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Revista do GELNE, v. 22, número 1, 2020 ISSN: 2236-0883 ON LINE 
DOI 10.21680/1517-7874.2020v22n1ID18844 
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Revista do GELNE, Natal/RN, Vol. 22 - Número 1: p. 56-74. 2020 
O PROCESSO ANTROPOFÁGICO NO “AUTO DE SÃO LOURENÇO” 
DE JOSÉ DE ANCHIETA 
 
THE ANTHROPOPHAGIC PROCESS IN “AUTO DE SÃO 
LOURENÇO” BY JOSÉ DE ANCHIETA 
 
Samuel Anderson de Oliveira Lima1 
 
 
RESUMO 
A literatura dos primeiros anos de nossa formação, ou seja, do período em que estavam aportados 
em nossas terras os jesuítas, homens cujo labor era especialmente a educação do ameríndio, foi 
estudada por alguns teóricos com certo ranço romântico. Isso quer dizer que o olhar para as obras 
produzidas naquele período minimizou a importância dessa literatura, tratando-a apenas como uma 
"cópia" da produção portuguesa, sem tanto valor para nossa formação. Os jesuítas que vieram à 
América tinham como uma de suas principais atribuições a educação religiosa do povo indígena e 
uma de suas ferramentas mais usadas foi a dramaturgia. Estavam em voga, na Península Ibérica, os 
Autos de Gil Vicente e é certo que José de Anchieta teve contato com esse estilo quando estudou 
em Coimbra. Com o objetivo de retificar esse pensamento preconceituoso para com a obra 
anchietana, neste artigo, propomos uma leitura barroco-antropofágica da peça teatral “Auto de São 
Lourenço”, que foi representada em 1587 onde hoje se encontra Niterói. Com a análise desse 
corpus, mostraremos o processo de devoração cultural empreendido pelo jesuíta e realizado através 
da amalgamação linguística. Nessa peça, há a mistura de várias línguas, portanto, de várias culturas. 
Ou seja, um texto permeado de culturas, como um amálgama, é símile do processo barroco-
antropofágico estudado pelo modernista Oswald de Andrade. Este trabalho é resultado de uma 
pesquisa desenvolvida no âmbito da Iniciação Científica da UFRN. 
PALAVRAS-CHAVE: José de Anchieta, Barroco, Antropofagia, Teatro. 
 
ABSTRACT 
Theoretical researchers who supported the use of a romantic approach in literary works analyzed 
the literature that was addressed in the early years of the formation of Brazil – period that the 
Jesuits landed on Brazilian territory to educate the Amerindians. A critical look at the literary works 
developed during that period made this literature less important, since it was treated only as a copy 
of Portuguese works and little meaningful for Brazilian formation. The Jesuits who came to 
America had as one of their main attributions the religious education of the indigenous people and 
so dramaturgy was one of the most used tools. At that time, the works of Gil Vicente known as 
“Autos” were popular in the Iberian Peninsula. Thus, it is certain that José de Anchieta had contact 
with this style during his studies in Coimbra. This article thereby aims to rectify this prejudiced 
perspective concerning the works of José de Anchieta. For this purpose, it was suggested a baroque 
and anthropophagic reading of “Auto de São Lourenço” – a theatrical production that was 
developed in 1587 in the place currently known as Niteroi, RJ. Through the analysis of this play, 
this study demonstrates the process of cultural imposition conducted by the Jesuits and 
accomplished using linguistic amalgamation. In conclusion, this play mixes many languages and 
cultures. Thus, a text permeated by cultures as an amalgam is comparable to the baroque and 
anthropophagic process studied by the modernist Oswald de Andrade. This work is the result of 
research carried out under the UFRN Scientific Initiation. 
KEYWORDS: José de Anchieta, Baroque, Anthropophagy, Theater. 
 
1 Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Professor do Programa de 
Pós-graduação em Estudos da Linguagem – PPgEL/UFRN e Coordenador do Grupo de Pesquisa Ponte Literária 
Hispano-brasileira. E-mail: sanderlima25@yahoo.com.br. 
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INTRODUÇÃO 
 
José de Anchieta nasceu em 19 de março de 1534, Tenerife, Ilhas Canárias. Filho de um pai 
basco, Juan Jópez de Anchieta, e de uma mãe canária, Doña Mência Días de Clavijo y Llerena, o 
menino recebeu sua primeira educação em casa, como era costume ocorrer com os filhos de 
famílias abastadas. Só depois é que frequentou a escola dos dominicanos, tendo destaque no estudo 
da gramática latina. Aos 14 anos de idade, em 1548, Anchieta deixa seu lar em companhia de seu 
irmão mais velho, Pedro Nunes, e segue para Coimbra, onde se matricula no Colégio das Artes2, o 
orgulho do rei D. João III. Anchieta teria ali a mais pura educação do Renascimento, tanto que 
hoje é considerado um dos grandes humanistas daquele século (Cf. CAXA; RODRIGUES, 1988). 
No contexto histórico em que se encontra o poeta, está o período em que a Igreja Católica 
perdia adeptos para a Reforma Protestante (Martinho Lutero publicou suas 95 teses no dia 31 de 
outubro de 1517). Dessa maneira, com o objetivo de “salvar” sua instituição, a Igreja, por meio da 
Reforma Católica (idealizada durante o Concílio de Trento), criou a ordem chamada “Companhia 
de Jesus”3, tendo como líder o espanhol Inácio de Loyola. Essa ordem religiosa foi a principal 
personagem da expansão do catolicismo no mundo e, para essa empreitada, precisava de jovens 
mancebos que pudessem desbravar as terras onde estavam as almas a serem “resgatadas”. Os 
jesuítas tiveram muito destaque no cumprimento das metas da Reforma Católica. O escritor 
Riolando Azzi (1987, p. 39), no livro A cristandade colonial, comenta o seguinte sobre os objetivos 
da Companhia de Jesus: 
 
De fato, a Companhia de Jesus é fundada exatamente na época em que se afirmava o 
movimento da reforma tridentina, visando, seja o fortalecimento da moral na Igreja 
contra a influência da mentalidade renascentista, seja o restabelecimento do espírito de 
autoridade abalado pelo movimento protestante. 
 
José de Anchieta, então, aceitou o chamado da ordem para ser um dos agentes de resgate e 
difusão da fé católica, tornando-se jesuíta no dia 1º de maio de 1551. Riolando Azzi (1987, p. 39) 
confirma que os jesuítas, por seu vigor e dedicação ao intelecto, contribuíram para a execução dos 
objetivos contrarreformistas da Igreja Católica, não só pelas questões da força e do espírito, mas 
também pela política: “para a afirmação da contrarreforma, concorreu também o fato de que os 
jesuítas, além do domínio na área cultural, exerciam grande influência política junto à Coroa”. Jean 
Lacouture (1994, p. 31, grifos do autor), no livro Os jesuítas, fala dos dois caminhos pelos quais 
deveriam seguir os inacianos e indica o aspecto da antítese barroca presente na literatura dessa 
época que estava na idealização da fundação da Companhia de Jesus e nela permaneceu desde 
então: “quem não veria aqui uma chave para o progresso do futuro do fundador da Companhia, 
posto que o momento decisivo é apenas de ‘êxtase espiritual’ mas também de ‘entendimento 
intelectual’ e que o profano se une ao sagrado?”. Algumas páginas depois, o historiador faz um 
destaque sobre o papel dos jesuítas entre os indígenas, que acabavam sendo conquistados pelos 
artifícios daqueles: “os jesuítas ganharam grande parte de seu prestígio fornecendo arpões para a 
pesca, anzóis, relhas de arado. Nenhum outro presente era mais apreciado por seus neófitos” 
(LACOUTURE, 1994, p. 432). Isso quer dizer que a “empresa” criada por Inácio de Loyola 
cumpriu com esmero todas as prerrogativas instituídas pela Igreja Católica para reaver seu poder, 
 
2 O Real Colégio das Artes e Humanidades de Coimbra foi idealizado pelo rei D. João III ainda no ano de 1542. Foi 
fundado alguns anos depois, em 1548, e tinha como objetivo inicial preparar os alunos para o ensino universitário. O 
corpo docente era composto por humanistas, quebuscavam tornar os estudantes fluentes nas línguas clássicas, dando 
especial atenção para a língua latina. Em 1555, sua administração passa para as mãos da Companhia de Jesus. (Cf. 
BRANDÃO, Mário. O Colégio das Artes. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1924). 
3 A Companhia de Jesus foi idealizada por sete jovens estudantes em Paris, no ano de 1534. Três deles, tiveram destaque 
na criação da Companhia, Inácio de Loyola, basco, Francisco Xavier, navarro, e Simão Rodrigues, português. Só em 
1540, por meio da bula Regimini militantis Ecclesiae, o papa Paulo III reconheceu oficialmente a Ordem. 
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principalmente com a possibilidade de crescer o número de adeptos com a “descoberta” da 
América4. 
Devido a uma enfermidade óssea, Anchieta viaja para o Brasil a fim de que os ares do Novo 
Mundo reabilitassem sua saúde. Sendo assim, no dia 08 de maio de 1553, viaja na caravana do 
segundo Governador-geral, Duarte da Costa, e aporta em terras brasileiras no dia 13 de julho do 
mesmo ano. Os biógrafos Caxa e Rodrigues (1988, p. 16) fazem o seguinte comentário sobre a 
indicação médica para Anchieta viajar ao Brasil: 
 
Não tendo já que fazer com ele os médicos, tendo novas os padres da terra do Brasil ser 
muito sadia, determinaram também com parecer dos médicos que fosse enviado a ela, e 
que poderia ser que com o novo céu, novos ares e novos mantimentos houvesse nele e 
em sua disposição alguma mudança. 
 
Anchieta não retornaria ao seu país. Viveria todos os próximos quarenta e quatro anos em 
prol da evangelização do ameríndio. Ademais, foi também uma figura muito importante na 
fundação das principais cidades do Brasil Colônia, como São Paulo e Rio de Janeiro. 
Com relação à educação, certamente Anchieta teve contato ainda nas Ilhas Canárias com 
festas populares que foram fontes de inspiração para a produção de seu teatro. Paulo Hernandes 
(2008, p. 16) afirma que “ali, o menino deve ter entrado em contato com festas populares com um 
certo tipo de teatro, com pantomimas e fantoches de feira, com aquele mundo do riso medieval 
que Mikhail Bakhtin tão bem descreve em seus estudos sobre François Rabelais". Além disso, 
dentre todos os jesuítas que vieram para o Brasil, Anchieta foi quem primeiro dominou de forma 
mais eficaz o idioma dos índios: “Anchieta estudou e dominou esta ‘língua geral’” (HORNAERT 
et al., 2008, p. 121). 
A vinda de Anchieta ao Brasil, como considera seus biógrafos, representou ao poeta duas 
coisas importantes: sua saúde reabilitada e a catequização dos indígenas. Os jesuítas tinham como 
uma de suas principais atribuições ganhar/trazer fiéis para a Igreja Católica, mas no caso dos 
indígenas, nas terras colonizadas, o processo era antes de catequização, já que, como se sabe, na 
visão do colonizador o índio não tinha alma, precisava ser guiado para o céu (VASCONCELOS, 
1943). Então, nosso poeta saiu do Tejo em Lisboa com essa finalidade, mas, no Brasil, foi e fez 
diferente. Nos parece que o jesuíta José de Anchieta encontrou a alma indígena/brasileira e buscou 
outros mecanismos para ensinar-lhe sua fé. Através da literatura, consegue ir mais além da 
catequese, visto que tinha consciência da arte, era um poeta consciente. Anchieta endossa a liturgia, 
ou seja, percebemos em seus textos o elemento religioso católico, no entanto, ele veste o santo 
católico de índio, quando mescla as duas culturas e cria apenas uma. Europa e América, branco e 
índio, colonizador e colonizado são um na tessitura de seus textos, é um processo de 
transculturação que se instala. A fronteira entre o popular e o religioso é mínima. 
Para dar ênfase a essa ideia, é importante comentar que José de Anchieta escreveu em quatro 
línguas: português, latim, guarani e espanhol, informação que nos leva a refletir sobre o aspecto 
antropofágico de sua obra, principalmente quando mistura as línguas em um só texto, como vamos 
ver a seguir. Sobre esse aspecto, nos comentam Caxa e Rodrigues (1988, p. 78-79): 
 
Outras muitas obras compôs em diversos tempos, porque tinha para isso muita graça e 
facilidade, em todas as quatro línguas que sabia, latina, portuguesa, espanhola e brasílica. 
Mudava cantigas profanas ao divino, e fazia outras novas, à honra de Deus e dos santos, 
que se cantavam nas Igrejas e pelas ruas e praças, todas mui devotas com que a gente se 
edificava, e movia ao temor e amor de Deus. 
 
Vale comentar ainda o fato de Anchieta verter cantigas ditas profanas em cânticos sagrados. 
Ele aprendia a forma, a sonoridade, a letra, a musicalidade dos cantos indígenas e a estes inseria o 
 
4 É preciso considerar que os dois países mais importantes na época das navegações eram Espanha e Portugal e ambos 
tinham o catolicismo como religião oficial. 
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elemento religioso/católico, formando, nesse sentido, um amálgama cultural, fruto da devoração 
antropofágica. Um exemplo disso ocorre no primeiro ato da peça “Auto de São Lourenço”, objeto 
deste artigo, em que Anchieta verteu a canção profana “El ciego amor me prendió” ao divino em 
“El buen Jesus me prendió” (Cf. CARDOSO, 1977, p. 70). 
A questão do trânsito de várias línguas no Brasil colonial precisa ser levada em consideração 
também porque não havia ainda uma língua oficial. Muitos pesquisadores afirmam que Anchieta 
não é um poeta brasileiro porque não escreveu exclusivamente em língua portuguesa, porém, 
como afirma Azevedo Filho (1966, p. 12) “Anchieta é um exemplo de como a língua portuguesa 
naquele tempo não estava ainda fixada na preferência dos escritores, o que demonstra que a 
literatura já era brasileira, embora não escrita em língua portuguesa”. Ainda sobre esse assunto, o 
crítico conclui: 
 
Havia coisas e sentimentos, ideias e episódios, que se misturavam na mente dos homens 
– colonos, catequistas e indígenas, - que não obrigavam a expressão portuguesa, mas que 
procuravam indiferentemente o espanhol, o tupi ou o latim, tanto quanto o português. 
Só com o tempo e a mão forte da colonização é que o português se foi impondo. 
(AZEVEDO FILHO, 1966, p. 12) 
 
Nesse sentido, não era estranho ter essa efervescência de línguas nas terras brasileiras na 
época colonial. Na verdade, só corrobora com aquilo que estamos chamando de estado 
antropofágico. 
 
1 A Antropofagia e sua conceituação 
 
Neste artigo, vamos trabalhar com a visão teórica de Oswald de Andrade sobre a 
antropofagia. É interessante destacar aqui que não está posto nos escritos desse autor modernista 
que José de Anchieta é um antropófago, mas, por meio de nossas pesquisas sobre o tema, estamos 
seguros de que é possível afirmar que a obra teatral do jesuíta traz ressonâncias antropofágicas, 
antecipando, de algum modo, o sentido dado por Oswald de Andrade à antropofagia no início do 
século XX. 
Que seria então a antropofagia oswaldiana? É a festa da devoração, que transforma a palavra 
patriarcal em um sintagma destituído de seu poder inicial criando outro diferente. Essa devoração 
antropofágica está estabelecida pelo universo do barroco, já que com seu transplante para a 
América houve uma mescla na cultura e na linguagem (LEZAMA LIMA, 2005). O que temos hoje 
é fruto desse processo de amalgamação. 
Para nossa pesquisa, o que mais interessa saber é sobre a devoração linguístico-cultural. José 
de Anchieta “devorava” as línguas. É um verdadeiro canibal da palavra. Em sua biografia, sabemos 
que desde criança começou a estudar as línguas clássicas de sua época e quando chegou ao Brasil 
é quem primeiro aprende a língua do indígena, inclusive produzindo uma gramática5 (outros 
jesuítas fizeram a mesma coisa nos países hispano-americanos). Lúcia Helena (1981, p. 22), falando 
sobre o poeta Gregóriode Matos, confirma nossa hipótese de que a devoração linguística é um 
processo antropofágico: “através de um texto crítico e estreitamente vinculado à realidade 
brasileira, o discurso literário de Gregório procede à devoração da palavra que representava, a nível 
estético, o estatuto do poder do colonizador”. Embora a citação da pesquisadora seja direcionada 
especificamente à poética de Gregório de Matos, ela coaduna perfeitamente com a produção de 
José de Anchieta, pois ambos pertencem aos primeiros processos de produção literária no Brasil 
e ambos se utilizam do mesmo mecanismo antropofágico que é a devoração da palavra. Nesse 
sentido, Anchieta, podemos dizer assim, inaugura a literatura brasileira sob o aspecto da 
antropofagia oswaldiana no sentido que estamos discutindo aqui, com a devoração cultural e 
linguística dos ameríndios. Não há, é importante frisar, “destruição” da cultura indígena; o que há, 
 
5 Anchieta escreveu e publicou a Arte de Gramática da língua mais usada na costa do Brasil em 1595. 
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no entanto, é uma mescla, um amálgama. O texto anchietano não é nem indígena nem europeu, é 
um produto dos dois. 
Anchieta assimila a cultura do indígena, sua língua, suas canções, sua comida, sua fé, seus 
desejos e os utiliza para compor seus textos catequéticos, poemas ou dramas. Em seus textos, está 
presente de maneira expressiva o índio, mas este surge agregado à cultura do colonizador. Vale 
considerar também que não há aqui uma intenção antropofágica, já que na época não havia uma 
discussão sobre essa teoria, não era intencional, mas, ao produzir uma obra literária mesclando as 
culturas como se fossem uma só coisa, já é característico do pensamento antropofágico teorizado 
por Oswald de Andrade (1978). 
 O objetivo da antropofagia, entre outras coisas, segundo Bitarães Netto (2004, p. 63) é 
“resgatar os valores nacionais para divulgá-los em todo o mundo, fazendo com que o europeu 
aceitasse a cultura estrangeira não somente por uma perspectiva excêntrica, mas pelos critérios da 
diferença e da autenticidade”. Anchieta não teve essa preocupação em valorizar o nacional, pois 
não havia nação, ainda estava em formação, mas o fato de conhecer profundamente a cultura 
autóctone, ou seja, devorá-la, e produzir textos com as duas culturas, nos leva a pensar no ideal 
antropofágico, isso porque estamos de acordo com o pensamento de que a obra de José de 
Anchieta contribui para a formação da identidade/literatura brasileira. Mário Faustino (2003, p. 
44) nos ajuda nesse reconhecimento: “[...] mas esse missionário é, sem dúvida, e de longe, o 
primeiro poeta dentre os muitos, jesuítas ou não, que, até Gregório de Matos, escreveu no Brasil 
e sobre o Brasil”. 
No Manifesto Antropófago, num de seus aforisma, está dito que “só me interessa o que não é 
meu” (ANDRADE, 1978, p. 13), ou seja, me interessa o outro, o que é do outro, não o que é meu. 
Por isso, a palavra “devoração” é chave para pensar a antropofagia. O rito canibal tem este 
objetivo: devorar o outro, para obter sua força e seu valor, acumulando energia ao longo de sua 
existência. Uma pesquisadora brasileira nos diz algo bastante importante sobre o sentido da 
antropofagia e que nos ajuda a estudar a obra teatral de José de Anchieta: “praticar a antropofagia 
cultural é digerir simbolicamente a tradição cultural para poder ser capaz de ultrapassar o modelo 
que ela impõe e criar, a partir de uma unidade criativa e dessacralizadora, um modelo próprio” 
(GELADO, 2006, p. 32). 
 
2 Um teatro antropofágico 
 
A antropofagia é uma teoria basilar para o Barroco, não é possível pensar um sem o outro. 
Para Lezama Lima (2005), por exemplo, o Barroco possui uma tensão, ou seja, provoca um choque 
com a cultura institucionalizada; rompe os fragmentos e os unifica; rompe os traços instaurados 
pelo historicismo e os une, formando um novo. São as partes do cristal que se unem. São as ruínas 
do Velho Mundo criando o Novo. O Barroco representa aquisições de linguagem, linguagem 
crioula, que traduz essa mescla cultural que temos comentado aqui. 
A obra de Anchieta está marcada pelas volutas do Barroco, tanto pelo fato histórico, uma 
vez que está inscrito no Seiscentos, como pela própria obra, pois traduz todo o conceito da teoria 
barroca. O Barroco é o estilo da dobra6 (DELEUZE, 2000), da antítese, do labirinto, da 
circularidade, do festim7 (SARDUY, 1988), da antropofagia, e isso está presente em Anchieta, 
talvez não tão explicitamente como em outros autores barrocos como Gregório de Matos, mas se 
estudado com um olhar filtrado, é possível encontrar esses elementos. 
Uma informação importante que precisa ser comentada é que Anchieta sabendo muitas 
línguas, compõe suas peças teatrais mesclando-as. Mas a maioria dos textos está escrita em língua 
 
6 O sentido da dobra deleuzeana aplicada ao barroco é o de que esse estilo é cíclico, é como uma voluta que forma um 
espiral, que vai do século XVI ao XXI, que circula pelas eras. É um movimento artístico que, como os fractais, se 
retorce replicando sua imagem infinitas vezes. 
7 O festim barroco se relaciona ao movimento da festa, do banquete, da abundância, do exagero, do luxo, tudo 
relacionado à extravagância artificiosa da linguagem barroca. 
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espanhola, que era sua língua materna. Por sua facilidade em aprender línguas, foi um dos 
primeiros a aprender a língua indígena, como observa Caxa e Rodrigues (1988, p. 18): “E tanto de 
raiz a aprendeu que não somente chegou a entendê-la e falá-la com toda a perfeição, e compor 
nela e trasladar as coisas necessárias para a doutrina e catecismos”. Em seu teatro polilíngue, o 
dramaturgo constrói cenas onde os personagens falam cada um em línguas diferentes e, às vezes, 
um mesmo personagem fala várias línguas, conjugando no que estamos chamando de mestiçagem 
linguística. 
O teatro de Anchieta é pedagógico, é uma verdadeira aula de catequese. Era concebido como 
parte de uma grande festa, religiosa, mas com partes francamente profanas e divertidas. Mas o 
texto do nosso jesuíta estava “impregnado pela vertente pessimista do cristianismo – a do pecado 
original” (PRADO, 1993, p. 22). Hernandes (2008, p. 23), por sua vez, afirma que Anchieta “criou 
um teatro evidentemente pedagógico, no sentido, porém, em que também eram pedagógicos os 
autos religiosos e as moralidades medievais”. Além disso, é importante refletir sobre o fato de que 
Anchieta era um humanista e trouxe na bagagem todo um repertório de fonte medieval, que 
contribuiu para produção de sua obra: “Os jesuítas, em particular José de Anchieta, trouxeram 
para o Brasil a fonte medieval da poesia de língua portuguesa [...], foram os primeiros a tentar o 
aproveitamento poético da língua indígena” (FAUSTINO, 2003, p. 44). Por essa razão, a obra 
anchietana está em transição para o Barroco, porque ela tem influência do mundo medieval, 
conforme nos assegura o prof. Leodegário Amarante de Azevedo Filho (1966, p. 13): “[...] não há, 
na obra literária de Anchieta, seja qual for o gênero considerado, nenhuma influência do 
Renascimento. Ao contrário, toda ela se inspira no mundo medieval, em transição para o Barroco, 
em virtude da filiação do jesuíta aos ideais estéticos da Contrarreforma”. E acrescenta o crítico: 
“[...] a Literatura Brasileira encontra as suas raízes mais profundas na Idade Média, iniciando-se 
com o Pré-barroco jesuítico” (AZEVEDO FILHO, 1966, p. 13). Para Décio de Almeida Prado 
(1993, p.15), por seu turno, o teatro anchietano coincide com a formação da nossa identidade: “Se 
entendermos espetáculos amadores isolados, de fins religiososou comemorativos, o seu 
aparecimento coincide com a formação da própria nacionalidade, tendo surgido com a catequese 
das tribos indígenas feita pelos missionários da recém-fundada Companhia de Jesus”. 
Sobre a estrutura das peças teatrais do jesuíta, é-nos dito o seguinte: 
 
[…] o Auto de Anchieta se inspirara, em sua contextura, dos costumes indígenas; e em 
sua prosódia e métrica, do estilo de Gil Vicente. Pois, sempre em suas peças se encontra 
uma parte central em diálogo, que nas composições maiores se divide em dois atos; em 
redor dessa parte principal nota-se uma introdução ou ato inicial, e dois atos posteriores, 
dança e despedida, em música e canto. [...] a parte central contém a ação dramática através 
do diálogo. As outras partes, inicial e finais, são líricas e menores em geral. (CARDOSO 
S.J., 1977, p. 8) 
 
No Brasil, esse teatro tem sua expansão a partir de 1567 quando José de Anchieta faz 
apresentar em Piratininga (hoje, São Paulo) o “Auto da pregação universal”. Nosso dramaturgo 
veio para ensinar, mas na verdade teve que aprender, escutar, aprender a língua daquele país, 
compreender as coisas daquele lugar, etc. Vejamos o que nos conta Hernandes (2008, p. 11-12) 
sobre o que representa, de forma geral, o teatro anchietano: 
 
[...] o teatro de Anchieta é um acontecimento histórico; seja representação/encenação 
pedagógica e, portanto, aula de catequese, ele tem enredo, argumento, assunto próprio 
para um público específico, e é, assim, uma forma de representação cênica situada no 
tempo: para aproximar-se dele, é preciso considerá-lo na ordem dos acontecimentos e 
dos efeitos. 
 
O “Auto de São Lourenço” (1587), escrito na maior parte em espanhol e tupi-guarani, trata 
do martírio de São Lourenço em cinco atos com 1493 versos, com a presença de anjos e demônios. 
Na obra, o jesuíta trabalha com a alegoria para disseminar entre os indígenas conceitos cristãos 
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como a caridade e a confiança em Deus. Na história, três demônios querem levar os índios para o 
pecado, porém os santos São Lourenço e São Sebastião8 os impede. O pe. Armando Cardoso S.J. 
(1977, p. 16) resume: “no diálogo, em que se desenvolve a ação principal, o enredo ordinário, 
simples e ingênuo, é a luta dos espíritos do mal contra o anjo da aldeia e os santos protetores, com 
a vitória destes”. 
Essa peça se direciona exclusivamente ao público indígena. Os personagens em destaque são 
os demônios Guaixará e Aimbiré9, conhecidos como chefes tamoios que lutaram ao lado dos 
franceses contra portugueses e jesuítas; outros personagens de destaque são Décio e Valeriano, 
imperadores romanos dos primeiros séculos10. 
O Auto tem início já em língua espanhola. O primeiro ato é especial por trazer a cena do 
martírio de São Lourenço, quando o leitor/ouvinte/expectador vai conhecer a forma como foi 
martirizado o santo, sendo posto sobre grelhas para assar. Entende-se que esse ato foi cantado, já 
que, como dissemos acima, Anchieta verteu uma cantiga profana ao divino, que resultou nas 
quadras abaixo: 
 
Por Jesus, mi salvador, 
que muere por mis mancillas, 
me aso en estas parrillas, 
con fuego de su amor. 
 
Buen Jesus, cuando te veo 
en la cruz, por mí llagado, 
yo, por ti vivo quemado, 
mil veces morir deseo. 
 
Pues tu sangre redentor 
lavó todas mis mancillas, 
arda yo en estas parrillas, 
con fuego de tu amor. 
 
El fuego del fuerte amor 
¡oh mi Dios!, con que me amas, 
más me quema que las llamas 
y brasas, con su calor. 
 
Pues tu amor, por mi amor, 
hizo tantas maravillas, 
muera yo en estas parrillas, 
por el tuyo, mi Señor. (ANCHIETA, 1977, p. 143-145) 
 
Já na primeira quadra podemos encontrar alguma relação com o ideal antropofágico, tomado 
do rito canibal, pois a imagem construída pela voz poética é a de um homem assando nas grelhas 
de um fogo; esse fogo pode traduzir a imagem do rito canibal dos indígenas quando assavam seus 
 
8 Mártires dos primeiros séculos, um foi morto a flechadas e outro assado na fogueira. 
9 Segundo informações dadas pelo Pe. Armando Cardoso S.J., os demônios que aparecem nessa peça têm estas 
características: “Guaixará era índio de Cabo Frio e fora derrotado uma primeira vez, no ataque das duzentas canoas 
contra a cidade incipiente junto ao Morro do Cão (julho de 1565). [...] Aimbiré é descrito pelo próprio Anchieta na 
carta de Iperuí, como homem alto, seco, de catadura triste e carregada, que procurou matá-lo quando refém das pazes 
(a. 1563)” (CARDOSO S.J., 1977, p. 71). 
10 Na análise da peça feita pelo Pe. Armando Cardoso S.J., ele explica sobre a presença desses personagens: “Os dados 
históricos que ocorrem sobre personagens, como os imperadores Décio e Valeriano, são tirados da Legenda Áurea, 
sem valor crítico, que aliás não se deve buscar e exigir em dramas. Segundo a Legenda, foi no tempo de Valeriano, 
censor do imperador Décio, que foi martirizado S. Lourenço diácono romano de Xisto II, cerca do a. 258 D.C. Depois 
de atado aos grilhões de ferro, foi açoitado e esfolado e por último posto sobre grelhas em brasa. S. Sebastião é colocado 
ao seu lado, por ser padroeiro do Rio de Janeiro; foi asseteado no tempo de Diocleciano, cerca do ano 286” 
(CARDOSO S.J., 1977, p. 142). 
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inimigos no moquém. O fogo será, nessa peça, um elemento muito presente. Para o pe. Armando 
Cardoso S.J., com olhar mais voltado para o religioso, ele assim analisa esses versos: “o assunto se 
funda todo numa ideia de misticismo lírico sublime: o fogo do amor de Jesus para com Lourenço 
e deste para com Jesus era mais intenso que o fogo material que consumia o corpo do mártir” 
(CARDOSO S.J., 1977, p. 70). Precisamos, nesse ínterim, explicar que a cena descrita do martírio 
de São Lourenço como primeiro ato da peça de Anchieta não descreve um ritual antropofágico em 
que seu corpo seria devorado por seus algozes. No entanto, essa mesma cena nos remete ao ritual 
canibalesco dos indígenas que matavam seus inimigos, assavam-no em um moquém e depois era 
consumido por toda a tribo. As duas cenas se assemelham; há, em certa medida, um ato de 
devoração11. A consumação do corpo do mártir era uma espécie de devoração também. É 
interessante notar que em toda a peça há remissão ao ato de assar, de consumir via fogo. 
Já no segundo ato, a língua muda do espanhol para o tupi-guarani12, quando surgem três 
diabos: Guaixará, Aimbirê e Saravaia, representantes da soberba, da astúcia e da traição, 
respectivamente. Essa mudança de língua vai endossando a mescla linguística presente nessa peça. 
A primeira fala é de Guaixará, um diabo com nome indígena e falando a língua nativa. Todos os 
personagens deste ato dialogam na língua tupi, inclusive os mártires São Lourenço e São Sebastião. 
Guaixará se apresenta e diz qual fim terá a ação dele e de seus ajudantes naquela aldeia: 
 
Xe moajú marangatú, 
xe moyrõetekatuábo 
aipó tekó pysasú. 
Abá serã oguerú, 
xe retáma momoxyábo? 
 
Xe añó 
ko tába pupé aikó 
serekoáramo uitekóbo, 
xe rekó rupi imoingóbo. 
Kué suí asó mamó 
amó tába rapekóbo. 
 
Abá, será, xe jabé? 
Ixé serobiaripyra, 
xe añangusú mixyra, 
Guaixará serímbae, 
kuépe imoerapoanimbyra. 
 
...................................... 
 
Oikobé 
xe pytybõanameté, 
xe pyri marã tekoára, 
xe yrúnamo okáibae: 
tubixakatú Aimbiré, 
apiába moangaipapára. 
 
Tradução: 
 
Molesta-me a boa gente, 
fazendo-me crua guerra; 
o povo está diferente: 
quem o mudou de repente, 
para danar minha terra? 
 
11 Nos referimos, especificamente, a algumas tribos que praticavam o ritual canibalesco, como os tupinambás (Cf. 
LÉRY, 2007). 
12 Os trechos em tupi-guarani foram traduzidospelo pe. Armando Cardoso S.J. (1977) que organizou a obra teatral de 
José de Anchieta. 
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Só eu sou 
o que nesta aldeia estou 
como seu guarda vivendo. 
Às minhas leis eu a rendo 
e daqui longe me vou 
outras aldeias revendo. 
 
Como eu, no mundo, quem há? 
Eu sou bem conceituado, 
eu sou o diabão assado 
que se chama Guaixará, 
em toda a terra afamado! 
 
…………………………. 
 
Tenho fé 
em meu ajudante, que é 
meu mór colaborador, 
queimado no mesmo ardor, 
o grande chefe Aimbirê, 
dos índios pervertedor. (ANCHIETA, 1977, p. 145-147) 
 
O ato segue com um diálogo entre os demônios querendo destruir a aldeia com pecados. No 
entanto, surgem as figuras dos mártires São Lourenço e São Sebastião na presença de um Anjo da 
Guarda que resistirão aos demônios, livrando toda a aldeia daquela influência maléfica 
(AZEVEDO FILHO, 1966). Quando os protetores da aldeia são avistados pelos demônios, temos 
o seguinte diálogo: 
 
Aimbiré: Ke! Abá rekóu añé 
 xe renopuapuáma! 
 
 Kái! Rore kae piã? 
Saravaia: Aé. Bastião abé. 
Aimbiré: Aépe, ke, amboaé? 
Saravaia: Karaibebé será 
 ko tába raroaneté. 
Aimbiré: Xe reytyk koríne, mã! 
 Jabaeté sepiáka ixébo... 
Guaixará: Aáni xo! Nde piatã! 
 Ejorí! Tixepeñã, 
 imosykyjekyjébo. 
 
 Jamonguá moxy ruúba, 
 ixupé jajemoytyámo. 
Aimbiré: Ke! Túri jandé nupámo! 
 Aryryi, opá xe úba 
 jesyi, ojemoatámo… 
 
Tradução: 
 
Aimbiré: Olha lá esse sujeito 
 que me está ameaçando! 
 
 Ai! o Lourenço queimado? 
Saravaia: Sim, ele! e Bastião também. 
Aimbiré: E esse outro que está ao lado? 
Saravaia: Será o Anjo encarregado 
 que esta aldeia em guarda tem? 
Aimbiré: Ai! eles me esmagarão! 
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 É-me terrível mirá-los... 
Guaixará: Sê forte, não fujas, não! 
 Vem, ataquemos então 
 para assim amedrontá-los! 
 
 Das más flechas escapar! 
 pois nos mostram destruídos. 
Aimbiré: Olha, vem-nos açoitar: 
 meus músculos vão ficar 
 de tremor endurecidos. (ANCHIETA, 1977, p. 153-154) 
 
Após isso, vale destacar o diálogo empreendido entre os demônios e os mártires, revelando 
uma tensão entre as forças antagônicas. Nesse diálogo, os mártires questionam a razão pela qual os 
demônios querem destruir aquela aldeia e eles respondem informando-lhes que aqueles índios são 
pecadores e nada tem com Deus. Na verdade, ocorre aqui, à luz da catequese, um processo de 
aculturação. Anchieta objetiva incutir na mente dos seus expectadores que as ações praticadas são 
consideradas pecados para a Igreja Católica, como o canibalismo, a beberagem do cauim, a 
mancebia, o fumo, o adultério, as guerras com outras tribos (Cf. AZEVEDO FILHO, 1966, p. 
227). Por outro lado, sob olhar estético, o auto vai construindo um conjunto linguístico-cultural 
bastante coeso e firme no sentido da evocação dos vocábulos indígenas amalgamados às questões 
litúrgicas católicas. Aprendemos sobre os costumes dos índios, além de também observar o 
pensamento da Igreja Católica sobre determinados comportamentos dos primeiros habitantes do 
Brasil. O trecho seguinte é um extrato dessa parte em que dialogam santos e demônios, cada um 
argumentando sobre o fato de serem donos daquela aldeia: 
 
Lourenço: Abápe nde? 
Guaixará: Guaixará kaguára, ixé, 
 mboitiningusú, jaguára, 
 moruára, moroapyára, 
 andirá-guasú, bebé, 
 añánga morapitiára. 
 
Lourenço: Aé pikó? 
Aimbiré: Xe jibóia, xe sokó, 
 xe tamuiusú Aimbiré. 
 Sukurijú, taguató, 
 tamanduá atyrabebó, 
 xe añanga moropé! 
 
Lourenço: Mbaetépe peseká 
 ko xe retáma pupé? 
Guaixará: Apiába rausúpa ñe, 
 oré rapiára potá, 
 oré putupá sesé. 
 
 Ombaé nipó asé 
 opyá pupé sausúbi. 
Sebastião: Abatépe, erimbaé, 
 pembaéramo resé, 
 apiába meengaúbi? 
 
 Tupã aé, 
 okaraíba pupé, 
 iánga, seté moñángi. 
Guaixará: Tupã? Tenipó, añé… 
 Sekó, te, ipoxy eté, 
 sekó aé niporángi. 
 
 Iangaipá, 
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 Tupã osausupeá, 
 sesé ojerobiá bebúia. 
Aimbiré: Igasápe kaui tujá, 
 aeré iamomotá, 
 ojojá guaibi rekúia… 
 
 Imboapy abá kujabá 
 ánga e seminotára. 
 moraséia rerobiára, 
 ipyá jaiporaká, 
 momoetéi omoñangára... 
 
Tradução: 
 
Lourenço: Quem és tu? 
Guaixará: Guaixará, o cauçu, 
 sou o grande boicininga, 
 o jaguar da caatinga, 
 eu sou o andirá-guaçu, 
 canibal, demo que vinga. 
 
 E ele, é? 
Aimbiré: O grão tamoio Aimbiré, 
 sou jibóia, sou socó, 
 sucuriu taguató, 
 demônio-luz, mas sem fé, 
 tamanduá atirabebó! 
 
Lourenço: Aqui, na minha mansão, 
 que buscais por essa via? 
Guaixará: Amamos a indiaria! 
 queremos-lhes a sujeição, 
 é toda a nossa porfia. 
 
 Ama-se sinceramente 
 o que é próprio de verdade... 
Sebastião: Quem nalgum tempo ou idade 
 vos entregou essa gente 
 para vossa propriedade? 
 
 Deus Senhor, 
 com santidade e amor, 
 alma e corpo lhes formou. 
Guaixará: Deus? talvez... mas deformou 
 seu viver de mau teor 
 sua alma que não se ornou 
 
 Uns sandeus! 
 repelem o amor de Deus 
 e se orgulham pela taba. 
Aimbiré: Regorgita a igaçaba: 
 as velhas tentam os seus 
 com cauim que não acaba. 
 
 A grande cabaça tolhe 
 a liberdade da mente; 
 em meio da dança quente, 
 nosso carinho os recolhe, 
 desprezando o onipotente. (ANCHIETA, 1977, p. 154-155) 
 
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 Ao final desse ato, os demônios são, enfim, presos pelos mártires com a ajuda do Anjo da 
Guarda da aldeia. Com o surgimento desse outro personagem, fica evidente mais ainda o processo 
de catequização, porque a figura do Anjo da Guarda representa não somente uma proteção para a 
aldeia, mas também para cada um daqueles índios, a quem devem recorrer em momento de angústia 
e desespero, isto é, quando se sentirem acuados pelo “pecado”. Vejamos: 
 
Anjo: Napeapysái, jandú, 
 iko tába apamonána. 
 Aikobéni xe, saroána, 
 São Sebastião yru, 
 São Lourenço pytyboána. 
 
 Peporeausú koríne, 
 pemoyrõ paí Iesu 
 ko tába pobú pobú. 
 Perapy tataendyne! 
 Pei, peipoá murú! 
 
Tradução: 
 
Anjo: Não espereis, como então, 
 turvar este povo ordeiro. 
 Cá estou como guardião 
 junto com Sebastião 
 e Lourenço o padroeiro. 
 
 Pobres de vós, alcateia, 
 que irritastes Deus eterno,desordenando esta aldeia. 
 Eia! Amarrai-vos, eia! 
 Queimar-vos-á vosso inferno! (ANCHIETA, 1977, p. 159) 
 
No terceiro ato, surgem outros personagens, Décio e Valeriano, ambos associados ao 
martírio de São Lourenço. Mais uma vez, há uma mudança linguística; a língua usada agora será o 
espanhol. Instaura-se um verdadeiro caos linguístico: primeiro espanhol, depois tupi e, em seguida, 
espanhol e tupi. Isso é bem característico do movimento barroco, dada à sua matéria multifacetada 
e díspares. Segundo Décio de Almeida Prado (1993, p. 24), o teatro anchietano revela um caos, 
realizado entre instâncias antagônicas: 
 
Esse verdadeiro caos histórico, ou a-histórico, vai do infinitamente grande ao 
infinitamente pequeno, do divino ao humano, do material ao imaterial, do passado 
remoto ao presente imediato, do local ao universal, formando um bloco cultural 
complexo a que unicamente os padres da Companhia de Jesus (e talvez nem todos) 
estavam em condições de ter acesso. 
 
Nesse ato, o Anjo pede para que os demônios afoguem os imperadores Décio e Valeriano 
como castigo por terem martirizado São Lourenço, que segundo Leodegário Azevedo Filho (1966, 
p. 227-228), trata-se de um naturalismo de aspecto barroco: “Assume, então, aspecto de 
naturalismo barroco a cena em que os demônios planejam a destruição dos imperadores, 
aproximando-se o clímax principal do Auto, após uma série de involuções”. 
As falas do Anjo e dos demônios ocorrem em tupi-guarani, enquanto que as dos imperadores 
ocorrem em língua espanhola: 
 
Anjo: Nei, taujé iajubyka! 
 Tosepiáki be umé 
 koarasy! Nei, taujé 
 nde ratá pupé seytyka! 
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 Peñeiñáng pabe sesé! 
 
Aimberé: Nei! Tasó 
 aipó ñeénga mopó, 
 xe bojá reiñãngetábo. 
 Sarauái, jorí ekaguábo, 
 aeré korí jasó 
 tubixabá akánga kábo. 
 
Tradução: 
 
Anjo: Eia, depressa, a afogá-los! 
 Que não vejam mais o dia! 
 Eia, depressa, a atirá-los 
 ao fogo de vossos valos! 
 Reuni a companhia! 
 
Aimbiré: Pronto! Irei 
 executar vossa lei, 
 reunir a minha laia. 
 Vem beber, ó Saravaia! 
 Vamos, hoje fendei 
 as cabeças desta arraia! (ANCHIETA, 1977, p. 166) 
 
Décio e Valeriano entram em cena falando em espanhol: 
 
Décio: Amigo Valeriano, 
 es cumplido mi deseo, 
 pues por arte ni rodeo, 
 pudo escapar de mi mano 
 el siervo del Galileo. 
 
 Ni Pompeyo, ni Catón, 
 ni César, ni el Africano, 
 ningún griego ni troyano 
 pudieron dar conclusión 
 a hecho tan soberano. 
 
Valeriano: El remate, gran señor, 
 de esta tan grande hazaña, 
 fué más que vencer España. 
 Nunca rey, ni emperador 
 hizo cosa tan extraña. 
 
 Mas, señor, ¿quién es aquel 
 que allí veo tan armado 
 con espadas y cordel, 
 y con gente de tropel, 
 de que viene acompañado? 
 
Décio: Es nuestro gran Dios y amigo 
 Júpiter, sumo Señor, 
 que recibió gran sabor 
 con el horrendo castigo 
 y muerte de este traidor. 
 
 Y quiere, por regraciar 
 las penas de este profano, 
 nuestro imperio acrescentar, 
 con su poderosa mano, 
 por la tierra y por la mar. 
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Valeriano: Más me tempo yo que viene 
 a sus tormentos vengar, 
 y a nosotros ahorcar… 
 ¡Oh! ¡Qué mala cara tiene! 
 Ya yo comienzo a temblar… (ANCHIETA, 1977, p. 169-170) 
 
A cena segue e os diabos começam a conversar com os imperadores. Temos nesse ato, um 
encontro entre épocas muito distantes, são índios do século XVI em diálogo com imperadores da 
época romana. A esse respeito, o pe. Armando Cardoso S.J. (1977, p. 73) faz a seguinte 
consideração: 
 
Podia parecer anacronismo dialogarem demônios índios do séc. XVI com os imperadores 
Décio e Valeriano, algozes do mártir no séc. III, ora em castelhano ora em tupi. Mas 
todos vemos que os demônios, embora se chamem, nesse teatro especial, com nomes de 
chefes inimigos, não deixam de ser diabos que existiram desde a criação do mundo. 
 
Para o crítico jesuíta, essa cena não é do mundo terrenal, mas do espiritual, “onde os tempos 
se aproximam e se falam todas as línguas” (CARDOSO S.J., 1977, p. 73). É uma visão estritamente 
religiosa. Para nós, a importância maior é o caudal linguístico-cultural que vai sendo construído 
cena a cena, por isso, antropofágico. 
Quando começa o discurso do diabo Aimbiré, sua fala é posta em tupi, no entanto, na quadra 
seguinte, ele já fala espanhol: 
 
Aimbiré: To, kasiána pikó? 
 Kasiána ñe serã… 
 Xe roryb. Aujé nipó! 
 Aeré tasepeñã! 
 
 Quiero hacerme castellano 
 y usar de policía 
 con Decio y Valeriano, 
 porque el español ufano 
 siempre guarda cortesía. 
 
Tradução: 
 
Aimbiré: Oh! Castelhanos malditos 
 (são castelhanos eu acho) 
 alegram-me esses seus ditos 
 de castelhanos invictos... 
 Daqui a pouco os despacho!! 
 
 Quero virar castelhano, 
 em polida companhia, 
 com Décio e com Valeriano, 
 porque o espanhol ufano, 
 sempre guarda cortesia. (ANCHIETA, 1977, p. 171) 
 
Em seguida, ocorre o contrário, Valeriano, o imperador castelhano, fala em tupi com o 
demônio Aimbiré, e este mistura as duas línguas em uma só fala. Observe-se que cada um desses 
exemplos vai justificando o processo de devoração linguística empreendido por José de Anchieta 
para produzir essa peça: 
 
Valeriano: Xe, akái! 
Aimbiré: ¿Vinisteis del Paraguay, 
 que habláis en carijó? 
 Todas las lenguas sé yo. 
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 sepeñã, Sarauái! 
 Ko nde momboitába, ko! 
 
Valeriano: Aujé, xe juká jepé! 
 Nasetái xe angaipába... 
 Ejá, te, xe rubixába! 
Saravaia: Aã! Xe potába nde! 
 Nde, xe rembiapotasába! 
 
Tradução: 
 
Valeriano: Xe, akái! 
Aimbiré: Viestes do Paraguai, 
 que falais em guarani? 
 Todas as línguas aprendi... 
 Avança tu, Saravaia, 
 aqui teus golpes, aqui! 
 
Valeriano: Oh, basta! que me estraçalhas: 
 eu não tenho muitas falhas... 
 Prende antes o meu chefão! 
Saravaia: Não! És tu o meu quinhão, 
 és presa que bem me calhas! (ANCHIETA, 1977, p. 172) 
 
A língua espanhola era nobre naquela época. A classe dominante da Península era bilíngue. 
Por essa razão, o diabo Aimbirê fala em espanhol na peça. “Não se pense, todavia, que esse 
surpreendente intercâmbio de idiomas seja involuntário ou produto de desatenção” (PRADO, 
1993, p. 28). 
Quando chegamos ao quarto ato, surge novamente o personagem do Anjo que vai dialogar 
com dois personagens simbólicos, o Temor e o Amor de Deus. A cena é a do sepultamento do 
corpo de São Lourenço. Ocorre outra mistura linguística: o Anjo abre o ato falando em português 
e depois os outros personagens falam em espanhol: 
 
Anjo: Vendo nosso Deus benignovossa grande devoção 
 que tendes, e com razão, 
 a Lourenço, mártir digno 
 de toda a veneração, 
 
 determina, por seus rogos 
 e martírio singular, 
 a todos sempre ajudar, 
 para que escapeis dos fogos 
 em que os maus se hão de queimar. 
 
 Dois fogos trazia n’alma 
 com que as brasas resfriou, 
 e no fogo, em que se assou, 
 com tão gloriosa palma, 
 dos tiranos triunfou. 
 
 Um fogo foi o Temor 
 do bravo fogo infernal, 
 e, como servo leal, 
 por honrar a seu Senhor, 
 fugiu da culpa mortal. 
 
 Outro foi o Amor fervente 
 de Jesus, que tanto amava, 
 que muito mais se abrasava 
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 com esse fervor ardente 
 que co’o fogo, em que se assava. 
 
 ........................................................... (ANCHIETA, 1977, p. 179). 
 
Em seguida, falam o Temor e o Amor. Na interpretação religiosa do pe. Armando Cardoso 
S.J. (1977, p. 75), “Os sermões do Temor e Amor de Deus são duas composições líricas de alto 
valor literário. No auto eles têm por finalidade fixar, através de suas voltas inspiradas, o fruto 
espiritual de toda a peça, um pouco como os coros gregos que levavam à reflexão sobre a vida 
humana e seu destino”. 
O Temor dá seu recado: 
 
“Pecador, 
engulles, con gran sabor, 
el pecado, 
¡Y no te ves ahogado 
con tus males! 
¡Y tus heridas mortales 
no sientes, desventurado! 
 
El infierno, 
con su fuego sempiterno, 
ya te espera, 
si no sigues la bandera 
de la cruz, 
en la cual murió Jesús 
para que tu muerte muera.” 
…………………………… (ANCHIETA, 1977, p. 179-180) 
Em seguida, vem o recado do Amor de Deus: 
 
“Ama a Dios, que te creó, 
¡hombre, de Dios muy amado! 
Ama, con todo cuidado, 
a quien primero te amó. 
Su propio hijo entregó 
a muerte, por te salvar. 
¿Qué más te podía dar, 
pues, cuánto tiene, te dio?” 
 
Por mandado del Señor, 
Te dije lo que hás oído. 
Abre todo tu sentido, 
porque yo, que soy su Amor, 
sea en ti bien imprimido. 
………………………….. (ANCHIETA, 1977, p. 184) 
 
A peça termina no 5º ato com um baile, uma festa cantada em tupi-guarani. É uma verdadeira 
festa da palavra, festa das línguas, na qual o ideal de devoração está posto na mesa. O banquete 
linguístico oferecido a nós por Anchieta é um dos mais maravilhosos. O banquete barroco dado 
aos indígenas nas terras coloniais está carregado de signos culturais, pois a língua é o substrato da 
cultura de cada povo. Ao mudar a língua, mudam os ideais, os pensamentos, as visões, os sotaques, 
as vozes e, embora estejam sozinhas na boca dos personagens, ao final, estão unidas ao complexo 
antropofágico construído pelo jesuíta aqui pesquisado. 
Na verdade, sabemos que os jesuítas queriam substituir uma cultura por outra, mas há um 
sincretismo, como pudemos observar nos exemplos acima, um sincretismo linguístico; as culturas 
que foram evocadas caminham de mãos dadas, não estão separadas, mesmo com a separação da 
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língua por atos e por personagens. Portanto, a realidade literária já é brasileira e começa pela mão 
do barroco. 
Leodegário Azevedo Filho (1966, p. 232), nos ajuda a concluir: 
 
O teatro de Anchieta é assim. Reflete, em sua entrega apaixonada à realidade brasileira, 
traços naturalísticos próprios do Barroco, através de seu ilusionismo pictórico e do 
patético religioso. Nele se reflete, vivo, o tremor ideológico e místico da Contrarreforma, 
buscando estremecidamente a evidência do sobrenatural, numa espécie de estética da 
salvação do gentio. 
 
A procissão final da peça feita por meninos que dançam e cantam em tupi é mais um exemplo 
do processo de devoração antropofágica. Era comum, no teatro medieval, haver uma parte final 
composta pelo lúdico e, na cultura indígena, também era costume haver festas com danças e 
cânticos. Anchieta une esses dois universos culturais diferentes, que, ao se unirem, provocam uma 
tensão, uma tensão barroca, resultando, portanto, na cultura brasileira, “de um lado se mantém o 
espírito antiterreno da Idade Média, encarnado nos padres da Companhia de Jesus, e, de outro, o 
que se tem é o mundo pagão do silvícola” (AZEVEDO FILHO, 1966, p. 57). 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
 
O estudo da peça teatral “Auto de São Lourenço” revelou-nos, claramente, uma possível 
conexão entre o barroco anchietano (ainda em formação aqui no Brasil) e a antropofagia 
oswaldiana, ou seja, estabelecendo uma ponte entre uma obra quinhentista e uma teoria moderna, 
o que corrobora com a concepção de que a literatura não pode ser vista somente sob barreiras 
historicistas. E isso não é anacrônico, mas sincrônico. Tal conexão se deu, essencialmente, pela 
confluência linguística presente nessa peça, na qual Anchieta faz contracenar anjos, demônios, 
santos e imperadores, personagens que dialogam em línguas diferentes a depender da cena e do 
interlocutor. 
Em todo o auto, vemos sendo construído o ideal barroco-antropofágico de devoração da 
palavra, cujo cerne está no trabalho meticuloso exercido por Anchieta nas escolhas das palavras, 
das línguas e dos personagens. A produção da peça com fins pedagógicos suplanta seu objetivo 
quando insere os elementos paradoxais das culturas que estão ali representadas por cada 
personagem, revelando-nos a formação de uma nova cultura, a brasileira. Nas linhas desse auto, 
enxergamos esse processo formativo, porque tanto na peça quanto no público expectador está 
representada toda a diversidade que compõe o Brasil. Somos resultado desse processo de 
amalgamação linguístico-cultural que está presente na obra do jesuíta, que também é fruto de outras 
amalgamações. Anchieta trouxe para as terras brasileiras a literatura e a cultura de matriz medieval 
que fizeram parte de sua educação humanista e aqui empreendeu, por meio da antropofagia, a 
amalgamação com a cultura autóctone. Seu texto não é mais português nem medieval; é agora um 
terceiro elemento, fruto da união entre esses dois ambientes tão díspares, europeu e americano, 
fazendo-se uno, portanto, barroco. 
O teatro anchietano nos apresenta culturas e mundos diversos. Une o Velho e o Novo, 
transformando-os em Um. Essa união é possível porque é no teatro que ocorre a transmutação das 
culturas e o encontro das línguas. Anchieta traz os louvores da Espanha para os indígenas da 
América. O signo linguístico espanhol encontra o homem silvícola em seu primitivismo e se 
absorve do signo verbal indígena. Dessa maneira, não se pode dizer que Anchieta é um poeta de 
São Paulo, da Bahia ou do Rio de Janeiro, nem só brasileiro ou espanhol; é, na verdade, universal. 
Sua obra não admite o regionalismo, o particular. Anchieta é muito mais que um jesuíta, é um 
poeta: 
 
En el jesuita se produce la insólita circunstancia de que la forma del “hombre” ha 
silenciado al “literato” el tiempo suficiente para que la memoria histórica sólo asociara a 
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su nombre a la identidad del “evangelizador” y del “beato” y no a la del “poeta” o a la 
del “dramaturgo”. […] el Padre Anchieta también formula con “transcontinentalidad” el 
viejo debate entre la insularidad o la universalidad. (DÍAZ, 1998, p. 11-12, grifos do 
autor). 
 
Com sua escrita polilíngue, Anchieta é “muitos”, reunindo o mundo do qual provém a 
essência do seu teatro – o homem. Anchieta foi um homem, um religioso, um poeta, um 
dramaturgo, um santo, que, através de sua lírica, conseguiu instituir toda uma nova vida 
cultural/literária/religiosa para a gentebrasileira. Muito mais que isso, trouxe para o solo brasileiro 
as marcas do teatro barroco tão intimamente interconectado por seus versos, observados por meio 
da antropofagia cultural. Os temas recorrentes no teatro anchietano comungam com os mesmos 
temas trabalhados pelos poetas barrocos no Velho Mundo, significando que o Novo Mundo, no 
nosso caso, Brasil, começava pela via direita da literatura. 
 
 
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Submetido em 23/09/2019 
Aceito em 19/11/2019 
Publicado em 17/01/2020

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