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1 A CLÍNICA COM CRIANÇAS AULA 1 Profª Marianne Bonilha 2 CONVERSA INICIAL Ao longo desta etapa, serão explorados temas como o surgimento da clínica psicanalítica com crianças, seu histórico, as mudanças conceituais da práxis psicanalítica com crianças desde o nascimento a partir dos principais autores, que deixaram as bases para o que atualmente existe no tratamento psicanalítico com crianças. Conheceremos nuances e diferenças entre autores que dedicaram sua pesquisa e prática clínica com crianças. É esperado que, ao final da etapa, você consiga: • Compreender a clínica com crianças. • Identificar os conceitos elaborados pelos principais psicanalistas, que influenciam a prática clínica até os dias atuais. • Conhecer o surgimento da psicanálise no Brasil. TEMA 1 – HISTÓRICO DA PSICANÁLISE COM CRIANÇAS A história da psicoterapia infantil se confunde com a história da psicanálise de crianças e, mais especificamente, com a história da própria psicanálise. A pesquisa freudiana acerca da sexualidade infantil como fator determinante das neuroses apresentou a aplicabilidade da análise com crianças. O caso do Pequeno Hans (1909) permitiu a Freud, por meio de desenhos e da transferência do pai de Hans, analisar o material inconsciente, o que se transformou nos primeiros alicerces da psicanálise com crianças. Nesse momento histórico, identificar três aspectos relevantes a se considerar pertencentes ao processo psicoterápico infantil: o vínculo parental, o grafismo e a escuta do profissional. Ainda que, no meio psicanalítico, trata-se de uma situação em que o próprio pai do paciente tenha manejado a análise do filho, há que se considerar que, sem a efetividade da escuta de Freud no manejo do caso, Max Graf (pai de Hans) não interviria. Com isso, em 1909, Freud inaugurou a possibilidade da clínica com crianças (Almeida; Freire; Próchno, 2016). 3 1.1 O Início da psicanálise com crianças No Brasil A psicanálise infantil teve seu início no Brasil dentro campo da medicina, da psiquiatria e da pedagogia. Na década de 1920, as ideias e descobertas freudianas já estavam circulando nos meios culturais e científicos brasileiros da época. A partir de então, tanto no âmbito da saúde mental, na psiquiatria, como cultural, educacional, filosófico e nas artes, os conhecimentos psicanalíticos começaram a exercer sua influência (Abraão, 2009). Por meio de Sigmund Freud, Melanie Klein e Anna Freud, os conhecimentos acerca do desenvolvimento das crianças exerceram ascendência sobre os cuidados na saúde e na educação. A psicanálise de crianças contribuiu para a educação e na resolução de problemas escolares, bem como complemento no tratamento de crianças com problemas emocionais no meio psiquiátrico (Abraão, 2009). O movimento da Escola Nova (1930), que acontecia no campo da pedagogia, foi um meio propício para os novos ensinamentos psicanalíticos, coincidindo com a nova proposta educacional, que entendia a criança como um ser em desenvolvimento, com características e necessidades diferentes do adulto (Abraão, 2009). As dificuldades escolares enfrentadas pela criança ganharam uma nova lente de observação e manejo, contribuindo para a solução de dificuldades. Podemos considerar que o emprego da teoria psicanalítica na prática de assistência às crianças nas clínicas de orientação infantil teve um caráter muito mais profilático que terapêutico, ou seja, a utilização do referencial psicanalítico na avaliação da criança e na orientação de pais para compreender e resolver as manifestações sintomáticas surgidas na infância tinha por finalidade última promover a higiene mental – ou a saúde mental, para empregarmos uma terminologia mais atual –, o que, supostamente, garantiria o desenvolvimento de uma personalidade saudável, com menores possibilidades de apresentar distúrbios neuróticos na vida adulta (Abraão, 2009). Foi o psiquiatra Durval Marcondes (1899–1981) que, em 1939, publicou A criança-problema, que inaugurou, em 1938, influenciado pela psicanálise, a primeira clínica de orientação como assistência à criança, promovendo uma primeira modalidade de cuidado à saúde emocional das crianças no Brasil. Além da Seção de higiene mental escolar, de Durval Marcondes, em São Paulo, criou- se, no Rio de Janeiro, no comando clínico de Arthur Ramos, a Seção de 4 ortofrenia. Assim como na Europa, próprio berço da psicanálise, aqui no Brasil, em um primeiro momento, a utilização da psicanálise de crianças voltou-se mais para contribuições na educação, adaptação e orientação aos pais. Muito bem apontado por Oliveira (2002), convém lembrar que, mesmo sendo inovadora, essa concepção, que visa tanto a "prevenção" quanto a "correção" dos "desvios de comportamento", se caracteriza por princípios de "adaptação" da "criança problema" ao meio social e à família, e se inscreve na continuidade do projeto higienista da época, enquanto expressão da ideologia totalitária de Getúlio Vargas, cujo objetivo era a formação de uma juventude sã, instruída e patriótica. No Brasil, o governo totalitário vigente se beneficiava com o que havia de mais moderno acerca do conhecimento sobre tratamento do psiquismo infantil por meio da psiquiatria e da pedagogia. As clínicas de orientação infantil desse período não praticavam uma abordagem terapêutica com a criança, mas uma intervenção no meio familiar e escolar, havendo tanto uma preocupação com o aspecto cognitivo quanto o emocional. O fruto dessas experiências acabou propiciando a superação do atendimento à criança baseado no diagnóstico e na orientação preventiva e tornou possível o surgimento da psicoterapia analítica de crianças. Com isso, nos anos de 1950, iniciou-se uma nova orientação clínica com a realização do tratamento psicanalítico com crianças. Dois fatos impulsionaram isso: a criação em São Paulo, do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP), em 1954, e, no Rio de Janeiro, a criação das clínicas de orientação infantil, uma do Departamento Nacional de Saúde Mental (Dinsam), sob a responsabilidade da médica, psiquiatra e futura psicanalista Maria Manhães, e a outra do Instituto de Psiquiatria da então Universidade do Brasil, fundado em 1953 por Maurício de Medeiros (Oliveira, 2002). Nesse período, o pensamento kleiniano influenciou maciçamente a prática da psiquiatria, e, provavelmente, por esse motivo abriu- se espaço para a psicoterapia realizada com a criança. Foi somente em 1962 que a psicologia como profissão foi regulamentada no Brasil. Perceba como a psicoterapia infantil acontecia antes e fora da psicologia como profissão, especialmente entre médicos, psicanalistas e pedagogos. A clínica com crianças e a psicoterapia infantil são práticas em várias áreas além da psicologia. Apenas quando a finalidade é realizar avaliação 5 psicológica formal da personalidade, com uso de testes psicológicos, é que passa a ser uma prática privativa de psicólogos. Em uma retrospectiva histórica, podemos identificar autores que deram ênfase para o atendimento psicanalítico de crianças e alguns deles serão apresentados a seguir: • Hermine von Hug-Hellmuth. • Anna Freud. • Melanie Klein. • Donald Winnicott. • Françoise Dolto. • Maud Mannoni. TEMA 2 – FINALIDADES EDUCATIVAS E ADAPTATIVAS A sistematização de uma clínica psicanalítica com crianças atendeu inicialmente, uma demanda de adaptação da criança à sociedade e ao contexto escolar. Nesse período, destacam-se Hermine von Hug-Hellmuth e Anna Freud. 2.1 Hermine von Hug-Hellmuth Em sequência à experiência freudiana com o pequeno Hans, Hermine von Hug-Hellmuth (1871–1924), ainda que desconhecida, foi a pioneira da psicanálise infantil. Von Hug-Hellmuth filiou-se à Sociedade Psicanalíticade Viena em 1913 e publicou artigos no periódico Imago, fundado por Freud, voltados para a técnica de jogos e desenhos, Hermine acreditava que o analista não precisava interpretar aspectos inconscientes das crianças, bastando o ato de brincar sem que precisassem falar. Hermine divergia da ideia de um pai analisar o próprio filho. Para ela, uma criança jamais revelaria seus íntimos pensamentos aos próprios pais, já que dificilmente suportariam escutar em razão do narcisismo parental (Camarotti, 2010). Esse posicionamento deu maior importância e seriedade ao tratamento psicoterapêutico de crianças. Hermine conciliava os objetivos psicanalíticos com os da escola e da sociedade, em uma proposta que se assemelhava à ideia de uma pedagogia curativa. Talvez seja pelo fato da trágica morte de Hermine von Hug-Hellmuth, em 1924, assassinada pelo sobrinho, que seu destaque na história da 6 psicanálise com crianças tenha sido eclipsado. E, após sua morte, duas outras correntes ganharam destaque na psicanálise de crianças: a de Anna Freud e a de Melanie Klein. 2.2 Anna Freud Anna Freud (1895–1982), com uma perspectiva semelhante à de Hermine, valorizou aspectos educativos em sua clínica, sustentando a prevalência da adaptação do comportamento às pressões sociais (família/escola) em detrimento das questões inconscientes, caracterizando uma clínica de supressão de sintomas (Calvazara, 2013). Anna Freud era formada em pedagogia e a experiência de observação do desenvolvimento de crianças manteve prevalência em sua prática na análise de crianças. A compreensão de sintoma de Anna Freud perpassava um conflito entre o eu e o mundo exterior, manifestado em um comportamento inadequado. Para ela, o desaparecimento do sintoma possibilitaria o fim do conflito. Sua prática clínica buscava fortalecimento do ego, havendo uma ênfase nos aspectos conscientes dos comportamentos em detrimento da estrutura inconsciente (Calvazara, 2013). Para Anna Freud, a criança não possuía condições para uma análise como a de adultos por três aspectos: • não tinha consciência da doença, • não tinha confiança na análise e no analista; • a decisão de se analisar não era dela. A autora somente atendia crianças acima de 5 anos e defendia ainda que, ao contrário do tratamento analítico com adultos, em vez de ajudar a superar o recalque, o analista deveria controlar, além de decidir o que deveria ser rejeitado, domado ou satisfeito, exercendo, assim, uma ação educativa (Costa, 2010). Segundo Corso (1998), “Anna Freud como pedagoga que era, apostou na reestruturação de um sujeito ainda criança através de uma liberação de impulsos recalcados e a colocação destes sob a égide educativa do ideal da analista”. Anna utilizava o brincar como forma de atrair a criança para a análise e, muito mais do que com esse recurso, trabalhava principalmente com os sonhos e com os desenhos das crianças justamente por revelarem transposições diretas de desejo, dando pouca ênfase à atividade lúdica e sua compreensão. O brincar, 7 para Anna Freud, era expressivo, porém não representativo, não simbólico. Pode-se dizer que a condução da análise pretendia uma descarga libidinal para uma reeducação dos impulsos. Pode-se considerar que a obra de Anna Freud contribuiu para a psicologia do ego, particularmente com seus ensinamentos sobre o desenvolvimento infantil e os mecanismos de defesa do ego. TEMA 3 – CLÍNICA COM CRIANÇAS BEM PEQUENAS Diferentemente da perspectiva de Hermine e Anna Freud, Melanie Klein se interessou pela análise de crianças pequenas. Se Anna Freud estava envolvida com a pedagogia, atendia crianças a partir dos 5 anos e gostaria de saber a respeito do funcionamento do ego e seus mecanismos de defesa adaptativos, Klein se voltava para as crianças menores e pela manifestação do inconsciente. Winnicott também acompanhou o interesse de Klein pelas crianças menores de 5 anos. Pode-se dizer que são dois autores de muita relevância para a compreensão dos aspectos inconscientes das crianças pequenas e pelo funcionamento primitivo do psiquismo que se manifesta, ainda que pontualmente, ao longo de toda a vida das pessoas. 3.1 Melanie Klein Com Melanie Klein (1882 –1960), a psicanálise com crianças abandonaria a via educativa e daria seguimento aos fundamentos freudianos acerca do sujeito do inconsciente e do método clínico. Enquanto que, para Hug-Helmuth e Anna Freud, o brincar era apenas um meio de conduzir a relação entre a criança e o analista, para Melanie Klein, o brincar seria, por excelência, a linguagem da criança. As construções kleinianas acerca do psiquismo dos bebês, relembrando particularmente quanto à posição esquizoparanoide e à posição depressiva, permitiram-lhe a percepção do sujeito em construção, o que implicou que ela desse lugar para o inconsciente, na sessão, com seus pequenos pacientes. Durante seus atendimentos, Klein deixava acontecer a livre expressão, sem pressões morais, recorrendo a interpretações do material inconsciente revelado pelo paciente durante o brincar (Almeida; Freire; Próchno, 1981). As interpretações dos comportamentos das crianças eram dadas diretamente para 8 elas. Klein empregava uma abordagem interpretativa nomeando as angústias dos pequenos pacientes, trazendo à consciência suas fantasias edípicas. Por meio das atividades escolhidas pelo paciente na sequência das sessões (de acordo com o tipo de brincadeira, se mais agressividade ou menos, se mais suja ou bagunçada), Klein percebia a diferença de comportamento da criança, sinalizando diminuição da ansiedade. Para a autora, a função do analista seria abrandar a severidade do supereu primitivo, que é extremamente cruel, e não influenciar o eu da criança a controlar os impulsos provenientes do desejo. Para Klein (1991), a participação dos pais se resumia a uma anamnese antes de iniciar o atendimento com a criança. A seu ver, era desnecessária as informações dos pais, pois estavam influenciadas pelos próprios conflitos (Nasio, 1995; Costa, 2010). Melanie Klein transpôs a livre associação para o brincar, para as manifestações da criança, inaugurando, de fato, uma psicanálise com crianças (Klein, 1991). 3.2 Donald Winnicott A compreensão do brincar ganha com Donald Winnicott (1896–1971) uma amplitude particular. Médico e psicanalista, Winnicott acreditava que o brincar era aspecto fundamental no trabalho analítico, imbuído da função de representação dos objetos e de si próprio. Para o autor, a atividade lúdica no setting analítico permitiria o exercício da espontaneidade e da criatividade. O brincar, na concepção de Winnicott, era universal na natureza humana e terapêutico por si só (Fulgencio, 2008). Ele propôs que o lugar do analista deveria ser similar ao de uma mãe quando exerce a função de holding, que corresponderia à sustentação psíquica, atento às necessidades do paciente. Quanto à técnica, Winnicott “preferia desenhar com a criança, fazendo-lhe perguntas e sugestões de modo a despertar o seu interesse em falar de coisas que, normalmente, não falaria com outras pessoas” (Costa, 2010). Assim como Melanie Klein, Winnicott debruçou-se sobre o uso da psicanálise com pacientes psicóticos e deu especial atenção à utilização do método com pacientes com tendência antissocial. Vale considerar que o funcionamento mental de crianças bem pequenas é muito regido pelo princípio do prazer, com pouca influência do superego ainda, por isso se compreende que estudar o psiquismo de bebês dá base para compreender a psicose no adulto. 9 Klein e Winnicott pertenciam ao grupo de psicanalistas com atuação na Inglaterra. Naquela época, já se destacava Jacques Lacan (1901–1981) na França. TEMA 4 – AUTORES LACANEANOS Ainda que Lacan não tenha se dedicado clinicamente ao atendimento de crianças, seu ensinoinfluenciou diretamente Françoise Dolto (1908–1988) e Maud Mannoni (1923–1988), duas psicanalistas de crianças que se destacaram no círculo psicanalítico francês. 4.1 Françoise Dolto Françoise Dolto marcou profundamente a psicanálise com crianças. Contemporânea de Lacan, participava dos seminários deste e foi bastante influenciada por suas ideias. Inicialmente, Dolto, em sua prática pediátrica (medicina era sua formação acadêmica original), mantinha um olhar especial para o aspecto emocional acerca do adoecimento das crianças. Sua aproximação e entrada na psicanálise influenciaram cada a vez mais a leitura do corpo das crianças como um corpo erógeno, possibilitando a leitura de muitos sintomas físicos relacionados a aspectos inconscientes. A disseminação de suas ideias, amplamente divulgadas na França da época, contribuíram para a psicoterapia com crianças, já que punham em evidência os possíveis sintomas infantis. Dolto (Dolto; Nasio, 1991) deixou seus ensinamentos quanto à condução e manejo na análise de crianças. Sua postura quanto ao método fica claro: “Um psicoterapeuta deve se conduzir ao contrário de um professor ou de um mestre” e segue recomendando que “deve possibilitar a expressão e o alívio de angústias decorrentes de acontecimentos traumatizantes, permitindo-lhes reviverem-nos na situação paciente- psicoterapeuta” (Dolto; Nasio, 1991). A autora desenvolveu uma prática clínica com bebês/clínica precoce. O atendimento acontecia com a presença do pai ou da mãe e da criança pequena ou do bebê e se dava por meio da fala/linguagem dos pais. Na clínica com crianças, Dolto atendia os pais na presença da criança nas entrevistas iniciais e depois atendia apenas a criança, mas sempre convidando os pais, com certa frequência, para trazer colocações pertinentes que pudessem influenciar a 10 dinâmica familiar e, por consequência, influenciando no sintoma da criança. Diferentemente de Melanie Klein e de Winnicott, Dolto incluía a participação dos pais no tratamento das crianças. Dolto afirmava que uma das diferenças entre a psicanálise de adultos e a de crianças muito pequenas residia no fato de as crianças ainda não atingirem o Édipo, nem sequer atravessavam os componentes pulsionais orais e anais que o precederam. O trabalho consiste, nesse caso, em compreender como está a relação mãe-filho e pai-filho, e o que ocorre com a desenvoltura motora, a linguagem verbal, a identidade sexuada da criança, sua autonomia e seu desejo (Costa, 2010). Para ela, a transferência da família no trabalho era fundamental. Para Dolto (Dolto; Nasio, 1991), a construção da criança como sujeito ocorria por meio dos dizeres parentais, no sentido de que a linguagem preexistiria ao sujeito. A autora entendia que o sintoma da criança seria o sintoma da família e, por isso, era preciso dar lugar aos pais no processo terapêutico. 4.2 Maud Mannoni Outra importante psicanalista, influenciada pelo pensamento de Lacan, foi Maud Mannoni. Sua formação como psicanalista de crianças se deveu a Dolto, e a elaboração teórica de sua experiência, ao ensino de Lacan. Para ela, o campo em que o analista operava seria o da linguagem (mesmo se a criança ainda não falasse). No setting analítico, o discurso que se processa engloba os pais, a criança e o analista, um discurso coletivo que se constitui em torno do sintoma apresentado pela criança (Mannoni, 1971). Mannoni se destacou por posicionamentos vanguardistas sobre a loucura, a antipsiquiatria e a psicanálise com crianças. Fundou a Escola de Bonneuil, centro de referência em atendimento e educação para crianças autistas. Para ela, assim como o paciente psicótico, a criança chegava ao analista pela queixa de um outro com relação ao sintoma dela. Para a autora, o analista, ao receber uma criança em tratamento, deveria fazer uma escuta atenta dos pais, principalmente das mães que estabelecem uma espécie de fusão fantasmática em relação ao filho doente. O sintoma da criança preencheria, no discurso familiar, “o vácuo que aí cria uma verdade que não é dita” (Mannoni, 1971). Para Mannoni (1971), não se tratava de fazer uma terapia familiar, mas entendia que, ao ouvir as angústias dos pais, devia-se atentar aos significantes 11 que constituíam o fantasma que atravessava a narrativa do sujeito, a história que o constituiu. A autora entendia que o analista de crianças precisava estar atento aos efeitos que o sintoma destas produzia nos pais, o lugar que a doença do filho ocupava na doença dos próprios pais, que estava relacionada à dinâmica edípica destes na história da criança. Ou seja, é com base na reconstrução da história dos sujeitos (filhos que agora se tornaram pais) em sua relação com a criança, que é possível reordenar as fantasias que estruturam os sintomas. Mannoni achava que o analista de crianças enfrentava constantemente uma situação transferencial que englobava os pais. O uso de brinquedos ocorria de modo diferente da perspectiva kleiniana. Os brinquedos não tinham significado preconcebido a cada material. O importante era o que a criança falava sobre o brinquedo, sustentando em sua clínica a prevalência do simbólico em detrimento do imaginário. TEMA 5 – SÓ HÁ PSICANÁLISE DO SUJEITO E NÃO DA CRIANÇA A influência da psicanálise lacaniana no atendimento de crianças ganha destaque com Rosine (1920 a 2007) e Robert Lefort, contemporâneos de Lacan. Os especialistas desenvolveram uma prática com crianças institucionalizadas, em situação de abandono familiar, bem como autistas. Foram responsáveis pelo tratamento de sujeitos cujo destino parecia inicialmente reduzido ao de serem observados, falados e conduzidos em suas vidas por algum outro (Scalzo; Lustoza, 2020). A prática tinha a perspectiva de um tratamento psicanalítico com crianças que tinham a vivência de apagamento enquanto sujeitos diante do Outro. A frase “a psicanálise é uma” é dos Lefort e essa tese do casal se refere à ideia de que todo sujeito tem direito de ser escutado, seja um bebê, uma criança, um adolescente ou um adulto, considerando as operações de causação do sujeito, que, fundamentadas nos registros real, simbólico e imaginário, dizem respeito a qualquer sujeito, ainda que em tempo de constituição. O argumento se refere à noção de que o que se escuta em psicanálise é o sujeito do inconsciente, deslocando-se de teorias desenvolvimentistas. Tal afirmação não destitui a existência de certas particularidades no tratamento de crianças. De fato, parece pouco provável que uma criança de tenra idade passe a sessão deitada no divã associando livremente. A aposta lefortiana no sujeito – aquele que é capaz de falar e testemunhar do lugar que ocupa no 12 Outro – indica o conceito de sujeito como operador na prática clínica, articulando- se necessariamente à posição do analista e de seu desejo (Scalzo; Lustoza, 2020). O ato do psicanalista na clínica com crianças pequenas pode se aproximar ao de um agenciamento da função materna, quando: opera supondo um sujeito pelo caminho de acolher a criança no discurso e no desejo, fazendo traduções simbólicas que antecipe a configuração de um “eu sou” na criança, engajando-a num saber a fim de permitir o desenvolvimento do seu funcionamento subjetivo, e por isso também, cognitivo, enlaçando-a no social. (Neves; Vorcaro, 2010) A experiência lefortiana, oriunda da prática psicanalítica com crianças pequenas institucionalizadas, com funcionamento psíquico-autístico, psicótico ou neurótico grave, em seus primeiros anos de vida, permitiu ampliar a práxis psicanalítica para além do paciente adulto em consultório. Por meio do caso Nádia, Rosine Lefort colocou à prova a psicanálise como possibilidade de intervenção com tais crianças. Nesse caso, a psicanalista experienciou o atendimento com uma menina de um ano e três meses, que se encontrava em umaposição de hospitalismo (Spitz). Nesse contexto, a nuance é de que a intervenção psicanalítica, como refere Neves e Vorcaro (2010) “permite a simbolização na construção de uma imagem corporal delimitada, de modo a oferecer sentido à condição do infans, incluindo a criança no campo social, considerando-a, portanto, um sujeito”. A atitude ativa e acolhedora de Rosine com a paciente, em que verbalmente antevia a existência subjetiva de Nádia, por meio de uma atitude verbal, em que reconhecia e articulava as manifestações corporais da paciente (Neves; Vorcaro, 2010), permitiu a inserção desta no campo do desejo. Os ensinamentos do casal apontavam que, independentemente da estrutura clínica, psicótico ou não, o paciente será tomado como sujeito, inserido na cadeia significante, mesmo que pudesse ou não, ele mesmo, fazer discurso. É nesse sentido que não há especificidade na psicanálise de crianças. A estrutura, o significante e a relação com o Outro não concernem de maneira diferente à criança e ao adulto. Em função disso, para Rosine e Robert Lefort, não existe uma psicanálise para o adulto e uma psicanálise infantil, mas uma psicanálise também utilizada com crianças. 13 NA PRÁTICA Vamos pensar em um caso da paciente de nome fictício Alice, de 4 anos, que se encontra abrigada por perda da guarda dos pais (pai suspeito de abuso sexual e mãe internada por tentativa de suicídio). Paciente apresenta um comportamento contido, timidez e, frente ao convite de acompanhar a psicanalista até a sala de atendimento, a criança começa a chorar e a dizer que não gosta da psicanalista, recusando-se a acompanhá-la. Diante desse fato, a profissional pergunta à menina por que ela não gosta dela. A paciente continua a chorar e diz que não gosta dela. A psicanalista, diante da recusa da paciente, se senta próximo dela, na sala de espera, e pergunta se pode ali permanecer. A paciente, fazendo uma expressão chorosa e sentida, repete que não gosta da psicanalista, que ela (a psicanalista) também não gosta dela. Por mais duas vezes agendada a consulta, Alice repete o mesmo comportamento, acrescentando, a cada ida à consulta, falas sobre a mãe. Exemplo: que “ela (a mãe) não estava indo lá”, “que ela não lembrava o nome da mãe”, que ela “estava com saudade da mãe”. Em cada uma das falas da paciente, a psicanalista conversava com ela perguntando sobre onde a mãe estava, pesquisando o nome da mãe para relembrarem juntas, conversando sobre a saudade que Alice sentia da mãe. A psicanalista foi dando lugar para a dor e a tristeza da paciente, para a destituição subjetiva que ela estava enfrentando. Justamente por isso e, ao mesmo tempo, nomeando, dando lugar, dando sentido e possibilidade de representar o sofrimento que a paciente enfrentava. Assim sendo, podemos reconhecer a possibilidade de escuta do sujeito, como Rosine e Robert Lefort indicaram, independentemente da idade. FINALIZANDO Podemos compreender que a infância sempre ocupou lugar central no desenvolvimento da psicanálise, considerando que a estruturação psíquica circunscreve ponto fundamental de seus alicerces. Desenvolveu-se acerca do surgimento da psicanálise no Brasil e seu contexto histórico. 14 Nesta etapa, foram apresentados autores que são referência para a compreensão dos fundamentos teóricos dessa modalidade de tratamento: • Hermine Von Hug-Hellmuth. • Anna Freud. • Melanie Klein. • Donald Winnicott. • Françoise Dolto. • Maud Mannoni. Além disso, trouxemos as contribuições de Robert e Rosine Lefort, com o desenvolvimento da prática psicanalítica com crianças em instituições. 15 REFERÊNCIAS ABRAÃO, J. L. F. As origens da psicanálise de crianças no Brasil: entre a educação e a medicina. Psicologia Estudos, Maringá, v. 14, n. 3, p. 423-432, set. 2009. 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