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Teoria da Literatura I C larissa C om in ISBN 978-65-5821-182-2 9 786558 211822 Código Logístico I000652 Teoria da Literatura I Clarissa Comin IESDE BRASIL 2022 Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br © 2022 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: GNT STUDIO/Shutterstock 22-79912 CDD: 809 CDU: 82.09 CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃONAPUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ C727t Comin, Clarissa Teoria da literatura I / Clarissa Comin. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2022. Inclui bibliografia ISBN 978-65-5821-182-2 1. Literatura - História e crítica - Teoria, etc. 2. Gêneros literários. 3. Estudos literários. I. Título. Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439 12/09/2022 13/09/2022 Clarissa Comin Doutora, mestra e bacharela em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Produção de Material Didático para EAD pela Faculdade Claretiano. Professora no Ensino Superior. Atua também como professora de francês e preparadora de textos. Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO 1 Introdução à literatura 9 1.1 Teoria da literatura e crítica literária 10 1.2 Conceito de mimesis 14 1.3 Prosa versus poesia 16 1.4 Literatura e cultura 21 2 Gêneros literários 26 2.1 Gênero lírico 26 2.2 Gênero dramático 28 2.3 Gênero épico 33 3 Correntes literárias 38 3.1 Formalismo russo 39 3.2 Estruturalismo 41 3.3 Pós-estruturalismo 43 3.4 Estética da recepção 46 3.5 Estudos culturais 49 4 Aspectos narrativos 53 4.1 Gêneros narrativos 54 4.2 Tipos de narradores 60 4.3 O tempo na narrativa 64 4.4 O espaço na narrativa 66 5 O gênero conto e o gênero romance 72 5.1 Teorias sobre o conto 73 5.2 O conto moderno 76 5.3 O romance: origens e teorias 80 5.4 Romance contemporâneo 83 Resolução das atividades 93 Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! Esta obra é uma porta de entrada para entender a Literatura. Geralmente vista como uma disciplina do currículo escolar, ela é, inicialmente, uma manifestação artística. A Literatura tem o poder de criar mundos possíveis e expandir nossos horizontes acerca da nossa própria existência. Para além dos benefícios do seu consumo – melhora na escrita, na cognição, enriquecimento do vocabulário, distração –, ela nos apresenta novos modos de vida. A experiência de leitura nos proporciona ocupar dois lugares ao mesmo tempo: o nosso e o dos narradores e personagens que lemos. Somos ao mesmo tempo nós mesmos e Brás Cubas, Capitu, Macunaíma. Nesse sentido, a obra divide-se em cinco momentos. No primeiro capítulo, convidamos você a uma breve introdução que parte da famosa pergunta: o que é literatura? A partir de um histórico que remonta à Grécia Antiga e vem até a contemporaneidade, vemos como a definição do objeto literário transmutou-se com o passar do tempo, bem como aquilo que se chama de literatura. Além disso, fazemos uma distinção entre prosa e poesia, as duas modalidades clássicas da manifestação literária. Por fim, apresentamos as relações evidentes entre a literatura e a sociedade, sublinhando sua importância na formação ética e intelectual do indivíduo. No segundo capítulo, estudaremos os três principais gêneros literários: lírico, dramático e épico. Aprenderemos suas origens, características e conceituações. Partindo da lírica, faremos um breve trajeto no qual acompanhamos a remodelação do gênero no decorrer dos séculos, até chegarmos aos moldes modernistas do início do século XX, em que a presença marcada do eu lírico confessional cede espaço a outras experimentações, desaguando na prosa poética. Empreenderemos, ainda, um percurso pelos principais dramaturgos gregos e comédias latinas, finalizando com a épica, representada por dois renomados poemas épicos: Ilíada e Odisseia. APRESENTAÇÃOVídeo 8 Teoria da Literatura I No terceiro capítulo, apresentamos as mais importantes correntes literá- rias do século XX, momento em que a Literatura adquire um status de disci- plina independente e passa a ser estudada nas universidades. Começamos com o formalismo russo, vertente que pensa a obra literária como objeto au- tônomo, desconsiderando o seu exterior (aspectos socioeconômicos, epocais e culturais). Na sequência, estudaremos o estruturalismo, um desdobramento do formalismo. Essa corrente pretende estabelecer uma estrutura narrativa que esteja presente em todas as obras. O maior enfoque é dado nos contos de fada, analisados por Vladimir Propp. Depois, seguimos ao pós-estruturalis- mo, corrente que vai de encontro aos pressupostos formalistas. Em seguida, passamos à estética da recepção, na qual o leitor assume o controle na cons- trução de significados do texto, deixando de lado a premência das intenções do autor. Finalizando, teremos os estudos culturais, corrente do final do sécu- lo XX cuja abordagem se dá na interseção entre obra e sociedade, consideran- do sobretudo culturas marginalizadas e minoritárias. No capítulo quatro, vamos nos debruçar sobre os aspectos constitutivos da prosa. Aprenderemos suas manifestações – conto, romance, crônica, biografia etc. – e alguns aspectos narrativos que as compõem, como os diferentes tipos de narradores e a construção e importância do espaço e do tempo nas narrativas. Faremos esse estudo por meio da análise de trechos de obras literárias. Por fim, no capítulo cinco, vamos nos aprofundar no romance e no conto. Veremos suas origens, conceitos e diferentes manifestações. Analisaremos suas estruturas com base em trechos de textos literários reconhecidos. Por fim, faremos um apanhamento dos desdobramentos e das multiplicidades narrativas presentes no romance contemporâneo. Bons estudos! Introdução à literatura 9 1 Introdução à literatura Se você é um amante da literatura, com certeza já se fez a clássica questão: afinal, o que é literatura? É possível defini-la? Sobre o tema, será apresentado na primeira seção o conceito de literatura, passando pelos seus objetivos, históricos e objetos de análise. Vamos, ainda, entender a diferença entre teoria e crítica literária, destacando na última o papel do crítico. Na seção seguinte, passaremos à noção de mimesis, que seria, a grosso modo, a representação da realidade e, assim, base do texto literá- rio. Para isso, as visões de filósofos como Aristóteles e Platão nos guiarão nesse percurso. Na terceira seção estudaremos as definições e as diferenças entre prosa e poesia. A nossa ideia aqui é aprofundar mais a discussão e en- tender melhor os limites entre ambas e o borramento que há entre elas, sobretudo na literatura contemporânea. Por fim, estudaremos a literatura dentro de um contexto mais amplo, para além de sua forma artística, examinando sua relação com a socie- dade ao seu redor. Pensaremos sobre quais são as suas relações com as culturas em que se insere e como, por meio delas, podem ser veiculados diferentes pontos demas no meu interesse que resolvo punir esse crime; quem quer que haja sido o assassino do rei Laio bem pode querer, por igual forma, ferir-me com a mesma audácia. Auxiliando-vos, portanto, eu sirvo a minha própria causa. Eia, depressa, meus filhos! Erguei-vos e tomai vossas palmas de suplicantes; que outros convoquem os cidadãos de Cadmo; eu não recuarei diante de obstáculo algum! Com o auxílio do Deus, ou seremos todos felizes, ou ver-se-á nossa total ruína! O Sacerdote Levantemo-nos, meus filhos! O que ele acaba de anunciar é, pre- cisamente, o que vínhamos pedir aqui. Que Apoio, que nos envia essa predição oracular, possa-nos socorrer, também, para pôr um fim ao flagelo que nos tortura! Saem ÉDIPO, CREONTE, O SACERDOTE. Retira-se o POVO. Entra O CORO, composto de quinze notáveis tebanos. O Coro Doce palavra de Zeus, que nos trazes do santuário dourado de Delfos à cidade ilustre de Tebas? Temos o espírito conturbado pelo terror, e o desespero nos quebranta. Ó Apoio, nume tute- lar de Delos, tu que sabes curar todos os males, que sorte nos reservas agora, ou pelos anos futuros? Dize-nos tu, filha da áurea Esperança, divina voz imortal! Também a ti recorremos, ó filha de Zeus. Palas eterna, e a tua divina irmã, Diana, protetora de nossa pátria, em seu trono glorioso na Ágora imensa. (SÓFOCLES, 2018, p. 34-35) Atividade 3 Observe abaixo trechos do canto I de Os Lusíadas, de Luís de Camões. A epopeia recorda e exalta os grandes feitos dos antigos navegadores portugueses que, durante a Renascença, descobri- ram novas terras e criaram tecnologias de navegação. A partir da leitura, identifique as características que fazem dele um épico, aos moldes gregos, e quais seriam as diferenças em relação a este. Canto I (abertura) As armas e os barões assinalados Que, da Ocidental praia Lusitana, Por mares nunca de antes navegados Passaram ainda além da Taprobana E em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram [...] (Continua) Gêneros literários 37 Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte. [...] E vós, Tágides minhas, pois criado Tendes em mim um novo engenho ardente [...] Dai-me agora um som alto e sublimado, Um estilo grandíloquo e coerente (CAMÕES, 2010, p. 17-18). REFERÊNCIAS ANDRADE, O. de. Poesias reunidas. São Paulo: Cia das Letras, 2016. ANTUNES, N. T.; ROSA, D. F. C; SILVA, R. G. A. da. A epopeia Odisseia de Homero como instrumento formativo: concepções sobre os princípios do herói grego. Brazilian Journal of Development, v. 6, n. 12, p. 100751-100771, 2020. ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. 17. reimp. São Paulo: Cultrix, 2014. AZEVEDO, Á. Melhores poemas. São Paulo: Via Lettera, 2009. CAMÕES, L. de. Os Lusíadas. Porto Alegre: L&PM, 2010. CANDIDO, A. (org.). Melhores poemas de Álvares de Azevedo. São Paulo: Global Editora, 2015. HOMERO. Ilíada. Trad. de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2021. MELO NETO, J. C. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. MORAES, V. Antologia poética. São Paulo: Cia das Letras, 2009. OLIVEIRA, M. J. B. de. A epopéia como gênero épico: uma intervenção para professores do 1º ano do ensino médio. 2018. Monografia (Licenciatura em Língua Portuguesa) – Universidade Federal da Paraíba, Campina Grande. SANTANA, E. Epopeia. Educa Mais Brasil, 2021. Disponível em: https://www.educamaisbrasil. com.br/enem/lingua-portuguesa/epopeia. Acesso em: 22 ago. 2022. SOARES, A. Gêneros literários. 7. ed. São Paulo: Ática, 2007. SÓFOCLES. Édipo Rei. Trad. de Mário da Gama Kury. São Paulo: Zahar, 2018. VIEIRA, T. Medeia. São Paulo: Editora 34, 2010. https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/lingua-portuguesa/epopeia https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/lingua-portuguesa/epopeia 38 Teoria da Literatura I 3 Correntes literárias Quando falamos em correntes teóricas na literatura, logo vem à ca- beça uma porção de nomenclaturas que se confundem em seus nomes e características. Neste capítulo, aprofundaremos nosso conhecimento sobre aquelas que julgamos ser as mais importantes. Trataremos o assunto de maneira cronológica. Em um primeiro mo- mento, começaremos pela primeira corrente que despontou no século XX: o formalismo russo. Estudaremos seus principais teóricos e as carac- terísticas desse movimento. Na sequência, analisaremos o estruturalismo, que tem sua base na linguística e consolidou-se também na sociologia e na antropologia. Os responsáveis pelas primeiras formulações sobre o tema foram o antropólogo Claude Lévi-Strauss e o linguista Roman Jakobson. Em seguida, partiremos para o desdobramento dessa teoria e che- garemos ao pós-estruturalismo, que questiona o caráter monolítico do estruturalismo e busca sair da dicotomia saussuriana. Veremos as di- ferenças e aproximações entre os dois e estudaremos seus principais nomes e trabalhos acadêmicos. Em seguida, daremos um salto para os anos 1970 e chegaremos à estética da recepção, uma corrente que põe o leitor no centro do ato literário. Os principais teóricos da estética da recepção são Jauss, Iser e Umberto Eco. Por fim, concluiremos com os estudos culturais, mais voltados para um corte interseccional de gênero, raça e classes sociais. Estudaremos suas particularidades e sua importân- cia acadêmica atualmente. Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • compreender o formalismo russo, o estruturalismo, o pós-estrutu- ralismo, a estética da recepção e os estudos culturais. Objetivo de aprendizagem Correntes literárias 39 3.1 Formalismo russo Vídeo O formalismo russo surgiu na Universidade de Moscou entre 1914 e 1915 e organizou-se em torno do Círculo Linguístico de Moscou. Segun- do Boris Schnaiderman (apud TODOROV, 2014), o mais correto seria considerar que não existiu um formalismo russo, mas vários formalis- tas russos, uma vez que a escola em si nunca foi homogênea e seus re- presentantes, muitas vezes, apresentavam pontos de vista divergentes. O objetivo da empreitada formalista era estudar a literatura usando os novos instrumentos fornecidos pela linguística, aproximando ambas as áreas de conhecimento. Como o nome formalismo nos indica, o projeto do grupo era inédi- to, pois considerava a linguagem poética e a literatura como autôno- mas, podendo ser estudadas por si mesmas, sem recorrer a elementos externos – extraliterários – como a biografia dos autores, a análise psicológica ou os julgamentos subjetivos sobre o valor das obras, ca- racterísticas da crítica durante o século XIX. Mas o que significa conside- rar os elementos internos como o centro da análise literária? Um texto importante a esse respeito é o ensaio A arte como procedi- mento, escrito por Viktor Chklovsky em 1917. Chklovsky defendia que o objetivo da arte era nos tirar do modo de percepção automático, criado pelo hábito e pela repetição. Quando você anda de ônibus, por exem- plo, raramente percebe todos os detalhes da viagem, as diferentes pai- sagens que você atravessa e as pessoas que você encontra. O normal é entrarmos no “piloto automático”, de modo que a percepção do espaço ao nosso redor só se atém ao necessário (os assentos disponíveis, a proximidade do ponto de desembarque etc.). Chklovsky diz que é como se os objetos da nossa experiência esti- vessem empacotados. Nós sabemos o que tem dentro do pacote, e isso é o suficiente. O objetivo da arte e de seus procedimentos seria abrir o pacote, fazer com que nossa percepção estranhe o objeto desem- brulhado, intensificando e prolongando nossa experiência, como se estivéssemos entrando em contato com aquela coisa pela primeira vez. 40 Teoria da Literatura I Como exemplo, o autor cita o conto Kholstómer, do romancista rus- so Liev Tolstói, em que a ideia de propriedade é examinada por um cavalo, narrador da história. Ele se pergunta, por exemplo, o que signi- fica para um humano chamá-lo de meu cavalo. A ideia de propriedade, tão entranhadaem nosso cotidiano, é vista com novos olhos. Para que isso aconteça, é preciso que o objeto ou a ideia apareça de uma forma estranha. Por meio dos olhos de um cavalo, por exemplo. Por isso, uma das noções centrais do formalismo russo é a de estranhamento ou desfamiliarização (às vezes referida pelo nome russo, ostranenie). Agora, comentaremos outra noção relevante. Segundo Eagleton (2006), um dos conceitos formulados pelos formalistas, principalmen- te pelo linguista e teórico Roman Jakobson, foi o de literariedade. A literariedade é a resposta que alguns formalistas deram à pergunta o que é a literatura? Para eles, a literatura não é definida por ser ficcional ou imaginativa, noções ligadas ao conteúdo da obra, e sim por se utili- zar da linguagem de uma forma singular. Jakobson falava de uma “vio- lência organizada contra a fala comum” (JAKOBSON apud EAGLETON, 2006, p. 3) para se referir à literariedade. Quando usamos a língua no cotidiano, temos que pensar em duas coisas: nas palavras que queremos usar e em como combiná-las. Quan- do você se esquece de uma palavra, pode usar um sinônimo, uma des- crição, ou seja, a importância da palavra é apontar para o objeto ao qual você quer se referir, apontar para fora da língua. Além disso, se- gundo Jakobson, procedimentos literários como a rima, o paralelismo, a aliteração e a assonância são provas de que, no uso poético da língua, as palavras que queremos usar não valem somente para apontar para algo no mundo, mas também para criar uma relação com as outras palavras dentro do texto. Dizer apenas que a literatura é um uso não-pragmático 1 da lingua- gem recai em algumas contradições. A título de exemplo, temos a obra Os sertões, de Euclides da Cunha, que pode ser lida tanto do ponto de vista histórico e geográfico quanto literário. • Contexto social sem relevância para a análise da obra. • Crítica baseada somente no texto literário. • Desautomatização do olhar sobre a linguagem literária. • Atenção aos componentes linguísticos dos textos. • Literariedade como conceito chave. El en a Pi m uk ov a/ Sh ut te rs to ck Características do Formalismo Como você pode imaginar, dar uma importância tão grande à forma e tentar eliminar qualquer relação da obra literária com o contexto em que foi escrita trouxe alguns problemas para os for- malistas. Eagleton (2006) aponta para o fato de que a definição do que é considerado literário ou não depende também do contexto em que o texto está inserido e, ainda, de como o leitor vai significar certas obras. Yu m m yp ho to s/ Sh ut te rs to ck Os Sertões, de Euclides da Cunha, foi publicado em 1902. Nele o escritor relata a Guerra de Canu- dos (1896-1897), ocorrida no interior da Bahia e capitaneada pela figura de Antônio Conselheiro. O livro, um misto de relato histórico e literário, foi resultado de notas toma- das pelo autor, à época um jornalista enviado para cobrir a guerra. Com linguagem científica, ele é dividido em três partes (Terra, O homem e A luta). Euclides cobre uma série de áreas do saber, como antropologia, geografia, história e sociologia. CUNHA, E. da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 Livro Pragmática é uma área de estudos da linguística que analisa a linguagem tendo em vista seu contexto de uso e a relação entre os interlocutores. 1 Correntes literárias 41 as palavras que queremos usar não valem somente para apontar para algo no mundo, mas também para criar uma relação com as outras palavras dentro do texto. Dizer apenas que a literatura é um uso não-pragmático 1 da lingua- gem recai em algumas contradições. A título de exemplo, temos a obra Os sertões, de Euclides da Cunha, que pode ser lida tanto do ponto de vista histórico e geográfico quanto literário. • Contexto social sem relevância para a análise da obra. • Crítica baseada somente no texto literário. • Desautomatização do olhar sobre a linguagem literária. • Atenção aos componentes linguísticos dos textos. • Literariedade como conceito chave. El en a Pi m uk ov a/ Sh ut te rs to ck Características do Formalismo Como você pode imaginar, dar uma importância tão grande à forma e tentar eliminar qualquer relação da obra literária com o contexto em que foi escrita trouxe alguns problemas para os for- malistas. Eagleton (2006) aponta para o fato de que a definição do que é considerado literário ou não depende também do contexto em que o texto está inserido e, ainda, de como o leitor vai significar certas obras. Yu m m yp ho to s/ Sh ut te rs to ck Os Sertões, de Euclides da Cunha, foi publicado em 1902. Nele o escritor relata a Guerra de Canu- dos (1896-1897), ocorrida no interior da Bahia e capitaneada pela figura de Antônio Conselheiro. O livro, um misto de relato histórico e literário, foi resultado de notas toma- das pelo autor, à época um jornalista enviado para cobrir a guerra. Com linguagem científica, ele é dividido em três partes (Terra, O homem e A luta). Euclides cobre uma série de áreas do saber, como antropologia, geografia, história e sociologia. CUNHA, E. da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 Livro Pragmática é uma área de estudos da linguística que analisa a linguagem tendo em vista seu contexto de uso e a relação entre os interlocutores. 1 3.2 Estruturalismo Vídeo Se você resolver mergulhar nos textos dos estruturalistas, vai en- contrar uma série de semelhanças com o formalismo. Ambas as esco- las enfatizam o texto em detrimento do contexto e estão atentas aos aspectos materiais da linguagem literária (que palavras estão sendo usadas; como as frases se encadeiam; quais são as semelhanças e dife- renças entre os sons escolhidos), além de terem como projeto utilizar o instrumental linguístico para fazer análise literária e tornar a teoria da literatura uma ciência. 42 Teoria da Literatura I Roman Jakobson, o linguista e teórico russo citado na seção ante- rior, tornou-se estruturalista. Isso não foi uma mudança drástica de percurso, apenas uma evolução de sua trajetória intelectual. Ele passou por Praga, onde fundou o chamado Círculo Linguístico de Praga. Duran- te as viagens e migrações, Jakobson aprofundou seus conhecimentos sobre a obra de Ferdinand de Saussure, um linguista suíço considerado o pai do estruturalismo linguístico. Por sua influência na Rússia, na Eu- ropa e nos Estados Unidos, Jakobson acabou se tornando uma espécie de patrono do estruturalismo. Entretanto, se o formalismo e o estruturalismo se parecem tanto, qual a diferença? Com o perdão do trocadilho, a diferença é justamente a diferença. A linguística antes de Saussure se ocupava de línguas mor- tas, principalmente do latim, do grego e do sânscrito. Saussure foi um dos primeiros a estabelecer métodos sólidos para estudar uma língua viva. Segundo ele, se consideramos o estado presente de uma língua, o significado das palavras é definido por sua diferença em relação a outras palavras. A palavra gato, por exemplo, não tem seu significado definido pelo fato de poder ser usada para se referir aos gatos do mundo. O signi- ficado de gato é constituído também pelo que a palavra gato não é. Gato não é rato, nem pato, nem mato (e a diferença entre as palavras mencionadas é uma diferença fonética, mas vale para as diferenças semânticas: gato não é tigre, que não é leão etc). Se todas as palavras podem ser definidas em sua relação negativa com as outras, ou seja, se elas podem ser definidas a partir daquilo que elas não são, a língua forma uma estrutura complexa articulada pela diferença entre seus elementos. Na análise literária, a noção de estrutura vai fazer com que a obra seja vista como uma totalidade, na qual os significados de cada ele- mento devem ser contrastados e comparados com os outros elemen- tos. Um dos estudos mais famosos do estruturalismo é a Morfologia do Conto Maravilhoso, do russo Vladimir Propp (1984). Propp se propôs a comparar uma série de contos de fadas e histórias populares,ex- traindo delas uma série de invariantes estruturais. Essas invariantes nada mais são que os elementos os quais se repetem ou têm função semelhante nas histórias. Pense, por exemplo, nos filmes de princesas da Disney ou nos filmes de super-heróis. É quase como se uma mesma história pudesse ser contada com pequenas variações. Ferdinand de Saussure foi um linguista suíço considerado o fundador do Estruturalismo. Grande parte de suas pesquisas foram rea- lizadas nos EUA e sua principal obra, Curso de Linguística Geral, discorre sobre a arbitrariedade do signo, ou seja, ele diz que a relação entre o significante (o som) e o significado (representa- ção material) não tem uma lógica. Daí vem a existência de diversas línguas que dão nomes diferentes para o mes- mo significado, sendo papel do linguista extrair uma estrutura linguística desse processo. F. J ul lie n Ge nè ve /W ik im ed ia C om m on s História em foco Correntes literárias 43 Para entendermos um pouco melhor como uma análise estrutura- lista lida com um texto literário, o ensaio chamado Les chats de Charles Baudelaire (1962) se ocupa da análise de um poema de Charles Bau- delaire, poeta simbolista francês do século XIX. O trabalho foi escrito a quatro mãos, por Roman Jakobson e Claude Lévi-Strauss, principal expoente do estruturalismo em antropologia. O procedimento de Jakobson e Lévi-Strauss é o seguinte: eles come- çam falando sobre o esquema de rimas, fazendo uma breve discussão sobre o papel das vogais nos tratados franceses de versificação clás- sica, e relacionam o esquema de rimas com a escolha das categorias gramaticais das palavras que terminam cada verso, em que todas são substantivos ou adjetivos. A análise continua com o mesmo procedimento, aprofundando as relações entre as partes e transformando todo tipo de classificação gra- matical em significado. Os substantivos se referem a coisas animadas ou inanimadas? O que dizer do fato de todos os pronomes no texto estarem no plural? Cada um desses elementos se articula com as pala- vras e vai revelando o poema como uma estrutura. Neste breve resumo, podemos perceber duas características impor- tantes do estruturalismo: • a análise opera com base em oposições (ou diferenças) entre dois elementos (rimas com vogal terminal e rimas sem vogal terminal, animado e inanimado, plural e singular, metáfora e metonímia); • o estruturalismo é uma empreitada classificatória, e todos os ele- mentos recebem seu devido lugar na rede de oposições formada pelo texto. O livro O Herói de Mil Faces apresenta a famosa noção de jornada do herói, criada por Cam- pbell, que passou por diversas formações, como literatura e mitologia, foi influenciado pela obra do psicólogo Carl Jung, cuja principal tese são os tipos psicológicos, estrutura que organizaria a psique de todos os indivíduos. Campbell, inspirado por essas ideias, apresenta a ideia de uma estrutura fixa a partir da qual se organizam as narrativas. CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento-Cultrix, 1992. Livro 3.3 Pós-estruturalismo Vídeo Como o próprio nome já indica, o pós-estruturalismo é uma conti- nuação do estruturalismo. Porém a continuidade indicada pelo prefixo pós não é simples. Podemos pensar da seguinte maneira: o pós-es- truturalismo tenta explorar a fundo alguns dos pressupostos básicos do estruturalismo. As conclusões tiradas, no entanto, não reiteram as ideias estruturalistas, mas sim as questionam. Você se recorda que a ideia de diferença era fundamental para a formação da ideia de estru- tura no estruturalismo? 44 Teoria da Literatura I Se considerarmos que a diferença indicava que tanto o significado como o significante, tanto a parte material da palavra (a palavra gato, por exemplo) quanto sua parte referencial (o fato de que a palavra gato aponta para certo tipo de felino), eram constituídos por suas diferenças em relação a outras palavras, isso implica no fato de que um elemento da língua está relacionado com todos os outros elementos. Daí a ideia de estrutura. Entretanto, se para compreender o significado de uma palavra é preciso de outras palavras, qual o limite do processo? Em que momento a língua passa a entrar em contato com o mundo? O pós-estruturalismo nos propõe responder a essas perguntas den- tro dos próprios limites do estruturalismo. Se o processo de passagem de um significado a outro é necessário para a compreensão, e o sig- nificado é o produto da passagem de uma palavra para outra, então a palavra à qual chegamos também precisa passar por esse processo de esclarecimento, apontando para outras palavras. O limite do pro- cesso não existe. Todavia essa radicalização da ideia de diferença faz com que a ideia de estrutura seja abalada. A diferença estruturalista fazia com que os elementos da língua estivessem inseridos de maneira coerente em uma estrutura, em um todo completo. A diferença pós- -estruturalista faz com que esse todo perca o seu centro e com que os significados continuem vazando para outros significados. Na seção anterior, vimos como Jakobson e Lévi-Strauss foram capa- zes de, por meio de uma série de oposições binárias, criar uma estrutu- ra que articulasse o máximo de elementos significativos de um poema. Uma leitura pós-estruturalista poderia se perguntar: que elementos essas oposições deixam de lado? Que aspectos do poema (ou do texto) elas são obrigadas a excluir para que a leitura não perca a coerência? Jacques Derrida, um dos mais famosos teóricos do pós-estruturalis- mo, usava o que acabamos de descrever como um método de leitura. Várias de suas obras discutem pequenos trechos, notas de rodapé e escolhas de palavra de obras importantes da tradição ocidental. Em A farmácia de Platão (2020), Derrida faz uma longa discussão sobre a escolha que Platão faz, em seu diálogo Fedro, da palavra phármakos para descrever a escrita e sua relação com a memória. Phármakos, em grego, significa tanto veneno como remédio, um pouco parecido com o que acontece com o português droga. Ele percebe que a maioria das leituras do diálogo platônico decide por um significado. Correntes literárias 45 A interpretação é guiada pela escolha por um dos opostos. A escri- ta ou é um veneno para a memória (a interpretação mais usual), ou é um remédio. Mas, e se suspendermos a oposição e tentarmos ler os dois significados da palavra ao mesmo tempo? E se aceitarmos a ambiguidade do texto como parte constitutiva dele, não como um in- cômodo que aparece somente quando lemos? Essas são justamente as perguntas que Derrida tenta responder em seu livro, e que podem ser aplicadas a muitos outros textos. A esse modelo de leitura, Derrida deu o nome de desconstrução. É significativo frisar que o pós-estruturalismo foi um movimento multifacetado. Derrida, por exemplo, era da opinião de que, mesmo que as ideias de estrutura e de totalidade fossem abaladas pela radica- lização de pressupostos estruturalistas, elas não poderiam ser comple- tamente eliminadas. Elas teriam que ser, quando possível, contornadas. Para dizer de outro modo, usando novamente o Fedro de Platão, ele tentava manter ao máximo a ambiguidade entre “veneno” e “remédio”. Mas em alguns momentos é preciso decidir entre um e outro. O relevante é estabelecer que a decisão não é imperativa, que ela não precisa continuar pelo texto todo em nome da “coerência”. Outros teóricos pós-estruturalistas tinham opiniões diferentes sobre a relação dos textos com a totalidade dos significados. Alguns não concordavam com a ideia de “suspensão” da ambiguidade, importante para Derrida, e preferiam fazer com que os termos binários fossem se multiplicando e nos levando a outros lugares. Nesse sentido, você pode conferir a obra Kafka: por uma literatura menor (2014), dos teóricos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari. Os dois se propõem a ler a obra de Franz Kafka de um modo diferente do proposto por Derrida. Eles não deixam de usaruma série de oposições binárias, não deixam de se apoiar em classificações dos diferentes as- pectos da obra de Kafka, entretanto as oposições e as classificações não apontam mais para uma estrutura totalizante, e sim para um pro- cesso contínuo de passagem entre significados. Os autores chamam isso de linhas de fuga. Para termos um exemplo mais concreto, leia a seguir um trecho de um conto, O idioma analítico de John Wilkins, do escritor argentino Jorge Luis Borges (2007), autor muito admirado pelos pós-estruturalistas. Ele fala de uma enciclopédia chinesa, na qual os animais são classificados como: O filme Cópia fiel começa com uma palestra na qual fala-se sobre a relação entre o espectador e a có- pia de uma obra de arte. O enredo gira em torno de dois personagens, um homem e uma mulher, que parecem estar se conhecendo pela primeira vez. No final, parece haver uma encenação da briga dos dois como se fossem um casal há muito tempo. A ideia de diferença e repetição está implícita no título: cópia como reprodução do original e coppia, em italiano, que significa casal. Direção: Abbas Kiarostami. Irã; França; Itália; Bélgica: mk2, 2010. Filme 46 Teoria da Literatura I a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domestica- dos, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas. (BORGES, 2007, p. 113) Borges propõe uma lista de categorias que ironiza a lógica comum. Sua classificação salta de um critério a outro, incluindo critérios me- talinguísticos (“incluídos na presente classificação”) ou totalmente ar- bitrários (“desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo” ou “que de longe parecem moscas”). Essa lista faz com que os animais que deveriam ser enredados na classificação fujam e se dispersem por todos os lados. Isso torna a leitura muito mais interessante. 3.4 Estética da recepção Vídeo A estética da recepção surgiu no fim da década de 60 na Alemanha. Seus principais teóricos são às vezes referidos como a Escola de Cons- tança, cidade no sul da Alemanha. Enquanto a maioria dos esforços teóricos até então se centravam na relação entre autor e texto, a es- tética da recepção se voltava para a relação entre os leitores e o texto. Hans Robert Jauss (1979), um dos mais importantes teóricos dessa escola, diz que a vida de uma obra só se faz por meio da existência de gerações sucessivas de leitores. A história literária, segundo ele, de- veria ser reescrita ou reexaminada considerando esse ponto de vista. Não mais uma história do texto, mas uma história da evolução de suas leituras. Outro dos representantes da estética da recepção, Wolfgang Iser (1996), criou a noção de leitor implícito, que seria a ideia de que o texto traz um leitor interno. Cabe à crítica analisar como se constrói o leitor implícito de obras específicas e como o leitor singular se relaciona com esse itinerário de leitura. Embora sejam colocadas embaixo do mesmo guarda-chuva, as visões de Jauss e Iser têm muitas diferenças. Jauss está mais interes- sado no plano histórico da leitura. Ele se propõe a não deixar a esté- tica da recepção cair na análise psicológica da experiência de leitura individual. Para manter o caráter objetivo da história literária, ele Correntes literárias 47 Master1305/Shutterstock insere a leitura de um texto em um contexto de recepção. Quais são os gêneros literários predominantes na época da primeira leitura da obra? Como os leitores se relacionam com esses gêneros? Qual é a herança literária da geração de leitores que consomem o texto? Há, para os leitores, alguma distinção implícita entre linguagem literária e linguagem prática? Essa série de questões forma o que Jauss chama de horizonte de ex- pectativa. Pense, por exemplo, no papel que a Bíblia desempenhou du- rante muito tempo como referência literária. Isso vale para a literatura medieval, mas também para muitos autores do século XIX. O escritor russo Fiódor Dostoiévski, por exemplo, faz uma série de referências bíblicas em boa parte de suas obras. O que muda na recepção de suas obras quando consideramos, por um lado, um público que conhece a Bíblia e estudou na escola e, por outro, um público que tem pouco ou nenhum contato com as narrativas bíblicas? Esse tipo de indagação dá corpo ao “horizonte de expectativa”, e a sucessão desses movimentos de leitura forma a história da recepção de uma obra. E no que isso tudo se difere do ponto de vista de Iser? A ideia de um leitor implícito é menos histórica e mais interna ao texto. Afirmar que um texto tem um leitor implícito significa dizer que há percursos de leitura que podemos deduzir dos textos e que são válidos para qualquer leitor. Ou seja, o modo como o sentido do texto é construído é igual para todos, o que muda é a relação individual do leitor com o sentido construído. Em histórias de mistério, como as de Agatha Christie ou Edgar Allan Poe, a imposição de saber quem é o criminoso apenas no final do texto é igual para todos os leitores. Iser dizia, inclusive, que os vazios dei- xados pelo texto são chamados para a cooperação do leitor. Para dar outro exemplo, nos contos e romances de Rubem Fonseca, o ponto de vista do leitor muitas vezes coincide com o de criminosos. Esse é um fato do texto, porém cada leitor vai reagir a essa coincidência de modos distintos (JOUVE, 2002). Outra noção importante para a estética da recepção é a de pacto de leitura. O modo como lemos determinadas obras é guiado por pactos. Há pactos de leitura que dizem respeito às normas culturais vigentes em uma época. Por exemplo, quando você vai a uma livraria, há uma seção específica para as autobiografias (textos que lemos como sendo “reais”) e outra para os romances (textos que lemos como sendo “fic- cionais”). O pacto está pressuposto nessa nomenclatura. O fato de você pegar um livro com uma ou outra etiqueta já direciona a maneira como vai receber aquele texto. Esses pactos sociais de maior escala podem ser subvertidos. Os romancistas dos séculos XVIII e XIX gostavam de escrever ro- mances em forma de carta, os romances epistolares, para dar ao leitor a sensação de que não estavam lendo um romance. Muitas vezes esse formato de texto era acompanhado por uma nota que dizia que o autor era apenas o editor das cartas, isto é, a pessoa que as tinha encontrado e organizado. Exemplos são Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, que acabou gerando uma onda de suicí- dios na Europa, tamanha a identificação que os leitores sentiam com o texto, e As ligações perigosas, de Pierre Choderlos de Laclos, que re- trata a aristocracia francesa pré-revolução como uma classe ociosa e sem escrúpulos, que gostava de humilhar seus pares e participar de jogos de sedução. Porém os pactos também podem ser singulares. Uma obra pode dar indicações explícitas de como quer ser lida, propondo ao leitor um pacto que não diz mais respeito a um gênero ou a uma nor- ma social, mas à relação individual com aquele texto. Há romances não-lineares, como Rayuela, do escritor argenti- no Júlio Cortázar, que podem ser lidos em mais de uma ordem. Cortázar propõe ao leitor uma leitura linear, do começo ao fim, e oferece a ele um mapa com outro iti- nerário possível, lendo capítulos específicos em uma ordem não sequencial. A estética da recepção e a importância da relação obra-leitor provocaram impactos im- portantes nas obras de teóricos não ligados à Escola de Constança, como Umberto Eco e Gé- rard Genette, e geraram uma interessante discussão sobre os aspectos históricos, materiais e psicológicos da leitura. No livro Obra aberta, o teórico Umberto Eco foca em questões não apenas literárias, mas também ligadas à teoria da informação, além de debater o papel do leitor e espectador nessecircui- to. Para Eco, a obra seria prenhe de significados a serem preenchidos pelo leitor, responsável por suplementar os espaços vazios, uma vez que o autor não detém todos os significados de seu projeto estético. ECO, U. São Paulo: Perspectiva, 2015. Livro Master1305/Shutterstock 4848 Teoria da Literatura ITeoria da Literatura I Correntes literárias 49 3.5 Estudos culturais Vídeo Se os movimentos e as escolas discutidos até aqui tiveram seu maior impacto e difusão na Europa, os estudos culturais são uma área de estudos criada e desenvolvida dentro da língua inglesa, principal- mente na Inglaterra e suas colônias e nos Estados Unidos. Sua criação foi muito influenciada pelo contexto das disputas e tendências políticas das décadas de 50 e 60, com forte presença das lutas gerais por direi- tos civis, do movimento negro, da segunda onda do feminismo e do pós-colonialismo. Os estudos culturais são uma tentativa multidisciplinar de com- preender como os significados são produzidos, distribuídos e con- sumidos nas sociedades. Para isso, a disciplina precisa incorporar conhecimentos de diversas áreas das ciências humanas, como os estu- dos políticos, a sociologia, a antropologia, a economia, a crítica literária, as teorias da comunicação e semiótica, a geografia e a filosofia, entre outras. Estamos falando aqui de um esforço que se traduz, na crítica literária, em interpretar uma obra a partir das várias facetas da socie- dade na qual ela está inserida. Como já dissemos, os estudos culturais surgiram em países angló- fonos, porém muitos representantes do que no Brasil se costuma cha- mar de crítica sociológica estariam classificados como parte dos estudos culturais, se tivessem feito suas carreiras em outro lugar. Falamos aqui, principalmente, das obras de Antonio Candido e Roberto Schwarz, crí- ticos que se preocupam com a articulação entre aspectos sociais, cul- turais e literários. Em um ensaio famoso, Um mestre na periferia do capitalismo, sobre a obra de Machado de Assis, Roberto Schwarz (2012) procura articular o fato de que em Memórias Póstumas de Brás Cubas há um narrador vo- lúvel e a posição ambígua da burguesia nacional, que apoiava as ideias liberais e o republicanismo e, ao mesmo tempo, convivia e tolerava a escravidão. Um dos principais representantes dos estudos culturais anglófonos foi Stuart Hall (2019), nascido na Jamaica. Ele desenvolveu um enorme trabalho ao redor da ideia de que a língua e a cultura não são ape- nas lugares de identificação, mas estruturas de poder, operadas por de d pi xt o/ Sh ut te rs to ck de d pi xt o/ Sh ut te rs to ck instituições políticas e econômicas. Seus estudos sobre a cultura não partiam de um lugar contemplativo, no entanto tinham um sentido programático de intervenção política. Ele estudou, por exemplo, as relações entre a mídia e o racismo, entre as colônias inglesas e a metrópole. Alguns de seus colegas, como E. P. Thompson e Raymond Williams, estudaram o papel da classe tra- balhadora na formação do inglês e a relação entre a cultura popular e a arte produzida pelas elites. As ideias de Hall e seus colegas foram muito influenciadas pelo teórico marxista italiano Antonio Gramsci (1999) e sua ideia de hegemonia cultural, que pretende descrever como a posi- ção de dominância de uma classe pode moldar a cultura para a manu- tenção do status quo. Uma faceta particular dos estudos culturais anglófonos é a impor- tância dada às diferentes mídias como objetos de estudo. Estamos fa- lando aqui do papel do rádio, da televisão, do jornal e do cinema como meios de moldar uma cultura e vários de seus fenômenos. Isso faz com que os estudiosos da cultura dialoguem com a teoria da comunicação em suas mais diversas facetas, das abstrações de Claude Shannon, ma- temático fundador da teoria da informação, às formulações de Mar- shall McLuhan, teórico da comunicação canadense que via os meios de comunicação como extensões do corpo humano. Há também um diá- logo produtivo com a Escola de Frankfurt, já que muitos de seus repre- sentantes, como Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse, dedicaram obras à análise do papel das mídias de massa na formação do fascismo e do nazismo. O romance Eu, Tituba: bruxa negra de Salém narra a história de Tituba, uma das primeiras mulheres chamadas de bruxa a ser julgada e condenada à escravidão pelos tribunais de Salem, em 1692. Mesmo com a ajuda de entidades e es- píritos, ela não consegue escapar ao destino cruel que lhe é reservado. A obra trata da situação a qual as mulheres eram sujeitas no século XVII e retrata a diáspora do povo negro. CONDÉ, M. 7. ed. São Paulo: Rosa dos Tempos, 2019. Livro 5050 Teoria da Literatura ITeoria da Literatura I Correntes literárias 51 Os estudos culturais são, portanto, um esforço multidisciplinar para entender o modo como a cultura articula relações de poder e qual o papel das diferentes classes, etnias e gêneros em relação a essas posições de poder. Sua influência não ficou restrita à crítica, mas também influenciou a produção literária. Para citar apenas dois exemplos que podem te interessar, as obras da nigeriana Chimaman- da Ngozi Adichie e da guadalupense Maryse Condé dialogam com muitas das questões propostas pelos estudos culturais, principalmen- te a temática feminista e a relação que os colonizados estabelecem com a língua dos colonizadores. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como vimos, há diversas correntes teóricas na literatura com as quais podemos analisar todos os gêneros (conto, romance, ensaio, poema etc). É importante ressaltar que, apesar de nossa abordagem ser cronológica, nada impede que um poema seja analisado por um viés formalista, ou estruturalista e assim por diante. Além disso, não se pode perder de vista que essas correntes, assim como acontece com as obras literárias, passam por releituras teóricas com o passar dos anos. Isto é, o que se entende hoje por Formalismo Russo não é o mesmo que há 50 anos atrás. Revisitar esses lugares é essencial para saber o que ainda é possível extrair deles ou, ainda, esta- belecer um novo ponto de vista teórico. ATIVIDADES Atividade 1 A partir do que foi exposto neste capítulo, apresente as caracterís- ticas do Formalismo Russo.. Atividade 2 Faça um breve resumo sobre o que você entendeu acerca da corrente Estruturalista. 52 Teoria da Literatura I Atividade 3 Discorra sobre as principais características dos Estudos Culturais. REFERÊNCIAS BORGES, J. L. Outras inquisições. São Paulo: Companhia das letras, 2007. CAMÕES, L. de. Os lusíadas. Porto Alegre: L&PM, 2008. CHKLOVSKY, V. Teoria da literatura: textos dos formalistas russos. São Paulo: Editora da Unesp, 2014. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. DERRIDA, J. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2020. EAGLETON, T. Teoria da literatura: uma introdução. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: introdução ao estudo da filosofia: a filosofia de Benedetto Croce. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. v. 1. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade 12. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2019. ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1996. v. 1. JAKOBSON, R.; LÉVI-STRAUSS C. Les Chats de Charles Baudelaire.” L’Homme, vol. 2, no. 1, p. 5–21. 1962. JAUSS, H. R. A literatura e o leitor: textos de estéticas da recepção. Rio de Janeiro: Terra e Paz, 1979. JOUVE, V. A leitura. São Paulo: Editora da Unesp, 2002. PROPP, V. Morfologia do conto maravilhoso. São Paulo: Perspectiva, 1984. SCHWARZ, R. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 5. ed. São Paulo: Editora 34, 2012. TODOROV, T. Teoria da literatura: textos dos formalistas russos. São Paulo: Editora da Unesp, 2014. Aspectos narrativos 53 4 Aspectos narrativos A epopeia, o drama – sua subdivisão, a comédia – e a lírica são os principais gênerosliterários cunhados por diversas artes poéticas des- de a Antiguidade Clássica. Neste capítulo, vamos tratar especificamente dos diferentes gêneros narrativos em prosa. Vários deles são desdobra- mentos dos gêneros apontados anteriormente e considerados, em sua maioria, modernos. Na primeira seção, trataremos da crônica, do conto, do romance, da biografia, da autoficção e da metaficção historiográfica como formas literárias. As categorias nos darão uma boa visão de como a prosa (ro- mance) – vista como um desdobramento da epopeia – influenciou os demais tipos. Em seguida, exploraremos as diferentes facetas do narrador, que pode ser narrador-personagem, narrador-onisciente e narrador- observador. Faremos isso a partir da análise de trechos de obras. Depois, trabalharemos com a noção de temporalidade em uma narra- tiva, conhecendo autores que teorizam sobre a concepção temporal a partir do estudo de casos. Por fim, trataremos da construção espacial na narrativa, ou seja, como se dá a ambientação nos textos em prosa, como as personagens e a temporalidade transitam por esses espaços. Com essas ferramentas em mãos, com certeza sua leitura nunca mais vai ser a mesma! Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • aprender os principais gêneros narrativos em prosa: crônica, con- to, romance, biografia, autoficção, ficção historiográfica; • conhecer os principais tipos de narradores: personagem, oniscien- te e observador; • conhecer autores que teorizam sobre a concepção temporal em narrativas em prosa. Objetivos de aprendizagem 4.1 Gêneros narrativos Vídeo Quando falamos em gêneros narrativos, geralmente consideramos aqueles escritos em prosa. A respeito do romance, em específico, o fi- lósofo húngaro György Lukács (2009) aborda o gênero épico e a figura do herói. Ele crê que a epopeia grega deu origem ao romance – consi- derado um gênero moderno, atrelado à sociedade burguesa. Além do romance, corolário das narrativas em prosa tal qual conhecemos hoje, temos também os contos, as novelas, as crônicas, biografias, autoficção e ficção historiográfica. 4.1.1 Romance moderno O escritor Milan Kundera (2016) afirma que o romance é capaz de dizer tudo, abordar qualquer questão que o circunde sem deixar de ser ficção. Nos tempos modernos, considerado entre os séculos XVI e XVII, ele aponta para Dom Quixote (1605), escrito pelo espanhol Miguel de Cervantes, como o primeiro romance. Kundera pontua a autonomia do romance nesse momento e sua relação direta com os acontecimentos históricos e sociais ao seu redor, além de ver nele um espaço de formulação de questões existenciais. Assim, “o romance descobriu, a sua própria maneira, por sua própria lógica, os diferentes aspectos da existência [...] o romance acompanha o homem constante e fielmente desde o princípio dos tempos moder- nos” (KUNDERA, 2016, p. 13). ALE XEY GRIG ORE V/S hu tte rst oc k 5454 Teoria da Literatura ITeoria da Literatura I Aspectos narrativos 55 O romance, na concepção do autor, servia-se à descoberta e conhe- cimento da existência. No caso de Dom Quixote, por exemplo, o que fica ao leitor é a possibilidade de diversas interpretações e leituras da obra, bem como o fato de que essas vão mudando com o passar do tempo, fazendo da obra um clássico moderno. Por fim, Kundera observa que a “Verdade totalitária exclui a relatividade, a dúvida, a interrogação, e ela jamais pode, portanto, se conciliar com o que eu chamaria o espírito do romance” (KUNDERA, 2016, p. 22). O caráter intertextual do romance já está em Dom Quixote, que é uma paródia às novelas de cavalarias que circulavam à época. Nessas novelas, a figura dos heróis é destacada e eles vivem em busca de fazer justiça e de encontrar uma amada. Cervantes parodia esse modelo ao criar um protagonista já velho – Quixote tem cinquenta anos – e um companheiro de aventuras, Sancho Pança, que descreve o amigo como “Cavaleiro da triste figura”. 4.1.2 Crônica Desde sua etimologia, a palavra crônica (do lat. chronica) estava associada a um registro cronológico dos acontecimentos de seu tempo, ou seja, havia um compromisso com a verdade. Entrando no Moder- nismo, com a difusão da imprensa e público letrado, a crônica passa a ser publicada em jornais e daí nasce uma intersecção entre jornalismo e literatura. Segundo Tuzino (2009), “a crônica tem a façanha de ser um texto que informa através do enfoque autoral, subjetivo, opinativo, parcial” (TUZINO, 2009, p. 2). A autora ressalta que o termo crônica era usado em seu sentido pri- mordial nas cartas trocadas entre Pero Vaz Caminha e o rei de Portugal. Porém, nesses textos, o intuito era, de fato, relatar o dia a dia na colô- nia, inserindo dias da semana, datas, eventos importantes etc. Na contemporaneidade a crônica foi assumindo outros papéis que não apenas esses protocolares. Durante o século XX, por exemplo, o espaço dos jornais e das revistas abriram-se para grandes escritores de ficção que também trabalhavam o gênero crônica. Alguns deles conhecidos por nós, como Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Fer- nando Sabino etc. Nesse sentido, elas passaram a abordar eventos e questões singelas do dia a dia para, daí, refletirem sobre algum aspec- to mais intimista ou cômico, dependendo do estilo do autor. Na obra A cultura do romance, Moretti aborda todos os ângulos da principal forma literária moderna: o romance. Além de apresentar questões relevantes quanto ao surgimento e modificações que o gênero passou, Moretti agrega à discussão textos de outros autores reno- mados que pensaram a forma romance, como Vargas Llosa, Peter Burke, Umberto Eco etc. O livro alterna ensaios curtos, nos quais são analisados romances, com textos mais longos e densos, em que há um aprofunda- mento teórico. MORETTI, F. São Paulo: Cosac & Naify, 2009. Livro A obra As cem melhores crônicas brasileiras foi or- ganizada por um famoso cronista, Joaquim dos San- tos. O intuito não é definir as melhores crônicas, mas por tratar-se de uma an- tologia, o autor selecionou aquelas escritas pelos autores mais famosos, como Rubem Fonseca, Millôr Fernandes, Carlos Heitor Cony etc. Além disso, é feito um recorte cronológico e assim podemos acompanhar a trajetória do gênero no decorrer das décadas. SANTOS, J. F. dos. (org.). São Paulo: Objetiva, 2007. Livro 56 Teoria da Literatura I Master1305/Shutterstock Todavia, as crônicas também surgem em seus aspectos mais analíticos, no que diz respeito ao tratamento do seu tema. No exemplo a seguir vemos uma crônica escrita pelo escritor Lima Barreto sobre a mor- te. A reflexão é breve, porém densa. Elogio da morte Não sei quem foi que disse que a Vida é feita pela Morte. É a destruição contínua e perene que faz a vida. A esse respeito, porém, eu quero crer que a Morte mereça maio- res encômios. É ela que faz todas as consolações das nossas desgraças; é dela que nós esperamos a nossa redenção; é ela a quem todos os infelizes pedem socorro e esquecimento. Gosto da Morte porque ela é o aniquilamento de todos nós; gosto da Morte porque ela nos sagra. Em vida, todos nós só somos conhecidos pela calúnia e maledicência, mas, depois que Ela nos leva, nós somos conhecidos (a repetição é a melhor figura de retórica), pelas nossas boas qualidades. É inútil estar vivendo, para ser dependente dos outros; é inútil estar vivendo para sofrer os vexames que não merecemos. A vida não pode ser uma dor, uma humilhação de contínuos e burocratas idio- tas; a vida deve ser uma vitória. Quando, porém, não se pode conseguir isso, a Morte é que deve vir em nosso socorro. (BARRETO, 1918). Assim como seus romances, memórias e contos, Barreto está sem- pre atento ao seu entorno social e discorre sobre esse tema em grande parte de sua obra. Sua origem humilde e de família negra foi responsá- vel pela exclusão de sua obra de um “cânone” literário brasileiro. 4.1.3 Autoficção O primeiro teórico a pensar no termo em literatura foiPhilippe Le- jeune, em suas obras O pacto autobiográfico (1975) e A autobiografia na França (1971). Nota-se que o conceito surgiu na França nos anos 1970 e gerou controvérsias a respeito de sua definição. Como observou Anna Faedrich (2016), a autoficção foi um modo de os autores falarem so- bre suas vidas sem querer chamá-las de autobiografias. Isso porque a autobiografia era vista por eles como “não literatura”, ou seja, “não arte”. Lejeune (2014) revitaliza a pesquisa em torno do autobiográfico, apresentando-o como uma leitura que exige um “pacto autobiográfi- co”, no qual o leitor encararia a obra como “verdade do indivíduo” que Aspectos narrativos 57 a escreve. A despeito dos detratores das ideias de Lejeune, podemos afirmar que a autobiografia não deixa de ser, também, um romance, uma ficção. Afinal, como acessar com precisão suas próprias lembran- ças? Há furos e espaços enuviados que o autor precisa preencher com a ajuda da imaginação. Tem-se apenas o acesso à memória. No contexto da literatura brasileira, temos que tal estilo de escrita tornou-se uma tendência desde o início do século XXI. Um dos exem- plos mais reconhecidos é O filho eterno (2007), do curitibano Cristóvão Tezza. A narrativa aborda um dado verídico sobre a vida do autor: o nascimento de seu primeiro filho, com síndrome de Down, no mo- mento em que ele e a mãe do menino estão se separando. A obra aborda sem reservas as dificuldades em enfrentar os preconceitos das pessoas e as do pai em lidar com o filho e aceitá-lo. Tezza também aproveita para reordenar a própria vida antes do nascimento do filho, traçando seu caminho desde a juventude até o presente da narrativa. Em nenhum momento ele se nomeia na narrativa. A escolha de um narrador em terceira pessoa permite um distanciamento necessário em relação ao texto. Observemos um trecho do romance: Foi preciso que nascesse o seu filho para que, de um golpe só, ele percebesse a fissura medonha daquele otimismo cósmico que ele havia tomado de em- préstimo de algum lugar como moldura estética da própria vida – tão lindo, tudo está em tudo, o tempo presente contido no tempo passado, a harmonia do espetáculo do universo como convidados de honra. (TEZZA, 2007, p. 64) Nesse momento, crucial para a obra, a personagem (que sabemos ser Cristóvão Tezza, embora seja sempre mencionado como “Ele”) se depara com o filho e, através de uma voz narrativa em 3ª pessoa, trans- parece sua decepção diante da síndrome que acompanha o filho. 4.1.4 Metaficção historiográfica A pesquisadora Linda Hutcheon (1991) foi quem estabeleceu a noção de metaficção historiográfica a fim de classificar textos literários que afir- mam uma interpretação do passado, mas sem deixarem de ser auto-re- flexivos (ou seja, críticos e conscientes de sua própria visão da verdade como sendo parcial, tendenciosa, incompleta). Assim, a metaficção histo- riográfica nos permite falar construtivamente sobre o que já aconteceu de uma forma que reconhece a falsidade e a violência do passado, sem nos deixar em um presente totalmente desnorteado e isolado. Não é apenas na litera- tura que encontramos a autoficção. O cineasta francês François Truffaut gravou uma série de cinco filmes com o ator Jean-Pierre Léaud, alter-ego do cineasta e muito parecido com ele. O intuito do filme Os incompreendidos é narrar o período entre a infância e a vida adulta de Antoine Doanel. No filme teste- munhamos o abandono dos pais, a dificuldade em manter relacionamen- tos amorosos e o jeito distraído do personagem, que na verdade é o pró- prio cineasta. Direção: François Truffaut. Paris: Cocinor, 1959. Filme 58 Teoria da Literatura I As questões manifestadas por Hutcheon e Frederic Jameson vêm a reboque de uma vertente da crítica chamada de pós-modernismo, onde entra a literatura pós-colonialista, mais interessada em questões ligadas à distribuição, disseminação e produção do conhecimento e da cultura. Assim, o olhar dos pesquisadores sai do eurocentrismo – que foi responsável por praticamente todas as correntes literárias no século XX. A atenção volta-se para as margens, para a periferia do ca- pitalismo, para as minorias que durante séculos não tiveram voz ou apreciação crítica. O teórico Hayden White (2019), seguindo a esteira das reflexões de Hutcheon, considera a história como ficção, ou seja, um discurso narra- tivo em prosa que mescla eventos ocorridos no passado. Para o crítico, é necessário discutir o problema do conhecimento histórico. Nesse sentido, apontamos que a grande distinção entre a história e a metafic- ção é que o historiador escolhe os fatos a serem interpretados, enquan- to o ficcionista inventa suas histórias com base nas leituras historiográficas oficiais. Segundo Jacomel e Silva (2007) “A metaficção historiográfica revela uma leitura alternativa do passado como uma crí- tica à história oficial. Por isso seu caráter contraditório, pois nega exa- tamente a veracidade de seu objeto. Recupera e, ao mesmo tempo, recusa os pressupostos históricos” (JACOMEL; SILVA, 2007, p. 741). Sem querermos nos aprofundar em questões como história ( verdade) versus ficção (inventado), atentemos para o fato de que há um movimento interessante que ocorre nessas obras. A metaficção seria uma leitura póstuma de acontecimentos históricos na qual há críticas e novas leituras do passado. Isso faz com que ao mesmo tempo em que ela se baseie na história empírica, ela distorça a ver- dade ali pretendida a fim de atualizá-la em forma de ficção. Há um caráter político por trás desse gesto, como veremos no exemplo a seguir. Um dos mais emblemáticos textos na lite- ratura brasileira é O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, obra dividida em três volumes. Par- te da crítica considera apenas o primeiro – O continente – como metaficção historiográfica. Esse livro abrange 150 anos da história do Rio Grande do Sul (1745-1895), período em que o autor sequer havia nascido. Nessa obra vemos mui- tos eventos históricos, como a Guerra da Cisplatina, a Independência SvetaZi/Shutterstock Aspectos narrativos 59 SvetaZi/Shutterstock do Brasil, a Revolução Farroupilha, a Guerra do Paraguai, a Abolição da Escravatura, a Proclamação da República etc. Trata-se de metaficção historiográfica porque os episódios históricos enumerados entrelaçam- -se com as histórias pessoais das personagens da família fictícia Terra-Cambará. Observemos um trecho do romance, em que se passa a Revolução Farroupilha, da qual o valente capitão Rodrigo toma parte, deixando aterrorizados os familiares. Bibiana caminhou para o irmão. Havia em seu rosto uma grande, uma profun- da mas tranquila tristeza. — O Rodrigo a esta hora está longe — murmurou ela. Juvenal sentou-se e começou a enrolar um cigarro com dedos que tremiam um pouco. - Quando foi que ele saiu?... — perguntou em voz baixa, batendo a pedra do isqueiro para acender o cigarro. — A noite passada. — Pr’onde foi? — Não disse. — Como é que estava? Abatido? Bibiana sorriu melancolicamente. — Estava louco de contente. Parecia que ia pra uma festa. [...] O estafeta do correio que chegou do Rio Pardo em fins de outubro trouxe a grande notícia. Tinha rebentado a revolução e Bento Gonçalves da Silva, chefe supremo das forças revolucionárias, havia atacado e tomado Porto Alegre. (VERÍSSIMO, 2004, p. 232) Até aqui vimos como o episódio histórico afeta a trama familiar de Rodrigo Cambará. Contudo, ele terá um final trágico. No ano de 1836, caramurus e farroupilhas combatem em Santa Fé – cidade fictícia onde se passa o romance. Durante a noite, no ápice do embate, Rodrigo passa pela igreja e tranquiliza o padre Lara, amigo da família, que não deixa de se angustiar. O dia raiava quando lhe vieram bater à porta. Foi abrir. Era um oficial dos farrapos cuja barba negra contrastava com a palidez esverdinhada do rosto. Tinha os olhos no fundo e foi com a voz cansada que ele disse: — Padre, tomamos o casarão. Mas mataram o capitão Rodrigo— acrescentou, chorando como uma criança. — Mataram? (VERÍSSIMO, 2004, p. 241) Desse modo, podemos encarar o evento histórico sob o ponto de vista de personagens ficcionais. Em outros momentos da narrativa há críticas à guerra e como as mulheres são as mais prejudicadas com isso, além de ser questionado o papel das mulheres em tempos de guerra, explicitando o fato de que os eventos políticos eram assuntos A série A casa das sete mulheres é uma adaptação da obra homônima de Letícia Wierzchowski, de 2002. A trama é vista sob a perspectiva de sete mulheres que convivem na mesma casa durante a Revolução Farroupilha, motivada por um embate de grupos políticos. De um lado os caramurus, conservadores, em sua maioria militares e peque- na burguesia portuguesa, que desejavam a volta da monarquia. Do outro lado os farroupilhas, que defendiam ideais liberais, como o voto livre, indus- trialização, fim do poder moderador. Direção: Jayme Monjardim. Rio de Janeiro: Globo, 2003. Série 60 Teoria da Literatura I de interesse e participação somente masculina. Ou seja, Veríssimo usa Rodrigo como um tipo exemplar à época, turrão, machista e irrespon- sável com a família. Esse olhar só é possível porque a obra é escrita mais de cem anos depois. 4.2 Tipos de narradores Vídeo Para nos guiar nesta seção, vamos nos apoiar na tipologia de narra- dores estabelecida pelo teórico Norman Friedman (2002). O verbo vem do latim (narrare), que significa contar, relatar, ou seja, tornar conheci- do. O verbo deriva de gnarus, ou seja, o que sabe. A esse respeito, o ro- mancista e crítico literário inglês Henry James (2011) sublinha o fato de que uma narrativa só tem início quando o escritor entende a diferença entre mostrar e contar o enredo. O excesso de detalhes, por exemplo, pode entediar o leitor ou mesmo interditar todo seu papel colaborativo na experiência literária. Para mostrar a história, é preciso ter noção dos tipos de narradores e definir a escolha do ponto de vista. Para Friedman (2022), a instância narrativa é indissociável de sua transmissão ao leitor. Nesse sentido, ele considera quatro questões, como mostra o quadro a seguir: Questões sobre o narrador Quem fala ao leitor? Narrador na 1ª ou 3ª pessoa? Qual o ponto de vista do narrador? É central ou marginal ao enredo? Alterna sua voz com a das personagens? Quais canais o narrador usa para se dirigir ao leitor? Suas próprias palavras e sentimen- tos? Ações ou sentimentos das personagens? Qual a distância entre o leitor e a narrativa? Próximo, distante ou alternado? El en a Pi m uk ov a/ Sh ut te rs to ck Aspectos narrativos 61 Assim, podemos descrever os principais tipos de narradores, que são instâncias que não devem ser confundidas com os autores. O autor é o sujeito empírico, de carne e osso, que está por trás das palavras, ar- quitetando suas ordens, desenvolvimento, escolhas lexicais etc. Nesse sentido, é importante entender os tipos de discurso que são utilizados pelo narrador. São eles os discursos direto, indireto e indireto livre. O discurso direto geralmente vem indicado por travessões. Pode ser seguido de interferências do narrador, manifesta apenas em verbos elocutórios, como: perguntar, dizer, falar, retrucar, ob- servar etc. No conto Singular ocorrência, de Machado de Assis, temos um exem- plo de sua utilização: – Há ocorrências bem singulares. Está vendo aquela dama que vai entrando na igreja da Cruz? Parou agora no adro para dar uma esmola. – De preto? – Justamente; lá vai ela entrando; entrou. [...] – Deve ter quarenta e seis anos – Ah! Conservada [...] Está viúva, naturalmente? – Não. (ASSIS, 2015, p. 204). Perceba como aí – o início do conto – o narrador não é necessário para dar o ponta pé oficial da ação. Em outras circunstâncias, veremos a leve mão do narrador interfe- rindo. Trata-se de Capítulos dos chapéus, também de Machado de Assis: – Tinha visto Mariana na última noite, no quarto ou quinto camarote da es- querda, não era verdade? – Fomos, murmurou ela, acentuando bem o plural. – No Cassino é que a não tenho visto, continuou ele. – Está ficando um bicho do mato, acudiu Sofia rindo. (ASSIS, 2015, p. 236) Perceba que os verbos murmurar, acentuar, continuar, acudir e sorrir servem para dar continuidade à narrativa ou expressar algo a mais sobre o que dizem as personagens, como em “acentuando bem o plural” ou “acudiu Sofia rindo”. Já o Discurso indireto ocorre quando a fala das personagens é in- corporada pelo narrador, ou seja, nesses casos o registro linguístico, inclusive, será o do narrador, diferente daquele usado pelas persona- gens. Como podemos verificar no exemplo a seguir. 62 Teoria da Literatura I Clara sorriu, mas não disse nada. Entretanto, o juiz de direito, entusiasmado, confessou que não iria sem grandes saudades da corte. Levarei as melhores recordações da minha vida, concluiu. (ASSIS, 2015, p.285) Perceba que, deste modo, várias ações podem ser mostradas, de modo sucinto, sem necessariamente serem faladas. Por fim, trata-se de uma escolha narrativa. No decorrer de um mesmo texto o autor pode valer-se de ambas (ou até mais) para compor a obra. O narrador onisciente neutro, também conhecido como discurso indireto livre, apresenta, segundo Gancho (2006), um narrador que conhece tão bem suas personagens que é capaz de adicionar algumas observações sobre elas. Dessa forma, tal escolha narrativa: i) transcreve pensamentos; ii) mantém o uso que a personagem faz da língua; iii) apresenta a fala da personagem em 3ª pessoa e dispensa o uso do que ou se vistos no discurso indireto livre. Veja que na passagem “O Alves é um trouxa me- droso!” temos acesso à personagem em seu íntimo, ou seja, não é algo que ela externou em seu diálogo, mas o narrador o conhece a tal ponto que pode compartilhar conosco essa informação extra. Tipos de discurso Discurso direto Discurso indireto Discurso oniscien- te neutro João murmurou e sorriu: - O Alves me salvou a vida! João murmurava e sorria, pois Alves havia salvado-lhe a vida. Ele murmurava (e sorria).O Alves é um trouxa medroso! Mas salvou-lhe a vida. El en a Pi m uk ov a/ Sh ut te rs to ck Por meio desses discursos, o narrador seria essa figura de media- ção entre autor e personagem – esse sim, por sua vez, uma instância autônoma. Podendo ser classificado em narrador onisciente intruso, onisciente seletivo, onisciente multiseletivo e protagonista. Aspectos narrativos 63 O narrador onisciente intruso não apenas conhece profundamen- te as personagens como permite manifestar-se durante o texto, expon- do o que pensa ao leitor. Uma obra exemplar da literatura brasileira em que esse fenômeno acontece sistematicamente é Memórias póstu- mas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Observemos alguns trechos a seguir em que fica mais evidente o mecanismo: “Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direto à narração” (ASSIS, 1989, p. 18). Outro momento acontece no capítulo 9: “E vejam agora com que destreza, com que fina arte faço eu a maior transição deste livro” (ASSIS, 1989, p. 26). Por outro lado, o narrador protagonista ocorre quando a persona- gem principal conduz a narrativa de acordo com o seu ponto de vista, isto é, o leitor não tem acesso ao ponto de vista dos demais. Nesse caso, o texto é narrado em 1ª pessoa. Como citamos Machado ante- riormente, cabe lembrarmos também de seu livro Dom Casmurro, que é narrado sob o ponto de vista unilateral de Bentinho, seu protagonista. Vejamos um exemplo disso no romance de Raduan Nassar, Lavoura arcaica (2015). Na modorra das tardes vadias nas fazendas, era num sítio lá no bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas. (NASSAR, 2015, p. 11) Note que a utilização em primeira pessoa do singular (eu, meus e meu) reafirmam a posição do narrador, usando pronomes retos e possessivospara marcar sua narrativa. No caso da onisciência seletiva, teremos um narrador que escolhe uma personagem em específico para aprofundar-se em seu pensamento e deixar a narrativa correr no percurso de seus próprios pensamentos. Um exemplo de como isso acontece é na no- vela Manuelzão e Miguilim, de João Guimarães Rosa. Nessa narrativa, as ações vão sendo mostradas do ponto de vista de uma criança, o Miguilim, que logo no início do texto tem de lidar com a doença da mãe. Observemos o trecho a seguir: Quando voltou para casa, seu maior pensamento era que tinha a boa notícia para dar à mãe: o que o homem tinha falado — que o Mutúm era lugar bonito... A mãe, quando ouvisse essa certeza, havia de se alegrar, ficava consolada [...] Tão grave, grande, que nem o quis dizer à mãe na presença dos outros, mas insofria por ter de esperar; e, assim que pôde estar com ela só, abraçou-se a seu pescoço e contou-lhe, estremecido, aquela revelação. A mãe não lhe deu valor nenhum, mas mirou triste e apontou o morro; dizia: — “Estou sempre pensando que lá por detrás dele acontecem outras coisas, que o morro está (Continua) 64 Teoria da Literatura I tapando de mim, e que eu nunca hei de poder ver...” Era a primeira vez que a mãe falava com ele um assunto todo sério. (ROSA, 2001, p. 18) Já no caso da onisciência multiseletiva, a narrativa é construída pelos diversos pontos de vista das personagens, apagando quase que totalmente as posições do autor e do narrador. Exemplo disso é o clás- sico de Graciliano, Vidas secas. O livro tem capítulos dedicados a cada um das personagens – Fabiano, sinhá Vitória, o Menino mais Velho, o Menino mais novo e a cachorra Baleia. Ou seja, nesse caso o narrador alterna sua onisciência ao mostrar como cada personagem encara a realidade em que vivem e suas relações entre si. Vejamos alguns exem- plos. No capítulo “Fabiano” há a seguinte passagem: Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele era correr mundo [...] Um vagabundo empurrado pela seca. Achava-se ali de pas- sagem, era hóspede. Sim senhor, hóspede que se demorava demais, tomava amizade à casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras. (RAMOS, 2012, p. 19) Se nesse trecho temos um Fabiano que reflete com crueza sobre sua condição, como contraponto, temos o capítulo “O Menino Mais Novo”, cuja perspectiva volta-se para o pai, visto como uma figura imponente e modelar, a quem ele pretende imitar no ofício de domar os animais na fazenda: A ideia surgiu-lhe na tarde em que Fabiano botou os arreios na égua alazã [...] Não era propriamente ideia: era o desejo vago de realizar qualquer ação no- tável que espantasse o irmão e a cachorra Baleia. Naquele momento Fabiano causava-lhe grande admiração. Metido nos couros, de perneiras, gibão e guar- da peito, era a criatura mais importante do mundo. (RAMOS, 2012, p. 47) Vidas secas representou um ponto de virada nos romances regio- nalistas dos anos 1930, que retratavam o sertão e seus habitantes de forma ora condescendente ora exótica. Graciliano Ramos minimiza os lugares do narrador e do autor que tudo sabem e permite que a família de retirantes pense em seus termos, ainda que esses sejam parcos e rudimentares. 4.3 O tempo na narrativa Vídeo Como apontou Benedito Nunes (2013), a narrativa de ficção tem algo em comum com a música, pois ambas precisam trabalhar com a categoria de tempo (dividindo-o, suspendendo). O questionamento sobre o tempo, em termos filosóficos, vem desde Santo Agostinho, que Le ga cy 60 0/ W ik im ed ia C om m on s Graciliano Ramos foi um romancista de poucas, mas excelentes obras. Seu interesse pelo sertão é motivado pelas suas próprias experiên- cias na cidade em que nasceu, Quebrangulo, Alagoas. Suas obras foram adaptadas para o cinema e a mais famosa delas foi Vidas secas (1963), dirigida por Nelson Pereira dos Santos, expoente do Cinema Novo no Brasil. História em foco Aspectos narrativos 65 disse “O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar eu o sei; se eu quiser explicá-lo a quem me fizer essa pergunta, já não saberei direito” (AGOSTINHO apud NUNES, 2013, p. 19). Em nossa vida cotidiana já houve diversas formas de enquadrar o tempo: relógios de água, ampulhetas, nascer e pôr do sol, estações do ano etc. Digamos que atualmente conseguimos estabelecer um acordo em relação ao tempo e sua duração. Por outro lado, pensando nas narrativas, essa ainda é uma questão a ser discutida devido às suas múltiplas possibilidades – assim como o é para a música ou o cinema. Nesse sentido, alguns aspectos são importantes de observar duran- te a análise de uma narrativa, tais como o período do enredo, a dura- ção da história, o tempo cronológico e o tempo psicológico. O período em que o enredo acontece é uma escolha que pode ser muito simples – por exemplo, escrever um conto que se passa em São Paulo 2022 – ou mais complexa – como a saga O tempo e o vento, de Érico Verissimo, cujo enredo desenrola-se entre 1745 e 1945, mas foi redigido na segunda metade do século XX. O esforço de criar uma ambientação e fluxo narrativo convincentes aos leitores deveu-se às intensas pesquisas feitas pelo autor. Portanto, tendo em vista a noção de verossimilhança – parecer real –, buscada pelos autores de prosa, depende de onde situa-se a narrativa realista. Contudo, caso trate-se de uma obra de ficção científica ou de fantasia, os princípios se tornam mais elásticos e amplos para a invenção. Segundo Gancho (2006), para delimitar a duração da história, há de se levar em conta o gênero escolhido. Geralmente contos, micro- contos e crônicas têm uma duração mais sucinta, ou seja, costumam não cobrir um longo intervalo temporal. Mas a quantidade de páginas não quer dizer nada. O conto Os mortos, de James Joyce, se passa em uma noite e tem mais de trinta páginas. Por outro lado, há romances cujo tempo dilata-se, como é o caso de O tempo e o vento. Muitas vezes os autores não deixam muito claro em que tempo se passa o enredo. Nesse sentido, pode-se marcar no texto indicadores temporais – não apenas linguísticos – mas também historiográficos. No caso das fábulas e contos de fadas, o marcador geralmente é o Era uma vez.... A vez em questão está situada dentro e fora do tem- po. Seu caráter mítico, assim como as epopeias de Homero, Ilíada e Odisseia, não têm começo nem fim. Isto é, seus marcadores temporais 66 Teoria da Literatura I atualizam-se cada vez que o leitor enuncia aquelas palavras. A noção de demarcação temporal surge de modo mais ostensivo com o roman- ce moderno. O tempo cronológico aparece nas narrativas que estabelecem uma continuidade e sucessão de dias, semanas, meses etc. Esses traços são explicitados no próprio texto que, nesse sentido, mostra-se linear. Novamente, O tempo e o vento é um ótimo exemplo. Veja como o romance começa: Naquela madrugada de abril de 1745, o pe. Alonzo acordou angustiado. Seu espírito relutou por alguns segundos, emaranhado nas malhas do sonho, como um peixe que se debate na rede, na ânsia de voltar a seu elemento natural. Por fim deslizou para a água, mergulhou e ficou imóvel naquele poço quadrado, escuro e frio. (VERISSIMO, 2013, p. 15) Perceba que o desejo de verossimilhança se expõe desde as primei- ras linhas e segue em outros momentos, uma vez que se entremeiam narrativas ficcionais e fatos históricos. Já o tempo psicológico aparece normalmente em enredos não li- neares, pois trata-se de um tempo que acompanha os pensamentos, divagações das personagens ou do próprio narrador. Esse mecanismo é recorrente na obra Ulysses, de James Joyce. O romance se passa em 24 ho- ras, mas conta com mais de mil páginas. Repleto de personagens, Joyce dá a cada um deles uma densidade que só é possível acessar acompanhando o que se passa na cabeça deles. Vejamos um exemplo de como o autor dá conta do que pensa um dos protagonistas, Leopold Bloom: Ele seguiu em frente. Aliás, cadê o meu chapéu?Devo ter posto de volta no gancho. Ou ficou pelo chão. Gozado, eu não lembro. O cabide da entrada mui- to cheio. Quatro guarda chuvas, a capa de chuva dela. Apanhar as cartas. A campainha da loja do Drago tilintando. Engraçado que eu estava pensando bem naquela hora. (JOYCE, 2012, p. 201) Neste exemplo percebemos como é difícil estimar durante quan- to tempo Bloom passou pensando nisso. Pode ter sido uma fração de segundos ou alguns minutos. 4.4 O espaço na narrativa Vídeo Grosso modo o espaço é onde se dá a ação – país, cidade, esta- do – mas também pode referir-se a uma sala, jardim, escola etc. Em narrativas mais longas, em geral, temos um trânsito maior entre espa- Você já deve ter ouvido falar das famosas fábulas contadas por Xerazade. Para escapar à morte, imposta por um rei traído, cujo desejo é casar-se com uma mulher por noite e matá-la no dia seguinte, ela vai entre- tendo-o com narrativas infinitas até o ponto em que o rei se encanta tanto por Xerazade quanto por suas histórias. De autoria anônima, as fábulas eram transmitidas oralmente e foram sendo recolhi- das nos volumes atuais através dos esforços de vários historiadores e eti- mologistas. Sobre o título? O mil mais um indica que as narrativas podem se estender infinitamente. ANÔNIMO. As mil e uma noites. Tradutor: Mamede Mustafa Jarouche. Rio de Janeiro: Editora Azul, 2017. Livro Aspectos narrativos 67 ços, enquanto nas mais curtas – contos, crônicas, novelas – esses serão mais restritos. Um exemplo de conto que se passa inteiro em um único local é A casa tomada, do escritor argentino Julio Cortázar. Há ainda a novela A metamorfose, de Franz Kafka, que ocorre em uma casa, mais especificamente no quarto do protagonista, Gregor Samsa. Assim como o tempo na narrativa, as marcações espaciais mais óbvias podem ser suprimidas – às vezes, inclusive, as duas ao mes- mo tempo. De acordo com Gancho (2006), o espaço tem em comum com as personagens o fato de que ambos podem ser mais ou menos detalhados. Geralmente nos romances do Romantismo, por exemplo, a caracterização minuciosa era recorrente. No romance Inocência, de Vis- conde Taunay, a primeira aparição de Inocência é descrita por Cirino, que será seu par amoroso, da seguinte forma: Apesar de bastante descorada e um tanto magra, era Inocência de uma beleza deslumbrante. Do seu rosto irradiava singela expressão de encantadora inge- nuidade, realçada pela meiguice do olhar sereno que, a custo, parecia coar por entre os cílios sedosos a franjar-lhe as pálpebras [...] Era o nariz fino e um bocadinho arqueado; a boca pequena, e o queixo admiravelmente torneado. (TAUNAY, 2008, p. 51 Perceba o excesso de adjetivos (magra, deslumbrante, singela, sereno, arqueado e pequena) que exaltam tanto a beleza física quanto subjeti- va da personagem aos olhos de Cirino. É recorrente no Romantismo – inclusive nas poesias – os adjetivos e o excesso de descrições, pontua- das por advérbios terminados pelos sufixos mente. No primeiro capítulo de Inocência, chamado O sertão e o sertanejo, há uma descrição minuciosa da paisagem feita pelo narrador em 3ª pessoa. Corta extensa e quase despovoada zona da parte sul-oriental da vastíssima província de Mato Grosso a estrada que da vila de Sant’Ana do Paraíba vai ter ao sítio abandonado de Camapuã. Desde aquela povoação, assente próxi- mo ao vértice do ângulo em que confinam os territórios de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso até ao rio Sucuruí, afluente do majestoso Paraná [...] Ali começa o sertão chamado bruto. (TAUNAY, 2008, p. 11-12) Como observa Antonio Candido (2012), a literatura brasileira, sobretudo no Romantismo, cumpria um papel não apenas artístico, mas também de descrição geográfica, antropológica e biológica de aspectos do nosso país. Para o crítico, isso deve-se ao fato de que àque- la altura não havia ainda universidades nos moldes atuais, com cursos específicos para o estudo e pesquisa nessas áreas do conhecimento. Com o Realismo as descrições tornaram-se mais enxutas e diretas. Com o advento da fotografia e, posteriormente, do cinema, os leitores 68 Teoria da Literatura I passaram a se habituar com descrições onde eles pudessem completar com suas próprias experiências imagéticas. De todo modo, as descri- ções são responsáveis por nos situar espacialmente: estamos na cida- de ou no campo? Dentro de um prédio ou ao ar livre? Quando falamos sobre espaço referimo-nos aos seus aspectos físicos, como no exemplo da página anterior. Para abordar atmosferas, no sentido social ou psicológico, chamaremos de ambiente ou ambien- tação. Por exemplo: o romance Inocência é ambientado no sertão mato- -grossense em meados do século XIX e a protagonista vive sob a égide do patriarcado, trancafiada ao ambiente da casa e com acesso restrito a outras pessoas. O ambiente é de constante tensão, medo e solidão. Por outro lado, certas narrativas contemporâneas têm se distan- ciado dos moldes realistas e investido em formas breves em que não apenas o espaço, mas também a ambientação é rarefeita. Vejamos o exemplo de um conto de Veronica Stigger, Passo Fundo: Bia, meu casamento acabou. Estou indo para Passo Fundo hoje. A mala dos vinhos está com o Tito. Ele pegou um táxi para levar. Não se preocupe. Beijos. Pati. (STIGGER, 2010, p. 21) Observe como a despeito do título, que remete a uma cidade, a brevidade da descrição não nos indica quem escreve o bilhete/ mensagem e nem onde está a pessoa naquele momento. Narrativas desse molde são chamadas também de minicontos ou micro-contos, uma tendência na literatura contemporânea. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os aspectos que compõem uma narrativa em prosa são amplos e os que mostramos aqui são os principais, embora haja vários outros. Há outras questões a serem pensadas pelos autores na hora de pôr as ideias no papel. O objetivo neste capítulo foi transmitir os tópicos mais relevan- tes e necessários ao analisar de forma crítica um texto em prosa: reconhe- cer seu gênero, suas características e multiplicidades. O romance Solaris tornou-se conhecido por suas adaptações ao cinema – uma feita pelo cineasta russo Andrei Tarkovski (1972) e outra mais recente, de Steven Soderbergh (2002). Trata-se de um grupo de cientistas que observam e estudam um planeta de comportamento estranho, chamado Solaris. Ele demonstra ter consciência própria e uma compleição diferente da Terra. Nessa obra é possível perceber a potência da literatura de ficção-científica em criar espaços completamente distintos dos nossos. LEM, S. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2021. Livro Aspectos narrativos 69 Enquanto estudantes de literatura, é preciso exercer essas duas cama- das de leitura. A primeira, na qual deve prevalecer o prazer do texto – como preconizou o crítico francês Roland Barthes (2018), em livro homônimo. Já na segunda leitura é preciso fazê-la de forma crítica e analítica: como se comporta o narrador? A descrição dos ambientes é relevante? A cronolo- gia influencia no enredo? Como? Essas são questões mais refinadas que demandam de futuros educadores uma atenção mais acurada do texto literário que têm em mãos. Como dar conta de tudo isso? Pode parecer clichê, mas é a prática. Quanto mais o hábito da leitura entrar no seu coti- diano mais naturais esses tópicos se transformarão para você. ATIVIDADES Atividade 1 Observe os dois textos abaixo e indique o gênero textual ao qual pertencem. Justifique sua resposta: TEXTO I “Quando eu não sei onde guardei um papel importante e a procu- ra revela-se inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser movida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida. [...] Metadevista. Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • entender a diferença entre teoria e crítica literária; • compreender conceitos e definições de literatura, como mimesis e representação; • entender distinções básicas entre prosa e poesia; • aprender as funções sociais da literatura e sua relação com a cultura. Objetivos de aprendizagem 10 Teoria da Literatura I 1.1 Teoria da literatura e crítica literária Vídeo Nesta seção compreenderemos melhor a diferença entre a teoria da literatura, que corresponde às diferentes abordagens de um texto, e a crítica literária, responsável por ler e analisar uma obra específica a partir de um embasamento teórico. 1.1.1 O que é literatura? A problematização de certos termos abstratos em arte é sempre um embaraço e nos leva a enroscos. Definir o objeto de estudo ou trabalho, embora seja uma tarefa delicada a todas as áreas do saber, pode ser especialmente difícil a um escritor, cineasta ou pintor. Nesse sentido, somos levados a nos questionar: o que é literatura? Perguntando desse jeito, gêneros como romance, poema, crônica e conto podem surgir como respostas, mas aí viriam as perguntas que antecedem essas no- menclaturas, por exemplo: o que é um romance? O que é um poema? A discussão acerca da ontologia literária provém da Grécia Antiga, com filósofos como Platão e Aristóteles que estavam interessados em pensar o que seria a literatura. Aristóteles, em sua Arte Poética, percebe que o fenômeno em si – textos clássicos homéricos como Ilíada e Odis- seia – era desprovido de um nome. Vejamos: “arte que se utiliza apenas de palavras, sem ritmo ou metrificadas, estas seja com variedade de metros combinados, seja usando uma só espécie de metro, até hoje não recebeu um nome” (ARISTÓTELES, 2014, p. 19). Já durante a Idade Média, textos greco-latinos clássicos eram chamados de tratados de re- tórica ou oratória. Outras produções textuais, que não levavam o nome de literatura, eram os textos religiosos, como as bulas papais 1 . Segundo Compagnon (2012), o entendimento moderno de literatu- ra (romance, teatro e poesia) é recente, surgindo no início do século XIX, ligado ao Romantismo e à noção de autoria. Sabia que antes disso a relação entre autor e obra não tinha o mesmo estatuto que hoje? É durante o Romantismo que se consolidam os Estados-Nações, e a literatura vem como um dos elementos responsáveis por unificar um povo, juntamente com a língua, demarcação do território e produções Bula papal é um docu- mento oficial assinado pelo Papa que confere bênçãos ou perdão aos que praticaram algum ato louvável. 1 Introdução à literatura 11 culturais. Então, passam a ser considerados literários os textos “canôni- cos”, ou seja, aqueles que melhor encenam o espírito da nação. Alguns exemplos são os romances históricos do período: Ivanhoé (1820), de Walter Scott; Os três mosqueteiros (1844), de Alexandre Dumas; e Guerra e paz (1869), de Liev Tolstoi. Já no século XX, sobretudo a partir dos anos 1960, a questão sobre o que é literatura continua sendo feita e a literatura já não é mais o que fora no século XIX. A tentativa de cientificizá-la era constante, mas em artes sabemos como é difícil esse movimento. O crítico e teórico literário, Roland Barthes, deu uma resposta irreverente e tautológica 2 a essa pergunta. Ele disse: “a literatura é aquilo que se ensina, e ponto final” (BARTHES apud COMPAGNON, 2012, p. 30). Um filósofo argelino, Jacques Derrida (2014), também deu sua contribuição. Para ele, a litera- tura é a possibilidade de dizer tudo – tanto no sentido de que ela pode falar sobre tudo (esgotando um assunto), como ela pode dizer qual- quer coisa aleatória ou solene. Nesse sentido, o caráter aparentemente inocente da literatura enquanto mera fantasia é posto em suspenso. Se qualquer um pode escrever o que quiser sobre diversos assuntos, podem sair escritas perigosas, por exemplo, pelas quais nem sempre seus autores são responsabilizados. De todo modo, acreditamos que ao invés de pensar em uma defini- ção, que na maioria das vezes só engessa as ideias, seria mais produ- tivo pensar do que a literatura é capaz. Como ela nos afeta? Quais seus efeitos no mundo? O que ela diz sobre nós? Para isso, é importante sis- tematizar seu estudo em termos teóricos, a fim de organizar ferramen- tas e recursos didáticos para falar sobre ela, como nos diz o professor Roberto Acízelo de Souza (2007). O primeiro livro de que se tem registro é a A epopeia 3 de Gilgámesh, um épico escrito em sumério – língua cunei- forme 4 , ou seja, cunhada em tabuletas. A obra conta a história do rei Gilgámesh que reinava em Uruque (Suméria). O que se tem hoje são apenas fragmentos. A autoria do texto é desconhecida, e os historiadores estimam que foi escrito em 1800 a.C. A epopeia – poesia épica narrativa – é um gênero literário que narra os grandes feitos de heróis conhecidos pela sociedade da época. As mais famosas são Ilíada e Odisseia. 3 A escrita cuneiforme foi criada pelos sumérios e era praticada com objetos em formato de cunhas. Geralmente os textos eram cunhados em placas de argila ou pedras. Um outro exemplo desse tipo de escrita são os hierógli- fos egípcios. 4 Tautologia é uma redundância. Quando uma proposição se vale dela, não explica o que é perguntado e volta a questão para seu início. Outro exemplo: “Bola é o que chama de bola”. 2 Fr éd ér ic /W ik im ed ia C om m on s 12 Teoria da Literatura I 1.1.2 Teoria da literatura Como nos diz Compagnon (2012), a teoria literária consolida-se como disciplina após reformas feitas nas universidades europeias e americanas no início do século XX. De todo modo, a pesquisa literária já era realizada junto a outras disciplinas, como a Filologia e a Retórica. Apesar de carregar o termo teoria, que nos remete a um campo científi- co, “seu objeto são o/os discursos sobre a literatura, a crítica e a história literárias, que ela questiona, problematiza, e cujas práticas organiza” (COMPAGNON, 2012, p. 19). A teoria literária é um modo de sistematizar – por meio de um vo- cabulário e terminologias em comum – a análise e o estudo dos textos literários. Porém, é preciso ressaltar que não existe somente uma teo- ria literária, e sim várias, com constantes mudanças de pontos de vista e abordagens sobre as obras literárias. Ademais, podemos afirmar que a teoria literária é um grande guar- da-chuva que abriga as reflexões sobre as condições das produções literárias – época, local, atores –, além do estudo da historiografia e crítica literárias. Segundo o autor, para que um texto seja considerado literário e, por consequência, objeto de teorização, ele deve conter cin- co elementos essenciais: autor, livro, leitor, língua e um referente. A designação tem a ver com o tripé criado pelo crítico literário Antonio Candido (2014), que previa a consolidação de um sistema literário com base no tripé obra–autor–leitor. Dizemos tudo isso para sistematizar o que temos defendido até aqui como sendo um texto literário, que será objeto de estudo da crítica literária. Autor Livro LeitorReferente Língua Texto literário Introdução à literatura 13 1.1.3 Crítica literária A palavra crítica pode até carregar um sentido negativo, mas se lem- brarmos que existem as críticas construtivas, então é possível entrever uma função positiva para o termo. Quando se fala de crítica literária estamos apontando para textos/discursos que ajudam o leitor na com- preensão e no enriquecimento de sua experiência de leitura. Seu ob- jetivo é analisar a obra segundo seus elementos mais técnicos, como enredos, construção das personagens, narrador, espacialização ou, caso seja um poema, sua estrutura em rimas, enjambements, cesuras etc. Cabe à crítica abalizada expressar uma apreciação, ou seja, um juí- zo de valor sobre a obra. Evidentemente as críticas sobre uma mesma obra vão mudar no decorrer do tempo. Segundo o escritor Milan Kun- dera (2016), D. Quixotedas coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. “Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras cha- madas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. TEXTO II “A pequena cidade de Verrières pode ser considerada uma das terras mais bonitas do Franche-Comté. As suas casas brancas, de pontiagudos telhados vermelhos, estendem-se pela encosta de uma colina coberta de vigorosos castanheiros, cujas copas assinalam as mais ínfimas sinuosidades do terreno [...] Verrières está abrigada a norte por uma elevada montanha, um dos contra fortes do Jura. Os cumes recortados do Verra cobrem-se de neve logo aos primeiros frios de Outubro.” 70 Teoria da Literatura I Atividade 2 Sobre os tipos de narradores, leia os trechos abaixo e identifique-os. Justifique sua resposta: TEXTO I “Tal é o prefeito de Verrières, sr. de Rênal. Depois de ter atravessa- do a rua com um passo grave, ele entra na prefeitura e desaparece dos olhos do viajante. Mas, cem passos acima, se continuar seu passeio, este avistará uma casa de aparência bastante bela e, através de uma grade de ferro contígua à casa, jardins magníficos. Para além, há uma linha de horizonte formada pelas colinas da Borgonha e que parece feita de propósito para o prazer dos olhos. Essa vista faz o viajante esquecer a atmosfera empestada dos pequenos interesses de dinheiro que começa a asfixiá-lo.” TEXTO II “Mrs. Dalloway disse que ela própria ia comprar as flores. O serviço de Lucy estava já determinado. As portas seriam retiradas dos gonzos; o pessoal da Rumpelmayer vinha a caminho. E que manhã, pensou Clarissa Dalloway — tão fresca, como se feita para as crianças brincarem na praia. Que prazer! Que mergulho! Era esta a sensação que tinha sempre, em Bourton [...] Era tão fresco e calmo, nessa altura, o ar da manhã, tão silencioso, muito mais do que aqui; era como o bater de uma onda, o beijo de uma onda; frio, cortante e contudo (para a rapariga de dezoito anos que ela era então) solene, sentindo, como sentia, de frente para a janela aberta, que algo de espantoso estava para acontecer; olhando para as flores, para as árvores de onde a névoa se desprendia, para as gralhas subindo e descendo, até que Peter Walsh lhe disse «A meditar entre os vegetais?» — seria isso? — «Eu cá prefiro os homens às couves-flores» — seria isso?” Atividade 3 Leia o microconto abaixo e discorra sobre o uso do espaço e do tempo presente nele. Tatuagem José tinha um verso do poeta morto tatuado na barriga, logo abaixo do umbigo. Um dia, a família viva do poeta morto viu José refestelado na areia da praia, com o tal verso bem à vista, logo acima da sunga amarela. Horrorizada com o acinte, a família o processou. Era um inequívoco oferecimento da obra ao conheci- mento público – e num local de frequência coletiva. A família ga- nhou a causa e a tatuagem, que hoje está emoldurada na grande sala de estar, logo acima do sofá vermelho. Aspectos narrativos 71 REFERÊNCIAS ASSIS, M. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Record, 1989. BARRETO, L. Elogio da morte. In: BARRETO, L. Marginália. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1918. Disponível em: http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www. biblio.com.br/conteudo/limabarreto/cronicas/elogiodamorte.htm. Acesso em: 9 set. 2022. BARTHES, R. O prazer do texto. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2018. CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos 1750-1880. 13. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2012. CERVANTES, M. de. D. Quixote. São Paulo: Editora 34. 2010. v. 1. FAEDRICH, A. Autoficção: um percurso teórico. Revista Criação & Crítica, n. 17, p. 30-46, dez. 2016. FRIEDMAN, N. 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Por isso, na sequência, abordaremos especificamente o conto moderno – aquele escrito a partir do século XIX, com o início do Romantismo. Em seguida, passaremos ao gênero romance, cuja origem remonta às epopeias gregas, como a Ilíada e a Odisseia, de Homero. Analisaremos tre- chos de romances e veremos, na prática, como esse gênero surgiu e foi se desenvolvendo, além de aprendermos algumas técnicas para analisá-los. Por fim, chegaremos aos romances contemporâneos, escritos nos sécu- los XX e XXI, percebendo os desdobramentos e as multiplicidades do gênero, bem como sua capacidade de diálogo com outras manifestações artísticas e os atuais suportes tecnológicos por meio dos quais podemos frui-los. Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • conhecer a origem e as definições do conto no contexto ocidental; • analisar contos contemporâneos e identificar seus principais ele- mentos e mecanismos; • conhecer a origem e as definições do romance no contexto ocidental; • dominar as ferramentas principais de análise do romance; • conhecer os desdobramentose as multiplicidades do romance na contemporaneidade. Objetivos de aprendizagem O gênero conto e o gênero romance 73 5.1 Teorias sobre o conto Vídeo Segundo Gotlib (2006), o conto caracteriza-se por três aspectos nomeados pelo escritor argentino Julio Cortázar: narrar um evento, dar unidade à ação (a sequência dos fatos deve ser coerente) e des- pertar interesse no leitor (tratar de alguma situação ou sentimento reconhecível por todos nós). Há vários modos de combinar esses três aspectos e redigir uma narrativa instigante, como veremos na sequência. 5.1.1 Definições de conto O conto é um dos gêneros literários escritos em prosa. Fazen- do um recuo etimológico da palavra, temos que ela vem do latim computus, que significa cálculo, conta ou suposição. Dela deriva tam- bém, por exemplo, o vocábulo computador, que aparece em um sentido mais matemático, de calcular possibilidades. Devido a um deslizamento semântico, o termo tornou-se também literário pelo seu caráter de suposição. O conto, embora não recebesse essa alcunha ou sentido pelo qual o conhecemos hoje, remonta à tradição oral de narrar histórias, mi- tos, lendas e fábulas. Os povos ágrafos – isto é, aqueles que não têm registro escrito de sua língua – permanecem ainda hoje transmitindo saberes de geração em geração oralmente. Assim, nota-se que houve um caminho da oralidade à escrita. Apesar de as primeiras modalida- des de escrita datarem de cinco mil anos atrás, ela é recente quando comparada ao surgimento do homo sapiens. Certamente você já deve ter ouvido falar dos contos de fadas. Se- gundo Mendes (2004), se hoje Charles Perrault ou os irmãos Grimm são famosos por seus contos, saiba que, na verdade, eles fizeram um trabalho de reagrupamento de histórias orais com várias versões di- ferentes, como Chapeuzinho Vermelho, Cinderela ou O barba azul. Pos- teriormente, já no século XVII, Hans Christian Andersen e os irmãos Grimm – motivados pelo período em que escreviam, no qual a ideo- logia cristã era premente – amenizaram esses aspectos negativos e reformularam as narrativas para que fossem palatáveis à família, so- bretudo às crianças. Gu is e/ W ik im ed ia C om m on s Charles Perrault não estava preocupado com o conteúdo das histórias. Embora a maioria delas fosse vista como para crianças, a maior parte trazia versões mais po- lêmicas, envolvendo vio- lência, incestos e outros elementos assustadores. O conto Chapeuzinho Vermelho, na versão de Perrault, não continha a personagem do caçador – responsável por salvar a menina. Em vez disso, o final mostra Chapeu- zinho nua na cama com o lobo, que em seguida a devoraria. Em outro final, o lobo faz com que Chapeuzinho cozinhe e coma a própria avó, bebendo seu sangue como se fosse vinho. Desfechos assustadores, não? História em foco 74 Teoria da Literatura I 5.1.2 Marco do gênero conto Remontando à origem do conto, sua primeira manifestação é o livro Decameron (em grego, dez jornadas), do autor italiano Giovanni Bocac- cio. Uma vez que a modalidade conto é definida a posteriori, os textos que integram a obra costumam ser chamados pela crítica de novelas. Segundo Dias (2013, p. 11), é “considerada o marco inaugural da prosa de ficção no Ocidente”. Trata-se de uma obra com 100 contos redigidos entre 1348 e 1353, cujos narradores são jovens mulheres e homens. Fugindo da peste negra em um castelo nas proximidades de Florença, eles narravam essas histórias – com notas de erotismo, tragicidade e comicidade – a fim de passar o tempo. Além disso, Decameron não deixa de ser um relato histórico, afinal fora escrito durante o período da peste que dizimou boa parte da po- pulação europeia, incluindo os pais e amigos de Bocaccio. As narrativas dão detalhes sobre o cotidiano da época e os horrores diante da morte e do medo de ser assolado por ela. Sua escrita foi um modo de viven- ciar o luto pelos que se foram e, ao mesmo tempo, voltar a entusias- mar-se com a vida que ainda tinha pela frente. O Decameron significou um ponto de inflexão na literatura da época. Um dos principais elementos a ser observado é a língua. Até aquele momento, século XIV, os escritos eram redigidos em latim, enquanto as línguas românicas já eram há muito tempo utilizadas pelos seus falan- tes. Bocaccio escreveu o livro em dialeto toscano, além de ir contra as temáticas cristãs e medievais – pautadas em temas transcendentais e divinos –, em direção a uma escrita mais realista, calcada no homem e suas questões individuais. Dias (2013) sublinha que os contos não são escritos sem reflexão sobre o tema, pois “a deriva pela superfície do mundo não deixa de obedecer a um traçado muito bem calculado pelo autor. Sob o aparen- te acúmulo das histórias [...] todas têm um tema preestabelecido [...] delineando um desenho cheio de simetrias, de pesos e contrapesos” (DIAS, 2013, p. 18). Isso quer dizer que, à sua maneira, a obra já apresentava a estru- tura básica do conto tal qual o conhecemos hoje. A temática, a voz narrativa e a progressão do tema eram aspectos para os quais Bocac- cio já atentava. Vejamos um exemplo: “Todos devem saber que em O filme Decameron é baseado em nove das 100 histórias do Decameron, de Boccacio. A seleção é feita com base em temas como adultérios, vinganças, frau- des e frustrações artísticas. É interessante ver o filme para termos a representa- ção visual de uma época longínqua, como era a Baixa Idade Média. O filme faz parte de uma trilogia de Pasolini, cujo objetivo era adaptar três das mais conhecidas obras narradas em uma mescla de escrita e oralidade. As outras duas são As mil e uma noites e Os contos de Canterbury. Direção: Pier Paolo Pasolini. Itália; França; Alemanha: Europee Associati; Les Productions Artistes Associés; Artemis Film, 1971. Filme O gênero conto e o gênero romance 75 tempos passados houve em nossa cidade costumes muito galantes e louváveis, de que hoje não há vestígios graças à avareza que pros- perou lado a lado com a riqueza, as quais se uniram para bani-los” (BOCACCIO, 2013, p. 99). No trecho, podemos ter uma ideia de como se constrói a narrati- va, emoldurada, nesse caso, por uma introdução espacial e contex- tual – a cidade de Florença e a avareza versus a abundância entre seus habitantes. Na sequência, influenciado por Bocaccio, quem retoma a estrutura do conto é o escritor inglês Geoffrey Chaucer em sua obra Os cantos da Cantuária (1387-1400). Assim como Bocaccio, Chaucer redigiu o texto em inglês médio, ou seja, inscrevendo o idioma em sua forma escrita, deixando de lado o latim e o francês, ainda muito utilizados à época. Os contos abordam tipos sociais de diferentes estratos e versam sobre os hábitos e o dia a dia na Inglaterra do século XIV. Já no século XVII, destacam-se as famosas fábulas de Jean de La Fontaine, que em sua escritura incorporam traços da oralidade, uma vez que tais histórias já faziam parte de um repertório comum do povo. As mais conhecidas são A raposa e as uvas, A cigarra e a formiga e A tartaruga e a lebre. O intuito era claramente moralizante. Ao final de cada uma delas há uma lição de moral a ser apreendida. Seu livro principal é Fábulas (1668-1694) e tinha como intuito apontar para as- pectos negativos do caráter humano, como a avareza, a preguiça e a violência. Elas eram interpretadas sempre por animais, daí seu cará- ter alegórico. No século XVIII, podemos destacar as obras do filósofo iluminista francês Voltaire. Suas duas narrativas mais importantes – que à época eram nomeadas como novelas – são Zadig (1747) e Cândido, ou O Oti- mismo (1759). Em ambas o autor utiliza uma escrita satírica, humanista e, até certo ponto, herética, uma vez que desconsidera a religião como solução para os problemas dos seres humanos. Assim como nas obras dos seus precursores – Bocaccio e Chaucer –, os dramas e as questões humanas aprofundam-se aqui e trazem em seu descontentamento in- dícios da Revolução Francesa que viria embreve. Nesse entretempo, a forma conto irá se manifestar como novelas de cavalaria e livros de crônicas, ganhando o formato moderno apenas durante o Romantismo, no século XIX, como veremos na seção a seguir. 5.2 O conto moderno Vídeo Segundo o crítico brasileiro Anatol Rosenfeld (1993), no Brasil, o conto é conhecido como um texto curto em prosa baseado no gênero épico – no que diz respeito ao seu caráter narrativo. Durante muito tempo, a palavra inglesa tale, que significa contar, referiu-se a histórias breves e oriundas do folclore, de lendas ou mitos populares, ou seja, não eram necessariamente contos. É com o advento do conto moderno e as teorizações acerca do gênero que surgiu seu termo mais especí- fico, short story (história curta), cujas premissas eram a brevidade do relato e o uso da prosa. Resumindo, as tales tinham mais a ver com o verbo contar e as short stories, com o verbo narrar. As questões ligadas à nomenclatura – não apenas em inglês, mas em espanhol, francês e italiano – também têm sua própria história, como observou Gotlib (2006). Para a autora: “Estes modos variados de narrar por vezes se agrupam, de acordo com alguns pontos característicos, que delimitam um gênero” (GOTLIB, 2006, p.14). Todavia, do Romantis- mo ao Modernismo, os aspectos que definiam o gênero ultrapassaram seus limites, mesclando-se a outras possibilidades, desfazendo as no- ções de gênero e normas, como apontou Gotlib (2006). De qualquer forma, apesar de todas as distinções possíveis que o conto moderno pode adotar, algumas características básicas costu- mam nortear a definição do gênero, como vemos no quadro a seguir: Características do conto Enredo Geralmente há uma única situação que será desenvolvida. Brevidade Por ser um gênero breve, não há detalhamento de espaço ou temporalida- de prolongada. Estrutura O desenvolvimento se dá de modo rápido. O clímax 1 costuma vir no final, sem muitos arrodeios. Personagens São poucos, pois não é possível aprofundar-se em todos eles. Final impactante Após o clímax, o conto acaba, não há uma continuação ou explicação posterior. Objetivo central definido Focar uma única questão e efeito a ser proporcionado ao leitor (repulsa, surpresa, raiva, alívio). El en a Pi m uk ov a/ Sh ut te rs to ck Em termos literários, clímax é o momento de maior tensão na narrativa, ou seja, aquele em que o tensionamento é resolvido. Esse movimento também aparece em outros gêne- ros, como o romance. 1 7676 Teoria da Literatura ITeoria da Literatura I O gênero conto e o gênero romance 77 As primeiras manifestações do conto moderno datam do início do Romantismo, no século XIX. A Alemanha surge como expoente, uma vez que o Romantismo tem suas bases nos escritores de língua ale- mã. Segundo Italo Calvino (2004), é após a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, bem como o estabelecimento do capitalismo como modelo econômico, que a figura do artista – no nosso caso, o escritor – passa a ficar à margem da sociedade. Em um mundo regido pelo lucro e acúmulo de bens, tais ofícios passam a ser vistos como inúteis. Para aqueles privilegiados, nascidos em famílias ricas ou que se sustentavam escrevendo para jornais, a carreira de escritor era pos- sível. No entanto, é importante ressaltar que a pequena burguesia da qual eles faziam parte ainda era incipiente, ou seja, muitos dos artistas viviam em condições de penúria e marginalidade. É nesse contexto que surge o Romantismo, uma escola literária identificada pela recusa e insatisfação com relação ao mundo, extrema- mente hostil aos artistas. Daí o desejo de evasão, escapismo e ingresso em um mundo da fantasia como modo de refugiar-se da realidade ao redor. É forte também o desejo de demarcar a individualidade do su- jeito, bem como o direito a dar vazão aos seus sentimentos e às suas inquietações – que na poesia são bem evidentes. Nas palavras de Calvino (2004): “O conto fantástico é uma das pro- duções mais características da narrativa do século XIX e também uma das mais significativas para nós, já que nos diz muitas coisas sobre a interioridade do indivíduo e sobre a simbologia coletiva” ( CALVINO, 2004, p. 12). O crítico afirma isso porque as primeiras manifestações em forma do conto moderno traziam consigo o elemento sobrenatural como marca registrada. Destaca-se a figura de E. T. A Hoffmann, precursor da literatura fantástica. Seu conto mais conhecido é O homem da areia, do livro Noturnos (1817). Esse conto em específico traz a personagem do homem de areia, recorrente no folclore europeu, que costumava ser retratado como um ser mágico que induzia o sono nas crianças. Na versão dos contos escri- tos por Andersen, esse homem jogava areia nos olhos dos pequenos, trazendo-lhes sonhos bons ou ruins de acordo com seu comportamen- to – vê-se aqui o caráter moralizante. Já em Hoffmann, o homem de areia é mais macabro: ele arranca os olhos das crianças. O conto de Hoffman deu origem à famosa série de HQs, de 75 volumes no total, chamada Sandman, escrita pelo quadrinista Neil Gaiman e publica- da pela renomada DC Comics. O sucesso foi tanto que essa foi a pri- meira HQ a ingressar nos mais vendidos do jornal The New York Times. Além disso, em 2022 a história virou uma série da Netflix. Saiba mais Outro escritor essencial – e que consolida o conto moderno – é o americano Edgar Allan Poe. Na língua inglesa, ele é equivalente a Hoffmann. Foi precursor do gênero policial e da ficção científica/fan- tástica, e seus textos são marcados por mistérios, horrores, assassina- tos e personagens disfuncionais. Poe também teoriza a sua escrita: em A filosofia da composição (2011), ele afirma que a narrativa curta seria o modo mais adequado para o escritor demonstrar seu talento como tal. Além disso, Poe rejeita a ideia de inspiração, espontaneidade, e defende que o ato da escrita é um processo meticuloso e analítico. Essas considerações vão contra o pensamento corrente do Romantismo, no qual prevalecia a imaginação como indutora da escrita, sem enfati- zar o trabalho por trás dela. O autor elabora a noção de “unidade de efeito” que, em suas pala- vras, é explicada deste modo: Se alguma obra literária é longa demais para ser lida de uma assentada, devemos resignar-nos a dispensar o efeito imensa- mente importante que se deriva da unidade de impressão, pois, se requerem duas assentadas, os negócios do mundo in- terferem e tudo o que se pareça com totalidade é imedia- tamente destruído. (POE, 2011, p. 25) Essa teoria vai repercutir entre os escritores das gerações seguintes, que também se debruçaram sobre a questão e a tentativa de definição do gê- nero conto. Quem o fez de modo interessante foi o argentino Julio Cortázar. Em sua conferência Al- guns aspectos do conto (2011), ele traz algumas analogias interessantes – por exemplo, compara o conto à fotografia em opo- sição ao romance, que seria um filme. 7878 Teoria da Literatura ITeoria da Literatura I O gênero conto e o gênero romance 79 A fotografia condensa um instante da realidade limitado por suas bordas, que ao mesmo tempo abre-se para interpretações amplas “como uma visão dinâmica que transcende espiritualmente o campo abrangido pela câmera” (CORTÁZAR, 2011, p. 151). Outra analogia feita pelo autor é a do universo do boxe. Para ele, “o romance ganha por pontos, enquanto o conto ganha por knock out” ( CORTÁZAR, 2011, p. 152). Assim, vemos que a ideia de condensamento é relevante para Cortázar, que defende a profun- didade em vez do acúmulo – possível apenas no romance. Em suas palavras: “pensem nos contos que não puderam esquecer e verão que todos eles têm a mesma característica: são aglutinantes de uma realidade infinitamente mais vasta que a do seu mero argumento” (CORTÁZAR, 2011, p. 155). Além disso, o autor complementa afirmando que o conto deve apre- sentar uma tensão a ser resolvida e esta deve apresentar-se desde as primeiras linhas do texto, sob o risco deser um conto “ruim”. Atualmente, a forma conto adquiriu novos contornos e forma- tos, sobretudo com a influência da internet e das redes sociais, aproximando-o de uma estética minimalista. Há subgêneros, como mi- croconto, miniconto e nanoconto – sendo estes muitas vezes identifica- dos como sinônimos. Sua leitura ágil permite ao leitor consumir vários de uma vez, ao mesmo tempo que poucas frases podem nos levar a refletir tanto quanto um romance. Alguns expoentes do gênero em lín- gua portuguesa são Dalton Trevisan, Antônio Prata, Marcelino Freire, entre outros. Vejamos alguns exemplos: A velha insônia tossiu três da manhã. (TREVISAN, 1994, p. 17) Uma vida inteira pela frente. O tiro veio por trás. (MOSCOVICH, 2004, p. 16) Você deve estar se perguntando: afinal, qual é a diferença entre os contos e os minicontos? Alguns teóricos vão ater-se ao tamanho, im- pondo um limite máximo de caracteres, algo bastante subjetivo. Po- rém, nas palavras de Paulino (2001, p. 137), o miniconto é “um tipo de narrativa que tenta a economia máxima de recursos para obter tam- bém o máximo de expressividade, o que resulta num impacto instan- tâneo sobre o leitor”. Se você quiser se apro- fundar mais no universo dos contos modernos, o escritor Ricardo Piglia apresenta sua teoria no ensaio Teses sobre o conto. Para ele, todo conto tem sempre duas histórias: uma aparente, que esconde em si a segunda, a cifrada, que fica a cargo do leitor deduzir. Para isso, parte de um trecho do escritor russo Tchecov: “Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ga- nha um milhão, volta para casa, se suicida”. Quantas interpretações podemos dar a esse trecho? PIGLIA, R. São Paulo: Cia das Letras, 2004. Livro https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sustainable_Development_Goals.png 80 Teoria da Literatura I 5.3 O romance: origens e teorias Vídeo Quando falamos de formas literárias é sempre muito difícil precisar origens, isto é, datas exatas em que um movimento ou gênero começa. Pautamos cronologicamente para termos balizas e nos certificarmos de que nossos pares entenderão o que queremos dizer quando nos referimos ao Romantismo ou à tragédia, por exemplo. O surgimento do termo romance vem do latim romanice scribere, ou seja, escrever em idioma romance, que vem de romanicus, ao estilo de Roma. À medida que o Império Romano foi avançando pela Europa, cada país desenvolveu uma língua própria, que seria a mistura do latim com o vernáculo local, derivando daí um terceiro idioma – é o caso do inglês, francês, alemão, espanhol etc. A princípio, essas línguas eram consideradas de pouco valor, uma vez que durante muito tempo o latim ainda perdurou como oficial em textos escritos. Elas eram usadas para a escrita de novelas de cavalaria ou histórias de amor – daí advém seu uso corrente: romance. O roman- ce consolida-se ao mesmo tempo em que o movimento literário cha- mado Romantismo surge, por isso a semelhança entre os dois nomes, uma vez que o gênero romance aborda temas como histórias de amor fracassadas, intrigas amorosas e outros. É quase consenso entre os críticos que Dom Quixote (1605), do espa- nhol Miguel de Cervantes, é o primeiro romance moderno. Um dos que detalham esse argumento é o escritor tcheco Milan Kundera (2016). Em seu ensaio A herança depreciada de Cervantes, ele começa aproximando o discurso literário do filosófico, a fim de demonstrar como as mesmas questões podiam ser respondidas por ambos, mas cada qual à sua ma- neira. Nesse sentido, compara Descartes com Cervantes, “fundadores dos tempos modernos” (KUNDERA, 2016, p. 12). Kundera rejeita o senso comum de que o romance é somente um modo de representar a realidade em que vivemos. Ele é, na verdade, o lugar da dúvida, da inquietação. É preciso sentir algum desconforto ao ler um romance, algo que implique a participação ativa do leitor na construção dos múltiplos significados ali presentes. Ao comentar a obra Crime e Castigo, do autor russo Fiódor Dostoiévski, Kundera (2016, p. 50) O gênero conto e o gênero romance 81 afirma: “O romance não examina a realidade mas sim a existência [...] ela é o campo das possibilidades humanas, tudo aquilo que o homem pode tornar-se, tudo aquilo de que é capaz. Os roman- cistas desenham o mapa da existência”. Dessa forma, o romance moderno, desde Quixote, tem como fito a análise da interioridade das personagens como indivíduos. Não por acaso, a publicação de Cervantes e de O discurso do método (1637), de Descartes, são contemporâneas e inscre- vem-se justamente na passagem do Renas- cimento para o Iluminismo, em que as doutrinas cristãs deixam de prevale- cer e o sujeito passa a ser visto com singularidade, capaz de organizar suas próprias questões. Outro teórico que se debruçou sobre o gênero romance foi Mikhail Bakhtin. De pronto, ele estabelece: “O estudo do romance enquanto gênero caracteriza-se por dificuldades particulares. Elas são condi- cionadas pela singularidade do próprio objeto: o romance é o único gênero por se constituir, e ainda inacabado” (BAKHTIN, 2019, p. 397). Podemos pensar no romance como um gênero vampiresco, pois ele pode se alimentar de todos os outros gêneros com demais discursos – jornalístico, publicitário, lírico (as prosas poéticas) etc. Essa versatili- dade ainda em curso difere dos demais gêneros que, vistos em retros- pecto, aparecem como acabados (epopeia, tragédia, comédia). Um aspecto interessante para o qual Bakhtin (2019) aponta é que o desenvolvimento do romance se dá em meio à pluralização das línguas vernáculas na Europa (português, espanhol, italiano, inglês, francês etc.). O latim deixa de ser a regra e as identidades nacionais reforçam-se am- paradas também pelo estabelecimento das línguas. Bakhtin também é enfático ao distinguir epopeia e romance. A primeira seria “o passado heroico nacional, é o mundo das ‘origens’ [...] o mundo dos pais e an- cestrais [...] A epopeia jamais foi um poema sobre o presente, sobre o seu tempo [...] desde o início foi um poema sobre o passado“ (BAKHTIN, 2019, p. 405). O segundo, por sua vez, “tem uma problemática nova e específica; seus traços distintivos são a reinterpretação e a reavaliação Na obra A Arte do romance, vemos uma faceta dife- rente da escritora Virgínia Woolf: a de teórica e ensaísta literária. Mesmo sem seguir os moldes acadêmicos, nos nove textos que compõem o livro, a autora disserta sobre a forma romance. Ela passa por questões como o lugar da mulher na literatura – um dos textos mais famosos é Um teto todo seu –, o prazer de ler e o destino e os des- dobramentos do romance no século XX. WOOLF, V. Porto Alegre: LP&M, 2018. Livro 82 Teoria da Literatura I permanentes. O centro da dinâmica da percepção e da justificativa do passado é transferido para o futuro” (BAKHTIN, 2019, p. 420). Isto é, há uma nítida relação entre um passado encerrado em si e um presente aberto a possibilidades. Por fim, um teórico que dissertou sobre o tema, mas de um ponto de vista distinto, foi Georg Lukács. Em A teoria do romance (2009), ele faz um paralelo entre epopeia e romance – baseado na Estética, do fi- lósofo alemão Friedrich Hegel, que defendia o romance como epopeia burguesa. O elo entre os dois é explicitado por Lukács (2009, p. 55) da seguinte forma: “O romance é a epopeia de uma era para a qual a tota- lidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade”. Apesar de evidenciar uma diferença entre ambos no contexto mo- derno – a epopeia como totalidade e o romance como afunilamento e individualização das personagens e seus destinos pessoais –, Lukács põe a questão de maneira melancólica: a extinção da figura heroica e da narrativa que fala a um povo versus a narrativa sobre sujeitos ordi- nários presos em questões mundanas. Resumindo, Lukács vê o romance como retrato de um mundo em que o indivíduo seencontra perdido e abandonado em meio a uma sociedade hostil. Essa visão advém de sua ligação com o pensamento filosófico alemão. Em certa passagem, o teórico afirma: “O processo segundo o qual foi concebida a forma interna do romance é a peregri- nação do indivíduo problemático rumo a si mesmo, o caminho desde o opaco cativeiro da realidade simplesmente existente, em si heterogê- nea e vazia de sentido para o indivíduo” (LUKÁCS, 2009, p. 82). Com isso, percebemos um ponto de vista crítico acerca do romance que não o considera um gênero promissor, ao contrário de Kundera e Bakhtin. Lukács entende o romance como a narrativa de vidas ocas e problemáticas. Deixa clara a sua predileção pela epopeia, acreditando que esta contém uma infinidade orgânica, enquanto o romance en- clausura o personagem, tornando-o “mero instrumento, cuja posição central repousa no fato de estar apto a revelar uma determinada pro- blemática do mundo” (LUKÁCS, 2009, p. 84-85). O gênero conto e o gênero romance 83 Para concluir, observemos um breve resumo da estrutura clássica do romance: Estrutura do romance Definição Exemplos Enredo/trama Série de acontecimentos que se interligam uns aos outros a partir da noção de causa e efeito. “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama meta- morfoseado num inseto monstruoso” (KAFKA, 2011). Espaço Precisar onde se passa a narrativa. Podem ser diferentes lugares. Desde o micro – quarto, casa, bairro – até o macro – cidade, país. Temporalidade Duração da narrativa ou momento cronológico em que se passa. Cronológico e psicológico. Personagens Responsáveis por dar corpo à ação. Planas – sem profundidade –versus esféricas – complexas. Narrador Ponto de vista de quem narra. Personagem, observador, onisciente ou onipresente. Como vimos, o gênero romance possui sua estrutura clássica evi- denciada por meio dos trabalhos apresentados, buscando interpretar e retratar suas características, registrando suas eventuais mudanças. 5.4 Romance contemporâneo Vídeo Quando falamos em contemporâneo, vem logo à nossa cabeça a ideia de algo que estamos experimentando ou vivenciando naquele exato momento. Todavia, quando trazemos essa etiqueta para a esfera artística – no nosso caso, a literatura –, surge uma problemática. Com o número cada vez maior de escritores e editoras independentes, o vo- lume de obras tem aumentado cada vez mais nos últimos anos. Nesse El en a Pi m uk ov a/ Sh ut te rs to ck 84 Teoria da Literatura I sentido, como a crítica deve se posicionar diante desse cenário? O es- tudo da literatura contemporânea deve deter-se nos livros publicados naquele mês, ano, década? A esse respeito, o filósofo italiano Giorgio Agamben (2009) propõe uma definição de contemporaneidade tendo em vista a figura do poe- ta: “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro [...] contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de es- crever mergulhando a pena nas trevas do presente” (AGAMBEN, 2009, p. 62-63). Mais adiante, Agamben vai clarificar essa acepção. Ele dirá que o contemporâneo é aquilo/aquele que não coincide exatamente com o seu tempo, ou seja, que está em um ponto de vista escuro – o presente cronológico em si –, mas que é capaz de, nessa escuridão, perceber pon- tos de luz que estão um pouco mais adiante, embora inapreensíveis. Dessa forma, podemos afirmar que vários escritores foram contem- porâneos em seus tempos, justamente por terem inaugurado técnicas que até então não eram óbvias – como nos casos de Decameron e Dom Quixote. Há algo de inventivo nos contemporâneos, que não estão ata- dos pura e simplesmente a um tempo cronológico. Para focar nosso trabalho, vamos pensar essa noção na literatura produzida durante o século XX e início do século XXI. Dividiremos a abordagem em três momentos: primeira metade do século XX, segun- da metade e início do século XXI. 5.4.1 Primeiro momento Em 1922 foi publicada a obra que seria um divisor de águas no entendi- mento de romance até então: Ulisses, de James Joyce. Pelo título, é possível presumir a intertextualidade com o épico do grego Homero, Odisseia, que narra a volta de Ulisses para casa após a Guerra de Troia. Joyce atualiza a figura do herói épico para a de um homem comum, Leopold Blomm, e acompanha dezoito horas do seu dia em quase mil páginas. Você pode estar se perguntando: como ele dilatou tanto as- sim o tempo? Seguindo a tradição dos romancistas do século XIX – Dostoiévski, Liev Tolstói e Honoré de Balzac –, Joyce apresenta ao seu O gênero conto e o gênero romance 85 leitor uma grande quantidade das personagens vinculadas ao protago- nista Bloom. Contudo, o grande artifício para conseguir o feito foi usar a narração via fluxo de consciência, por meio do qual o leitor acessa sem mediações narrativas os pensamentos das personagens. Essa téc- nica faz do livro um desafio, afinal, até aquele momento, os romances seguiam um realismo cuja estrutura era velha conhecida dos leitores. Ulisses é uma leitura desafiadora. Os fluxos de consciência confun- dem-se com as ações e com as descrições dos ambientes, e persona- gens aparecem sem terem sido mencionadas. Além disso, Joyce joga também com diversas obras da tradição clássica, como a Bíblia, as epopeias gregas, os textos de Shakespeare e vários outras. Apesar de parecer caótico, o romance foi bem arquitetado pelo autor. Uma vez que seu intuito era essa espécie de paródia/homenagem à Odisseia, o romance segue uma divisão em 18 episódios que remetem aos narra- dos na obra de Homero. Um segundo nome incontornável é o de Franz Kafka. Famoso por A metamorfose, o escritor inaugura um novo tipo de realismo, influencia- do pelo expressionismo alemão, que se apresenta de modo não linear e muitas vezes absurdo, exagerando o sentimento de fragmentação do indivíduo em meio a uma realidade que parecia não fazer sentido. Os dramas enfrentados pelas personagens kafkianos são a burocracia do Estado e demais instituições, os quais despem o indivíduo da sua humanidade e passam a tratá-lo como coisa. Kafka cria atmosferas fantásticas, enclausurantes e sombrias. Ape- sar disso, sua linguagem é muito clara e objetiva. Os fatos são narrados de modo direto – o que, muitas vezes, choca o leitor. Para resgatar- mos um termo freudiano, Kafka joga com o estranho familiar (Das Unheimliche), que seria uma sensação de estranhamento que se con- verte em angústia diante de algo conhecido – um exemplo seriam as bonecas hiper-realistas. Para termos uma noção, vejamos a abertura de A metamorfose: Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encon- trou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deita- do sobre suas costas duras com couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha [...]. Não era um sonho. Seu quarto, um autêntico quarto humano, só que um pouco pequeno demais, permanecia calmo entre as quatro paredes bem conhecidas. (KAFKA, 2011, p. 7) O Expressionismo foi um movimento de vanguarda do começo do século XX que teve início na Alemanha. Como o nome sugere, há um desejo de expressão, mas não nos moldes realistas. Nas obras do período, vemos imagens que rompem com o padrão de beleza, exprimindo a angústia e o drama humanos. O movimento manifestou-se no cinema, na arquitetura, nas artes plásticas e na literatura. Sobre essa últi- ma, pode-se caracterizá-la como objetiva, afeita a frases curtas. O eixo temá- tico joga com abstrações, simbologias e analogias, ou seja, as “regras” lógicas do realismo foram suspen- sas e cada texto criava a sua própria realidade. Saiba mais 86 Teoria da Literatura I O insólito despertar do protagonista, análogo a um pesadelo, con- firma-se como realidade.Apenas ele mudou, tudo ao seu redor perma- nece o mesmo. O desenrolar da narrativa mostra a reação de repulsa da família de Gregor e o modo como vão encarando a metamorfose. A angústia do leitor é a de não saber como aquilo aconteceu e perceber que, aos poucos, a situação vai sendo normalizada pela família. Finalizando a primeira metade do século XX, temos a literatura exis- tencialista. Ela surge a partir de um entendimento filosófico – o existen- cialismo – em que o indivíduo, tomado por uma angústia existencialista, vê-se como o responsável por todos os seus atos e gestos diante de um mundo que parece sem sentido. Esse movimento ganha musculatura após a Segunda Guerra Mundial, momento de desolamento e descren- ça do povo europeu, cercado por escombros e ausência de justiça. Os dois autores mais conhecidos do período são o escritor Albert Ca- mus e o filósofo Jean-Paul Sartre, este que escreveu O ser e o nada (1943), um tratado filosófico acerca do existencialismo. O romance A náusea (1938), de Sartre, é uma das primeiras expressões literárias dessa cor- rente. O autor vai enveredar sua obra existencialista para questões políticas, o que faz de algumas delas menos interessantes devido ao caráter panfletário. É Camus que se lança de fato na elaboração literária do existencia- lismo. Seu romance mais conhecido, O estrangeiro (1942), traz a história de Mersault, um sujeito qualquer que se envolve em uma briga na praia e acaba matando um homem com uma punhalada. Ele é preso e vai a julgamento, mas recusa-se a depor em sua própria defesa. Mersault não é capaz de elaborar a motivação para o seu crime, não sente re- morso e se recusa a defender-se no julgamento. Considerado culpado, é sentenciado à morte. Acompanhemos a abertura do romance: Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames”. Isso não escla- rece nada. Talvez tenha sido ontem. (CAMUS, 2019, p. 11) A indiferença de Mersault diante da morte da mãe e o fato de que não chorou durante o enterro serão usados no julgamento como prova de sua frieza e ausência de sentimentos. Do ponto de vista existen- cialista, podemos pensar que o protagonista encara a vida como um absurdo sem sentido, daí seu embotamento diante dessas situações, pois se sente descolado delas. O gênero conto e o gênero romance 87 5.4.2 Segundo momento Passando agora para o panorama nacional, falaremos sobre o escritor João Guimarães Rosa e sua magnum opus 2 , Grande Sertão: Veredas (1956). Considerado como um ponto de inflexão na literatura brasileira, o romance conta com uma técnica narrativa interessante: um monólogo dialogado. O protagonista Riobaldo narra para uma segunda pessoa – a quem interpela em vários momentos, mas cuja identidade desconhecemos – suas memórias no tempo em que era jagunço. Per- correndo diversos assuntos – sua relação com a terra, com os compa- nheiros de jagunçagem e lembranças da sua infância –, o romance foca sobretudo a relação afetiva – porém tensa – entre Riobaldo e Reinaldo (cujo nome verdadeiro é Diadorim). Além disso, Rosa vale-se de um vocabulário arcaico, fruto das suas pesquisas linguísticas e da observação do modo de falar dos jagunços. Sua linguagem é marcada por neologismos, aglutinações, trabalho re- finado com os sons das palavras e uma sintaxe diferente daquela pres- crita pela norma culta. O romance sustenta-se também em dualidades, como o bem e o mal, a existência do diabo ou não, o amor e o ódio etc. Ilustrando o estilo do autor, vejamos a abertura do texto: – Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus es- teja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. (ROSA, 2014, p. 23) Em algumas passagens, vemos o arcaísmo, o “nonada”, que significa algo irrelevante; traços de oralidade, em “Causa dum”, em vez de “Por causa de um”; e neologismo, como em “erroso”. Além disso, note a sin- taxe retorcida usada nas frases, por exemplo, em “Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja”. Perceba como a fra- se poderia ser reescrita de maneira mais fluida caso fosse “Deus esteja, os tiros que o senhor ouviu não foram de briga de homem”. Guimarães Rosa inaugura e abre caminho para uma experimentação linguística que será herdada por vários escritores das gerações posteriores. Outro desdobramento do romance foi a prosa poética. Se Baudelaire praticava poemas em prosa, aqui temos o inverso. A prosa poética apropria-se de mecanismos da poesia, como as aliterações, as assonâncias, as metáforas, o ritmo e a sonoridade, mas a estrutura O termo vem do latim – magnum é maior e opus, obra – e é usado para indicar a obra mais importante e relevante da carreira de um artista. 2 88 Teoria da Literatura I permanece semelhante à de um conto ou romance, isto é, um texto corrido e formatado como prosa e com um enredo. Um dos nomes relevantes desse tipo de escrita é Hilda Hilst, poeta e prosadora bra- sileira. Em Fluxo-floema (1970), composto de cinco contos, ela experi- menta essa escrita que, além de propiciar ao leitor uma experiência de prosa-poética, propõe uma metalinguística ao expor a própria difi- culdade de narrar. A ausência de enredo claro e o jogo com a própria linguagem denunciam a dificuldade e os limites da escrita, que é uma personagem central do livro. Estou todo dentro, de perfil também sou de frente, sou sempre inteiro, usa a linguagem fundamental, sem essa que disseste. Chama-se língua, essa? Não, nada tem a ver com o que eu digo, te fazes catacumba, cripta, deixa a tua morte para depois. Se ali estaremos juntos? Como posso? Nada é junto de mim, nada é distante. Abarco o meu próprio limite. (HILST, 2003, p. 226-227) A voz narrativa escolhida é o fluxo de consciência, pontuada por diálogos entre as personagens, que se deslocam por um espaço. 5.4.3 Século XXI Por ainda estarmos vivendo este período, é difícil mapear quais seriam os grandes escritores desta ge- ração. Muitos críticos chamam esse momento artís- tico de pós-moderno – nomenclatura problemática se pensarmos até onde ela se estenderia. Assim, é mais fácil atentarmos para temáticas e ten- dências estilísticas. Com o avanço dos estudos culturais, cada vez mais autores pertencentes a grupos marginalizados – negros, LGBTs, mu- lheres, indígenas, periféricos – têm escrito suas próprias narrativas, baseadas em suas experiên- cias de vida. Nesse sentido, Edward Said (2005) defende que a crítica deve distanciar-se dos estereótipos e das reduções grosseiras de tipos sociais e locais retra- tados pela literatura escrita do ponto de vista dos vencidos, uma vez que isso limita o entendimento e estreita o horizonte dos leitores. É importante que os críticos se atualizem para dar conta das novas temáti- cas e modos de narrar. Rom an Sam borskyi/Shutterstock O gênero conto e o gênero romance 89 No que diz respeito à prosa escrita por pessoas negras, ressaltamos a importância de Conceição Evaristo. Em Olhos d’água (2014), a auto- ra foca perfis de mulheres negras e periféricas, vítimas de violências e abusos, além de sobrecarregadas nas tarefas familiares. Vejamos um trecho em que isso se evidencia: Maria estava parada há mais de meia hora no ponto do ônibus [...]. Além do cansaço, a sacola estava pesada. No dia anterior, no domingo, havia tido festa na casa da patroa. Ela levava para casa os restos. O osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa. (EVARISTO, 2020, p. 39) Nele, notamos o perfil da personagem: uma empregada domésti- ca exausta, esperando condução e trazendo para casa as sobras de comida doadas pela patroa. A representação e denúncia ao racismo podem ser vistas também no romance de Jeferson Tenório, O avesso da pele (2020),vencedor do prêmio Jabuti 2021. A obra é narrada por Pedro, cujo pai foi assassinado durante uma abordagem policial ao ser confundido com um assaltante. Nesse caminho, o jovem traça um percurso de memórias no qual tenta compreender a figura do pai. São relatadas situações de racismo so- fridas não apenas pelo pai, mas também pela sua mãe e pelo próprio Pedro. Em um trecho, ele comenta sobre o pai: [...] você lembra que um dia já tinha sido algemado como um bandido. Isso aos catorze anos, quando você estava num ponto esperando o ônibus, em Copacabana [...] um ônibus parou e dele desceram alguns moleques que apontaram para você dizendo: foi ele, foi ele. [..] alguém sacou uma arma e apontou para a sua cabeça, você ainda podia ouvir um deles gritando: nós vamo te passar, neguim, tu vai morrê agora, neguim. (TENÓRIO, 2020, p. 23) Sobre questões de gênero temos o livro Amora (2019), de Natália Borges Polesso. Nele, os contos narram situações vividas por mulheres lésbicas ou que estão em um processo de entendimento da sua sexua- lidade. Essas histórias apresentam os medos e as dores em torno dos preconceitos sofridos pela sociedade e a própria família. Em um trecho, captura-se este momento: Vó Clarissa deixou cair os talheres no prato, fazendo a porcelana estalar. Joaquim, meu primo, continuava com o queixo suspenso [...]. Beatriz ecoou a palavra como pergunta “o que é lésbica?”. Eu fiquei muda. Joaquim sabia sobre mim e me entregaria para a vó e, mais tarde, para toda a família [...]. A vergonha estava na minha cara e me denunciava antes mesmo da delação. (POLESSO, 2019, p. 34) Passando agora para o universo periférico, falemos de Ferréz, autor do famoso Capão Pecado (2000) e conhecido por sua literatura margi- nal. O título faz menção à periferia do bairro Capão Redondo, em São Grande parte dos famo- sos romances do século XX recebeu adaptações cinematográficas – muitas vezes, até mais de uma. No caso do filme O Estrangeiro, de Visconti, o roteiro é fiel ao roman- ce, seguindo a cronologia das ações e valendo-se de diálogos retirados do próprio livro. As paisagens e a atuação de Marcello Mastroianni como Mersault dão cor e vida às descrições já muito poten- tes no próprio livro. Direção: Luchino Visconti. França; Itália: Dino de Laurentiis, 1967. Filme 90 Teoria da Literatura I Paulo, onde há várias favelas e o descaso da prefeitura para com seus moradores. O enredo gira em torno de Rael – jovem trabalhador que busca um destino diferente do de seus amigos, envolvidos em crimes – e seu romance com Paula, namorada do seu melhor amigo. Em meio a tudo isso, é descrito o dia a dia de penúria em que vivem esses jovens, bem como os assassinatos cometidos pela polícia truculenta. Ressalta-se o uso de uma linguagem não apenas coloquial, mas pró- pria das personagens que habitam a região. O intuito do autor é dar densidade e complexidade psicológica a essas personagens, rompendo com a lógica maniqueísta que distingue o certo do errado ou o bem do mal, visando romper com os estereótipos acerca dos núcleos periféri- cos. A abertura do romance traz um diálogo entre Marquinhos e Vasp que já insere o leitor nesse universo: – Aí, mano! Eu bebo todo dia, cê tá ligado? [...] – Sobrevivo comendo coisas que ganho, mano, e até reviro os lixo, é mó treta com os cachorro, cê tá ligado? – Já fui esfaqueado duas vezes, mano; [...]. (FERRÉZ, 2020, p. 18) Por fim, fiquemos com um resumo das características mais marcan- tes e recorrentes na produção literária brasileira contemporânea: • Uso mesclado da norma culta e linguagem coloquial. • Obras com temáticas urbanas e sociais. • Engajamento em direção a pautas sociais. • Experimentalismo linguístico. • Intertextualidade. • Diálogo com outras técnicas (fotografia, montagem, colagem etc.). • Edições autorais e artesanais. Como vimos, os textos em prosa têm se adaptado cada vez mais ao contexto social em que estamos inseridos, buscando interpretar e re- tratar a realidade em que vivemos, registrando suas mudanças. Apesar de esboçarmos características do romance contemporâneo, não pode- mos perder de vista o fato de que tais categorias estão em constante remodelação, devendo ser reconsideradas com o passar do tempo. El en a Pi m uk ov a/ Sh ut te rs to ck O gênero conto e o gênero romance 91 CONSIDERAÇÕES FINAIS O histórico feito dos gêneros conto e romance serviu para dar uma noção de como eles surgiram e se desdobraram na contemporaneidade. Há vários autores e teóricos relevantes na ficção e crítica dessas obras. Assim como a própria língua, os textos literários estão em constan- te trânsito e transformações, acompanhando as mudanças da realidade ao seu redor e as demandas dos seus leitores. Tendo isso em mente, é possível não ficar preso a caracterizações engessadas acerca de nenhum desses gêneros. Atualmente, há ficções inclassificáveis, pois encontram-se em regiões fronteiriças com outros discursos, como o publicitário, o jornalístico, o vir- tual etc. Ou seja, a noção de gêneros literários precisa ser revisada pelos críticos e novos termos, criados para a compreensão dessas obras que rompem com os limites das estruturas tradicionais de narrativas em prosa. ATIVIDADES Atividade 1 Analise o trecho a seguir e comente as palavras e expressões em destaque. – Aí, mano! Eu bebo todo dia, cê tá ligado? [...] – Sobrevivo comendo coisas que ganho, mano, e até reviro os lixo, é mó treta com os cachorro, cê tá ligado? – Já fui esfaqueado duas vezes, mano; [...]. (FERRÉZ, 2020, p. 18, grifos da autora) Atividade 2 Resuma os três pontos de vista acerca do gênero romance de acordo com Bakhtin, Lukács e Kundera. Atividade 3 Quais são as tendências apontadas para o romance contemporâ- neo? No que elas se diferem dos romances dos séculos XIX e XX? 92 Teoria da Literatura I REFERÊNCIAS AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. BAKHTIN, M. Teoria do romance III: o romance como gênero literário. São Paulo: Editora 34, 2019. BOCCACIO, G. Decameron. Seleção, introdução e tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2013. CALVINO, I. Contos fantásticos do século XIX. São Paulo: Cia das Letras, 2004. CAMUS, A. O estrangeiro. 45. ed. São Paulo: Record, 2019. CORTÁZAR, J. Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva, 2011. DIAS, M. S. Introdução. In: BOCCACIO, G. Decameron. Seleção, introdução e tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2013. EVARISTO, C. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2020. FERRÉZ. Capão pecado. São Paulo: Cia das Letras, 2020. GOTLIB, N. B. Teoria do conto 11. ed. São Paulo: Ática, 2006. HILST, H. Fluxo-floema. São Paulo: Globo, 2003. KAFKA, F. A metamorfose. São Paulo: Cia das Letras, 2011. KUNDERA, M. A arte do romance. São Paulo: Cia das Letras, 2016. LUKÁCS, G. A teoria do romance. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009. MENDES, M. B. T. Em busca dos contos perdidos: o significado das funções femininas nos contos de Perrault. São Paulo: Unesp, 2004. MOSCOVICH, C. In: FREIRE, M. (org.). Os cem menores contos brasileiros do século. Cotia: Ateliê Editorial, 2004. PAULINO, G. et al. Tipos de texto, modos de leitura. Belo Horizonte: Formato Editorial, 2001. POE, E. A. A filosofia da composição. 2. ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011. POLESSO, N. B. Amora. São Paulo: Dublinense, 2019. ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. São Paulo: Cia das Letras, 2014. ROSENFELD, A. Letras germânicas. São Paulo: Perspectiva, 1993. SAID, E. Representações do intelectual. São Paulo: Cia das Letras, 2005. TENÓRIO, J. O avesso da pele. São Paulo: Cia das Letras, 2020. TREVISAN, D. Ah, é?. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1994. Resolução das atividades 1 Introdução à literatura 1. Considerando as discussões feitas sobre literatura: é possível defini-la? Sua resposta deve levar em consideração não apenas aspectos formais, mas também sociais e culturais. Sugestão de resposta: Podemos pensara literatura em seus aspectos mais técnicos e em como ela se divide (lírica, épica e drama). As características formais de cada um desses tipos de texto nos dão um norte, pois eles não estão presentes na linguagem cotidiana, por exemplo. A literatura, portanto, seria um jeito específico de usar a língua. No sentido social, ela cumpriu um papel de unificação de Estados-nações e fez parte da construção de um caráter nacional – como foi o caso do Brasil após a independência de Portugal. Em cada sociedade, contexto, época, público e obra, a literatura será lida de modo diferente e essas interpretações têm a ver com a ideologia por trás dos teóricos e críticos em questão. 2. Qual o entendimento de mimesis para Platão e Aristóteles? No que o entendimento moderno de mimesis diferencia-se desses? Sugestão de resposta: Para Platão, a mimesis presente nas epopeias gregas, por exemplo, fazia parte apenas do mundo das ideias. Elas não permitiam, portanto, um acesso à realidade por estarem apenas imitando algo que o autor não havia de fato vivido. Para Aristóteles, mimesis tem mais a ver com representação com base na verossimilhança, ou seja, precisa emular o real, e não copiá-lo fidedignamente. Atualmente o entendimento de mimesis coloca o termo em um lugar mais ativo, enxergando-o em sua relação com a poética, que sugere a ideia de fazer e executar. A mimesis hoje não seria mais pura imitação ou representação verossímil, mas sim uma possibilidade de criar seu universo com suas próprias leis. 3. Discorra sobre as diferenças entre prosa e poesia. Sugestão de resposta: A rigor, não devemos nos prender às nomenclaturas fixas, pois, como vimos, os entendimentos sobre prosa e poesia foram mudando no decorrer dos séculos. Inclusive vale ressaltar que a noção de prosa sequer estava presente na divisão clássica das artes poéticas greco- romanas. De modo geral, a prosa é mais extensa, organiza-se em Resolução das atividades 93 parágrafos, possui narrador, personagens, enredo e ambientação (onde se passa e em que época). Há nela a presença de diálogos, marcados por aspas ou travessões, tendendo a ser realista. Ela divide-se em ficcional – conto, romance, crônica etc. – e não ficcional – biografias, reportagens etc. A poesia, por sua vez, é mais condensada, ocupa geralmente pouco espaço na página e é dividida em estrofes que se organizam em versos – que são as “linhas” que contêm uma unidade de sentido cada. Podem ter um eu lírico marcado e servir para expressar sentimentos, embora durante o Modernismo essas características tenham começado a mudar. 2 Gêneros literários 1. Leia o poema abaixo, de Álvares de Azevedo, poeta do Romantismo brasileiro, e identifique nele as características próprias à lírica. Se eu morresse amanhã Se eu morresse amanhã, viria ao menos Fechar meus olhos minha triste irmã; Minha mãe de saudades morreria Se eu morresse amanhã! Quanta glória pressinto em meu futuro! Que aurora de porvir e que amanhã! Eu perdera chorando essas coroas Se eu morresse amanhã! Que sol! que céu azul! que doce n’alva Acorda a natureza mais louçã! Não me batera tanto amor no peito Se eu morresse amanhã! Mas essa dor da vida que devora A ânsia de glória, o doloroso afã... A dor no peito emudecera ao menos Se eu morresse amanhã! (AZEVEDO, 2009, p. 44) Sugestão de resposta: A presença do eu lírico demonstra-se de modo contundente, como vemos nas palavras marcadas acima (pronomes possessivos em primeira pessoa, como “meu” e “minha”, pronome pessoal “eu” diversas vezes repetido, e marcação da 1ª pessoa do singular implícita na conjugação do verbo “pressinto”). Além disso, o tom confessional e emotivo é marcante, pois o eu lírico versa sobre sua possível morte, 94 Teoria da Literatura I o que se verifica na incessante repetição do verso ao final de cada estrofe, “Se eu morresse amanhã”. Verifica-se que o poeta não faz uso de forma fixa, pois temos apenas quatro quartetos (estrofes com quatro versos). O esquema de rimas é livre, ou seja, elas não coincidem ao final de cada verso – caracterizando, assim o verso branco, embora no que diz respeito à métrica, os versos são todos decassílabos. Um dado importante sobre o poema é que foi escrito por Aluísio um mês antes de sua morte, daí o tom de um quase conformismo e preparação para a morte. 2. Lei o trecho abaixo, de Édipo rei, escrito por Sófocles, e aponte as características de gênero dramático. Édipo - Está bem; havemos de voltar à origem desse crime, e pô-lo em evidência. É digna de Apoio, e de ti, a solicitude que tendes pelo morto; por isso mesmo ver-me-eis secundando vosso esforço, a fim de reabilitar e vingar a divindade e o país ao mesmo tempo. E não será por um estranho, mas no meu interesse que resolvo punir esse crime; quem quer que haja sido o assassino do rei Laio bem pode querer, por igual forma, ferir-me com a mesma audácia. Auxiliando-vos, portanto, eu sirvo a minha própria causa. Eia, depressa, meus filhos! Erguei-vos e tomai vossas palmas de suplicantes; que outros convoquem os cidadãos de Cadmo; eu não recuarei diante de obstáculo algum! Com o auxílio do Deus, ou seremos todos felizes, ou ver-se-á nossa total ruína! O sacerdote Levantemo-nos, meus filhos! O que ele acaba de anunciar é, precisamente, o que vínhamos pedir aqui. Que Apoio, que nos envia essa predição oracular, possa-nos socorrer, também, para pôr um fim ao flagelo que nos tortura! Saem ÉDIPO, CREONTE, O SACERDOTE. Retira-se o POVO. Entra O CORO, composto de quinze notáveis tebanos. O coro Doce palavra de Zeus, que nos trazes do santuário dourado de Delfos à cidade ilustre de Tebas? Temos o espírito conturbado pelo terror, e o desespero nos quebranta. Ó Apoio, nume tutelar de Delos, tu que sabes curar todos os males, que sorte nos reservas agora, ou pelos anos futuros? Dize-nos tu, filha da áurea Esperança, divina voz imortal! Também a ti recorremos, ó filha de Zeus. Palas eterna, e a tua divina irmã, Diana, protetora de nossa pátria, em seu trono glorioso na Ágora imensa. Resolução das atividades 95 Sugestão de resposta: Presença de diálogos, como o de Édipo e o Sacerdote. Além disso, a existência de uma cena, como comprova o excerto. Há também uma rubrica, ou seja, indicação de cena em: “Saem ÉDIPO, CREONTE, O SACERDOTE. Retira-se o POVO. Entra O CORO, composto de quinze notáveis tebanos”. Por fim, há o coro, que comenta a conversa de Édipo com o Sacerdote, e o conflito no qual o protagonista se encontra. 3. Observe abaixo trechos do canto I de Os Lusíadas, de Luís de Camões. A epopeia recorda e exalta os grandes feitos dos antigos navegadores portugueses que, durante a Renascença, descobriram novas terras e criaram tecnologias de navegação. A partir da leitura, identifique as características que fazem dele um épico, aos moldes gregos, e quais seriam as diferenças em relação a este. Canto I (abertura) As armas e os barões assinalados Que, da Ocidental praia Lusitana, Por mares nunca de antes navegados Passaram ainda além da Taprobana E em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram [...] Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte. [...] E vós, Tágides minhas, pois criado Tendes em mim um novo engenho ardente [...] Dai-me agora um som alto e sublimado, Um estilo grandíloquo e coerente (CAMÕES, 2010, p. 17-18). Sugestão de resposta: A obra Os Lusíadas aproxima-se das epopeias gregas na medida em que seus versos têm metros fixos (são todos decassílabos). Além 96 Teoria da Literatura I disso, evoca as ninfas, divindades da natureza, para que lhe inspirem. Também, o autor pede um estilo eloquente e sem rodeios, para ir direto às ações. Diferente das epopeias gregas, percebe-se que os personagens principais aqui são os navegantes portugueses, que, apesar de sua bravura, não são os heróis míticos gregos e são narradas aqui apenas suas experiênciasindividuais. Enfim, ao dizer “um novo engenho ardente”, Camões apresenta-se como um aedo moderno, que provavelmente se valerá de técnicas distintas de seus predecessores. 3 Correntes literárias 1. A partir do que foi exposto neste capítulo, apresente as características do Formalismo Russo. O Formalismo Russo é uma corrente literária que surge no início do século XX na Rússia e organiza-se em torno de diversos pensadores, como Roman Jakobson e Viktor Chklovski. Seus pressupostos eram a análise de uma obra literária com base em sua estrutura, descartando seu exterior – como a biografia do autor. 2. Faça um breve resumo do que você entendeu sobre a corrente Estruturalista. O Estruturalismo advém da linguística de Ferdinand de Saussure, que organizava a língua como sistema. A corrente surge com o propósito de ler diversos campos do saber – literatura, sociologia, antropologia etc – como uma grande estrutura que se repetiria em cada texto e formulação. Suas características seriam a ideia de sistema totalizante a partir da combinação de elementos (como mostrou Propp) e a ausência de fatores externos (históricos, sociais) para as análises feitas. 3. Discorra sobre as principais características dos Estudos Culturais. Esta corrente teórica surge nos Estados Unidos, entre as décadas de 1950 e 1960, no contexto das manifestações pelos direitos das mulheres, direitos civis e lutas antirracistas e anticolonialistas. Aplicando-a à crítica literária, vemos que seu interesse reside em uma leitura das obras que considere seu contexto social, histórico, de gênero, classe social e raça. Esta multiplicidade de fatores faz com que os Estudos Culturais dialoguem de perto com várias disciplinas, como a Geografia, a Sociologia, a Antropologia e a História. Outro aspecto importante é o interesse dos Estudos Culturais por diferentes mídias, como o cinema, a televisão e a internet. Resolução das atividades 97 4 Aspectos narrativos 1. Observe os dois textos abaixo e indique o gênero textual ao qual pertencem. Justifique sua resposta: TEXTO I “Quando eu não sei onde guardei um papel importante e a procura revela-se inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser movida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida. [...] Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. “Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar.” (LISPECTOR, 2018, p.138-139). TEXTO II “A cidadezinha de Verrières pode ser considerada uma das mais bonitas do Franco Condado. Suas casas brancas de teto pontiagudo e telhas vermelhas espraiamse pela encosta de uma colina cujas menores sinuosidades são marcadas por grupos de vigorosos castanheiros. [...] Verrières está abrigada ao norte por uma montanha alta, um dos ramos do Jura. Os cimos escarpados do Verra cobremse de neve desde as primeiras friagens de outubro.”(STENDHAL, 2010, p. 19) Sugestão de resposta: O trecho I é uma crônica de Clarice Lispector. Narrada em 1ª pessoa e de tamanho curto, a narradora parte de um questionamento trivial que já aconteceu a todos nós quando perdemos algo e queremos encontrá-lo. Apesar da premissa singela, Lispector vai fundo nessa questão em que haveria um eu fora de nós mesmo, ao qual não reconheceríamos. Trata-se de uma crônica com viés filosófico. O trecho II é a abertura de um romance em 3ª pessoa, que trabalha com 98 Teoria da Literatura I um dado do Romantismo: a descrição detalhada de onde se passa a narrativa, algo que posteriormente fará sentindo no enredo. 2. Sobre os tipos de narradores, leia os trechos abaixo e identifique- os. Justifique sua resposta: TEXTO I “Tal é o prefeito de Verrières, sr. de Rênal. Depois de ter atravessado a rua com um passo grave, ele entra na prefeitura e desaparece dos olhos do viajante. Mas, cem passos acima, se continuar seu passeio, este avistará uma casa de aparência bastante bela e, através de uma grade de ferro contígua à casa, jardins magníficos. Para além, há uma linha de horizonte formada pelas colinas da Borgonha e que parece feita de propósito para o prazer dos olhos. Essa vista faz o viajante esquecer a atmosfera empestada dos pequenos interesses de dinheiro que começa a asfixiá-lo.” (STENDHAL, 2010, p.20-21) TEXTO II “Mrs. Dalloway disse que ela própria ia comprar as flores. O serviço de Lucy estava já determinado. As portas seriam retiradas dos gonzos; o pessoal da Rumpelmayer vinha a caminho. E que manhã, pensou Clarissa Dalloway — tão fresca, como se feita para as crianças brincarem na praia. Que prazer! Que mergulho! Era esta a sensação que tinha sempre, em Bourton [...] Era tão fresco e calmo, nessa altura, o ar da manhã, tão silencioso, muito mais do que aqui; era como o bater de uma onda, o beijo de uma onda; frio, cortante e contudo (para a rapariga de dezoito anos que ela era então) solene, sentindo, como sentia, de frente para a janela aberta, que algo de espantoso estava para acontecer; olhando para as flores, para as árvores de onde a névoa se desprendia, para as gralhas subindo e descendo, até que Peter Walsh lhe disse «A meditar entre os vegetais?» — seria isso? — «Eu cá prefiro os homens às couvesflores» — seria isso?”(WOOLF, 2012, p.7) Sugestão de resposta: O primeiro excerto apresenta um narrador onisciente neutro, marcado pelo uso da 3ª pessoa do singular. Ele acompanha o caminho do prefeito de Verrières até a prefeitura, descrevendo o espaço no qual se encontra e o que o personagem observa nele. Não juízo de valor da personagem e nem seu acesso à consciência. O segundo trecho traz um narrador onisciente seletivo. Ele está colado à perspectiva de apenas uma personagem, Clarissa Dalloway, e a narrativa será conduzida pelos seus sentimentos, pensamentos, inquietações etc. Resolução das atividades 99 3. Leia o micro conto abaixo e discorra sobre o uso do espaço e do tempo presente nele. Tatuagem José tinha um verso do poeta morto tatuado na barriga, logo abaixo do umbigo. Um dia, a família viva do poeta morto viu José refestelado na areia da praia, com o tal verso bem à vista, logo acima da sunga amarela. Horrorizada com o acinte, a família o processou. Era um inequívoco oferecimento da obra ao conhecimento público – e num local de frequência coletiva. A família ganhou a causa e a tatuagem, que hoje está emoldurada na grande sala de estar, logo acima do sofá vermelho.(STIGGER, 2010, p.26) Sugestão de resposta: Apesar de sua brevidade, o texto joga com um detalhamento dos espaços em que a mini narrativa acontece. Temos o lugar da praia e da sala de estar bem descritos, bem como o espaço da própria tatuagem, título do texto, que funciona como personagem principal. Sua localização é mencionada em três momentos “abaixo do umbigo”, “acima da sunga amarela” e “acima do sofá vermelho”. Neste caso, temos uma miniaturização do espaço, pensando no espaço que ocupava o verso tatuado no corpo de José. Quanto à localização, temos marcadores que não definem bem em quanto tempo os fatos se deram, apesar de ter uma estrutura cronológica evidente – começo, meio e fim. Marcadores como “um dia”, por exemplo, assemelham- se àqueles dos mitos e fábulas, trazendo a ideia de imprecisão – quando aconteceu a história? Ou, ainda, “A família ganhou a causa”. Nãosabemos se foram semanas, meses ou anos depois. Por tratar-se de um conto contemporâneo, é normal que os autores joguem com essas suspensões narrativas caras aos moldes realistas. 5 O gênero conto e o gênero romance 1. Analise o trecho a seguir de Capão Pecado, de Ferréz, e comente as palavras e expressões em destaque. – Aí, mano! Eu bebo todo dia, cê tá ligado? [...] – Sobrevivo comendo coisas que ganho, mano, e até reviro os lixo, é mó treta com os cachorro, cê tá ligado? – Já fui esfaqueado duas vezes, mano; [...]. (FERRÉZ, 2020, p. 18, grifos da autora) 100 Teoria da Literatura I Por tratar-se de um romance contemporâneo, percebemos que sua temática gira em torno de um núcleo periférico e marginalizado pelo Estado. O uso do vocativo mano, para referir-se ao interlocutor, marca a posição social do personagem, bem como a coloquialidade, traço da literatura contemporânea. Outros aspectos que poderiam ser considerados errados segundo a norma culta, como as contrações cê tá, em vez de você está, são usados como licença poética a fim de ambientar a narrativa, bem como os “erros” de concordância nominal os lixo e os cachorro. Se repararmos bem, nós mesmos falamos desse modo em momentos mais coloquiais, ou seja, o diálogo está mais próximo da realidade. 2. Resuma os três pontos de vista acerca do gênero romance de acordo com Bakhtin, Lukács e Kundera. Kundera acredita que o romance não se resume à mera referencialidade – retratar fidedignamente o mundo em que vivemos, como se fosse um espelho da realidade. Em vez disso, propõe o romance como espaço para a dúvida, capaz de convocar o leitor para participar da construção dos sentidos do texto. Essa dúvida é o que vai romper a barreira do simples realismo, pois será preciso formular as intenções dos personagens e o comportamento do narrador, por exemplo. Bakhtin encara o romance como uma singularidade, uma vez que está em processo de consolidação. A versatilidade do gênero permite que ele se aproprie de todos os outros gêneros e discursos, além de dar voz a diferentes pontos de vista simultaneamente – o que ele chama de polifonia. Além disso, o teórico entende o surgimento do romance em uma relação com as línguas vernáculas que se distanciam do latim. Por fim, Bakhtin nega uma relação ou continuidade entre romance e epopeia. Lukács vê um elo entre o romance e a epopeia, considerando esta mais valorosa que aquele, uma vez que o romance traz o retrato de um indivíduo deslocado e destroçado junto à realidade em que vive. Lamenta também o caráter mundano do romance em comparação aos feitos heroicos da epopeia. 3. Quais são as tendências apontadas para o romance contemporâneo? No que elas se diferem dos romances dos séculos XIX e XX? O romance contemporâneo abraça pautas ligadas a grupos marginalizados de modo ostensivo, algo sem precedentes na história literária brasileira. Além de abordar assuntos como sexualidade, racismo e vida nas periferias, temos essas histórias narradas do ponto de vista desses sujeitos, ou seja, eles adquirem voz própria. No século XIX, a narrativa dominante era romântica e realista, preocupada em expor sentimentos e a vida real, contada em moldes tradicionais. Já os romances do século XX embarcam em experimentações linguísticas e contextuais. Resolução das atividades 101 Teoria da Literatura I C larissa C om in ISBN 978-65-5821-182-2 9 786558 211822 Código Logístico I000652 Página em branco Página em branco(1605) foi o primeiro romance moderno da lite- ratura ocidental. O que diziam os literatos na época de sua publicação – que gerou inquietação, justamente por inaugurar um novo gênero literário – não é a mesma coisa que a crítica diz hoje, no século XXI. Todavia, cabe ressaltar o fato de que atualmente, no Brasil, a crítica literária perdeu muito do espaço que outrora possuía. Vários jornais e revistas renomados simplesmente extinguiram essas seções, que eram valiosos espaços de debates, inclusive entre escritores que também eram críticos. Atualmente encontramos no máximo sinopses sucintas e pouco atraentes dos livros mais vendidos. Hoje vemos que a crítica pulverizou-se em espaços na internet – blogs, perfis em redes sociais, newsletters – e em poucas revistas e jornais literários, que não têm o mesmo alcance das décadas anteriores. Infelizmente, os espaços aca- dêmicos nas universidades pouco têm feito esse trabalho e estão qua- se sempre em defasagem em relação às publicações recentes. A crítica literária de boa qualidade é importante para educar o leitor e conduzi-lo por suas leituras. Acompanhar um crítico em específico, com quem se tenha afinidade, é um bom jeito de fomentar seu próprio desejo de ler as obras comentadas e, a partir disso, estabelecer interlo- cução inclusive com os demais leitores ao seu redor. O filme Meia-noite em Paris é uma homenagem aos artistas que habitaram a efervescente Paris dos anos 1920. O personagem principal, Gil, viaja à sua cidade favorita na com- panhia de sua noiva. Em seus passeios solitários à noite, descobre um local em que, à meia-noite, é transportado para os anos 1920. Lá ele conhe- ce escritores como Ernest Hemingway, Fitzgerald, Salvador Dali e a mecenas Gertrude Stein. Durante essas viagens no tempo, Gil põe na balança se o passado mitificado é realmente tão melhor que o seu presente. Direção: Woody Allen. EUA; Espanha: Sony Pictures, 2011. Filme 14 Teoria da Literatura I 1.2 Conceito de mimesis Vídeo De modo geral, o paradigma de literatura em prosa é um texto realista, ou seja, apresenta situações e personagens com os quais nos identificamos ou reconhecemos. No entanto, pensar a literatura como uma simples cópia da realidade é diminui-la demais. Vejamos mais so- bre o conceito de mimesis, que trata justamente da cópia e imitação. 1.2.1 Conceitos clássicos de mimesis Se seguirmos a origem da palavra mimesis, vemos que no grego ela significa imitação. Mimesis deriva de outro termo, mimeisthai, que quer dizer copiar ou imitar. Para dar um exemplo que todos nós reconhece- mos, pense na figura do mímico – aquele que pratica a mimesis. O que ele faz senão copiar os gestos e trejeitos de outra pessoa? A discussão sobre mimesis data da Grécia Antiga e foi aprofundada por dois filósofos, Platão e Aristóteles. No Livro X de A República, Platão considera – com base em seu olhar filosófico – qualquer manifestação artística como mimesis, ou seja, uma imitação de situações ou aconte- cimentos que é apreendida de modo sensível pelo público. Platão fia-se na noção de verdadeiro ao pensar as representações artísticas. Para ele, uma obra como Ilíada não cumpre com o que pro- mete. Seu enredo principal, a Guerra de Troia, não foi vivido por seu autor, Homero. Uma vez que ele não teve a experiência de viver aquilo que narra, a história estaria apenas presa ao mundo das ideias e das formas, pois trata-se de uma imitação imperfeita da realidade. Segun- do Reale (2007), Platão é bem rigoroso em sua definição do que é ver- dadeiro ou falso e, nesse sentido, as épicas não seriam bons modelos de representação da realidade. Discípulo de Platão, Aristóteles apresenta um entendimento oposto da ideia de mimesis, que é desenvolvida em sua Arte poética. Para o filósofo, há uma diferença entre o que se chama de arte e as demais técnicas que também produzem objetos – isto é, representações. Aris- tóteles distingue um artesão de um escultor por exemplo, sendo este último um praticante das belas artes. Há dois conceitos platônicos importantes para entender a ideia de mimesis. O primeiro é o mundo das ideias e das formas, no qual nas- ceríamos com um co- nhecimento inato sobre as coisas. Todavia, esse conhecimento envolve apenas ideias e formas incapazes de revelar a realidade. O segundo conceito é o mundo concreto e sensível ao qual temos acesso pelos sentidos. Porém, esse conhecimento seria uma falsa consciência da realidade. Em resumo, para Platão, o acesso às “ideias verdadeiras” se daria na passagem do sensível ao inteligível, momento em que o sujeito acessaria o ver- dadeiro conhecimento “esquecido”, com o qual todos nascemos. História em foco ar ag ia nn is /S hu tte rs to ck Introdução à literatura 15 Aristóteles, diferente de seu mentor, diz que a arte não está atre- lada a um compromisso com a verdade. Ao referir-se às tragédias, ele afirma que: “as personagens não agem para imitar os caracteres, mas adquirem os caracteres graças às ações” ( ARISTÓTELES, 2014, p. 25). Portanto, o que está em jogo é uma emulação 5 do real, e não sua mera imitação. Sobre isso, Aristóteles (2014, p. 28) ainda sublinha que “a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas que poderiam ter acontecido, possível no ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade”. O mais importante, então, não é o teor de veraci- dade empírica (comprovável) do que está sendo representado, mas sim a sua verossimilhança e a sua capacidade de ser plausível e provável, isto é, a aparência de verdade. Por fim, convém enfatizar que, sobre a mimesis, para Aristóteles (2014, p. 48), “o poeta necessariamente imita sempre por uma das três maneiras: ou reproduz os originais tais como eram ou são, ou como os dizem e eles parecem, ou como deviam ser”. Apesar de apresentar uma visão mais arejada do que seria a mime- sis, percebemos que Aristóteles ainda está apegado à racionalidade. Em nenhum momento de sua Arte poética ele abre espaço para repre- sentações de mundos fantasiosos, por exemplo, em que as regras da verossimilhança possam ser rompidas – basta pensar em obras como Harry Potter ou O senhor dos anéis. O que Aristóteles teria a dizer sobre elas? 1.2.2 Conceitos modernos de mimesis No início do século XIX, o filósofo alemão Walter Benjamin pensa a mimesis na linha argumentativa de Aristóteles e acrescenta o fato de que ela está ligada ao aprendizado e ao (re)conhecimento. A este res- peito, Jeanne-Marie Gagnebin (2005, p. 98) esclarece que, para Benja- min, “as semelhanças não existem em si, imutáveis e eternas, mas são descobertas e inventariadas pelo conhecimento humano de modo di- ferente, de acordo com as épocas”. Essa leitura atenua os entendimen- tos engessados preconizados por Platão e Aristóteles durante muitos séculos. A noção de que a história (e podemos expandi-la para a ficção também) pode ser contada por meio de vários pontos de vista, que Segundo o dicionário Priberam da Língua Portu- guesa, a emulação é fazer o possível para “igualar ou exceder os outros no que é bom” (PRIBERAM, 2022). Ou seja, não apenas a representação, mas algo além dela, na qual entrariam aspectos mais pessoais daqueles envolvi- dos na obra de arte – para retomarmos o assunto do qual estamos falando. 5 Um conceito muito usado não apenas na literatura, mas também no cinema e teatro é a diegese. Ela diz respeito à realidade criada pelo mundo ficcio- nal em questão, ou seja, descolada da realidade empírica vivida fora do cinema, do romance ou da peça de teatro. Nesse sentido, em uma ficção, o universo diegético se refere à coerência e à verossimilhança que se pode experimentar em seu contexto. Quando lemos ou assistimos a uma ficção científica com viagem no tempo, por exemplo, é diegeticamen- te incoerente que alguém volte ao passado, mude uma situação determinan- te na história e siga para um futuro no qual nada mudou em função disso. Saibamais 16 Teoria da Literatura I An to n Vi er ie tin /S hu tte rs to ck não aquele dos vencedores, mas sim variando de acordo com a classe social, raça, gênero e do momento em que é narrada, torna a noção de mimesis mais dinâmica e fluida. Isso foi o que Walter Benjamin (2012) chamou de escovar a história a contrapelo. Por fim, em meados do século XX, o filósofo alemão Wolfgang Iser (2013) conceitua a mimesis em um lugar ativo, não de representação ou imitação, mas de criação, valendo-se do fato de que ela é uma poéti- ca, cuja etimologia nos leva ao vocábulo grego poiein, que significa criar, fazer. A arte poética, portanto, teria um espaço de criação. Iser acredita que o como se da ficção implica atrelá-lo a algo que na realidade ele não é. O mundo ficcional criado por um romance, por exemplo, é capaz de construir a sua própria realidade, sem que, para isso, a nossa, o mundo do leitor, deixe de existir. Para o filósofo, o ato de leitura é habitar dois lugares ao mesmo tempo. O leitor de D. Quixote, por exemplo, precisa colocar-se no lugar do personagem para que a experiência ficcional - mimética - aconteça. Nesse caso, o leitor passa a ser ele próprio e Qui- xote ao mesmo tempo enquanto lê a obra. 1.3 Prosa versus poesia Vídeo Poesia e prosa são termos que nos remetem ao campo literário e, atualmente, a literatura contemporânea tem explorado as diferenças entre ambos para criar obras cujos gêneros são de difícil classificação. Nesse sentido, é preciso entender como poesia e prosa funcionam para que possamos lê-las de maneira crítica. Podemos, à primeira vista, afirmar que a prosa se constitui de tex- tos corridos, que ocupam o espaço inteiro da página, são divididos em parágrafos e capítulos, têm diálogos marcados por travessões ou aspas e contam uma história. Neste caso, seus gêneros principais seriam con- tos, romances, crônicas e biografias. A poesia, por sua vez, é compreen- dida inicialmente por se constituir de textos menores, que não ocupam a página inteira, dividem-se em estrofes organizadas por versos – nas quais cada verso exprime ideias e estabelece uma pausa na leitura –, são mais condensados, precisam às vezes de uma segunda leitura para seu entendimento e estão cada vez mais presentes nas redes sociais, como o Instagram. Introdução à literatura 17 De modo geral, essa explanação estaria correta, pois é mais ou me- nos assim que se organizam esses dois gêneros literários. De acordo com Angélica Soares (2007), há uma divisão tripartida aceita pela crítica de que existem três núcleos essenciais: lírico, épico e dramático. O líri- co corresponde à poesia; o épico é representado pelas epopeias – os grandes feitos heroicos contados em versos narrativos –; e o drama são os textos dramatúrgicos escritos para a encenação teatral. Perceba como nessa divisão – que vem desde a Antiguidade Clássica – não se fala especificamente em poesia ou prosa. A princípio, a lírica era o principal gênero. A Arte Poética do poeta romano Horácio (2014) – conhecida como Carta aos Pisões –, pautada em um pensamento racionalista, afirma que um verdadeiro poeta é aquele capaz de conciliar as características de um gênero literário – uma epopeia, por exemplo – com suas particularidades, como o ritmo, o tom, o metro dos versos etc. Em certa passagem, Horácio (2014, p. 56) sublinha: “vocês, que escrevem, tomem um tema adequado a suas for- ças; ponderem longamente o que seus ombros se recusem a carregar, o que aguentem”. O autor (2014, p. 65,) ainda comenta a importância da concisão: “poetas desejam ou ser úteis, ou deleitar, ou dizer coisas ao mesmo tempo agradáveis e proveitosas para a vida. O que quer que se preceitue, seja breve”. Já durante a Idade Média, devido ao distanciamento total da cultura greco-latina, vê-se uma ênfase na poesia trovadoresca. Enquanto isso, o poeta Dante Alighieri estabelece três estilos: nobre (epopeia e tragé- dia), médio (comédia) e humilde (elegia). Ainda durante a Renascença e o Neoclassicismo perdurariam as concepções da antiguidade clássica em relação aos gêneros literários. 1.3.1 Prosa Entre os séculos XVI e XVII, o entendimento dos gêneros cria maior mobilidade. D. Quixote, marco do romance moderno, inaugura uma modalidade até então não catalogada pelas artes poéticas. Já os contos modernos têm início no século XIX, com Edgar Allan Poe. Essa virada conceitual dos gêneros literários apresenta-se associada ao Romantis- mo alemão e a uma mudança de perspectiva sobre a História. Os gê- neros literários passam a ser observados, então, em sua relação com o contexto histórico A elegia seria um poema de temática triste ou dolo- rosa, com um viés sempre melancólico. Geralmente ela versa sobre o luto por alguém querido e a velhice, por exemplo. Seu objetivo é homenagear aquilo ou aquele que se foi ou se perdeu, daí seu tom solene. Apesar de ter sua origem na Antiguida- de Clássica, a prática da elegia continua mesmo nos séculos seguintes. Uma delas, Elegias de Duino, do poeta austríaco Rainer Maria Rilke, foi escrita após a 1ª Guerra Mundial e versa sobre te- mas místicos, existenciais e melancólicos. Saiba mais 18 Teoria da Literatura I O conceito clássico de mimesis enfraquece e surge a ideia do es- critor como um gênio movido por uma inspiração individual. Um dos textos mais famosos do período que trata da questão é o prefácio de Cromwell (1827), do poeta francês Victor Hugo, “onde se faz a defesa do hibridismo dos gêneros, como base na observação de que na vida se misturam o belo e o feio, o riso e a dor, o grotesco e o sublime, sendo, portanto, artificial separar-se a comédia da tragédia” (SOA- RES, 2007, p. 14). A partir daí a nomenclatura “prosa” passa a ser aplicada com as se- guintes características: Prosa El en a Pi m uk ov a/ Sh ut te rs to ck • Geralmente estruturada em capítulos e parágrafos. • Possui vários estilos (romântico, realista, ficção científica, fantasia, terror etc). • Pode ser narrada em 1ª, 2ª e 3ª pessoas. • Presença de um enredo. • Geralmente traz diálogos. Exemplo de texto em prosa: Minha irmã, a senhora Joe Gargery, era mais de vinte anos mais velha que eu, e granjeara grande reputação junto a si própria e à vizinhança por ter me criado “com a mão” [...] Não era uma mulher bonita a minha irmã; e tinha eu a impressão geral de que ela havia obrigado Joe Gargery a casar com ela com a mão. (DICKENS, 2017, p. 22) O exemplo dado não é um modelo fixo. Existem diversas formas de verificarmos esses elementos dentro do texto. O trecho exemplificado cumpre a proposta de didatizar alguns termos trabalhados na seção. Observe a marcação de um narrador que é ao mesmo tempo o personagem – ele apresenta a irmã e o marido dela, logo discorrendo sobre a relação dos dois. Percebemos que é um romance realista, pois a figura feminina não é idealizada e nem detalhada. Consideração feita pelo narrador que pode ser posta em dúvida, pois ele tem a impressão, e nós, leitores, não temos acesso a outros pontos de vista na narrativa. Introdução à literatura 19 1.3.2 Poesia A poesia, durante muito tempo chamada de lírica pelas categorias clássicas, também passou por várias remodelações no decorrer dos sé- culos. Se a princípio era a forma usada para redigir as epopeias – que por sua vez tinham também traços narrativos, característicos da prosa –, a lírica foi se desprendendo desse modelo até chegar aos seus mol- des contemporâneos. Talvez os dois lugares comuns mais conhecidos são: o fato de a poesia falar de coisas belas, apaixonadas; e o fato de ser escrita em primeira pessoa (com a presença de um eu lírico) expon- do emoções particulares para os leitores. No entanto, é preciso ter sempre em mente a reconhecida estrofe de Fernando Pessoa (2002, p. 23) no poema Autopsicografia. O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor de que deveras sente [...] A ressalva feita por Pessoa denuncia o que há desimulação e inven- ção naquilo que o eu lírico afirma. Isso não vale apenas para a poesia, mas também para a prosa. Confundir narrador ou eu lírico com autor é um equívoco que devemos evitar, afinal são instâncias estabelecidas justamente para diferenciar o ponto de vista de cada um deles. Entretanto, antes de chegarmos a um poeta moderno, como Pessoa, a poesia percorreu um longo caminho da Antiguidade Clássica até os nossos tempos, passando por Trovadorismo, Classicismo e Romantis- mo. Vejamos suas características a seguir. O Trovadorismo (cantigas trovadorescas) data do século XI e surgiu na região onde hoje estão França (Occitânia) e Itália. As cantigas eram de dois tipos: líricas (de amor e de amigo) ou satíricas (de escárnio e maldizer). O amor desses poemas era sempre idealizado e não cor- respondido. Já as de escárnio e maldizer tinham o objetivo de atingir desafetos, fosse por intermédio de indiretas ou citando literalmente os inimigos. Observemos o exemplo de uma canção de amor: Senhora minha, desde que vos vi, lutei para ocultar esta paixão que me tomou inteiro o coração; mas não o posso mais e decidi que saibam todos o meu grande amor, a tristeza que tenho, a imensa dor que sofro desde o dia em que vos vi. [...] (FERNANDES, 1994, p. 307) É recorrente usar poesia como sinônimo de poema. No entanto, poesia é um componente do gênero lírico, que se divide em lírica, poética e dramática. Por ser um termo mais amplo, que explora afetos e percepções de seu pú- blico, podemos dizer que a poesia é um efeito – não necessariamente literário – também presente em outras manifestações artísticas, como o cinema, a pintura, a música. Todos eles podem ser “poéticos”. O poema, por sua vez, é uma das expressões da poesia e caracteriza-se por seus aspectos mais técnicos e composicionais (presença de estrofes, ver- sos, rimas, eu lírico etc.). Saiba mais 20 Teoria da Literatura I O Classicismo retoma valores greco-romanos e, com eles, novas epopeias. A mais renomada do período é Os Lusíadas, de Camões. Nesse caso, a forma poema é usada para narrar os grandes feitos dos colonizadores portugueses e alçar Portugal à altura e porte do povo greco-latino. Vejamos a abertura da obra, o Canto I: As armas e os Barões assinalados Que da Ocidental praia Lusitana Por mares nunca de antes navegados Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram; E também as memórias gloriosas Daqueles Reis que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da Morte libertando, Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte. [...] (CAMÕES, 2013, p. 4) No Romantismo o eu lírico destaca-se dos poemas. Grande parte deles, de fato, vai falar sobre as agruras de amores não correspondi- dos, amadas que morreram, o desejo pela morte, tudo isso em ambien- tações sombrias e noturnas. Vejamos um trecho do poema de Casimiro de Abreu, “Minh’alma é triste”: Minh’alma é triste como a rola aflita Que o bosque acorda desde o albor da aurora, E em doce arrulo que o soluço imita O morto esposo gemedora chora (ABREU, 1972, p. 45) A partir do Modernismo, iniciado no século XX, percebemos como o paradigma poético muda radicalmente. Já nos anos de 1920, vere- mos poemas como os feitos por Oswald de Andrade, que incorporam características que pareciam ser apenas da prosa, como o diálogo e a linguagem coloquial. Além disso, aqui não se vê mais o culto ao belo ou à mulher amada. Para organizar, fiquemos com algumas características mais gerais e recorrentes no que diz respeito à poesia. O vídeo Poema - Cidade- zinha Qualquer, Carlos Drummond de Andrade do canal Profa. Ana Maria Bacellar - Língua Portu- guesa analisa um poema modernista dentro do seu contexto de produção. Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=-E6prR7tRQQ&ab_ channel=Profa.AnaMariaBacellar- L%C3%ADnguaPortuguesa. Acesso em: 02 set. 2022. Vídeo https://www.youtube.com/watch?v=-E6prR7tRQQ&ab_channel=Profa.AnaMariaBacellar-L%C3%ADnguaPortuguesa https://www.youtube.com/watch?v=-E6prR7tRQQ&ab_channel=Profa.AnaMariaBacellar-L%C3%ADnguaPortuguesa https://www.youtube.com/watch?v=-E6prR7tRQQ&ab_channel=Profa.AnaMariaBacellar-L%C3%ADnguaPortuguesa https://www.youtube.com/watch?v=-E6prR7tRQQ&ab_channel=Profa.AnaMariaBacellar-L%C3%ADnguaPortuguesa Introdução à literatura 21 Poesia El en a Pi m uk ov a/ Sh ut te rs to ck • Presença de um eu lírico. • Composta por versos. • Versos formam estrofes. • Pensamento condensado. • Divide-se em subgêneros: soneto, trova, balada, haicai etc. Vejamos algumas características que compõem um poema: Autopsicografia O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor de que deveras sente Título (prestar atenção nele, pois pode ser uma chave de leitura para o poema) Estrofe (bloco de versos que podem ser de tamanhos variáveis) Verso (unidade mínima do poema; cada verso encerra uma ideia) Esquema de rimas ao final do verso com final “ente” O exemplo dado não é fixo. Como vimos nos demais excertos, há várias possibilidades de escrita de um poema. Considerando o modelo do poema moderno, no entanto, o esquema exposto cumpre a propos- ta de didatizar alguns termos recorrentes ao falar de poemas. 1.4 Literatura e cultura Vídeo Segundo Terry Eagleton (2006), a produção literária sempre esteve ligada ao seu contexto social, histórico, geográfico, econômico etc. Fe- char os olhos para isso seria proceder a análises superficiais e, às vezes, equivocadas. A certa altura, o crítico observa como o estatuto literário de livros considerados hoje canônicos é frágil. 22 Teoria da Literatura I Sobre isso, Eagleton (2006) cita a obra de Shakespeare. Apesar de o dramaturgo e poeta inglês, há séculos, ser um nome incontornável da literatura mundial ocidental, não há garantia de que, em dado momen- to futuro, ele continue com esse estatuto. Isso porque a ideia de câno- ne não é fixa, mas construída socialmente por uma série de agentes (críticos, teóricos, academias e premiações, por exemplo) que atuam de acordo com as posições que ocupam – sobretudo as culturais. Um dos aspectos a ser questionado, por exemplo, é a construção de um cânone que é majoritariamente formado por uma elite econômica formada por homens brancos. Não apenas Shakespeare, mas vários outros entra- riam nessa conta: Camões, Flaubert, Alencar, Balzac, Tolstoi, Joyce etc. Se concordarmos com a relação inerente entre literatura e socieda- de, como defende Antonio Candido (2010), compreenderemos que as obras literárias são compostas por fatores internos (ligados à estética, imaginação e inspiração de cada escritor) e fatores externos (referen- tes ao lugar social ocupado pelo escritor, considerando para quem e em que contexto escreve). Ora, dificilmente um autor escreve para não ser lido. Então, se há o desejo evidente de publicação, é natural que a obra não seja monolítica e nem esteja presa ao que o autor “quis dizer”. Aliás, após a publicação, quando o autor se desprende de sua obra, pouco importam suas justificativas e intenções, pois ela passa a fazer parte do mundo de leitores. Para Candido (2010), há o modo como a obra é acolhida. Por exem- plo, quando José de Alencar publicou o romance Iracema, no auge do Romantismo, momento de construção de um caráter nacional, ou seja, da conformação de uma cultura brasileira, e não mais portuguesa, essa obra teve um efeito poderoso de unificação. De modo extremamen- te romantizado, Iracema narra o mito da formação do brasileiro: uma criança que nasce do relacionamento entre um colonizador europeu e uma indígena. Veja que, no nível cultural, a obra teve sua importância validada, mas, à luz do contexto de hoje, sua leitura já não seria mais a mesma. Ainda na pegada cultural, háde se considerar as culturas ágrafas, isto é, aquelas que não registram sua história por escrito, sendo essas informações veiculadas oralmente. Os povos indígenas são um exem- plo. Nesse sentido, seus valores sociais e culturais têm uma função Introdução à literatura 23 muito diferente em comparação com nossas sociedades ágrafas. Para eles, noções como cânone não fazem sentido. A transmissão oral des- ses saberes tem a ver com a manutenção de seus modos de vida, tanto que entre essas sociedades a palavra literatura sequer existe – o que não quer dizer que eles não tenham suas próprias manifestações ar- tísticas. A oralidade transmite seus mitos fundacionais, as histórias de antepassados importantes, os rituais, as instruções de caça, o preparo de alimentos etc. Podemos afirmar, então, haver algo ideológico, que passa pelo cul- tural, na produção literária e em sua historiografia. Eagleton (2006, p. 22) coloca a questão da seguinte forma: estrutura de valores, em grande parte oculta, que informa e en- fatiza nossas afirmações fatuais, é parte do que entendemos por “ideologia”. Por “ideologia” quero dizer, aproximadamente, a maneira pela qual aquilo que dizemos e no que acreditamos se relaciona com a estrutura do poder e com as relações de poder da sociedade em que vivemos. Em termos literários, portanto, o teórico crê que o texto alçado ao lugar de literatura ou mesmo cânone está ligado às estruturas de po- der vigentes à época de sua produção. O trabalho recente de recupe- ração de autores até então negligenciados pela historiografia literária brasileira é uma prova disso. Atualmente autoras do século XIX estão sendo publicadas, desmistificando o fato de que no Brasil desse perío- do não havia mulheres escrevendo. Além disso, outras minorias mar- ginalizadas têm tido esse resgate, tanto pela crítica quanto pelo meio acadêmico, como Carolina Maria de Jesus e Stela do Patrocínio. Concluindo, como disse Antonio Candido (2011, p. 176), a literatura tem um papel fulcral nas sociedades em que é praticada, pois ela “apa- rece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos”. Para o crítico, a literatura tem um caráter humaniza- dor, uma vez que traz à tona e aborda questões sociais que extrapolam a pura e simples ficção, servindo como denúncia de injustiças e registro de momentos históricos. Por fim, Candido (2011, p. 177) arremata ao dizer que “cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéti- cas e dramáticas de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e atuação deles”. O filme Caramuru – a invenção do Brasil é a adaptação de um poema épico homônimo, escrito em 1781 por Santa Rita Durão. O diretor transfor- ma o épico em comédia e retrata as peripécias de um pintor português que vem ao Brasil retratar len- das e mitos sobre o Cara- muru. Diogo, personagem cômico, atrapalha-se com mapas importan- tes – nada menos do que aqueles usados por Pedro Álvares Cabral – e é deportado. Conseguindo voltar ao Brasil, envolve-se com duas indígenas, Paraguaçu e Moema, de modo que o desfecho gira em torno daí. Direção: Guel Arraes. Brasil: Globo Filmes, 2001. Filme 24 Teoria da Literatura I CONSIDERAÇÕES FINAIS A literatura, assim como as demais manifestações artísticas, não care- ce de definições estanques, embora haja muitas delas principalmente em dicionários. Se as usamos, é apenas para facilitar a compreensão entre os falantes no discurso, pois suas acepções costumam se modificar no de- correr dos séculos. Essas modificações não ocorrem apenas no conceito de literatura, mas também nos seus efeitos sobre aqueles que a leem. Embora a literatura seja sempre sobre os nossos sentimentos e o contexto em que os indivíduos – inclusive o próprio autor – vivem, ela é um discurso independente da realidade. Ela não se prende a descrever e representar ipisis litteris nenhum acontecimento ou pessoas específicas. Talvez resida aí a sua maior potência e beleza: dizer tanto sobre e para nós sem deixar de ser ela mesma. A autonomia do texto literário é o que vai permiti-lo falar sobre tudo. Por fim, a relação entre literatura e cultura é importante, uma vez que o acesso a ela, bem como às demais formas de artes, é essencial para con- tar a história de uma sociedade. O acesso à literatura deveria ser assegu- rado a todos. O contato com ela expande as possibilidades de imaginário e conhecimento do mundo em que vivemos, além de abrir as portas para outros mundos possíveis, criados pelos textos literários em que habita- mos a cada leitura. ATIVIDADES Atividade 1 Considerando as discussões feitas sobre literatura: é possível defini-la? Sua resposta deve levar em consideração não apenas aspectos formais, mas também sociais e culturais. Atividade 2 Qual o entendimento de mimesis para Platão e Aristóteles? No que o entendimento moderno de mimesis diferencia-se desses? Introdução à literatura 25 Atividade 3 Discorra sobre as diferenças entre prosa e poesia. REFERÊNCIAS ABREU, C. de. As Primaveras. São Paulo: Editora Martins S/A; Instituto Nacional do Livro, 1972. ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. 17. reimp. São Paulo: Cultrix, 2014. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. v. 1. CAMÕES, L. V. 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Por fim, a lírica, cujas origens remontam aos textos cantados com acompanhamento musical, hoje nos chega como poesia que emula os elementos de sua origem, ou seja, a musicalidade, ritmo e tom. Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • conhecer as origens e a conceituação do gênero literário lírico, dra- mático e épico. Objetivo de aprendizagem 2.1 Gênero lírico Vídeo A Arte Poética (2014) de Aristóteles nos fala basicamente de três gê- neros literários: a epopeia – responsável por narrar feitos históricos envolvendo divindades –, o drama (tragédia) e a lírica – palavra deri- vada da lira, instrumento musical que acompanhava a récita de textos com maior teor sentimental: morte, cantos de amor etc. Segundo Soares (2007), os cantos líricos já expressavam sentimen- tos, exploravam a musicalidade e marcavam uma distância entre o eu poético e o assunto tratado – característica presente até hoje na poe- sia, que evita a confusão entre autor e eu lírico. Há de se considerar que Gêneros literários 27 a lírica tem sua origem na oralidade, por isso sua forte relação com o som, que não podemos perder de vista. Na passagem para a modalidade escrita, há a permanência de al- guns desses aspectos, como a musicalidade, ritmo, rimas, construções imagéticas, melódicas etc. Vejamos como isso acontece em um poema de Vinícius de Moraes. Oh! Páginas da vida que eu amava, Rompei-vos! nunca mais! tão desgraçado!… Ardei, lembranças doces do passado! Quero rir-me de tudo que eu amava! E que doido que eu fui!como eu pensava Em mãe, amor de irmã! em sossegado Adormecer na vida acalentado Pelos lábios que eu tímido beijava! Embora — é meu destino. Em treva densa Dentro do peito a existência finda Pressinto a morte na fatal doença! A mim a solidão da noite infinda Possa dormir o trovador sem crença. Perdoa minha mãe — eu te amo ainda! (AZEVEDO, 2014, p.431) Veja nas palavras em destaque como a presença do eu lírico é forte e seu desejo de expressar seus sentimentos é evidenciado. Além disso, há o uso da forma soneto, que é uma das formas clássicas da lírica. Confor- me Soares (2007, p. 25) “no texto lírico, os recursos sonoros e de signifi- cação se aliam de tal forma, que se cria uma unidade”. Essa unidade de sentido é assegurada pelo uso correto das rimas – como apresentado no poema –, mas também pelo manejo de versos brancos e livres. Durante o século XX, sobretudo após o Modernismo de 1922, passa- mos a ver outros modos de fazer poesia que não necessariamente se apegam aos modelos fixos. Temos os versos livres – aqueles que não seguem um padrão métrico definido – e os verso brancos (ou soltos) – que não apresentam um esquema fixo de rimas. Ademais, de acordo com Soares (2007), percebe-se um apagamento do eu lírico, passando- -se ao uso da terceira pessoa em alguns poemas. Exemplo disso são poemas como o de Oswald de Andrade. O capoeira – Qué apanhá, sordado? – O quê? – Qué apanhá? Pernas e cabeças na calçada (ANDRADE, 2016, p. 94). A lira é composta de cor- das paralelas – geralmente feitas de tripas de boi ou carneiro – ligadas à caixa de ressonância, que podia ser feita de cascos de animais. Ela é semelhante à harpa, a diferença é o número de cordas e como o som é propagado. Saiba mais 28 Teoria da Literatura I Veja que, nesse caso, há um misto de dramaturgia, marcada pelos travessões e o diálogo, e ausência de um eu lírico. Cabe ao leitor ima- ginar a situação e montar a cena, pois a posição de quem escreve é também a de um espectador. Outro poeta reconhecido por limar ao máximo o eu lírico romantiza- do é João Cabral de Melo Neto. Sua poesia é árida e precisa, com rimas inusuais e versos em octossílabos (com oito sílabas), raramente usados em português, o que traz alguma resistência ao leitor para embarcar nos poemas. Um exemplo de um deles seria este a seguir. O mar e o canavial O que o mar sim aprende do canavial: a elocução horizontal de seu verso; a geórgica de cordel, ininterrupta, narrada em voz e silêncio paralelos. O que o mar não aprende do canavial: a veemência passional da preamar; a mão-de-pilão das ondas na areia, moída e miúda, pilada do que pilar. * O que o canavial sim aprende do mar; o avançar em linha rasteira da onda; o espraiar-se minucioso, de líquido, alagando cova a cova onde se alonga. O que o canavial não aprende do mar: o desmedido do derramar-se da cana; o comedimento do latifúndio do mar, que menos lastradamente se derrama. (MELO NETO, 2003, p. 335) Note como aqui o poeta traz elementos concretos, o mar e o ca- navial, estabelecendo relações de aprendizagem entre ambos. Ele não põe em cena personagens humanos nem lirismo. A ausência de adjeti- vos e a opção por verbos de ação e substantivos concretos inauguram uma linhagem diferente na poesia brasileira. 2.2 Gênero dramático Vídeo Se recuperarmos a etimologia grega da palavra drama, temos que essa significa ação. Nesse sentido, apesar de ser um gênero literário, ou seja, de ter como ponto de partida um texto, o drama é concebido por um dramaturgo e sua concreção ocorre na encenação do espetáculo para uma plateia. Na obra Jóquei, de difícil definição, a poesia se mistura à prosa de um jeito despretensioso, mas inovador. Campilho, poeta portuguesa, escreveu o li- vro durante sua estadia no Brasil (2010-2013). É uma leitura para aqueles que se interessam pela poesia contemporânea. Nessa obra pode-se ver como ela, simultaneamente, se distancia da lírica clássica, mas guarda característi- cas dela, como o uso da musicalidade, das rimas – nem sempre evidentes –, do ritmo e de um tom afetivo transmitido por um eu lírico disposto a se mostrar. CAMPILHO, M. São Paulo: Editora 34, 2014. Livro Gêneros literários 29 A origem do drama remonta à Grécia Antiga, tendo sido o tópico mais relevante na Arte poética de Aristóteles (2014). Segundo o filósofo, os textos têm foco na representação – em sua dramatização. Ou seja, nesse caso a sua versão escrita não era o essencial. O enredo desses dramas era conhecido pelo espectador a partir dos diálogos, ou monó- logos, das personagens. Não havia a presença de um narrador ou expli- cador, mesmo porque a maioria das encenações versavam sobre mitos envolvendo deuses e feitos históricos já conhecidos pela população. Em termos técnicos, podemos listar as seguintes características des- te gênero. Características do gênero dramático El en a Pi m uk ov a/ Sh ut te rs to ck • Geralmente vem em forma de diálogos ou monólogos. • Pode ser dividido em atos – embora não seja uma regra – e em cenas (presentes em cada ato). • Inserção de rubricas (indicações espaciais, onde cada ator ou objeto deve estar, ou ainda indicar qual o tom da cena). • Uso do que chamamos de a jornada do herói, composta de: apresentação do protagonista, inserção do conflito, desa- fios a serem vencidos pelo herói, clímax e desfecho. Para Aristóteles (2014) a tragédia é um dos subgêneros do drama e, em sua opinião, o mais bem acabado deles. Partindo do princípio da ve- rossimilhança, o filósofo vê nela o potencial para despertar no espectador sentimentos que lhes são caros, como paixões, terrores e compaixão. Este seria um modo de encarnar essas vivências, mas sem ter de encará-las no mundo real. O ápice da tragédia é o seu final, no qual tudo se revela, e o espectador experimenta o sentimento da catarse – um momento de iden- tificação com o personagem que é acompanhado de comoção. Os componentes básicos da tragédia eram: protagonista (persona- gem principal) e antagonista (inimigo ou opositor aoprotagonista), o coro – que foi inserido posteriormente, mas tinha como função agre- gar informações durante o espetáculo – e a catarse (do grego, significa Apesar de estarmos falando aqui de gêneros literários clássicos, cabe ressaltar que drama, uma vez que significa ação, também está pre- sente em vários outros gêneros, como a comé- dia, a ficção científica, os livros policiais etc. Atenção O psicanalista Sigmund Freud cunhou a expres- são “complexo de Édi- po”, inspirada na peça de Sófocles. Para Freud, esse complexo tem a ver com o momento da vida em que a criança (o menino, entre 3 e 5 anos) sente atração pela mãe, sendo a figu- ra paterna, castradora, responsável por romper esse desejo. O contrário também ocorre, o “complexo de Electra”, também fruto da leitura de Sófocles, em que a menina sente atração pelo pai, sendo podada pela figura materna. M ax H al be rs ta dt /W ik im ed ia História em foco 30 Teoria da Literatura I M or n/ W ik im ed ia C om m on s M or n/ W ik im ed ia C om m on s purificação), mencionada por Aristóteles (2014) como o momento de expurgo do público, um modo de externalizar suas próprias emoções por meio da experiência como espectador. Agora vamos comentar sobre três dramaturgos importantes do pe- ríodo. Iniciando com Ésquilo (525-456 a. C.), considerado o fundador da tragédia grega como conhecemos hoje, pois foi ele que introduziu o coro, os diálogos (acrescentando um segundo ator em cena) e o uso de máscaras pelos atores, para dar conta de diferentes personagens – lembrando que as mulheres não podiam ser atrizes. Cabe pontuar que, a princípio, as tragédias eram apenas monólogos. A inserção de mais personagens e um diálogo veio através das obras de Ésquilo. Entre as mais importantes, temos Édipo, Agamenon e Prometeu acorrentado. To- das elas versavam sobre mitos e deuses, que faziam parte da religião grega e estavam no imaginário dos espectadores. Outro renomado dramaturgo grego foi Sófocles (497-406 a. C.). Ele foi responsável por mais inovações: a presença de um terceiro ator no palco e a criação de cenários de fundo, decorados de acordo com a peça. Suas dramaturgias têm como tônica a presença de um desti- no fatal, irreversível, a despeito da vontade das personagens tentarem contorná-lo. O exemplo mais dramático de todos é Édipo rei – cabe ob- servar que a mesma “história” era escrita e encenada de diferentes mo- dos pelos outros dramaturgos. A tragédia anunciada é emitida após a consulta em um oráculo, dizendo aos pais – Laio, rei de Tebas, e Jocasta – que o filho recém-nascido deveria ser morto, pois se vivo, no futuro, viria a matar o pai e se casar com a própria mãe, Jocasta. Outro dramaturgo importante nessa trinca – e o mais jovem deles – foi Eurípedes (480 a. C. – 406 a. C.). Diferente de seus antecessores, Eurípedes interessou-se em retratar a condição feminina, entrevista em peças como Medeia, Electra e As troianas, por exemplo, cujas prota- gonistas são todas mulheres. Um dado importante com relação a isso é o de que o dramaturgo rompe com a tradição dramática de até então, preocupada em sempre mostrar os grandes feitos míticos com heróis vencedores e fortes. Figura 1 Ruínas de um antigo teatro grego em Epidaro Gêneros literários 31 Em suas dramaturgias, ganham atenção os vencidos e derrotados (escravos, idosos, velhos e mulheres), como observamos em As troia- nas, que narra o destino das mulheres feitas prisioneiras após o fim da guerra de Troia (vale salientar que na sociedade grega da época as mulheres sequer eram consideradas cidadãs). Medeia também figura entre suas dramaturgias mais relevantes. A heroína é uma mulher que decide matar os dois filhos do marido – Ja- são – que a havia abandonado. Os diálogos e monólogos criados por Eurípedes tendem a ser mais realistas e trazem questões da existência humana para que seu público reflita. Sentimentos como ciúme, inveja, paixão e desejo de vingança dão o tom em seus textos. Vejamos um dos trechos mais conhecidos de Medeia, na tradução de Trajano Vieira (2010), em que a personagem diz: Eis minha mão, que tanto acariciavas! Joelhos meus, quantas vezes o farsante vos afagou, mentindo-me esperanças! Que tipo de diálogo teríamos, qual foras companheiro a mim solícito? A vilania avulta na conversa. Que rumo hei de tomar? O da morada paterna que traí, tal qual a pátria? E as míseras pelíades me abririam a porta, a mim, algoz cruel do pai? Não ignoro que em casa me detesta quem mais amo. Só tem por mim rancor quem, para te agradar, prejudiquei. Ganhei o quê? A boa aventurança, na opinião corrente entre as helênicas. Infeliz, que marido fiel, notável, a mim foi dado ter, se me exilarem só, com meus filhos sós, vazia de amigos… (VIEIRA, 2010, p. 158) Nessa passagem Medeia expõe sua decepção com o ex-marido, Ja- são, que não correspondeu às expectativas do amor devotado a ele. Veja que se trata de um drama humano, sem envolver deuses ou he- róis, ou seja, são situações que instigam o público a pensar em como reagiria diante delas. Outro subgênero do drama é a comédia, cujos principais autores gregos são Aristófanes – com As nuvens, As vespas e Lisístrata – e Menan- dro – com O misantropo. Para Aristóteles, a comédia seria a imitação de homens considerados “inferiores”. Geralmente essas comédias eram traduzidas para o latim e encenadas ipsis litteris 1 . Posteriormente, durante o Império Romano, o gênero comédia se consolidou. Vejamos como este gênero funciona. Segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, a expressão, oriunda do grego, significa “pelas mesmas letras”, ou seja, literalmente. Glossário 32 Teoria da Literatura I Características da comédia El en a Pi m uk ov a/ Sh ut te rs to ck • Objetivo cômico, por vezes ridicularizador. • Enredos alinhados ao cotidiano, satirizando hipocrisias da sociedade. • Os diálogos aproximam-se da coloquialidade. • A história parte de um conflito que, após peripécias, che- ga a um final feliz. • Uso de personagens estereotipadas, como o ciumento, o avarento, o adúltero. Conforme Aristóteles (2014, p. 23-24), a comédia “é imitação de pes- soas inferiores; não, porém, com relação a todo vício, mas sim por ser o cômico uma espécie de feio. A comicidade, com efeito, é um defeito e uma feiura sem dor nem destruição; um exemplo óbvio é a másca- ra cômica, feia e contorcida, mas sem expressão de dor”. Percebam o desdém que o filósofo demonstra pela comédia, considerando-a uma subdivisão menor do drama. Nas palavras destacadas da citação, o feio é reforçado três vezes em poucas linhas. A despeito da depreciação de Aristóteles, fato é que o gênero se tor- nou um dos mais consumidos e apreciados por leitores e espectadores, justamente por suas características humanizadoras e menos pomposas, mais próximas da realidade de cada um. Basta ver como no século XX, so- bretudo com o advento do cinema, vários atores ficaram famosos em pa- péis cômicos, como Charles Chaplin, Rowan Atkinson (Mr. Bean), Roberto Gómez Bolaños (Chaves e Chapolin) e, no Brasil, Chico Anísio e Jô Soares. Para ilustrar o que Aristóteles diz sobre as máscaras, vejamos dois exemplos: uma trágica (à esquerda) e uma cômica (à direita). panos Karas/S hu tte rs to ck Lefteris Papaulakis /Sh utt ers to ck Figura 2 Máscaras gregas A peça Auto da compade- cida narra as peripécias cômicas e dramáticas nas quais se envolvem os pro- tagonistas, além da morte de vários personagens que vão parar no céu e passam por um julgamento envolvendo Jesus, Nossa Senhora e o Diabo. A peça foi inspirada em outra obra do autor, O Santo e a Porca (1957), que aborda o tema da avareza. A obra é um subgênero do drama que surgiu por volta do século XII, na Espanha. Comumente são textos mais curtos, com linguagem mais acessível, e têm como objetivo provocar o riso ou uma reflexão moralizante nos espectadores. SUASSUNA, A. 39. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2018. Livro Gêneros literários 33 Por fim, acrescentamos que alguns outros subgêneros surgiram a partir da comédia: a farsa, a comédia de costumes, a sátira, a comédia burlesca, a ópera cômica e o stand-up. 2.3 Gênero épico Vídeo Em sua origem, o gênero épico grego na Antiguidade era encena- do apenas oralmente, posto que o alfabeto grego usado para articular textos tem uma origem ainda discutida. Oliveira (2018) afirma que em 560 a.C. iniciou-se a escrituras das duas mais conhecidas epopeias do período: Ilíada e a Odisseia, ambas de Homero. Ainda hoje há estudio- sos helenistas questionando a autoria justamente pela ausência de re- gistros escritos. Ora, se concordarmos com Soares (2007), a epopeia era “uma lon- ga narrativa literária de caráter heroico, grandioso e de interesse na- cional e social” (SOARES, 2007, p. 38). Isso quer dizer que havia algo de pedagógico e moral nessas obras, que eram responsáveis por reu- nir mitos e feitos heroicos que faziam parte da cultura dos cidadãos. De acordo com Murari (2011 apud ANTUNES; ROSA; SILVA, 2020, p. 100752), “no sistema educacional grego, a cultura literária, musical e artística estava intrinsecamente ligada às aptidões e habilidades fí- sicas. Acima de tudo, os poemas eram uma forma de explicação dos fenômenos naturais e espirituais”. O gênero épico, como sua etimologia comprova, vem do latim, epi- cus, do grego, epikos, proveniente da palavra epos, que significa palavra, canção, fala. Em sua origem, o gênero épico era conhecido como poesia épica, devido à sua conformação em versos. Vejamos abaixo um ex- certo da Ilíada (2021, p. 43), de Homero, traduzida por Carlos Alberto Nunes, uma das épicas ocidentais mais famosas. Canta-me a cólera – ó deusa || – funesta de Aquiles Pelida, causa que foi de os Aquivos || sofrerem trabalhos sem conta e de baixarem para o Hades || as almas de heróis numerosos e esclarecidos || ficando eles próprios || aos cães atirados e como pasto das aves. || Cumpriu-se de Zeus o desígnio desde o princípio em que os dois, || em discórdia, ficaram cindidos: o de Atreu filho || senhor de guerreiros || e Aquiles divino [...] Cesuras são os momentos em que há corte entre um verso e outro. Observe este exemplo do poema Canção do Exílio, de Gon- çalves Dias (1843). “Minha terra tem palmeiras Onde canta o sabiá [...]” A passagem de palmeiras para onde exige uma que- bra do verso para iniciar o seguinte, essa é a cesura. Saiba mais O filme Troia parte do mote da Ilíada, de Homero, que acompanha o último ano da Guerra de Troia, causada por um conflito entre Aquiles e Agamemnon. O estopim foi a fuga de Páris e Hele- na, até então casada com o rei Menelau. A duração do filme – quase três horas – é importante para situar o espectador e fa- zê-lo entender quem são esses personagens, suas relações e motivações. Direção: Wolfgang Petersen. EUA: Warner Bros. Picture, 2004. Filme 34 Teoria da Literatura I Os trechos em destaque marcam as tônicas dentro das palavras, evidenciando a musicalidade e ritmo dos versos, enquanto as barras duplas representam as cesuras dos versos. Veja a evocação aos deuses, e também às Musas, para transmitirem ao aedo (no caso, Homero) seu canto. Aedo era o poeta responsável por cantar e recitar os versos, com acompanhamento musical. Aristóteles definiu a epopeia da seguinte forma: a epopeia segue de perto a tragédia por ser também imitação, com palavras e ajuda de metro, de caracteres virtuosos. Todavia, difere desta por ter um metro uniforme e por ser uma narra- tiva. Diferem ainda quanto à extensão: uma esforça-se o mais possível por durar uma só revolução do Sol ou demorar pouco mais, enquanto a epopeia, não tendo limite de tempo, é diferen- te neste aspecto. (ARISTÓTELES, 2014, p. 46-47) A definição do filósofo apega-se basicamente à ideia de imitação (mímesis), de técnica métrica e de extensão do texto. Pode-se dizer que são características muito limitantes. Delas, destaca-se, de fato, o as- pecto narrativo, que irá desembocar em outros gêneros, como as epo- peias modernas (por exemplo, Os Lusíadas), romance, conto, novelas etc. Nesses três últimos, perdeu-se a construção em versos e migrou-se para o texto corrido, muitas vezes mais preocupado em “contar uma história” do que ater-se à musicalidade, rimas e ritmo – embora haja obras em prosa que fazem isso, como Grande Sertão: veredas, de Gui- marães Rosa e Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector. Vejamos algumas características da epopeia (SANTANA, 2021): Características da epopeia El en a Pi m uk ov a/ Sh ut te rs to ck • Escrita grandiloquente, narrando grandes feitos de heróis. • É dividida em “cantos”. • Há um eu lírico que conduz a narrativa, mas a ênfase é mostrar os fatos. • A presença de deuses que intervêm sobre os heróis, seja positiva ou negativamente. • O objetivo é destacar a primazia e superioridade da sociedade grega. • Presença de ações constantes, que vão se intensificando até o final. • Destaque a um protagonista, o herói, responsável pelos grandes feitos. • O poeta invoca as Musas para que cantem a narrativa através dele. M as te r1 30 5/ Sh ut te rs to ck A epoéia de Gilgamesh, escrita pelos sumérios, versa sobre os gran- des feitos heroicos e aventuras do rei Uruk. A estrutura é semelhante às epopeias gregas, cons- truída em versos, mas com caráter narrativo. Questiona-se a origina- lidade da obra, pois a versão que temos hoje parece a junção de len- das e mitos de diversos povos, como os acádios, assírios e babilônicos. Curiosidade Gêneros literários 35 Por fim, julgamos necessário apontar para o fato de que as epopeias foram se modificando no decorrer dos séculos e desprenderam-se dos moldes gregos. Temos a Divina Comédia (1321) de Dante Alighieri, o Pa- raíso Perdido (1667), de John Milton e O Uraguai (1769), escrito por Basí- lio da Gama, como alguns exemplos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como pudemos perceber ao longo deste capítulo, os gêneros literá- rios estudados desdobram-se, no presente, em vários outros. O significa- do desses textos, em suas raízes, distanciou-se muito de seus objetivos originais. Ora, as tragédias, por exemplo, tinham como subgêneros as co- médias, que em muito distancia-se de sua origem. Além disso, nossa leitu- ra de uma epopeia como a Ilíada hoje em dia certamente não é a mesma de 100 ou 1000 anos atrás. Vimos, por exemplo, como a lírica desenvolveu-se no decorrer dos séculos, transformando-se nos poemas modernos que são distintos da- queles acompanhados por música como na Grécia Antiga. Portanto, é importante não perder de vista que estes três gêneros não devem ser vistos de modo fixo e engessado, posto que através dos tempos eles de- monstram uma maleabilidade, releitura e realocamento junto à tradição e historiografia literárias. ATIVIDADES Atividade 1 Leia o poema abaixo, de Álvares de Azevedo, poeta do Romantis- mo brasileiro, e identifique nele as características próprias à lírica. Se eu morresse amanhã Se eu morresse amanhã, viria ao menos Fechar meus olhos minha triste irmã; Minha mãe de saudades morreria Se eu morresse amanhã! Quanta glória pressinto em meu futuro! Que aurora de porvir e que amanhã! Eu perdera chorando essas coroas Se eu morresse amanhã! Que sol! que céu azul! que doce n’alva Acorda a natureza mais louçã! Não me batera tanto amor no peito Se eu morresse amanhã! Mas essa dor da vida que devora A ânsia de glória, o doloroso afã... A dor no peito emudecera ao menos Se eu morresse amanhã! (AZEVEDO, 2009, p. 44) 36 Teoria da Literatura I Atividade 2 Leia o trecho abaixo, de Édipo rei, escrito por Sófocles, e aponte as características de gênero dramático. Édipo - Está bem; havemos de voltar à origem desse crime, e pô-lo em evidência. É digna de Apoio, e de ti, a solicitude que tendes pelo morto; por isso mesmo ver-me-eis secundando vosso esforço, a fim de reabilitar e vingar a divindade e o país ao mesmo tempo E não será por um estranho,