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~ l U ~-t/(U Lv? f,-,,-QCLL- ~ '1\.l,C .r- I')} \ C(_~ 1,'V(.(~~C «Uns dedicam-se particularmente ao serviço de Deus; outros garan- tem pelas armas a defesa do Estado; outros ainda a alimentá-Ia e a mantê-Ia pelos exercicios da paz: São estas as três ordens ou estados gerais da França: o Clero, a Nobreza e o Terceiro Estado». Esta é uma das afirmações com que abre o Tratado das Ordens e Simples Dignidades que Charles Loyseau, parisiense, publicou em 1610 e que, ao ser conhecido, logo foi considerado muito útil, sendo sucessi- vamente editado durante o século XV1!. Por estas palavras se definia a ordem social- quer dizer a ordem política -, o mesmo é dizer a ordem simplesmente. Tres «estados», três C.1.tegoriasestabelecidas. estáveis. três : divisões hierarquizadas. Semelhante a escola, semelhante à sociedade- -modelo onde a criança aprende a estar sentada, sossegada, a manter-se no seu lugar, a obedecer, a classificar-se. A classe' os grandes os médios, ~quenos: o primeiro, o segundo e o terceiro estados. Ou, se prefe- rirmos, as trés «ordens» - esta é visivelmente a palavra preferida por Loyseau. A classe mais elevada voltada ar o céu as duas outras viradas para a terra, mas todas ela sempenhadas em manter o Est o esta vez com maIúscula), procurando a ordem média a segurança, a inferior alimentando as restantes. Trés funções 'pois-:complementares. Solida~l(!.9--ªde triangular. Triãiigulo: uma base, um vértice e, sobretudo, essa ternaridade . que, misteriosamente, procura o sentido do .equilíbrio. Porque, quando Loyseau, na página 53~da--êdÍçKõ de 1636. fala da nobreza, afirma claramente que se trata de um corpo múltiplo em que se sobrepõem graus, estratos, que tudo é questão de casta, de direito adquirido, ainda que haja sempre quem lute para ser o primeiro a franquear a soleira da porta. a sentar-se. a pôr o chapéu. Loyseau pretende também pôr ordem nesta complexidade. Escolheu para isso' dividir os múltiplos graus em três escalões. porgu': três? ão hâ tradição, nem c.os.tum~m autoridade JIue impopha a trjpartição. «Porque - diz Loyseau - a ';;ois -;::rf~i;;; divisão é aq~eT~ qu-;'''Se-vuifica 13 entre as três espectes». ~ ..mais perfeita: é disso bem que se trata, na verdade. De perfeição. De facto, o importante é determinar, entre Io emaranhado, entre a desordem do universo sublunar, quais os eixos .de uma construção harmoniosa e racional que pareça corresponder aos desígnios do Criador. Sem dúvida: se a triplicidade dos estados ou ordens gerais constitui um fundamento inabalável sobre o qual a monarquia do Antigo Regime resolveu apoiar-se, é porque o encaixe das estruturas ternárias onde se inserem as relações sociais está ele próprio inserido em estrutúrasgíobaís, as' do universo inteiro, v:isível e invisível. Isto afirma Loyseau num prév:io desenrolar, prólogo qUe' não deve ler-se apenas corno prova de bravura, porque ele é essencial. Justificativo. «Deve haver ordem em todas as coisas, seja na direcção das conve- niências sociais, seja nas próprias conveniências)} .. Para que cada «coisa» se acornode no seu luggr e para que todas elas sejam dirigidas. Conside- re;;os a hierãrqülad~s criaturas e os seus três estãdios, Em baixo estão os seres inanimados, ev:identemente classificados segundo o seu grau de perfeição-:-boillinando tudo. acham-se as «inteligências celestes», os anjos, bem o 'sabemos ordenados segundo uma ordem imutável. No meio, ficam os animais, que Deus submeteu aos homens. Quanto a estes - são eles o objecto do Tratado -. porque têm a liberdade de escolher entre o bem e o mal, vivem em menor estabilidade; no entanto, não podem' subsistir sem ordem; por isso há que governá-Ios. É esta a ideia-mestra, a ideia de uma «direcção» e, consequentemente, de uma necessária sub- missão. Uns submetem-se a outros ..Estes últimos devem obedecer. Loyseau serve-se aqui de uma comparação militar. Fala das «ordens» que se transmitem do regimento à companhia, da companhia ao esquadrão e que importa sejam executadas sem hesitação nem comentários. A disci- plina faz a força dos exércitos, faz também a força do Estado, faz a solidez do mundo. Qra ~J!Lina exige a _desi~dade. «Não oodemos vivi' (Qd{)_Le.m igualdade de condIções, an(;s" é TUceSSQdQ..lluJ:...J;{[l.Lco.mJJ'l4...{l!]_L!!.!...!!Uf ~os obedeçam. Os que comandam têm várias ordens, categorias e graus». A ordem vem de cima. Propaga-se por via hierárquica. A sobreposição dos graus garante-lhe a expansão. l<OS senhores soberanos comandam todos os indivíduos do seu Estado, dando ordens aos superiores, os supe- riores aos intermédios e estes aos pequenos» (conforme vemos, a hierar- quia estabelece-se por si mesma, entre os agentes do poder soberano, sob a exclusiva autoridade deste) e os pequenos ao povo. E o povo a todos obedece (neste ponto, devemos distinguir, muito precisamente, a linha da autêntica partilha: entre os mais «pequenos» dos que comandam e o povo, que todo ele deve obedecer, mudo; entre os graduados e a tropa; entre o aparelho de Estado e os - bons ou maus - súbditos), divide-se ainda em diversas ordens e categorias, para que cada um tenha superiores e este dêem conta da sua ordem aos magistrados e os magistrados aos \ ~ senhores soberanos. Assim, por meio destas divisões e subdivisôes multi- plicadas, se Jaz das diversas ordens uma ordem geral (e eis a in.f1exão que conduz às três funções) e de vários estados um Estado bem di~igido. onde existe perfeita harmonia e consonância e uma correspondência de relaçõ.~s do mais baixo ao mais alto, de forma a que, enfim, por meio da ordem, uma ordem Inumerável culTiilTiena-WiTilãif;;:-'- ------------ Segundo esta teona, <L9.Ldelll.assent.a na pluralidade das ordens, num encadeamento de relações binárias, alguém dando ordens a que_m_eis execute ou as transmita. -A'es'ia ãflrma,çã.o .inicia! vem juntar-se uma outra, menõs evidente:" a de' que esta cadeia tende irresistivelmente pua a !~r.:g~- ridade e que nos seus muitos 'dóS-se imbiúi.câiií-as' três «ordens», quer dizer as três funções. Porquê? Como? A falar verdade, de forma miste- riosa ou, pelo menos, de .fóiIDã-Ínexplicada. Inexplicável? Nesta arti- culação de raciocínio abre-se uma lacuna. Loyseau, tão desejoso de demonstração, não procura demonstrar a necessidade de tal imbrícação. Limita-se a verificar. Segundo afirma, uns dedicam-se especialmente a tal ~ OfíciO,outros a tal outro e aqueloutros a outro ainda. A trifuncionalidade -; vem por si mesma. Está na ordem das coisas. Contudo, Loyseau sente perfeitamente que precisaria escorar num argumento suplementar o postulado sobre que se constrói todo o Tratado. Em conclusão do prólogo, acrescenta ele, pois, um texto latino, tirado do Decreto de Graciano, o último cânone da octogésima nona: distinção. Na altura em que Loyseau escreve, nem ele supõe - ou pelo menos não parece supor - que este texto tem já mais de mil anos. Trata-se do preâmbulo de uma carta dirigida, em Agosto de 595, pelo papa Gre- gório, o Grande, aos bispos do reino de Chilperico, convidando-os a reconhecer a primazia do bispo de Arles em matéria de disciplina eclesiástica ('). «A Providência instituiu graus (gradus) diversos e ordens ~ ~ines) distin:QS, para que ,se os-;;;j;:ior~s- (;;;-inor~~ '(eii~rii0:!ii!ém Tes.- 0!...1I0 (reverentla) aos superiores (~t;.ore~) e._sempre _os l~~rrores tsu: ficarem com amor (dilectio) 05 inferiores, se teolizs. a verdadeira con- órdia (concordia) e conjunção (contextio: a palavra evoca, muito con- cretamente, um tecido, uma trama). a partir da diversidade. De qualquer maneira, a comunidade (universitas) 000 poderia em verdade subsistir, se a ordem global (magnus ordo) da disparidade (differentia) não ti pre- servasse. Que a criação não pode governar-se em igualdade é <O que nos' demonstra o exemplo das milícias celestes: há anjos t arcanjos que, manifestamente, não são iguais, diferindo uns dos outros pelo poder (potes-tas) e pela ordem (ordo). Tudo reside nisto, Não se trata cert3mente de uma explicação de trifuncionalidáde. ~as é, pelo menos, a sua justifica- ção. Porque há uma relação de hornologia entre o céu e a terra; as dis- posições da sociedade humana refleêtem necessãriame~~s de ~a socTê- (') Ep. 54, PL 77, 785-87. 15 No início de um ensaio sobre o modelo trifuqçjswa~ é natural citar o Tratado das Ordens. Ficaremos màíssUril[érodidos por encontrarmos aí a afirmação seguinte: «Há três caminhos apenas para os jovens varões: o Ao padre, o do caf!lJZQlJi.s3_0JOJ..oú1g@... O estado religioso, porque engloba já, em grau mais elevado e mais puro, o somatôrio das virtudes do soldado ... O trabalho da terra, porque ° homem, em contacto perma- nente com â nalurera e ° seu Criador, 'adquire as virtudes de firmeza, de paciência e de perseverança no esforço que o COMutem. muito natu- ralmente, ao heroismo necessário no campo de batalha» Três «estados» ll ceis a palavra), três funções (as mesmás: servir a Deus, defender o Estado 1\ pelas armas, tirar da terra a alimentação) e que estão igualmente hierar- quizadas. A formulação não é' exactàmente idêntica, Façamos uma dis- tinção: aqueles a quem Loyseau chama «uns e outros» 5%0 aqui definidos I 'orno «homens», porém entendamos bem: trata-se de adultos maChOS,)\ arque o feminino não é abran 'do por tais classificaçÕ9 - e duas dife- en as. Não há aqui «ordens», «vias», «caminhos» que sejam escolhidos, vocações, ainda que estas constituam na verdade graus, pois o indivíduo poderia, deveria sucessivamente meter-se na terceira via, depois na se' gunda e por fim na primeira; e assumindo, lentamente e durante a sua existência, as três missões, poderia «elevar-se progressivamente da terra para o céu, da «natureza» para o seu «Criador». Graus pois de uma perfeição, de uma purificação progressivas. Escala de virtudes, este racio- I cínio é menos politico do ue moral; na verdade, o que ele propõe é l : ma ascese. Por outro lado, estes três «caminhos» não são os únicosj i Simplesmente, são cs..bcns. :Lal raciocígi-º--...ID,anigueista, n~J-ª-doslI~s. Porque os condena. Toda uma parte do social é por ele amal- diçoada, rejeitada, aniquilada. Proclama ele que só o padre, o guerreiro ~o.-9.!TI..P:Qnêsse não' de'sviàm(iobõrnCan~ho,-=:So eles respo'!!~e~-..a-º_ apelo de Deus. E desta maneira se estabelece o acordo estreito entre ã ahrmaçao de Loyseau e esta, muito menos antiga, que podemos encon- trar numa obra editada em Paris, em 1951: «O nosso bom mister de soldado, seguido de uma tentativa de retrato moral do Chefe»: da autoria do senhor de Torquat. dade mais perfeita; reproduzem imperfeitamente as hierarquias, as desi- \ gualdades que mantém ordenada a sociedade dos anj-os. * Ora há duas frases latinas, eco uma da outra, que nos dão uma imagem muito semelhante da sociedade perfeita. Duas frases que pode- mos traduzir assim: 1) «Tripla é pois a casa de Deus que se crê una: em baixo, uns re;.am Corant), outros combatem (pu[!!ant), outros f:!inda t.-a~.J..li!.t_o.: rant); os três grupos estão juntos e não suportam ser sefK1rados;de [orm!J 16 que sobre a função (officium) de um repousam os trabalhos o ra dos oUlros OIS, todos por sua Ve- enlreajudando-se.») 2) «Demonstrou que, desde a origem, o genero humano se dividiu em três: as gentes de oração (oratoribus), os agricuirores (agricultoribus) ~ as gentes de guerra (pugnatoribas); fornece evidente prova.JÍe....que...cadCLUl1l é o objecto, por parle dos oUlros dois, de um recíproco cuidado», Três funções pois, todas elas semelhantemen e conjugadas, Desta vez; a proclamação vem do fundo dos tempos. Foi formulada nos anos vinte do século XI por Adalberão, bispo de Laon, e por Gerardo, bispo de Cambrai, seiscentos anos antes de Loyseau e novecentos anos antes do senhor dê Torquat. * \ Ao CO!lJlli!.GU.-.CS1~S Q_Jll.eJt.Jl1.thlJ_CLé mostrar a l'ermanência, na Fran a ante um milênio, de uma imagem da ordem soei t:.' \A figura triangular sobre a qual, DO espírito des- bispas do- ano miJ se cónstruiu- o sonho- de uma sociedade una e trina como a divindade que a criou e a julgará, no seiõ da qual a tro<:3.de serviços mútuos q~e leva à unanimidade a diversidade das acções humanas, não difere na realidade da fIgura tnangular que, no reinado de Henrique IV, serviu para mostrar simbolicamente que os primeiros progressos das ciências humanas não tardariam a pôr em causa a teoria da sujeição do povo ao jugo da monarquia absoluta; e é através desta mesma figura triangular que, no nosso tempo, em situações certamente esclerosadas mas ainda não totalmente mortas, persiste ainda a nostalgia de urna humanidade regenerada, expurgada da dupla purulência, vermelha e branca, que a cidade segrega, liberta enfim, simultaneamente, do capitalismo e da classe operária, Trinta, quarenta gerações sucessivas imaginaram a perfeição social scb ti forma da trifuncionalidade. Esta representação mental resis- tiu a todas as pressões da história, É urna estrutura. Estrutura imbricada numa outra~ maís-õrõrúUJa-:- mais arnRla domi- nante: o sistema igualmente trifuncional que os trabalhos de Georges Dumézil admiravelmente situaram nqs.-illodos_<i~nsarnento dos povos ~cope.us, Entre as três funções presentes em tantos textos reco- I~ desde o Indo atéi Islãiidiã e à Irlanda, a primeira enun-" ciando, em nome do céu, a regra, a lei, aquilo que promove a ordem; 'J a segunda, brutal, veemente, forçando a obedecer e, finalmente a terceira. de fecundidade, de saúde, de abundância, de prazer. que conduz à reali- zação dos «exercícios da paz» de que fala Charles Loyseau. E por outro > lado é evidente a relação entre as três «ordens. desse mesmo Loyseau, os três «caminhos» do senhor de Torquat, os padres, os guerreiros e os camponeses dos bispos de Cambrai e de Laon. De uma tal evidência que de nada serve fazer suposições, a não ser para melhor delimitar a investi- gação, cujos resultados estão expostos neste livro. 17 ---- ---- ..•. Na confluência do pensamento e da linguagem, estreitamente ligadas às estruturas de urna linguagem (digo bem: de uma linguagem, porque foram os linguistas que descobriram, no seio de um discurso escrito, o triângulo das funções, e devemos reconhecer não ser fácil detectar seme- lhante ternaridade entre os modos de expressão simbólica que não fazem apelo às palavras) há uma forma. uma maneira de pensar, de falar o !L.- \ mundo, uma certa forma de dizer a acção do homem no mundo, e isso . bem a t . unclOna a e de ue nos-fala Georaes Dumézil: três conste- açoes e virtu' es e que sao o -;:,s -~s ~e-u;~;-e os heróis. Este uterisílio de classificação entra muito naturalmente em uso quando se trata de celebrar tal chefe militar, tal soberano, tal amante, não já por meio dos ritos mas pelo panegírico:' É por este meio indirecto que o modelo trifun-[ I'cional se transfere vulgarmente do céu para a terra do sonho ara o'vivido: serve para organizar o elogio de um indivíduo; ~eustraçosabundam em mUltas bio rafias, reais ou fictícias. Em contrapartida,é perfeitamente excepcional que tal esquema seja explicitamente projec- tado sobre o corpo social. A «i~eo\ogia tripartida», de que Georges DUIDê..,\ zil sempre falou como sendo um <<<ideale, ao mesmo tempo, um meio Oe analisar, de interpretar as fo~ças que garantem o curso do mundo e a vida dos homens» C'), gms.titui a estrutura de UIJLsiS~lll-ª--QLY.a1QL~ é abertamente aplicada nas províncias do mito, da epopéia ou da bajulação; mas permanece habitualmente latente, informulada, e só muito raramente deriva para uma proclama São d9.-Qu.s:_ci.~y'eri~_ sociedade, a ordem, quer dizer, o poder. Ora são as proclamações deste gênero que todas as frases que citei vêm apoiar. Nessas frases, a trifunciona- !idade serve de moldura à divisão ideal dos homens. Reforç-:!ãrticulações ( " Dõiinatlva;'- imperãtivãs;q ueapelam- para--ã--acçáo, a--flin-detrã"nsfü-r-arem, aerestaurãrem-c;~- eJiÚo -tTa1iqlJiliz~~re;n,~ju·siificã~em.-A--irlfun- iona ldaae-ae-qtie-raTOestá ao serviço de UIDa ideologia, de uma « or- ação discursiva polêmica, B!:!!.ças à -~LJ:l!P~_~0ão_~cura.-.I~-ªJÍ,?,!-X m va or através do exercício de um poder sobre a sociedade.» (') Eis, muito precisamente, em que consiste o problema: que, entre outras imagens simples, igualmente operatórias, se tenha escolhido a imagem das três funções. «O espírito humano e~coritinuamente entre -ãssuasrlquez~lãtentes_ Porquê? Como?» A interrogação é o próprio Georges Dumézil quem a formula ('), Como historiador, alar- gá-la-ei um pouco, fazendo mais estas duas perguntas: Onde? E quando? (') Mvthes et épopées, vcl, I, Paris, 1968, p. 15. (') G. Baechler: Qu'est-ce que l'idéologie? Paris, 1976. (') Les dieux souverains des lndo-Européens, Paris, 1977, p. 210. 18 * Evito a primeira, limitando o campo da investigação. Restringi esta à região onde se enunciaram as diversas afirmações que acabo de citar: a França, limitando-me até mais estreitamente à Franca do Norte. cuia configuração política. social e cultural permaneceu por muito tem~ dis- tinta da confIguraçao das regiões situadas a sul do Poitou, do .Berri e da Borgonha. Na verdade, parece-me que se deve: por quéstão de rnétodõ, dtrlglraobservação dos sistemas ideológicos e, mais particularmente, se procuramos datar as transformações que ai se deram, para. o seio de uma formação cultural e social homogênea, Não sairei pois, tanto quanto possível, 'dessa área. Poderá parecer exígua. Notemos, porém, que é privilegiada: uma província de particular fecundidade literária e onde a monarquia franca tomou raizes. Ora 'a forma, a maneira de classilicar que escolhi para estudar a primeira história, revelou-se-nos, ante" de tudo, através da literatura; está, por outro lado, estreitamente ligada ao conceito de soberania. Resta o problema propriamente hístórico ro jía cronologia, Assim circunscrito o es~o, tentei recolher e datar todos os ·~estígios de uÍÍÍa ideologia fundada na tnfunclOnahdade social. Q~ vestígios escritos são o nosso único material, E passavelmente defeituoso. Mal nos afastamos das proximidades do presente, verificamos que urna imensa parte do que se escreveu se perdeu irremediavelmente: perdura o que provém quase exclusivamente de uma escrita solene. Oficial. O historiador nunca inter- 1 \ ( roga senão despojos; e estes raros despojos provêm mais ou menos, V I quase na generalidade. de monumentos constrllÍdos pelo oder;!!!42 \ o que é novo na VI a, tudo o que é popa ar, lhe esc~; só ~~U~i:..52.s_JtOmel}s_~tlveram Das mãos o aparelho a que Loyseau chama Estado. Por isso, e porque se trata de cronologia, não nos esque- çamos que as raras datas que nos é dado estabelecer (por vezes com muita dificuldade) apenas situam emergências, momentos em que deter- minada representação mental acede aos níveis mais altos da expressão escrita e, sobretudo, que as emergências, CU}OS traços fortuitamente se conservaram, não são necessariamente as mais antigas. Por aqui se vê como é ampla a margem de incerteza. Pelo menos, posso à partida apoiar-me num facto que parece bem garantido: ~ França do Norte,_n~nhum~xto e.!.idenc.@_uma--y!~o tri- funcional da sociedade antes daqueles que nos são dados ~~~~.C?.!1Eeito~ de Adalberão de Laon e deGe~ar:.çlo_dê-=-cãinbraCSê-md~vida: o próprio Georges Dumézil, e após ele Jean Batany, Jacques Le Goff, Oaude Carozzi e outros mais, procuraram com muito cuidado. Em vão. A granJ;!~. quantidade de escritos - e de escritos teóricos ~_que o renascimento caro- -língiõ nos dei-;;~~ -;;;d; ;;-os Qre~ece. As duas frases latinauULa1r:i!s .C!tei parecem ter surgido do silêncio. Em todo o caso é com elas q~ começa, nessa e uena região do mundo, a história de uma representaç~~/7 19 trifuncional da sociedade. Mas se se estabeleceu a data da proclamação original, é certo que a cronologia da recepção, da adesãor da difusão do modelo permanece por construir. É impreciso tudo o que se disse da tri- funcionalidade aplicada à sociedaCk- medieval. Escutemos, por exemplo, Marc Bloch: «Uma teonu então muito difundida representava a cornu- nÍdade hu~ana como que dividida em três ordens» ('). «Então»: quando"? Durante a «primeira idade feudal», isto é, segundo o grande medievalista, nos séculos que precedem os meados do século XI? «Muito difundida»: que quer dizer? Ouçamos Jacques Le Goff', o primeiro que soube pôr correcta- mente os termos do problema: «P~)Lyolta do ano mil, a literatura ociden- tal apresenta a sociedade cristã s;egundo um esquema novo ...9.uelóg.2., conhece um Y.lVO êXltO.})(4) Que quer dizer «por volta de»? «novo»? «Ioga»? «vivo»? E temos a certeza? Arrastando o inquérito ao longo dos séculos Xl e XII, prolongando-o até ao momento em que se multiplicam as alusões às três funções sociais, às três ordens, momento em que se garante que a «teoria» é «muito difundida», que o «esquema conhece um vivo êxito», eu gostaria de sair, tanto quanto possível, do impreciso, do indeciso. Gostaria sobretudo de responder à pergl!nta de George.Dumézil; PQr- uê e como, esta escolha entre as estruturas latentes? Para isso, creio ser preciso situar a interrogação com c areza. A figura trifuncional. já o afir- mei, é uma forma. Podemos descobrir-lhe õS trãços em muitos textos. "Traços que nao insistirei em descobrir na sua totalidade. Para que a_ÍI!.1?.:: gem trifuncional pertença a esta investigação, a este livro de que é per- sonagem centnll, é preciso que ela funcione, dentro de um sjst~ma idcoló- gicQ.. c~o uma das suas engrenagens principais. É o que sucede no dis- CilrSo de Loyseau. Se pretendemos agarrar o porquê e o como, é pois essencial não isolarmos do seu contexto - o que quase sempre se fez- as frases onde se formula o tema das três funções sociais. Estas frases devem ser deixadas no seu lugar exacto, no conjunto em que se articulam. ~orta reconstituir um tal conjunto na sua globalidade, examinar erru ue circunstâncias, face a que problemas, a que afirma ões contraditõrias,\\ o sistema ideológico em que a tr unclOnalidade se acha encaixada foi constnúdo para s~rHproclam;ct;, estéóiiíao;=-erg1!idocomo um estandarte .. · Porque, se é justo contestar que o esquema trifuncíórial tenna SIdo «cons- i truído» C), se escapa à história corno estrutura latente, os sistemas de que este esquema representa um dos membros pertencem incontestavelmente, esses sim, à história. Formam-se e desfazem-se. E c observando de perto C) La société [éodale, 2.! edição, Paris, 1966, p. 406. (e) La civilisation de l'Occideru médiéval, Paris, 1964, p. 319. (') D. Dubuisson, «L'Irlande et Ia théorie médiévale des trais ordres», Revue de l'Histoire des Réligions; 1975, p. 61, n." 3, está no direito de corrigir-me e afirmar que a teoria das três ordens não foi construída, mas apenas, como diz, «actualizada». 20 '"" ,-"",S:- ~ '\-' "'" Q ~ ---=< < '~ \ a sua génese e a sua deslocação que podemos ter qualquer possibilidade de descobrir «porquê» e «corno» a imagem tripartida ftmcioual foi es- colhida em tal momento e em tal lugar. • Assim localizada, a interrogação remete para outra categoria de problemas. O modelo das três funções sociais, esse postulado, essa evi- dência ~uja existência jamais se provOu e -q~e so se evoca nas suas li ções com uma cosmo ogia, unia teo gia, e claro está, com urna moral que serve de base a uma dessas «formações discursivas polémicas» que I são as ideolo ias colocando is ao serviço de um poder uma imagem .:- simples, ideal. abstracta, da organi.zJ.çãp sociaI- que J~aç.ões rnantém . e~se modelo _com o concreto das _re!açÇies.sociaisl- A ideologia, sabe- rno-lo bem, não é reflexo do vjvíqp, mas um projecto de agir sobre ele. P3.r:l que a acção tenha qU3.lquer po;sibilidade de eficiéra. Ll1rec~ não seja demasiado grande a disparidade entre a representação imaginá-. ria e as «realidades» da vida. Mas a partir daj,2,e o que se diz e O que 'se escreve é entendido novas atitudes cristalizam e vêm mooificar a forma pela qual os homens compreendem a sociedade de que fazem parte. Obser- '~'ar o sistema em que se acha mcluÚío o esquema das três «ordens», no momento em que ele se revela no reino da França, tentar segui-lo entre 1025 e 1225, nos êxitos e nos fracassos, é defrontar uma das questões centrais que hoje se põem à ciência do homem --ª. ciência das relações entre o material e o mental na evolução das sociedades. E defrontá-Ia em con'dlçõe~ que não são muito más. Certamente que escolher para «terreno» esta época recuada é, repito, condenarmo-nos a só agarrar farrapos de informações, a só escutar intelectuais, separados uns dos outros mais ainda do que o estão os intelectuais de hoje, pelas singularidades do seu vocabulário e da sua maneira de pensar. Mas pelo menos, estas fontes documentais são relativamente limitadas. Não é impossíve! abarcá-Ias com um só olhar. E depois, trata-se de um tempo muito recuado, o que nos liberta: já não estamos implicados; nas con- tradições do feudalismo, para que tenl13mos dificuldade em desmistificar a ideologia que se esforçou por redUZI-Ias ou ne~~-las_ A dificuldade U~CQm.Q confrontar o iIT)aginário com o con- - ~ Como dissociar o estudõ' <rÓbJfCtlVOl) ~~'portamtútõ-ãOs-=n(f-' rnens do dos sistemas simbólicos que lhes ditaram a conduta e a justifi- cararn a seus olhos (')? Estará na mão do historiador despojar inteira- mente as sociedades antigas do seu revestimento ideal? Poderá vê-Ias de uma maneira diferente daquela, corno elas próprias se viam, se sonhavam? Interroguemo-nos, medievalistas. Se a «sociedade feudal» DOS p-,arece ~- tituída por três ordens, não seni, anles do mais, porque as duas frases (') W. H. Sewell. «États, Corps et Ordres: Some lotes on the Social VocabuIary of the French Old Regimes. Sozialgeschichte Heute (Fest- schrijt H. Rosenberg), Gôttingen, 1974_ 2/ que antes citei nos obcecam, após haverem obcecado os I1l0SSOS mestres? Não estaremos nÓs próprios dominados por essa i~ .Eresunção de pretender desmistificar: Em qualquer caso. ela foi assaz ~erosa, há que confessá-Ia, para DOS levar - e digo-o, porque o fui também - para certos equívocos, para envelhecermos, por exemplo de século e meio, a constituição da cavalaria em «ordem», Nem que seja SÓ por isto, pelo papel que desempenhou no desenvolvimento da investi- gação histórica, o modelo trifuncional merece ser examinado de perto, confrontado com tudo o que podemos ver do mundo que progressivamente o fez seu. É tempo de chegarmos às palavras que, pela primeira vez, entre as «fontes» provenientes da França do Norte, claramente enunciaram este modelo. 22
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