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As três ordens ou o imaginário do feudalismo

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~ l U ~-t/(U Lv?
f,-,,-QCLL- ~ '1\.l,C
.r-
I')} \ C(_~ 1,'V(.(~~C
«Uns dedicam-se particularmente ao serviço de Deus; outros garan-
tem pelas armas a defesa do Estado; outros ainda a alimentá-Ia e a
mantê-Ia pelos exercicios da paz: São estas as três ordens ou estados gerais
da França: o Clero, a Nobreza e o Terceiro Estado».
Esta é uma das afirmações com que abre o Tratado das Ordens e
Simples Dignidades que Charles Loyseau, parisiense, publicou em 1610
e que, ao ser conhecido, logo foi considerado muito útil, sendo sucessi-
vamente editado durante o século XV1!. Por estas palavras se definia
a ordem social- quer dizer a ordem política -, o mesmo é dizer a ordem
simplesmente. Tres «estados», três C.1.tegoriasestabelecidas. estáveis. três :
divisões hierarquizadas. Semelhante a escola, semelhante à sociedade-
-modelo onde a criança aprende a estar sentada, sossegada, a manter-se
no seu lugar, a obedecer, a classificar-se. A classe' os grandes os médios,
~quenos: o primeiro, o segundo e o terceiro estados. Ou, se prefe-
rirmos, as trés «ordens» - esta é visivelmente a palavra preferida por
Loyseau. A classe mais elevada voltada ar o céu as duas outras viradas
para a terra, mas todas ela sempenhadas em manter o Est o esta vez
com maIúscula), procurando a ordem média a segurança, a inferior
alimentando as restantes. Trés funções 'pois-:complementares. Solida~l(!.9--ªde
triangular. Triãiigulo: uma base, um vértice e, sobretudo, essa ternaridade .
que, misteriosamente, procura o sentido do .equilíbrio.
Porque, quando Loyseau, na página 53~da--êdÍçKõ de 1636. fala da
nobreza, afirma claramente que se trata de um corpo múltiplo em que
se sobrepõem graus, estratos, que tudo é questão de casta, de direito
adquirido, ainda que haja sempre quem lute para ser o primeiro a
franquear a soleira da porta. a sentar-se. a pôr o chapéu. Loyseau
pretende também pôr ordem nesta complexidade. Escolheu para isso'
dividir os múltiplos graus em três escalões. porgu': três? ão hâ
tradição, nem c.os.tum~m autoridade JIue impopha a trjpartição.
«Porque - diz Loyseau - a ';;ois -;::rf~i;;; divisão é aq~eT~ qu-;'''Se-vuifica
13
entre as três espectes». ~ ..mais perfeita: é disso bem que se trata, na
verdade. De perfeição. De facto, o importante é determinar, entre Io
emaranhado, entre a desordem do universo sublunar, quais os eixos
.de uma construção harmoniosa e racional que pareça corresponder aos
desígnios do Criador.
Sem dúvida: se a triplicidade dos estados ou ordens gerais constitui
um fundamento inabalável sobre o qual a monarquia do Antigo Regime
resolveu apoiar-se, é porque o encaixe das estruturas ternárias onde se
inserem as relações sociais está ele próprio inserido em estrutúrasgíobaís,
as' do universo inteiro, v:isível e invisível. Isto afirma Loyseau num prév:io
desenrolar, prólogo qUe' não deve ler-se apenas corno prova de bravura,
porque ele é essencial. Justificativo.
«Deve haver ordem em todas as coisas, seja na direcção das conve-
niências sociais, seja nas próprias conveniências)} .. Para que cada «coisa»
se acornode no seu luggr e para que todas elas sejam dirigidas. Conside-
re;;os a hierãrqülad~s criaturas e os seus três estãdios, Em baixo estão
os seres inanimados, ev:identemente classificados segundo o seu grau de
perfeição-:-boillinando tudo. acham-se as «inteligências celestes», os
anjos, bem o 'sabemos ordenados segundo uma ordem imutável. No meio,
ficam os animais, que Deus submeteu aos homens. Quanto a estes - são
eles o objecto do Tratado -. porque têm a liberdade de escolher entre
o bem e o mal, vivem em menor estabilidade; no entanto, não podem'
subsistir sem ordem; por isso há que governá-Ios. É esta a ideia-mestra,
a ideia de uma «direcção» e, consequentemente, de uma necessária sub-
missão. Uns submetem-se a outros ..Estes últimos devem obedecer. Loyseau
serve-se aqui de uma comparação militar. Fala das «ordens» que se
transmitem do regimento à companhia, da companhia ao esquadrão e
que importa sejam executadas sem hesitação nem comentários. A disci-
plina faz a força dos exércitos, faz também a força do Estado, faz a
solidez do mundo.
Qra ~J!Lina exige a _desi~dade. «Não oodemos vivi' (Qd{)_Le.m
igualdade de condIções, an(;s" é TUceSSQdQ..lluJ:...J;{[l.Lco.mJJ'l4...{l!]_L!!.!...!!Uf ~os
obedeçam. Os que comandam têm várias ordens, categorias e graus».
A ordem vem de cima. Propaga-se por via hierárquica. A sobreposição
dos graus garante-lhe a expansão. l<OS senhores soberanos comandam
todos os indivíduos do seu Estado, dando ordens aos superiores, os supe-
riores aos intermédios e estes aos pequenos» (conforme vemos, a hierar-
quia estabelece-se por si mesma, entre os agentes do poder soberano, sob
a exclusiva autoridade deste) e os pequenos ao povo. E o povo a todos
obedece (neste ponto, devemos distinguir, muito precisamente, a linha
da autêntica partilha: entre os mais «pequenos» dos que comandam e
o povo, que todo ele deve obedecer, mudo; entre os graduados e a tropa;
entre o aparelho de Estado e os - bons ou maus - súbditos), divide-se
ainda em diversas ordens e categorias, para que cada um tenha superiores
e este dêem conta da sua ordem aos magistrados e os magistrados aos
\ ~
senhores soberanos. Assim, por meio destas divisões e subdivisôes multi-
plicadas, se Jaz das diversas ordens uma ordem geral (e eis a in.f1exão que
conduz às três funções) e de vários estados um Estado bem di~igido. onde
existe perfeita harmonia e consonância e uma correspondência de relaçõ.~s
do mais baixo ao mais alto, de forma a que, enfim, por meio da ordem,
uma ordem Inumerável culTiilTiena-WiTilãif;;:-'- ------------
Segundo esta teona, <L9.Ldelll.assent.a na pluralidade das ordens, num
encadeamento de relações binárias, alguém dando ordens a que_m_eis
execute ou as transmita. -A'es'ia ãflrma,çã.o .inicia! vem juntar-se uma outra,
menõs evidente:" a de' que esta cadeia tende irresistivelmente pua a !~r.:g~-
ridade e que nos seus muitos 'dóS-se imbiúi.câiií-as' três «ordens», quer
dizer as três funções. Porquê? Como? A falar verdade, de forma miste-
riosa ou, pelo menos, de .fóiIDã-Ínexplicada. Inexplicável? Nesta arti-
culação de raciocínio abre-se uma lacuna. Loyseau, tão desejoso de
demonstração, não procura demonstrar a necessidade de tal imbrícação.
Limita-se a verificar. Segundo afirma, uns dedicam-se especialmente a tal
~
OfíciO,outros a tal outro e aqueloutros a outro ainda. A trifuncionalidade -;
vem por si mesma. Está na ordem das coisas.
Contudo, Loyseau sente perfeitamente que precisaria escorar num
argumento suplementar o postulado sobre que se constrói todo o Tratado.
Em conclusão do prólogo, acrescenta ele, pois, um texto latino, tirado
do Decreto de Graciano, o último cânone da octogésima nona: distinção.
Na altura em que Loyseau escreve, nem ele supõe - ou pelo menos não
parece supor - que este texto tem já mais de mil anos. Trata-se do
preâmbulo de uma carta dirigida, em Agosto de 595, pelo papa Gre-
gório, o Grande, aos bispos do reino de Chilperico, convidando-os
a reconhecer a primazia do bispo de Arles em matéria de disciplina
eclesiástica ('). «A Providência instituiu graus (gradus) diversos e ordens
~
~ines) distin:QS, para que ,se os-;;;j;:ior~s- (;;;-inor~~ '(eii~rii0:!ii!ém Tes.-
0!...1I0 (reverentla) aos superiores (~t;.ore~) e._sempre _os l~~rrores tsu:
ficarem com amor (dilectio) 05 inferiores, se teolizs. a verdadeira con-
órdia (concordia) e conjunção (contextio: a palavra evoca, muito con-
cretamente, um tecido, uma trama). a partir da diversidade. De qualquer
maneira, a comunidade (universitas) 000 poderia em verdade subsistir,
se a ordem global (magnus ordo) da disparidade (differentia) não ti pre-
servasse. Que a criação não pode governar-se em igualdade é <O que nos'
demonstra o exemplo das milícias celestes: há anjos t arcanjos que,
manifestamente, não são iguais, diferindo uns dos outros pelo poder (potes-tas) e pela ordem (ordo). Tudo reside nisto, Não se trata cert3mente de
uma explicação de trifuncionalidáde. ~as é, pelo menos, a sua justifica-
ção. Porque há uma relação de hornologia entre o céu e a terra; as dis-
posições da sociedade humana refleêtem necessãriame~~s de ~a socTê-
(') Ep. 54, PL 77, 785-87.
15
No início de um ensaio sobre o modelo trifuqçjswa~ é natural citar
o Tratado das Ordens. Ficaremos màíssUril[érodidos por encontrarmos
aí a afirmação seguinte: «Há três caminhos apenas para os jovens varões:
o Ao padre, o do caf!lJZQlJi.s3_0JOJ..oú1g@... O estado religioso, porque
engloba já, em grau mais elevado e mais puro, o somatôrio das virtudes
do soldado ... O trabalho da terra, porque ° homem, em contacto perma-
nente com â nalurera e ° seu Criador, 'adquire as virtudes de firmeza,
de paciência e de perseverança no esforço que o COMutem. muito natu-
ralmente, ao heroismo necessário no campo de batalha» Três «estados»
ll
ceis a palavra), três funções (as mesmás: servir a Deus, defender o Estado 1\
pelas armas, tirar da terra a alimentação) e que estão igualmente hierar-
quizadas. A formulação não é' exactàmente idêntica, Façamos uma dis-
tinção: aqueles a quem Loyseau chama «uns e outros» 5%0 aqui definidos
I 'orno «homens», porém entendamos bem: trata-se de adultos maChOS,)\
arque o feminino não é abran 'do por tais classificaçÕ9 - e duas dife-
en as. Não há aqui «ordens», «vias», «caminhos» que sejam escolhidos,
vocações, ainda que estas constituam na verdade graus, pois o indivíduo
poderia, deveria sucessivamente meter-se na terceira via, depois na se'
gunda e por fim na primeira; e assumindo, lentamente e durante a sua
existência, as três missões, poderia «elevar-se progressivamente da terra
para o céu, da «natureza» para o seu «Criador». Graus pois de uma
perfeição, de uma purificação progressivas. Escala de virtudes, este racio-
I cínio é menos politico do ue moral; na verdade, o que ele propõe é l
: ma ascese. Por outro lado, estes três «caminhos» não são os únicosj
i Simplesmente, são cs..bcns. :Lal raciocígi-º--...ID,anigueista, n~J-ª-doslI~s. Porque os condena. Toda uma parte do social é por ele amal-
diçoada, rejeitada, aniquilada. Proclama ele que só o padre, o guerreiro
~o.-9.!TI..P:Qnêsse não' de'sviàm(iobõrnCan~ho,-=:So eles respo'!!~e~-..a-º_
apelo de Deus. E desta maneira se estabelece o acordo estreito entre
ã ahrmaçao de Loyseau e esta, muito menos antiga, que podemos encon-
trar numa obra editada em Paris, em 1951: «O nosso bom mister de
soldado, seguido de uma tentativa de retrato moral do Chefe»: da autoria
do senhor de Torquat.
dade mais perfeita; reproduzem imperfeitamente as hierarquias, as desi-
\ gualdades que mantém ordenada a sociedade dos anj-os.
*
Ora há duas frases latinas, eco uma da outra, que nos dão uma
imagem muito semelhante da sociedade perfeita. Duas frases que pode-
mos traduzir assim:
1) «Tripla é pois a casa de Deus que se crê una: em baixo, uns
re;.am Corant), outros combatem (pu[!!ant), outros f:!inda t.-a~.J..li!.t_o.:
rant); os três grupos estão juntos e não suportam ser sefK1rados;de [orm!J
16
que sobre a função (officium) de um repousam os trabalhos o ra dos
oUlros OIS, todos por sua Ve- enlreajudando-se.»)
2) «Demonstrou que, desde a origem, o genero humano se dividiu
em três: as gentes de oração (oratoribus), os agricuirores (agricultoribus) ~
as gentes de guerra (pugnatoribas); fornece evidente prova.JÍe....que...cadCLUl1l
é o objecto, por parle dos oUlros dois, de um recíproco cuidado»,
Três funções pois, todas elas semelhantemen e conjugadas, Desta vez;
a proclamação vem do fundo dos tempos. Foi formulada nos anos vinte
do século XI por Adalberão, bispo de Laon, e por Gerardo, bispo de
Cambrai, seiscentos anos antes de Loyseau e novecentos anos antes do
senhor dê Torquat.
*
\
Ao CO!lJlli!.GU.-.CS1~S Q_Jll.eJt.Jl1.thlJ_CLé mostrar a l'ermanência,
na Fran a ante um milênio, de uma imagem da ordem soei t:.'
\A figura triangular sobre a qual, DO espírito des- bispas do- ano miJ
se cónstruiu- o sonho- de uma sociedade una e trina como a divindade
que a criou e a julgará, no seiõ da qual a tro<:3.de serviços mútuos q~e
leva à unanimidade a diversidade das acções humanas, não difere na
realidade da fIgura tnangular que, no reinado de Henrique IV, serviu
para mostrar simbolicamente que os primeiros progressos das ciências
humanas não tardariam a pôr em causa a teoria da sujeição do povo
ao jugo da monarquia absoluta; e é através desta mesma figura triangular
que, no nosso tempo, em situações certamente esclerosadas mas ainda
não totalmente mortas, persiste ainda a nostalgia de urna humanidade
regenerada, expurgada da dupla purulência, vermelha e branca, que a
cidade segrega, liberta enfim, simultaneamente, do capitalismo e da classe
operária, Trinta, quarenta gerações sucessivas imaginaram a perfeição
social scb ti forma da trifuncionalidade. Esta representação mental resis-
tiu a todas as pressões da história, É urna estrutura.
Estrutura imbricada numa outra~ maís-õrõrúUJa-:- mais arnRla domi-
nante: o sistema igualmente trifuncional que os trabalhos de Georges
Dumézil admiravelmente situaram nqs.-illodos_<i~nsarnento dos povos
~cope.us, Entre as três funções presentes em tantos textos reco-
I~ desde o Indo atéi Islãiidiã e à Irlanda, a primeira enun-"
ciando, em nome do céu, a regra, a lei, aquilo que promove a ordem; 'J
a segunda, brutal, veemente, forçando a obedecer e, finalmente a terceira.
de fecundidade, de saúde, de abundância, de prazer. que conduz à reali-
zação dos «exercícios da paz» de que fala Charles Loyseau. E por outro >
lado é evidente a relação entre as três «ordens. desse mesmo Loyseau,
os três «caminhos» do senhor de Torquat, os padres, os guerreiros e os
camponeses dos bispos de Cambrai e de Laon. De uma tal evidência que de
nada serve fazer suposições, a não ser para melhor delimitar a investi-
gação, cujos resultados estão expostos neste livro.
17
---- ---- ..•.
Na confluência do pensamento e da linguagem, estreitamente ligadas
às estruturas de urna linguagem (digo bem: de uma linguagem, porque
foram os linguistas que descobriram, no seio de um discurso escrito, o
triângulo das funções, e devemos reconhecer não ser fácil detectar seme-
lhante ternaridade entre os modos de expressão simbólica que não fazem
apelo às palavras) há uma forma. uma maneira de pensar, de falar o !L.-
\
mundo, uma certa forma de dizer a acção do homem no mundo, e isso
. bem a t . unclOna a e de ue nos-fala Georaes Dumézil: três conste-
açoes e virtu' es e que sao o -;:,s -~s ~e-u;~;-e os heróis. Este uterisílio
de classificação entra muito naturalmente em uso quando se trata de
celebrar tal chefe militar, tal soberano, tal amante, não já por meio dos
ritos mas pelo panegírico:' É por este meio indirecto que o modelo trifun-[
I'cional se transfere vulgarmente do céu para a terra do sonho ara o'vivido: serve para organizar o elogio de um indivíduo; ~eustraçosabundam em mUltas bio rafias, reais ou fictícias. Em contrapartida,é perfeitamente excepcional que tal esquema seja explicitamente projec-
tado sobre o corpo social. A «i~eo\ogia tripartida», de que Georges DUIDê..,\
zil sempre falou como sendo um <<<ideale, ao mesmo tempo, um meio
Oe analisar, de interpretar as fo~ças que garantem o curso do mundo e
a vida dos homens» C'), gms.titui a estrutura de UIJLsiS~lll-ª--QLY.a1QL~
é abertamente aplicada nas províncias do mito, da epopéia ou da
bajulação; mas permanece habitualmente latente, informulada, e só muito
raramente deriva para uma proclama São d9.-Qu.s:_ci.~y'eri~_ sociedade,
a ordem, quer dizer, o poder. Ora são as proclamações deste gênero
que todas as frases que citei vêm apoiar. Nessas frases, a trifunciona-
!idade serve de moldura à divisão ideal dos homens. Reforç-:!ãrticulações
(
" Dõiinatlva;'- imperãtivãs;q ueapelam- para--ã--acçáo, a--flin-detrã"nsfü-r-arem, aerestaurãrem-c;~- eJiÚo -tTa1iqlJiliz~~re;n,~ju·siificã~em.-A--irlfun-
iona ldaae-ae-qtie-raTOestá ao serviço de UIDa ideologia, de uma « or-
ação discursiva polêmica, B!:!!.ças à -~LJ:l!P~_~0ão_~cura.-.I~-ªJÍ,?,!-X
m va or através do exercício de um poder sobre a sociedade.» (')
Eis, muito precisamente, em que consiste o problema: que, entre
outras imagens simples, igualmente operatórias, se tenha escolhido a
imagem das três funções. «O espírito humano e~coritinuamente
entre -ãssuasrlquez~lãtentes_ Porquê? Como?» A interrogação é o
próprio Georges Dumézil quem a formula ('), Como historiador, alar-
gá-la-ei um pouco, fazendo mais estas duas perguntas: Onde? E quando?
(') Mvthes et épopées, vcl, I, Paris, 1968, p. 15.
(') G. Baechler: Qu'est-ce que l'idéologie? Paris, 1976.
(') Les dieux souverains des lndo-Européens, Paris, 1977, p. 210.
18
*
Evito a primeira, limitando o campo da investigação. Restringi esta
à região onde se enunciaram as diversas afirmações que acabo de citar:
a França, limitando-me até mais estreitamente à Franca do Norte. cuia
configuração política. social e cultural permaneceu por muito tem~ dis-
tinta da confIguraçao das regiões situadas a sul do Poitou, do .Berri e
da Borgonha. Na verdade, parece-me que se deve: por quéstão de rnétodõ,
dtrlglraobservação dos sistemas ideológicos e, mais particularmente,
se procuramos datar as transformações que ai se deram, para. o seio
de uma formação cultural e social homogênea, Não sairei pois, tanto
quanto possível, 'dessa área. Poderá parecer exígua. Notemos, porém, que é
privilegiada: uma província de particular fecundidade literária e onde a
monarquia franca tomou raizes. Ora 'a forma, a maneira de classilicar
que escolhi para estudar a primeira história, revelou-se-nos, ante" de
tudo, através da literatura; está, por outro lado, estreitamente ligada ao
conceito de soberania.
Resta o problema propriamente hístórico ro jía cronologia, Assim
circunscrito o es~o, tentei recolher e datar todos os ·~estígios de uÍÍÍa
ideologia fundada na tnfunclOnahdade social. Q~ vestígios escritos são
o nosso único material, E passavelmente defeituoso. Mal nos afastamos
das proximidades do presente, verificamos que urna imensa parte do que
se escreveu se perdeu irremediavelmente: perdura o que provém quase
exclusivamente de uma escrita solene. Oficial. O historiador nunca inter-
1
\
(
roga senão despojos; e estes raros despojos provêm mais ou menos, V
I
quase na generalidade. de monumentos constrllÍdos pelo oder;!!!42 \
o que é novo na VI a, tudo o que é popa ar, lhe esc~; só
~~U~i:..52.s_JtOmel}s_~tlveram Das mãos o aparelho a que Loyseau
chama Estado. Por isso, e porque se trata de cronologia, não nos esque-
çamos que as raras datas que nos é dado estabelecer (por vezes com
muita dificuldade) apenas situam emergências, momentos em que deter-
minada representação mental acede aos níveis mais altos da expressão
escrita e, sobretudo, que as emergências, CU}OS traços fortuitamente
se conservaram, não são necessariamente as mais antigas. Por aqui se
vê como é ampla a margem de incerteza.
Pelo menos, posso à partida apoiar-me num facto que parece bem
garantido: ~ França do Norte,_n~nhum~xto e.!.idenc.@_uma--y!~o tri-
funcional da sociedade antes daqueles que nos são dados ~~~~.C?.!1Eeito~
de Adalberão de Laon e deGe~ar:.çlo_dê-=-cãinbraCSê-md~vida: o próprio
Georges Dumézil, e após ele Jean Batany, Jacques Le Goff, Oaude
Carozzi e outros mais, procuraram com muito cuidado. Em vão. A granJ;!~.
quantidade de escritos - e de escritos teóricos ~_que o renascimento caro-
-língiõ nos dei-;;~~ -;;;d; ;;-os Qre~ece. As duas frases latinauULa1r:i!s .C!tei
parecem ter surgido do silêncio. Em todo o caso é com elas q~
começa, nessa e uena região do mundo, a história de uma representaç~~/7
19
trifuncional da sociedade. Mas se se estabeleceu a data da proclamação
original, é certo que a cronologia da recepção, da adesãor da difusão do
modelo permanece por construir. É impreciso tudo o que se disse da tri-
funcionalidade aplicada à sociedaCk- medieval. Escutemos, por exemplo,
Marc Bloch: «Uma teonu então muito difundida representava a cornu-
nÍdade hu~ana como que dividida em três ordens» ('). «Então»: quando"?
Durante a «primeira idade feudal», isto é, segundo o grande medievalista,
nos séculos que precedem os meados do século XI? «Muito difundida»: que
quer dizer? Ouçamos Jacques Le Goff', o primeiro que soube pôr correcta-
mente os termos do problema: «P~)Lyolta do ano mil, a literatura ociden-
tal apresenta a sociedade cristã s;egundo um esquema novo ...9.uelóg.2.,
conhece um Y.lVO êXltO.})(4) Que quer dizer «por volta de»? «novo»?
«Ioga»? «vivo»? E temos a certeza? Arrastando o inquérito ao longo dos
séculos Xl e XII, prolongando-o até ao momento em que se multiplicam
as alusões às três funções sociais, às três ordens, momento em que se
garante que a «teoria» é «muito difundida», que o «esquema conhece um
vivo êxito», eu gostaria de sair, tanto quanto possível, do impreciso, do
indeciso.
Gostaria sobretudo de responder à pergl!nta de George.Dumézil; PQr-
uê e como, esta escolha entre as estruturas latentes? Para isso, creio ser
preciso situar a interrogação com c areza. A figura trifuncional. já o afir-
mei, é uma forma. Podemos descobrir-lhe õS trãços em muitos textos.
"Traços que nao insistirei em descobrir na sua totalidade. Para que a_ÍI!.1?.::
gem trifuncional pertença a esta investigação, a este livro de que é per-
sonagem centnll, é preciso que ela funcione, dentro de um sjst~ma idcoló-
gicQ.. c~o uma das suas engrenagens principais. É o que sucede no dis-
CilrSo de Loyseau. Se pretendemos agarrar o porquê e o como, é pois
essencial não isolarmos do seu contexto - o que quase sempre se fez-
as frases onde se formula o tema das três funções sociais. Estas frases
devem ser deixadas no seu lugar exacto, no conjunto em que se articulam.
~orta reconstituir um tal conjunto na sua globalidade, examinar erru
ue circunstâncias, face a que problemas, a que afirma ões contraditõrias,\\
o sistema ideológico em que a tr unclOnalidade se acha encaixada foi
constnúdo para s~rHproclam;ct;, estéóiiíao;=-erg1!idocomo um estandarte .. ·
Porque, se é justo contestar que o esquema trifuncíórial tenna SIdo «cons- i
truído» C), se escapa à história corno estrutura latente, os sistemas de que
este esquema representa um dos membros pertencem incontestavelmente,
esses sim, à história. Formam-se e desfazem-se. E c observando de perto
C) La société [éodale, 2.! edição, Paris, 1966, p. 406.
(e) La civilisation de l'Occideru médiéval, Paris, 1964, p. 319.
(') D. Dubuisson, «L'Irlande et Ia théorie médiévale des trais ordres»,
Revue de l'Histoire des Réligions; 1975, p. 61, n." 3, está no direito
de corrigir-me e afirmar que a teoria das três ordens não foi construída,
mas apenas, como diz, «actualizada».
20
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a sua génese e a sua deslocação que podemos ter qualquer possibilidade
de descobrir «porquê» e «corno» a imagem tripartida ftmcioual foi es-
colhida em tal momento e em tal lugar. •
Assim localizada, a interrogação remete para outra categoria de
problemas. O modelo das três funções sociais, esse postulado, essa evi-
dência ~uja existência jamais se provOu e -q~e so se evoca nas suas li
ções com uma cosmo ogia, unia teo gia, e claro está, com urna moral
que serve de base a uma dessas «formações discursivas polémicas» que I
são as ideolo ias colocando is ao serviço de um poder uma imagem .:-
simples, ideal. abstracta, da organi.zJ.çãp sociaI- que J~aç.ões rnantém .
e~se modelo _com o concreto das _re!açÇies.sociaisl- A ideologia, sabe-
rno-lo bem, não é reflexo do vjvíqp, mas um projecto de agir sobre ele.
P3.r:l que a acção tenha qU3.lquer po;sibilidade de eficiéra. Ll1rec~
não seja demasiado grande a disparidade entre a representação imaginá-. ria e as «realidades» da vida. Mas a partir daj,2,e o que se diz e O que
'se escreve é entendido novas atitudes cristalizam e vêm mooificar a forma
pela qual os homens compreendem a sociedade de que fazem parte. Obser-
'~'ar o sistema em que se acha mcluÚío o esquema das três «ordens», no
momento em que ele se revela no reino da França, tentar segui-lo entre
1025 e 1225, nos êxitos e nos fracassos, é defrontar uma das questões
centrais que hoje se põem à ciência do homem --ª. ciência das relações
entre o material e o mental na evolução das sociedades.
E defrontá-Ia em con'dlçõe~ que não são muito más. Certamente que
escolher para «terreno» esta época recuada é, repito, condenarmo-nos a
só agarrar farrapos de informações, a só escutar intelectuais, separados
uns dos outros mais ainda do que o estão os intelectuais de hoje, pelas
singularidades do seu vocabulário e da sua maneira de pensar. Mas pelo
menos, estas fontes documentais são relativamente limitadas. Não é
impossíve! abarcá-Ias com um só olhar. E depois, trata-se de um tempo
muito recuado, o que nos liberta: já não estamos implicados; nas con-
tradições do feudalismo, para que tenl13mos dificuldade em desmistificar
a ideologia que se esforçou por redUZI-Ias ou ne~~-las_
A dificuldade U~CQm.Q confrontar o iIT)aginário com o con- -
~ Como dissociar o estudõ' <rÓbJfCtlVOl) ~~'portamtútõ-ãOs-=n(f-'
rnens do dos sistemas simbólicos que lhes ditaram a conduta e a justifi-
cararn a seus olhos (')? Estará na mão do historiador despojar inteira-
mente as sociedades antigas do seu revestimento ideal? Poderá vê-Ias de
uma maneira diferente daquela, corno elas próprias se viam, se sonhavam?
Interroguemo-nos, medievalistas. Se a «sociedade feudal» DOS p-,arece ~-
tituída por três ordens, não seni, anles do mais, porque as duas frases
(') W. H. Sewell. «États, Corps et Ordres: Some lotes on the Social
VocabuIary of the French Old Regimes. Sozialgeschichte Heute (Fest-
schrijt H. Rosenberg), Gôttingen, 1974_
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que antes citei nos obcecam, após haverem obcecado os I1l0SSOS mestres?
Não estaremos nÓs próprios dominados por essa i~
.Eresunção de pretender desmistificar: Em qualquer caso. ela foi assaz
~erosa, há que confessá-Ia, para DOS levar - e digo-o, porque o fui
também - para certos equívocos, para envelhecermos, por exemplo de
século e meio, a constituição da cavalaria em «ordem», Nem que seja
SÓ por isto, pelo papel que desempenhou no desenvolvimento da investi-
gação histórica, o modelo trifuncional merece ser examinado de perto,
confrontado com tudo o que podemos ver do mundo que progressivamente
o fez seu.
É tempo de chegarmos às palavras que, pela primeira vez, entre as
«fontes» provenientes da França do Norte, claramente enunciaram este
modelo.
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