas não terem pressa para mostrar seus escritos aos mais experientes, sob pena de serem ri- dicularizados. Para Horácio, é essencial a espera e a releitura para con- vencer-se de que o texto continua fazendo sentido e é realmente bom. Finalmente, temos a obra Do sublime, cuja autoria é atribuída a Longino, embora isso seja contestado e alguns críticos prefiram consi- derá-la como anônima (ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO, 2014). Nesse texto, a literatura é encarada como uma arte superior às demais, pois encarnaria de modo exemplar o que o autor denomina sublime. Nas pa- lavras de Longino, “a literatura, se nos permite essa expressão vaga, é de longe superior à estatuária, porque, por definição, a finalidade do discur- so é sobre-humano” (ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO, 2014, p. 33-34). Assim, por meio da literatura, o escritor é capaz de fantasiar e ficcionali- zar, levando-nos a um plano para além do humano (ARAÚJO, 2015). Considerando o conceito de sublime como o cerne de sua argumen- tação, Longino vai distanciá-lo do simples conhecimento técnico da re- tórica – como vimos nos demais autores – e aproximá-lo do inefável, ou seja, algo que escapa à compreensão racional dos leitores. 1.2 Poesia, oralidade e musicalidade Vídeo A fala precede a escrita e isso nos mostra que as primeiras ma- nifestações artísticas poéticas têm forte vínculo com a oralidade. Durante muitos séculos, os impressos eram de difícil acesso, e sua reprodutibilidade é um fato recente. Nesse sentido, a ligação entre poesia e oralidade é estreita. Segundo a professora Santaella (2002), no corpo humano não há nenhum órgão específico para a fala, ou seja, é a junção de um con- junto de órgãos que a torna possível. Nesse sentido, a fala seria uma excrescência, que passa a ser articulada visando à comunicação e in- teração entres os seres humanos. O livro Aristóteles ou o vampiro do teatro ocidental, de Florence Dupont, é uma ótima releitura de A Poética, de Aristóteles. Nessa obra, a autora aponta para o fato de que Aristóteles opera uma cisão do teatro entre o texto e as demais práticas ligadas à encenação de uma peça, como a música, a plateia e o coro. O filósofo os encara como simples adereços e foca exclusiva- mente na letra do texto. Dupont demonstra, por fim, como a prescrição aristotélica tornou-se, no decorrer dos séculos, a leitura hegemônica da dramaturgia, bem como a necessidade de uma leitura pós-aristotélica. DUPONT, F. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2017. Livro Você sabia que a primeira forma de escrita foi criada pelos sumérios? Ela era chamada de escrita cuneiforme, pois era feita com uma ferramenta de ferro chamada cunha, ge- ralmente usada para ins- crever textos em pedras. Desse modo, era possível registrar com precisão o que geralmente era esquecido com a fala. Curiosidade excrescência: demasia, excesso, superfluidade (PRIBERAM, 2022). Glossário vras, que já morreram, renascerão e morrerão muitas que agora estão em voga, se o uso quiser, o uso a quem pertence o arbítrio e o direito e a regra do falar” (ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO, 2014, p. 70). A noção de elasticidade da língua é pioneira e digna de atenção. Por fim, Horácio julga o belo com base na estrutura da obra e o poe- ta como um ser que nasce com tal destino e vocação (FERREIRA, 2017). Adverte, ainda, sobre a necessidade de os poetas não terem pressa para mostrar seus escritos aos mais experientes, sob pena de serem ri- dicularizados. Para Horácio, é essencial a espera e a releitura para con- vencer-se de que o texto continua fazendo sentido e é realmente bom. Finalmente, temos a obra Do sublime, cuja autoria é atribuída a Longino, embora isso seja contestado e alguns críticos prefiram consi- derá-la como anônima (ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO, 2014). Nesse texto, a literatura é encarada como uma arte superior às demais, pois encarnaria de modo exemplar o que o autor denomina sublime. Nas pa- lavras de Longino, “a literatura, se nos permite essa expressão vaga, é de longe superior à estatuária, porque, por definição, a finalidade do discur- so é sobre-humano” (ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO, 2014, p. 33-34). Assim, por meio da literatura, o escritor é capaz de fantasiar e ficcionali- zar, levando-nos a um plano para além do humano (ARAÚJO, 2015). Considerando o conceito de sublime como o cerne de sua argumen- tação, Longino vai distanciá-lo do simples conhecimento técnico da re- tórica – como vimos nos demais autores – e aproximá-lo do inefável, ou seja, algo que escapa à compreensão racional dos leitores. 1.2 Poesia, oralidade e musicalidade Vídeo A fala precede a escrita e isso nos mostra que as primeiras ma- nifestações artísticas poéticas têm forte vínculo com a oralidade. Durante muitos séculos, os impressos eram de difícil acesso, e sua reprodutibilidade é um fato recente. Nesse sentido, a ligação entre poesia e oralidade é estreita. Segundo a professora Santaella (2002), no corpo humano não há nenhum órgão específico para a fala, ou seja, é a junção de um con- junto de órgãos que a torna possível. Nesse sentido, a fala seria uma excrescência, que passa a ser articulada visando à comunicação e in- teração entres os seres humanos. O livro Aristóteles ou o vampiro do teatro ocidental, de Florence Dupont, é uma ótima releitura de A Poética, de Aristóteles. Nessa obra, a autora aponta para o fato de que Aristóteles opera uma cisão do teatro entre o texto e as demais práticas ligadas à encenação de uma peça, como a música, a plateia e o coro. O filósofo os encara como simples adereços e foca exclusiva- mente na letra do texto. Dupont demonstra, por fim, como a prescrição aristotélica tornou-se, no decorrer dos séculos, a leitura hegemônica da dramaturgia, bem como a necessidade de uma leitura pós-aristotélica. DUPONT, F. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2017. Livro Você sabia que a primeira forma de escrita foi criada pelos sumérios? Ela era chamada de escrita cuneiforme, pois era feita com uma ferramenta de ferro chamada cunha, ge- ralmente usada para ins- crever textos em pedras. Desse modo, era possível registrar com precisão o que geralmente era esquecido com a fala. Curiosidade excrescência: demasia, excesso, superfluidade (PRIBERAM, 2022). Glossário Segundo West (2001), os poemas épicos gregos eram transmiti- dos e recitados oralmente, com acompanhamento musical. Para o autor, mesmo antes de Homero – entre os séculos XII e VIII a.C. –, a poesia era transmitida dessa maneira de modo a facilitar a memori- zação dos textos pelos seus ouvintes. Ainda a esse respeito, Nuñez (2011, p. 233) afirma: Desde os primórdios da tradição grega, a imagem do aedo em- punhando um instrumento de cordas [...] remete a uma dupla investidura: por um lado, constitui o arquétipo do artista e da própria arte; por outro, consagra o lugar da palavra cantada e da oralidade. Uma demonstração dessa ligação entre poesia e música pode ser vista na abertura do poema épico de Homero, a Ilíada: “Canta-me a cólera – ó musa! – funesta de Aquiles Pelida” (HOMERO, 1996, p. 46). Como podemos verificar, o poeta pede auxílio às musas que serão res- ponsáveis por cantar-lhe a história usando o poeta, no caso, o aedo, como instrumento de transmissão. Como observa Lobo (2015, p. 195): “Na poesia oral, a voz assumea abolição do verso tal como conhecemos, retilíneo, além da omissão do eu lírico e da importância à imagética do poema. Em life (vida em inglês) vemos a constituição progressiva do significado da palavra, que visualmente transforma-se no símbolo do infinito. A partir disso podemos derivar diversas leituras, como o infinito das leituras do poema ou até mesmo da própria vida. 3. Observe o poema Não discuto, de Paulo Leminski, e disserte sobre sua temática e construção formal, de acordo com o momento literário em que foi escrito. Como um poeta relevante da Geração Marginal, Leminski é dono de um projeto estético semelhante aos de seus colegas de geração. A poesia coloquial, afastada da cerimoniosa norma culta, apresenta o retorno do eu lírico, da métrica e das rimas. Além disso, a economia verbal é outra característica importante. Com isso, vemos que com poucas palavras e com cara de slogan publicitário o poema nos põe a pensar no futuro como algo incontrolável, mas que o eu lírico mostra-se disposto a abraçar. O poema é uma quadra, com quatro versos, que são trissílabos. Por fim, vemos rimas em, por exemplo, destino e assino. Resolução das atividades 109 5 Poesia e outros discursos 1. Quais as características da poesia escrita no pós-Segunda Guerra Mundial? É uma poesia que é caracterizada como antipoesia, segundo Hamburger. Os poetas, movidos pelos horrores da guerra, adotam diferentes estratégias – como a simplicidade dos versos ou obscurecimentos deles – para dar conta dessas experiências. Há, simultaneamente, um desejo de ser compreendido e de mostrar a dificuldade de compreensão. 2. Qual o argumento de Virginia Woolf no ensaio Um teto todo seu acerca das mulheres de sua época perante a sociedade na ótica masculina? Nesse ensaio a escritora aponta para a dificuldade das mulheres em exercer o ofício da escrita. Remontando desde o início da história ocidental, ela traz exemplos de como a mulher sempre foi retratada pelo olhar masculino, num maniqueísmo bruxa versus santa. A tese defendida por Woolf é a de que as mulheres precisam de autonomia financeira e um espaço próprio para serem autônomas e exercerem a atividade que quiserem. 3. Observe o poema Lixo, luxo (1965), de Augusto de Campos, e faça uma análise que leve em consideração seu aspecto histórico, contextual e formal. Trata-se de um poema concretista, escrito por Augusto de Campos. O Concretismo surge em contexto de explosão do discurso publicitário e novas tecnologias no mundo da comunicação, como a televisão, os programas de auditório e protótipos de computadores. O poema, com apenas uma palavra, encerra mil interpretações sobre. Vemos que lixo é escrito como a repetição da palavra luxo, um quase homófono. Além disso, podemos pensar em uma crítica ao que a burguesia chama luxo, podendo esse ser cafona. Ou ainda, pensar nas implicações do luxo: a existência de milhares pessoas que produzem esses objetos de luxo, mas ficam apenas com as migalhas: o lixo. 110 Teoria da Literatura II Clarissa Comin Teoria da Literatura II C larissa C om inISBN 978-65-5821-214-0 9 786558 212140 Código Logístico I000689 Página em branco Página em brancosua condição de escritura plena, na qual corpo e memória se articulam integrando, por vezes, fala e escrita ma- terializadas na sonoridade de uma linguagem”. Isto é, para além da oralidade, que funciona como inscrição do texto no real, há, ainda, um exercício mnemônico e corporal que dão conta da expressão literária. 1.2.1 Oralidade e poesia nas sociedades originárias Até aqui viemos falando de um ponto de vista ocidental e europeizado. Fato é que a passagem da oralidade para a escrita não é um movimento universal. Observando diversos povos originários – quilombolas, indíge- nas, ribeirinhos –, percebemos que a oralidade ainda permanece e que suas narrativas (poéticas e religiosas) ainda são transmitidas oralmente. Rezende (2020), ao tratar especificamente da etnia kotiria 3 , vai contra a ideia de que a escrita é ensinada aos indígenas pelos jesuí- tas, pois “os indígenas brasileiros, antes das invasões europeias, não eram desprovidos de escrita, mas independentes de um alfabeto, de modo que suas memórias sempre estiveram guardadas e vêm sendo transmitidas a partir da oralidade” (REZENDE, 2020, p. 152). O pesqui- sador vai além e aponta para o fato de que a escrita para esses povos é, muitas vezes, inscrita: cunha: uma peça de ferro em que uma das pontas vai diminuindo a grossura até terminar em corte para rachar lenha, fender peças, entre outras finali- dades (PRIBERAM, 2022). Glossário São um povo que habita uma região entre o noroeste da Amazônia e o sul da Colômbia. 3 pa se ve n/ Sh ut te rs to ck 1515Introdução à poesiaIntrodução à poesia 16 Teoria da Literatura II os mitos, autênticas narrativas que atravessam o tempo e a his- tória, não são veiculados apenas pela ‘boca e ouvido’. Têm uma inscrição [...] que se define desde o domínio da arte de contar histórias e mitos – no qual a materialidade sonora é um dos gran- des recursos de preservação da identidade da própria língua. (REZENDE apud SOUZA, 2017, p. 38) Nesse sentido, como aponta o pesquisador Guilherme Gontijo Flores (2020, p. 172) a respeito da poesia xamânica marubo 4 : “A vocalidade, ou a poética vocal, aqui se diferencia por marcar que uma determinada obra foi feita para a voz e realizada na voz”. Por fim, é importante res- saltarmos que, apesar de usarmos termos como poesia e poética para nos referirmos aos cantos indígenas, não podemos perder de vista o fato de que essas são nomenclaturas oriundas de uma tradição clássica e ocidental, pautadas ainda nas artes poéticas da Antiguidade Clássica. Para esses povos, os cantos rituais e os mitos cantados ou transmitidos oralmente têm um outro significado junto às suas cosmologias. Pensemos agora nos povos quilombolas – descendentes dos escra- vizados africanos e afrodescendentes que fugiam dos engenhos e re- fugiavam-se em quilombos. À semelhança dos indígenas, esses povos também resguardaram suas tradições por meio da oralidade, mas, às vezes, por motivos diferentes. Vários desses povos vieram de regiões da África em que a escrita já existia, ou seja, suas histórias, mitos e poéticas estavam registradas. Escravizados à força pelos colonizadores portugueses, eles tiveram de recorrer novamente à oralidade para a manutenção de suas culturas. Como atestou o escritor Antônio Bispo dos Santos (2019, p. 9), morador do quilombo Saco do Curtume, Piauí: “Mesmo que queimem a escri- ta, não queimam a oralidade, mesmo que queimem os símbolos, não queimam os significados, mesmo que queimem os corpos, não quei- mam a ancestralidade”. A respeito da festa de louvor a São Roque, celebrada por quilombo- las da região da Baía do Iguapé, as autoras Santos, Alves e Santos (2019, p. 5) afirmam: A festa traz consigo implicações de uma maneira fundamental de ativar um repertório musical [...] através das cantigas, toques musicais, danças, rezas e ritos, transmitidas pela metodologia de oralidade, transmissão específica, aprendida no contínuo fazer das transmissões intergeracionais. Trata-se de um povo indígena que ocupa as terras do sudoeste do estado do Amazonas, na área indígena Vale do Javari. Seu contato com não indígenas aconteceu apenas no início do século XX, quando se deu o início da extração ostensiva da borracha na região. 4 No vídeo Gravação CD Kotiria é possível ouvir os cantos koitiria e entender como a cultura desse povo é transmitida oralmente. Disponível em: https:// www.youtube.com/ watch?v=069obZTjsHo&ab_ channel=MarcosWesleyOliveira. Acesso em: 17 nov. 2022. Vídeo Nessa passagem vemos como os rituais coletivos, mesmo os de cunho religioso, são importantes não apenas para a manutenção iden- titária e cultural, mas também para reafirmar o vínculo com o territó- rio ocupado e as partilhas simbólicas aí entrevistas. A poética desses povos, que se confunde com seus cantos rituais e mitos fundacionais, mostra-nos que há outros modos de preservação das nossas tradições, que escapam às noções de belo, sublime, entre outras. Portanto, é im- portante compreendermos que há outros modos de vida – e, conse- quentemente, de manifestações artísticas – distintos dos nossos e que têm o mesmo valor e relevância. Será que nós, educados e socializados em uma cultura majoritariamente gráfica, seríamos capazes de contar nossas histó- rias, poéticas e cantos oralmente caso perdês- semos todo o acesso aos nossos escritos? Para refletir Na publicação recente de Quatro cantos temos a transcrição – oralitera- tura – de cantos poéticos de Antônio Bispo dos Santos, que dão voz não apenas aos seus ances- trais, mas também às de- mais etnias advindas da diáspora no continente africano. É uma oportu- nidade de conhecer mais sobre a poética de um dos povos que compõe o povo brasileiro. DOS SANTOS, A. B. São Paulo: n-1 edições, 2022. Livro https://www.youtube.com/watch?v=069obZTjsHo&ab_channel=MarcosWesleyOliveira https://www.youtube.com/watch?v=069obZTjsHo&ab_channel=MarcosWesleyOliveira https://www.youtube.com/watch?v=069obZTjsHo&ab_channel=MarcosWesleyOliveira https://www.youtube.com/watch?v=069obZTjsHo&ab_channel=MarcosWesleyOliveira Nessa passagem vemos como os rituais coletivos, mesmo os de cunho religioso, são importantes não apenas para a manutenção iden- titária e cultural, mas também para reafirmar o vínculo com o territó- rio ocupado e as partilhas simbólicas aí entrevistas. A poética desses povos, que se confunde com seus cantos rituais e mitos fundacionais, mostra-nos que há outros modos de preservação das nossas tradições, que escapam às noções de belo, sublime, entre outras. Portanto, é im- portante compreendermos que há outros modos de vida – e, conse- quentemente, de manifestações artísticas – distintos dos nossos e que têm o mesmo valor e relevância. Será que nós, educados e socializados em uma cultura majoritariamente gráfica, seríamos capazes de contar nossas histó- rias, poéticas e cantos oralmente caso perdês- semos todo o acesso aos nossos escritos? Para refletir Na publicação recente de Quatro cantos temos a transcrição – oralitera- tura – de cantos poéticos de Antônio Bispo dos Santos, que dão voz não apenas aos seus ances- trais, mas também às de- mais etnias advindas da diáspora no continente africano. É uma oportu- nidade de conhecer mais sobre a poética de um dos povos que compõe o povo brasileiro. DOS SANTOS, A. B. São Paulo: n-1 edições, 2022. Livro 1.3 A poesia e a épica Vídeo A épica é considerada como o mais antigo dos gêneros literá- rios. Em sua Arte Poética, Aristóteles (2014) vai ressaltá-la como uma poesia narrativa de nível elevado. A manifestação deste gêne- ro é a epopeia, que apresenta os seguintes traços: m at rio sh ka /S hu tt er st oc k lu m a_ ar t/ Sh ut te rs to ck Assuntos ligados ao universo greco-romano Narrativa escrita em versos Uso de figuras de linguagem Composto aos moldes de um poema Exaltação de grandes figuras e feitos Introdução à poesiaIntrodução à poesia 1717 Escultura de Dante Alighieri,o peregrino das nove camadas do inferno. Bl ac kM ac /S hu tt er st oc k Cabe observar que, embora os paradigmas do gênero tenham sido estabelecidos por Aristóteles e demais filósofos da época, a epopeia foi sofrendo alterações durante o passar dos séculos. De maneira mais detalhada, Ramalho e Pereira (2014, p. 3) apontam que poemas épicos ou epopeias são aqueles poemas longos e narra- tivos que integram o heroísmo épico, também compreendido a partir de novos conceitos de heroísmo, e que se organizam nos planos maravilhoso, histórico e literário, através da enunciação de um eu lírico/narrador, antigamente compartilhada pelos rap- sodos e pelos aedos. Veremos a seguir como, na Modernidade – período situado entre o final da Idade Média e o início do Renascimento –, o paradigma do poema épico vai ser reformulado, embora ainda mantenha algumas de suas características centrais. 1.3.1 Análise de epopeias modernas O Renascimento – cujo início é estimado a partir do século XIV – foi marcado não apenas pela passagem do feudalismo para o capitalis- mo (sua fase de acumulação primitiva), mas também por uma nova perspectiva nas artes, nas ciências e na filosofia: o ser humano é posto como centro das coisas. Essa noção vai contra a filosofia medievalista que pregava Deus como ser supremo. Assim, surge a corrente huma- nista, a mais relevante do período. O Renascimento remete à recupera- ção e remodelação de aspectos caros à Antiguidade Clássica. Foi no território que hoje corresponde à Itália – Toscana, Florença – que se deram as primeiras manifestações renascentistas. Nomes clássicos do período são os pintores Michelangelo, Leonardo da Vinci e Rafael, bem como os pensadores Erasmo de Roterdão e Thomas More. No âm- bito da literatura, certamente o destaque é Dante Alighieri e sua famosa epopeia, A Divina Comédia (1304-1321). O enredo gira em torno de Dante e do poeta roma- no Virgílio, que leva Dante em uma viagem espiritual que começa no Inferno e termina no Paraíso. No Inferno, eles percorrem os nove círculos, – divididos de acordo com os pecados cometidos –, nos quais Dante encontra figuras do Antigo e Novo Testamento, além de personagens da mitologia greco-romana. 1818 Teoria da Literatura II Teoria da Literatura II Chegando ao Purgatório, Dante depara-se com almas que se ar- rependeram de seus pecados e buscam a salvação. Cada uma delas encontra-se em um dos círculos correspondentes aos sete pecados capitais. Ao final dessa segunda parte, Dante despede-se de Virgílio, que lá deve ficar por ter sido pagão em vida. Em contrapartida, Dante reencontra Beatriz, sua paixão platônica de quando estava na Terra. A ida ao Paraíso, composto por nove esferas e o Empíreo, é guiada por Beatriz. Chegando à nona esfera, ela despede-se de Dante e quem vai acompanhá-lo é São Bernardo. O objetivo do poeta é ver Deus no Empíreo. São Bernardo intermedeia o encontro, no qual a Santíssima Trindade transmite a Dante conhecimentos acerca das naturezas Divi- na e Humana. O poeta admite a incompreensão diante dos ensinamen- tos e diz: “não é um voo para as minhas asas”. A Divina Comédia retoma o mote da Odisseia, épica grega clássica de Homero, que é a viagem de Ulisses de volta para casa, em Ítaca, em um percurso que leva dez anos. A ideia da viagem é visível na epopeia dantesca – o trajeto do Inferno ao Céu –, bem como os encontros e episódios envolvendo outras figuras importantes. A diferença é que na Odisseia figuram apenas divindades pagãs, enquanto na Divina Comédia ocorre a mescla entre estas e personagens cristãos. Escrita ainda em um período de transição, sua epopeia é considerada como clássica devido à presença de recursos das epopeias gregas, como evocação às Musas na abertura do texto, e de outras figuras greco-roma- nas, além da observância aos pressupostos aristotélicos sobre o gênero. Ó Musas, estendei-me a vossa influência! Ó mente, em que o que vi se refletia, possas ora mostrá-lo em sua essência. (ALEGHIERI, 2016, p. 84) an an as /S hu tte rs to ck Introdução à poesiaIntrodução à poesia 1919 20 Teoria da Literatura II Por outro lado, de acordo com Silva (2017), há pensadores recentes (AUERBACH, 2007; STERZI, 2008) que veem na epopeia de Dante tra- ços de romantismo e modernidade, isso porque A Divina Comédia não foi escrita em latim, como era praxe na época, mas sim em “italiano vulgar”, o dialeto toscano. Esse gesto já sugere um distanciamento do ideal clássico. Essas releituras da obra sob o viés contemporâneo são importantes, posto que o entendimento sempre estará em movimento, de acordo com a época e o lugar onde o texto é lido. Para o pesquisa- dor Sterzi (2008, p. 16), por exemplo: Dante era misturado demais [...] para o gosto ‘humanista’ [...] em sua obra, as tendências de pensamento mais conflituosas coexistem numa mesma sequência de versos, as temporalida- des mais diversas [...] interpelam-se e questionam-se umas às outras [...] só alcançou legibilidade nos séculos XIX e XX [...] po- de-se dizer que sua obra é, em alguma medida, um fenômeno romântico e moderno. Outra epopeia que merece destaque, a primeira escrita em língua portuguesa, é Os Lusíadas (1572), de Luís Vaz de Camões. A obra surge no ápice do Renascimento e trata das navegações e conquistas territo- riais portuguesas. Sua importância vai além da literária, pois solidifica a formação do Estado e da língua portuguesa. Diferentemente do modelo epopeico, Camões põe como herói Vasco da Gama, figura histórica, e demais personagens presentes na história de Portugal. Embora haja tra- ços formais que a equiparem às epopeias clássicas – como a evocação à musa, personagens greco-romanos, divisão em cantos, versos decassíla- bos –, Os Lusíadas destaca-se pelo seu caráter histórico e ficcional. Para finalizar, falemos agora sobre um importante épico brasilei- ro, O Uraguai (1769), escrito por Basílio da Gama durante o período do Arcadismo. A obra narra um evento histórico, a Guerra Guaranítica (1753-1756), que ocorreu entre soldados luso-espanhóis e os índios guaranis. Sua importância deve-se ao fato de contrapor os eventos históricos às narrativas míticas dos povos originários. Segundo Silva (2017), Basílio da Gama traz à tona os anseios da população por sua independência de Portugal para, assim, implementar uma identidade nacional brasileira, com seus próprios heróis – que, no caso de sua epo- peia, são os líderes guaranis Cacambo e Cepé. O Uraguai é dividido em cinco cantos, totalizando 1.377 versos de- cassílabos – com dez pés – e versos brancos – que não têm esquema Introdução à poesia 21 fixo de rimas. Esse último dado é relevante, tendo em vista que foge ao clássico modelo épico e prevê uma prática que será recorrente nas poesias romântica e moderna. Por outro lado, Basílio ainda segue o paradigma do gênero épico: invocação à musa, proposição, dedicatória – o conde de Oeiras –, narração e episódio lírico. Vejamos um exemplo, que se encontra no início da epopeia: Fumam ainda nas desertas praias Lagos de sangue tépidos e impuros Em que ondeiam cadáveres despidos, Pasto de corvos. Dura inda nos vales O rouco som da irada artilheria. MUSA, honremos o Herói que o povo rude Subjugou do Uraguai, e no seu sangue Dos decretos reais lavou a afronta. (GAMA, 2009, p. 35) W ar m _T ai l/S hu tte rs to ck O trecho revela também outra característica da epopeia clássi- ca, que é a evocação à musa, grafado em letras maiúsculas, além da menção imediata ao herói da trama. Alem disso, há uma epígrafe de uma epopeia clássica, Eneida, escrita por Virgílio. Por outro lado, Bosi (2015, p. 65) salienta que “O princípio, ex-abrupto, traz ao leitor a ma- téria mesma do canto [...] É o aqui-e-agora que urge sobre a sensibili- dade de Basílio”. Ou seja, há uma urgência em seu relato, que dispensa prolegômenos, e uma passionalidade aí empreendida. O filme 2001: Uma Odisseia no Espaço é baseado em um conto de ficção cien- tífica de Arthur C. Clarke– corroteirista do filme. O diretor Stanley Kubrick afirma que a inspiração para o título foi a Odisseia de Homero. A analogia por ele feita é a de que, assim como os mares sim- bolizavam para os gregos esse lugar de mistério e algo a ser desbravado, o desbravamento do espaço representaria o mesmo para os seres humanos daquela geração que assistiu à chegada à Lua. Direção: Stanley Kubrick. EUA: MGM; Stanley Kubrick Productions, 1968. Filme prolegômenos: amplo texto introdutório com noções preliminares imprescindíveis para compreender um livro (PRIBERAM, 2022). Glossário 1.4 Poesia e sociedade Vídeo Em seu notório texto Direito à literatura, o crítico literário Antonio Candido equivale o acesso à literatura e sua fruição a um direito humano – como a liberdade, moradia, alimentação. Nas palavras do autor: A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta [...] pode ser um instrumento consciente de 22 Teoria da Literatura II desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restri- ção dos direitos, ou negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual. (CANDIDO, 2011, p. 188) A partir disso, entrevemos a importância da literatura (englobando todos os seus gêneros) não apenas sendo a de elaborar o imaginário, mas também de descobrir a sociedade que nos rodeia, bem como a possibilidade de agirmos sobre ela. Mais adiante, Candido problemati- za, no contexto brasileiro, a pouca oferta e a dificuldade de acesso aos livros, que se deve à falta de investimentos públicos na área e à difícil locomoção aos ambientes propícios ao consumo de literatura. Ou seja, não é que os brasileiros não gostem de ler, mas a falta de investimen- tos e incentivos contínuos os forma desse modo. Em outro artigo, Literatura e vida social, Candido (2006) discorre so- bre como a obra pode, simultaneamente, tanto ser influenciada pelo seu contexto – social, ideológico e de técnicas de comunicação – como exercer influência sobre ele. Para Candido (2006, p. 30): Não convém separar a obra de sua feitura, pois, sociologica- mente ao menos, ela só está acabada no momento em que re- percute e atua, porque, sociologicamente, a arte é um sistema simbólico de comunicação inter-humana [...] todo processo de comunicação pressupõe um comunicante, no caso o artista; um comunicado, ou seja, a obra; um comunicando, que é o público a que se dirige. O trecho indica que a obra, a despeito de suas inerentes caracterís- ticas estruturais, não se desvincula do meio em que é produzida, bem como de seus leitores e da condição social do autor. Pensando especificamente em poesia, foi o filósofo Walter Benjamin (2015) que, ao analisar a obra poética de Charles Baudelaire, observou os fortes efeitos do entorno social na produção do poeta francês. Com a consolidação do capitalismo na Europa, o lugar dos artistas foi rele- gado à marginalidade. Finda a relação com os mecenas e aristocratas, que subsidiavam a classe artística, o poeta foi rebaixado a um lugar de inutilidade, pois seu produto não engrenava no regime capitalista. Sem perder isso de vista, Baudelaire percebe essa alteração e en- carna em si a figura de poeta maldito, destinado à miséria material e falta de reconhecimento. Apesar de traços românticos em sua escri- ta, Baudelaire destaca-se por seus poemas mais viscerais e realistas Introdução à poesia 23 – muitas vezes tendendo ao grotesco, como em Uma carniça, de seu clássico Flores do mal (1985). Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos Numa bela manhã radiante: Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos, Uma carniça repugnante. [...] – Pois há de ser como essa coisa apodrecida, Essa medonha corrupção, Estrela de meus olhos, sol da minha vida, Tu, meu anjo e minha paixão! (BAUDELAIRE, 1985, p. 173) 2 R iv er s/ Sh ut te rs to ck As estrofes revelam um misto de horror com ironia pessimista, ao transformarem um passeio de casal em uma cena horripilante, que cul- mina na analogia que o eu lírico faz entre sua amada e o animal em pu- trefação. O olhar desencantado do poeta revela, em nível metafórico, a descrença na modernidade que se constituía ao seu redor. Quem também refletiu sobre a lírica e a sociedade no contexto moderno foi o filósofo Theodor Adorno (2003). Ele acreditava que, por mais que a produção poética fosse solitária, o poeta não seria capaz de transformar seus sentimentos em absolutos universais, visto que sua escrita também derivava de seu entorno social. Além disso, Adorno (2003, p. 67) acreditava que a universalidade do teor lírico, contudo, é essencialmente social. Só entende aquilo que o poema diz quem escuta, em sua solidão, a voz da humanidade; [...] Por isso mesmo, o pensar sobre a obra de arte está autorizado e comprometido a perguntar concreta- mente pelo teor social, a não se satisfazer com o vago sentimen- to de algo universal e abrangente. Na contemporaneidade, temos exemplos de como a poesia reen- contra-se ao mesmo tempo com a sociedade e a oralidade. Uma delas é o slam 5 , uma batalha de poemas falados realizada em eventos como o SLAM-BR – Campeonato Brasileiro de Poesia Falada. De acordo com D’Alva (2019), o movimento poético é oriundo das periferias e compos- O nome slam vem do in- glês e é uma onomatopeia que significa o som de mãos batendo palmas. 5 24 Teoria da Literatura II to por pessoas negras dessas comunidades. Ele chegou ao Brasil em 2008 e concentra-se sobretudo nas periferias de São Paulo. A temática desses poemas gira em torno de questões políticas e identitárias, como o combate à homofobia, racismo, capitalismo etc. A pesquisadora chama atenção para a participação cada vez mais ex- pressiva de mulheres negras nesses espaços. Os poemas relatam as dificuldades vividas por elas de modo pungente e em uma linguagem acessível e compreensível pelos seus ouvintes. Um dos grupos mais co- nhecidos é o Slam das Minas, que surgiu em São Paulo e rapidamente difundiu-se por todo o país. Vejamos o exemplo de um desses poemas falados, que figura no documentário Slam: Voz de levante. [...] deus eu ando cansada de ser forte eu ando cansada de correr eu ando querendo só andar [...] e se ainda assim um dia: eu retroceder as escadas e devolver a sua tirada com um tapa na cara dirão: – exagero mas só eu e minhas irmãs sabemos o que é vestir preto o dia inteiro (SLAM, 2017) At la sb yA tla s St ud io /S hu tte rs to ck Por fim, salientamos que, diferentemente das epopeias gregas, que em suas origens eram narradas oralmente pelos aedos, no slam o que prevalece é o improviso, ou seja, o vencedor(a) da batalha de poesias é aquele(a) que melhor improvisa. Geralmente é o próprio público que de- libera quem venceu. Estão em questão não apenas o conteúdo, mas tam- bém as rimas usadas, bem como a performance corporal e o uso da voz. CONSIDERAÇÕES FINAIS A poesia está nos fatos, como disse Oswald de Andrade. Mesmo que em seus primeiros estudos os filósofos tenham insistido em uma poética prescritiva, vimos como esta foi remodelando-se no decorrer dos séculos. A diferença entre poética e poema fica clara, mas sabemos agora que poético é aquilo que nos faz suspender a realidade empírica por alguns instantes A slammer e poeta Mel Duarte reúne na antologia Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta poemas de quinze mulheres de vários esta- dos do Brasil. As temáti- cas dos poemas – frutos das batalhas de poesia, nas quais pressupõe-se o improviso – são variadas, mas focam em desigual- dade social, racial e de gênero. A importância das mulheres no movimento é importante, pois, em princípio, esse era um espaço majoritariamente masculino. O livro traz um prefácio alentado, redigi- do pela famosa escritora Conceição Evaristo, fonte de inspiração para as poe- tas jovens. DUARTE, M. (org.).São Paulo: Planeta, 2019. Livro Introdução à poesia 25 para entrarmos em um estado de contemplação que apenas a arte é capaz de nos proporcionar. Somo seres de linguagem, e nossa vocação para re- gistrar nossas histórias e narrativas aparece como algo ancestral. É importante perceber como, a despeito dos paradigmas firmados acer- ca do que é poético ou mesmo do que é poesia, esta foi adaptando-se à sua época, povo e meios técnicos disponíveis. A questão do registro impresso, ainda hoje tão prestigioso, não deixa de ser um resquício de beletrismo clássico. Há várias formas de expressar-se poeticamente prescindindo da escrita e isso não faz dessas narrativas menores ou de pior qualidade. Na contemporaneidade, com a profusão de meios digitais de divulga- ção, a necessidade de ter uma editora por trás de uma obra poética tem diminuído. Publicações independentes ou mesmo o retorno à oralidade têm sido uma forma efetiva de mobilizar vozes marginalizadas que, muitas vezes, não têm sequer acesso aos espaços elitizados de fomento à escrita e a publicações. Portanto, a poesia, com alívio, continua viva e assim per- manecerá, adaptando-se sempre às circunstâncias em que floresce. ATIVIDADES Atividade 1 Aponte as diferenças entre as epopeias da Antiguidade Clássica e as epopeias modernas. Atividade 2 Com base nos estudos sobre artes poéticas, escolha algumas delas e estabeleça pontos em comum e de discordância entre elas. Atividade 3 Discorra sobre a relação entre poesia e oralidade. Em seguida, analise como essa relação se dá junto a outros povos que não os ocidentais. 26 Teoria da Literatura II REFERÊNCIAS ADORNO, T. W. Notas de literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003. ALEGHIERI, D. A Divina Comédia. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2016. ANDRADE, O. Pau Brasil. Rio de Janeiro: Globo, 1990. ANDRADE, O. Manifesto antropófago e outros textos. São Paulo: Penguin, 2018. ARAÚJO, A. K. T. Os caminhos do sublime: Longino, Burke, Kant e Schiller. Saberes – Revista interdisciplinar de Filosofia e Educação, v. 1, 2015. 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Sabemos que os poemas costu- mam ser breves, alinhados ao lado esquerdo da página e divididos em bloquinhos de linhas, que chamamos de estrofes. Além disso, vem-nos à cabeça também a ideia de rimas, da presença de um eu lírico e de palavras raras. Tudo isso é verdade, mas muito mais que isso é possível no mundo da poesia. Ao analisarmos um poema devemos sempre considerar o todo, inseri-lo em um contexto, embora também seja possível dissecá-lo em unidades menores para fins de análise. Com base nisso, aprenderemos quais são os tipos de versos e a defini- ção de estrofes. Em seguida, conheceremos os tipos de rimas. Mais adian- te, veremos quais são as formas fixas de poemas. Por fim, estudaremos as figuras de linguagem mais recorrentes na poesia. Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • conhecer os tipos de versos e a definição de estrofes; • conhecer os tipos de rimas; • conhecer as formas fixas de poemas; • conhecer as figuras de linguagem recorrentes na poesia. Objetivos de aprendizagem 2.1 Os versos Vídeo Grosso modo, podemos dizer que o verso é cada uma das linhas que compõe o poema. Para além disso, segundo Said Ali (2006), o verso – no contexto das línguas românicas – é medido de acordo com regras métricas, e não fonéticas. Ou seja, a separação das sílabas poéticas segue um padrão distinto da separação silábica com a qual estamos habituados. Sobre a tipificação dos versos, temos três possi- bilidades: esdrúxulo, agudo e grave. 28 Teoria da Literatura II A primeira delas é o verso esdrúxulo, que termina com palavras pro- paroxítonas – aquelas cuja sílaba tônica encontra-se no início da palavra, como pêsames, súbito e límpido. Um exemplo clássico seria o primei- ro verso do hino nacional: “Ouviram do Ipiranga, às margens plácidas” (BRASIL, 1973). A segunda tipificação corresponde aos versos agudos, que ter- minam em palavras oxítonas – cuja tônica é a sílaba final, como ardil, fugaz, demais – ou monossílabos tônicos, como luz, pus, triz. Por fim, o terceiro tipo é o verso grave, que termina com pa- lavras paroxítonas, cuja tônica é a segunda sílaba, como sabemos, cadeira, maneira. Por sua vez, para Norma Goldstein (2006), o verso pode ser lido como vocábulo pertencente ao mesmo campo semântico de metro e ritmo. Isso provém da ligação clássica entre poesia e música, pois os versos são divididos em pés rítmicos, que podem ser graves ou fortes. Vejamos nos versos do poema Canção do exílio (DIAS, 2001, p. 77) como são divididas as sílabas de um verso em português. mi / nha / ter / ra / tem / pal / mei / ras on / de / can / ta o / Sa / bi / á. 1 2 3 4 5 6 7 1 2 3 4 5 6 7 O poema é construído em redondilhas maiores – versos com sete sílabas métricas. Porém, a contagem vai apenas até a sílaba mais forte do verso (por isso o primeiro verso é composto por sete sílabas métricas). Além disso, temos um verso grave – com a tônica em uma paroxítona. Temos um verso agudo– com a tônica em uma palavra oxítona. Portanto, para a contagem das sílabas poéticas, devemos ter em mente que: a contagem é reiniciada a cada novo verso do poema; as pontuações não são levadas em consideração na contagem; e os diton- gos podem se transformar em hiatos e vice-versa. 2.1.1 Tipos de versos No que diz respeito à métrica, os versos são divididos de acordo com a quantidade de sílabas poéticas que possuem. São eles: A palavra verso vem do latim versus, que significa língua escrita. Por sua vez, versus advém do vocábulo indo-europeu wer, que significa virar ou dobrar. Na verdade, a palavra é uma metáfora que remonta à cultura agrária dos povos latinos. A metáfora seria a do movimento vertere (virar em latim) que deixava sulcos na terra entre os campos arados com carros de bois. Esses sulcos eram um paralelo ao outro. Saiba mais Aspectos formais do poema 29 Quadro 1 Nomenclatura das sílabas poéticas Número de sílabas poéticas Nomenclatura Uma Monossílabos Duas Dissílabos Três Trissílabo Quatro Tetrassílabo Cinco Pentassílabo ou redondilha menor Seis Hexassílabo Sete Heptassílabo ou redondilha maior Oito Octassílabo Nove Eneassílabo Dez Decassílabo (heroico e sáfico) Onze Hendecassílabo Doze Dodecassílabo ou alexandrino Fonte: Elaborado pela autora. Versos brancos Os versos brancos, que também são conhecidos como soltos, são aqueles que apesar de trazerem métrica definida não possuem mais um jogo de rimas definido. Esse tipo de verso advém da ideia de liberda- de, comumente representada pela cor branca, justificando o seu nome. Ele começa a ser utilizado no século XVIII, durante o Neoclassicismo. Na literatura brasileira, uma das primeiras obras na qual vemos a manifestação dos versos brancos é O Uraguai (1769), de Basílio da Gama. O Uraguai é um poema épico brasileiro que trata dos confli- tos entre jesuítas e povos indígenas. Para o autor, Basílio da Gama, os jesuítas partiam do princípio da catequização para transformar os indígenas em seus escravos. O poeta está situado no movimen- to do Arcadismo, que corresponde ao Neoclassicismo no contexto europeu. Vejamos um trecho (GAMA, 2009, p. 35) do canto primeiro da obra de Gama. 30 Teoria da Literatura II Presença de sinalefas , sendo elas um fenômeno em que há a queda da vogal devido à próxima palavra também iniciar com uma, produzindo uma síntese entre as duas vogais. Uso de versos brancos com rima ausente no final de cada um deles. A metrificação dos versos é dada por meio de decassílabos, ou seja, versos com dez sílabas poéticas. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Quando as sílabas tônicas estão localizadas na sexta e décima do verso, temos um decassílabo heroico. Caso estivessem na quarta e oitava, teríamos um decassílabo sáfico. Fu / mam / ain / da / nas / de / ser / tas / prai / as La / gos / de / san / gue / té / pi / dos/ e im / pu / ros Em / que on / dei / am / ca / dá / ve / res / des / pi / dos, Pas / to / de / cor / vos. / Du / ra in / da / nos / va / les O / rou / co / som / da i / ra / da ar / ti / lhe / ri / a. Versos livres Os versos livres, também chamados irregulares, são aqueles que não obedecem a um esquema métrico definido. Eles passam a ser usados a partir do Modernismo, no início do século XX, e tornam-se a regra na poesia contemporânea. Todavia, os poemas escritos sob esse regime continuam trazendo ritmo e musicalidade, características inerentes à poesia. Sabemos que o Parnasianismo é caracterizado como uma escola afeita ao equilíbrio das formas, tendo como sua principal manifesta- ção o soneto, uma forma fixa. Em contraposição a essas características temos um dos poemas mais significativos que traz versos livres que trata justamente desse assunto, sendo ele o poema Poética (BANDEIRA, 2013, p. 73) de Manuel Bandeira. Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem-comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor. [...] O poema faz uso de versos livres, já estabelecidos àquele momento, no início do século XX. Percebível pela irregularidade da extensão dos versos. O eu lírico critica a poética vigente até aquele momento, que era a parnasiana. Aspectos formais do poema 31 Redondilhas Há dois tipos de redondilhas: maiores e menores. As redondilhas menores dizem respeito aos versos pentassílabos, enquanto as maiores são versos heptassílabos. Vejamos isso nos exemplos extraídos, respectivamente, do poema de Camões (2022) e de Dias (2001). Redondilha menor: A / que / la / ca / ti / va 1 2 3 4 5 que / me / tem / ca / ti / vo 1 2 3 4 5 Redondilha maior: mi / nha / ter / ra / tem / pal / mei / ras 1 2 3 4 5 6 7 Exemplo As redondilhas menores foram bastante usadas durante a escola literária chamada Trovadorismo, na composição das cantigas medievais – cantigas de amor, amigo, escárnio e maldizer –, e durante o Renasci- mento, observado, por exemplo, na dramaturgia de Gil Vicente. 2.1.2 Estrofes Um outro segmento composicional do poema são as estrofes, um conjunto de versos. Há vários tipos de estrofes. Observemos o Quadro 2 para entender melhor como elas se organizam. Quadro 2 Nomenclatura dos tipos de estrofes Número de versos Nomenclatura Um verso Monóstico Dois versos Dístico Três versos Terceto Quatro versos Quarteto ou quadra Cinco versos Quintilha ou quinteto Seis versos Sextilha ou sexteto Continua 32 Teoria da Literatura II Número de versos Nomenclatura Sete versos Septilha ou sétima Oito versos Oitava Nove versos Nona ou novena Dez versos Décima Onze versos ou mais Irregular Fonte: Elaborado pela autora. Segundo Goldstein (2006), até o século XIX as estrofes mais prati- cadas pelos poetas eram os tercetos, quartetos, quintilhas, sextilhas, oitavas e décimas. No início do século XX, com o Modernismo, a liberdade poética aumenta e observa-se um uso mais livre de todas as formatações possíveis de estrofes. Para a autora, o uso da quadra – também chamada de quadrinha – é recorrente no cancioneiro popular, devido à facilidade em cons- truir diferentes pares de rimas (AABB/ABAB/ABBA/ABCB). A seguir, vemos o exemplo de uma reconhecida quadrinha popular. A roseira quando nasce Toma conta do jardim. Eu também ando buscando Quem tome conta de mim. B B C A Presença do par de rima formado pelo segundo e quarto verso dentro do sistema ABCB. Por sua vez, a quintilha (cinco versos por estrofe) e a sextilha (seis versos por estrofe) ganham pela liberdade rímica, uma vez que não precisam obedecer a nenhum esquema rígido. Trata-se de um con- junto de versos que são repetidos ao final das estrofes. O uso desse artifício remonta à Grécia e Roma Antigas, passando pelos cantos litúrgicos até chegar ao Trovadorismo, nas canções me- dievais. Ainda, cabe lembrarmos do recurso do refrão nos poemas. Um exemplo moderno do uso desse recurso e métrica é o poema O corvo de Edgar Allan Poe (1996, p. 179). Se você aprecia poemas com métricas irregulares e rimas inusitadas, ou seja, feitos com versos livres e soltos, a poesia de Paulo Leminski vai sur- preender você. O autor compôs praticamente toda a obra Toda poesia seguindo esse estilo e tornou-se um importan- te expoente da poesia brasileira, integrando a chamada Geração Marginal. Leminski soube conciliar como ninguém a linguagem coloquial e erudita, desaguando em poemas surpreendentes e inspiradores. LEMINSKI, P. São Paulo: Cia das Letras, 2013. Livro Aspectos formais do poema 33 2.2 As rimas Vídeo Como vimos na seção anterior, a rima é a coincidência sonora que ocorre ao final dos versos ou mesmo em seu interior. Elas dividem- -se em emparelhadas, interpoladas, ricas, preciosas, pobres, toantes e soantes. Há outros tipos de rimas, mas essas são as mais comuns. As rimas emparelhadassão aquelas que aparecem em sequência, ou seja, uma abaixo da outra. Já as interpoladas ocorrem com um dis- tanciamento entre elas. Vejamos um exemplo extraído do Soneto de fidelidade (MORAES, 2006, p. 204), de Vinícius de Moraes. Primeiro par de rimas formado pela interpolação entre o primeiro e o quarto verso da estrofe. Segundo par de rimas formado pelo emparelhamento entre o segundo e o terceiro verso da estrofe. Finalizando o sistema ABBA. De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento A A B B A A B B B B B B B B C C A repetição é usada para enfatizar e, desse modo, dramatizar uma informação relevante junto ao poema. Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro, Inda que pouco sentido tivessem palavras tais. Mas deve ser concedido que ninguém terá havido Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais, Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais, Com o nome “Nunca mais”. Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto, Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais. Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento Perdido, murmurei lento, “Amigo, sonhos – mortais Todos – todos já se foram. Amanhã também te vais”. Disse o corvo, “Nunca mais”. [...] [...] Para além do uso literário, o refrão é amplamente difundido em músicas populares, justamente o trecho da letra que acaba sendo facil- mente rememorado por quem a ouve. 34 Teoria da Literatura II 2.2.1 Rimas ricas, preciosas e pobres As rimas ricas são aquelas que acontecem entre diferentes classes gramaticais. Elas são profusas em poemas parnasianos, conhecidos pelo exercício e emprego da forma. Um exemplo disso é o poema, A um poeta, de Olavo Bilac. Longe do estéril turbilhão da rua, Beneditino escreve! No aconchego Do claustro, na paciência e no sossego, Trabalha e teima, e lima, e sofre, e sua! A A B B Há a rima entre, rua (substantivo), e sua (verbo suar conjugado na terceira pessoa do singular) que tem a mesma grafia do pronome possessivo sua, uma outra classe gramatical. Já as rimas preciosas, também recorrentes no Parnasianismo, são aquelas construídas no nível fônico, ou seja, são perceptíveis na leitura em voz alta do poema. Elas se constroem por meio da justaposição de duas palavras, que não necessariamente fazem parte do mesmo grupo semântico. Vejamos um exemplo disso no poema de Augusto dos An- jos (ANJOS, 2015, p. 198), Monólogo de uma Sombra. Toma conta do corpo que apodrece... E até os membros da família engulham, Vendo as larvas malignas que se embrulham No cadáver malsão, fazendo um s. A A B B A rima rica ocorre por meio da homofonia entre os fonemas que compõe ece e os da letra s. A rima pobre ocorre por meio dos verbos engulhar e embrulhar, ambos conjugados na terceira pessoa do plural no tempo presente. Por fim, a rima pobre é aquela que rima duas ou mais palavras de uma mesma classe gramatical, conforme exemplificado no excerto do poema de Anjos. Embora não seja uma regra, recomendamos não usá-las excessivamente na escrita de um poema, sob pena de torná-lo banal e monótono ao leitor. 2.2.2 Rimas toantes e sonantes Segundos os gramáticos Cintra e Cunha (2013), a rima toante – ou as- soante – é encontrada na coincidência entre vogais tônicas, ou seja, aque- las que apresentam o acento principal da palavra. A construção desse esquema de rimas deve considerar todos os versos do poema, focando apenas nas rimas externas – aquelas que se encontram no final do verso. A correspondência entre os sons deve focar na mesma vogal tônica. Sempre que houver uma troca de sons, mudam-se as letras. Mesmo que o poema seja feito de versos livres ou soltos, o esquema rímico deve ser mantido. Um poeta brasileiro que costuma usar bastante as rimas toantes é João Cabral de Melo Neto. Vejamos um exemplo no poema Uma faca só lâmina (NETO, 2008, p. 56). Assim como uma bala enterrada no corpo, fazendo mais espesso um dos lados do morto; A A B B Os vocábulos corpo e morto são paroxítonas com a vogal tônica em o. Além disso, a repetição dessa vogal cria o efeito de assonância, que é o uso do mesmo timbre vocálico em palavras distintas. Já as rimas soantes, também chamadas de consoantes, são aquelas em que há consonância, ou seja, coincidência de sons e letras na ter- minação das palavras, por meio da vogal tônica. Novamente, esse tipo de rima é encontrado ao final dos versos. Elas costumam ser as mais recorrentes e facilmente identificadas pelo leitor. Apesar de parecer ser uma rima óbvia ou mesmo antiga, vemos que na poesia contem- porânea ela segue sendo utilizada. Um exemplo é o poema Nenhum mistério, do poeta carioca Paulo Henriques Britto (BRITTO, 2018, p. 20). Não chega a ser desespero, mas não por haver esperança. Falta a ênfase, o tempero, o sal da intemperança A A B B O sistema ABAB é constituído por meio das rimas soantes entre os fonemas ero e ança, inclusive formando pares de rimas pobres. Além do jogo rímico, observamos também o uso da métrica fixa em re- dondilha maior, ou seja, com sete sílabas poéticas compondo os versos do poema. Se você gosta de escrever poemas ou é um curioso que se interessa por rimas, este site traz um conjunto de possibili- dades a ser explorado. O Banco de Rimas é um banco de dados de rimas, ou seja, você digita uma palavra e aparecem várias outras que rimam com ela, de acordo com os seguintes critérios: terminações, sinônimos, antônimos, onomato- peias, número de silabas, número de letras, entre outros. Disponível em: https:// bancoderimas.com/. Acesso em: 24 nov. 2022. Site https://bancoderimas.com/ https://bancoderimas.com/ Aspectos formais do poema 35 deve ser mantido. Um poeta brasileiro que costuma usar bastante as rimas toantes é João Cabral de Melo Neto. Vejamos um exemplo no poema Uma faca só lâmina (NETO, 2008, p. 56). Assim como uma bala enterrada no corpo, fazendo mais espesso um dos lados do morto; A A B B Os vocábulos corpo e morto são paroxítonas com a vogal tônica em o. Além disso, a repetição dessa vogal cria o efeito de assonância, que é o uso do mesmo timbre vocálico em palavras distintas. Já as rimas soantes, também chamadas de consoantes, são aquelas em que há consonância, ou seja, coincidência de sons e letras na ter- minação das palavras, por meio da vogal tônica. Novamente, esse tipo de rima é encontrado ao final dos versos. Elas costumam ser as mais recorrentes e facilmente identificadas pelo leitor. Apesar de parecer ser uma rima óbvia ou mesmo antiga, vemos que na poesia contem- porânea ela segue sendo utilizada. Um exemplo é o poema Nenhum mistério, do poeta carioca Paulo Henriques Britto (BRITTO, 2018, p. 20). Não chega a ser desespero, mas não por haver esperança. Falta a ênfase, o tempero, o sal da intemperança A A B B O sistema ABAB é constituído por meio das rimas soantes entre os fonemas ero e ança, inclusive formando pares de rimas pobres. Além do jogo rímico, observamos também o uso da métrica fixa em re- dondilha maior, ou seja, com sete sílabas poéticas compondo os versos do poema. Se você gosta de escrever poemas ou é um curioso que se interessa por rimas, este site traz um conjunto de possibili- dades a ser explorado. O Banco de Rimas é um banco de dados de rimas, ou seja, você digita uma palavra e aparecem várias outras que rimam com ela, de acordo com os seguintes critérios: terminações, sinônimos, antônimos, onomato- peias, número de silabas, número de letras, entre outros. Disponível em: https:// bancoderimas.com/. Acesso em: 24 nov. 2022. Site 2.3 Formas fixas Vídeo Segundo Goldstein (2006, p. 80), “Algumas composições em verso têm um padrão fixo determinante de sua estrutura”. A mais conhecida delas é o soneto, cuja etimologia remete ao italiano sonetto, que signifi- ca pequena canção ou pequeno som. Seu modelo é composto de qua- tro estrofes: