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NATAL/RN AGOSTO/2007 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE MESTRADO DA PEDRA DO ROSÁRIO AO PANTANAL: ESPAÇO E URBANIZAÇÃO NO PASSO DA PÁTRIA (NATAL/RN) DALINE MARIA DE SOUZA NATAL/RN AGOSTO/2007 DALINE MARIA DE SOUZA DA PEDRA DO ROSÁRIO AO PANTANAL: ESPAÇO E URBANIZAÇÃO NO PASSO DA PÁTRIA (NATAL/RN) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. ORIENTADOR(A): Prof.ª Dr.ª Lisabete Coradini NATAL/RN AGOSTO/2007 Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Biblioteca Setorial Especializada do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA). NNBSE-CCHLA Souza, Daline Maria de Da Pedra do Rosário ao Pantanal : espaço e urbanização no Passo da Pá- tria (Natal/RN) / Daline Maria de Souza. - Natal, RN, 2007. 155 f. Orientadora: Profª. Drª. Lisabete Coradini. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Progra- ma de Pós-graduação em Ciências Sociais. Área de Concentração: Cultura e Representações. 1. Antropologia urbana. 2. Urbanização - Passo da Pátria - Natal (RN) – Dissertação. 3. Espaço urbano - Favela – Dissertação. I. Coradini,Lisabete. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BSE-CCHLA CDU 39:316.334.56 A dissertação intitulada “DA PEDRA DO ROSÁRIO AO PANTANAL: ESPAÇO E URBANIZAÇÃO NO PASSO DA PÁTRIA (NATAL/RN)” foi submetida à banca examinadora, sendo considerada ____________________. BANCA EXAMINADORA ______________________________________________ Profª. Dra. Lisabete Coradini (Profª. Orientadora – PPGCS/UFRN) ______________________________________________ Profª. Dra. Roberta Bivar Carneiro Campos (Profª. Examinadora Externa – PPGA/UFPE) ______________________________________________ Prof. Dr. Patrick Le Guirriec (Universidade François Rabelais de Tours – Prof. Visitante Estrangeiro – PPGCS/UFRN) ______________________________________________ Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas (Membro Suplente – PPGCS/UFRN) Aos moradores da Pedra do Rosário e O seu pedaço, Destinados a existir apenas Na memória do Passo da Pátria. Dedico. AGRADECIMENTOS A conclusão de mais uma etapa da minha vida acadêmica não teria sido possível sem a contribuição de várias pessoas e instituições. Cada uma com sua forma, independente do lugar que ocupam neste trabalho ou na minha vida foram indispensáveis para a consolidação deste sonho. A CAPES, que concedeu-me bolsa durante um ano, viabilizando, naquele momento que eu prosseguisse no curso. A Base de Pesquisa Poder Local, Cultura Política e Políticas Públicas onde a participação em projetos de pesquisa e a orientação do professor João Bosco Araújo da Costa na iniciação científica (PIBIC/CNPQ) e na monografia de conclusão do curso de Serviço Social foram fundamentais para a interlocução com diversos aportes teórico-metodológicos e temas das Ciências Sociais. Uma experiência essencial para o desenvolvimento deste estudo. Ao Núcleo de Antropologia Visual/NAVIS - UFRN pelo aprendizado na área da pesquisa e nos campos temáticos que lhe compõem. A professora Lisabete Coradini pela aposta nesta orientanda, pela paciência e respeito com o meu ritmo de trabalho e pela orientação que ampliou meus horizontes teórico-analíticos no campo da Antropologia. Ao Professor Raimundo Arrais do Departamento de História da UFRN, que apontou autores importantes para que eu pudesse compreender a formação histórica de Natal e do Passo da Pátria. A Carlos Magno de Sousa, ex- morador do Areado, que me conduziu a todos os pedaços do Passo da Pátria e aos entrevistados, sua disposição foi imprescindível para que pudéssemos desenvolver o trabalho de campo. A todos os entrevistados por terem gentilmente nos relatado seus depoimentos sobre a configuração sócio-espacial do Passo da Pátria, matérias- primas do nosso estudo. A Carlos Silva, artista plástico, morador do Areado, que criou a arte para as capas desta dissertação. Seu realismo me ajudou a compreender o crescimento do Passo da Pátria. A Eni Barbosa, assistente social do Projeto Integrado do Passo da Pátria e a Paulo Araújo, ex-consultor do projeto, que permitiram o livre acesso aos documentos e acervo fotográfico da equipe técnica. A João Bosco Araújo da Costa, meu companheiro, pelo incentivo nos momentos em que dilemas e angústias contornavam o trabalho, por partilhar comigo seus conhecimentos e pelo amor que me aquece todas as chamas. Aos meus pais, Giovani e Socorro que me acompanham em todas as caminhadas e me apóiam sem medir esforços. Aos amigos Max Bruno, Cristiana, Viviane e Daniely, pela amizade e pelos debates sobre as mais diversas questões que sobrevoam este trabalho. A todos que fazem o Ile Ase Dajo Oba Ogodo, pela acolhida amável que me faz acertar os ponteiros e transitar com mais tranqüilidade nas jornadas da vida. A todos vocês meus sinceros agradecimentos. “Um Passo a frente E você não está mais no mesmo lugar (...) Eu só quero andar nas ruas do Brasil Andar no mundo livre Sem ter sociedade Andando pelo mundo E todas as cidades Andar com os meus amigos Sem ser incomodado Andar com as meninas E eletricidade”. (Um Passeio no Mundo Livre - Chico Science) RESUMO SOUZA, Daline Maria de. Da Pedra do Rosário ao Pantanal: Espaço e Urbanização no Passo da Pátria (Natal/RN). Dissertação do curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes/UFRN. 2007. O Passo da Pátria é uma das áreas de moradia da cidade de Natal/RN, apresenta características de precariedade quanto às formas de habitar e no acesso a bens e serviços. O projeto de urbanização chamado de Projeto Integrado do Passo da Pátria implementado desde 2002 pelo poder público pretende modificar este quadro. No Passo da Pátria o sistema de classificações do espaço operado pelos moradores sinaliza para singularidades que permite a identificação de quatro pedaços: Pedra do Rosário, Passo, Areado e Pantanal. As ações do projeto de urbanização visam promover uma nova configuração sócio-espacial. Nosso objetivo é analisar as formas de apropriação do espaço no Passo da Pátria, construídas pelos moradores, os quais inscrevem suas práticas culturais dando significados simbólicos aos quatro pedaços. Os procedimentos metodológicos consistiram em: revisão bibliográfica dos temas da Cidade, Urbanização, Segregação sócio-espacial, do Espaço, das políticas Públicas na área urbana e dos textos sobre o Passo da Pátria; pesquisa documental e entrevistas com moradores antigos, moradores recentes, entre estes: homens, mulheres, jovens, e lideranças do Passo da Pátria. A avaliação dos dados aponta que os moradores do Passo da Pátria vivenciam positivamente a ação do poder público no que se refere a ampliação da infra- estrutura urbana e serviços. Ao mesmo tempo, valorizam negativamente as ações de remoção de moradores e a idéia de integração para os diferentes pedaços que constituem o Passo da Pátria, para os mesmos, estas ações desconstroem tempos, experiências e narrativas que se expressam nas suas relações com o espaço em que vivem. Palavras-chave: Favela, Espaço, Pedaço e Urbanização.ABSTRACT SOUZA, Daline Maria de. Da Pedra do Rosário ao Pantanal: Espaço e Urbanização no Passo da Pátria (Natal/RN). Dissertação do curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes/UFRN. 2007. The “Passo da Pátria” is one of the areas of housing in the city of Natal/RN, presents characteristics of insecurity on ways to live and access to goods and services. The project of urbanization called Integrated Project “Passo da Pátria” implemented since 2002 by the public power wants to change this picture. In “Passo da Pátria” system of classifications of space operated by the villagers signals to singularities that allows the identification of four pieces: “Pedra do Rosário”, “Passo”, “Areado” and “Pantanal”. The actions of the Project of Urbanization promote a new socio-space configuration. Our objective is to examine ways of appropriation of space in “Passo da Pátria”, built by the residents, which included their cultural practices giving symbolic meaning to the four pieces. The methodological procedures consisted of: literature review of the themes of the City, Urban, Segregation socio-space, Space, the Public Policies in urban area and texts on the “Passo da Pátria”; desk research and interviews with old residents, recent residents, and these: men, women, young, and leaders of the “Passo da Pátria”. The evaluation of the data indicates that residents live positively the action of the public power as regards the expansion of urban infrastructure and services. At the same time, negative value of the shares removal of residents and idea of integration for the different pieces that form the “Passo da Pátria”, for them, these actions desconstroem times, experiences and narratives that are expressed in their relations with the space in which live. Key Words: Slum, Space,Piece and urbanization. ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES CAPA DA DISSERTAÇÃO: A ilustração da capa foi elaborada por Carlos Silva, artista plástico que reside no Areado. Na margem superior, de um lado, o monumento da Pedra do Rosário, de outro, imagem das palafitas do Pantanal. Abaixo desenho do novo cenário pós-urbanização, pode-se ver crianças caminhando sobre o aterro, como também, o muro de arrimo próximo à margem do Rio Potengi. Ao fundo, casa reproduzindo o modelo do Projeto de Urbanização. Na margem inferior, desenho feito a partir de uma imagem do Passo da Pátria, presente em um cartão-postal do ano de 1904, em que aparecem comerciantes, o galpão da feira, o largo do porto, o trem e o casario da época. MAPA 01 - principais bairros da cidade de Natal, com localização do Passo da Pátria ( área em vermelho)................................................................................18 Capa do Capítulo I: ilustração de Carlos Silva (2007).....................................27 Capa do Capítulo II: ilustração de Carlos Silva (2007)....................................55 Foto 01 - Panorâmica da cidade.......................................................................60 Foto 02 – Vista panorâmica do acesso à Rua Passo da Pátria..................................................................................................................61 Foto 03 - Passo da Pátria no início do séc. XX................................................63 Foto 04 – Primeiras habitações do Passo da Pátria.........................................65 MAPA 02 – área oficial do Passo da Pátria com divisão de pedaços...............71 Foto 05 – Trânsito de pessoas durante a Festa da Padroeira de Natal/RN em 2006...................................................................................................................74 Foto 06 – Momento após a celebração da missa para a Padroeira de Natal/RN em 2006.............................................................................................................74 Foto 07 - Casas da Pedra do Rosário, Rua Ocidental de Baixo.......................77 Foto 08 - Casas da Pedra do Rosário, Passagem do trem...............................77 Foto 09 – Primeiras habitações do Passo.........................................................82 Foto 10 – Banho no Rio Potengi pela Rua Largo do Porto...............................84 Foto 11 – Conversa na calçada, casa da Rua Largo do Porto.........................85 Foto 12 – Vista do Areado sem habitações......................................................91 Foto 13 – Palafitas do Areado. Maré alta. ........................................................93 Foto 14 – Vista aérea do Passo da Pátria.........................................................95 Foto 15 – Campo São Francisco.......................................................................96 Foto 16 – Quadra de esportes do Areado.........................................................98 Foto 17 – Propaganda da Biblioteca.................................................................99 Foto 18– Vista da Biblioteca Comunitária do Areado.......................................99 Foto 19 - Navegação de canoa no canal do baldo.........................................101 Foto 20 - Crianças brincando no canal do baldo............................................102 Foto 21 - Travessa Ocidental de Baixo..........................................................107 Foto 22 - Canal do Baldo, vista pelo lado do Pantanal..................................107 Foto 23 - Entrada da Travessa Ocidental de Baixo.......................................110 Foto 24 - Fim da Travessa Ocidental de Baixo em frente à Igreja São Francisco.........................................................................................................110 Capa do Capítulo III: ilustração de Carlos Silva (2007).................................113 Foto 25 – Rua com córrego no Pantanal........................................................122 Foto 26 – Tv. Ocidental de Baixo, córrego coberto.........................................123 Foto 27– Obras no canal do baldo..................................................................124 Foto 28 - Casas à margem do canal do baldo................................................124 Foto 29 – Casas à margem do canal do baldo, em mesmo ângulo da foto 28 após aterramento.............................................................................................125 Foto 30 – Casas da nova rua com canal do baldo coberto. Reformas nas habitações........................................................................................................125 Foto 31 – Novas casas localizadas no Pantanal.............................................126 Foto 32 – Banho no Rio Potengi na antiga área das palafitas do Pantanal...........................................................................................................126 Foto 33 – Novas casas construídas pelo Projeto Integrado para os moradores do núcleo mais antigo vindos da remoção.......................................................128 SUMÁRIO RESUMO ABSTRACT ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES INTRODUÇÃO...................................................................................................13 1 - CAPÍTULO I - FAVELA, ESPAÇO E URBANIZAÇÃO...............................26 1.1– A favela na cidade....................................................................................30 1.2 - Espaço: apropriação e significado........................................................40 1.3 - Políticas Públicas de Reurbanização de favelas..................................47 2 - CAPÍTULO II – A CONFIGURAÇÃO SÓCIO-ESPACIAL DO PASSO DA PÁTRIA..................................... ........................................................................54 2.1 - A emergência do Passo da Pátria no contexto histórico e cultural de Natal/RN: o Porto e a Feira..............................................................................59 2.2 – O Passo da Pátria em pedaços..............................................................692.3 – Pedra do Rosário: os moradores mais antigos...................................72 2.4 – Passo: o segundo pedaço do Complexo Favelar do Passo da Pátria.................................................................................................................81 2.5 – Areado: laços identitários e discriminação..........................................90 2.6 – O outro lado do canal: o Pantanal e o meio-ambiente......................105 3 - CAPÍTULO III - A URBANIZAÇÃO E A PERCEPÇÃO DOS MORADORES SOBRE A “INTEGRAÇÃO” DOS PEDAÇOS................................................112 3.1 – O Projeto Integrado do Passo da Pátria: ações e atividades de integração dos quatro pedaços....................................................................116 3.2 – Integração: a percepção dos moradores sobre a construção de um consenso........................................................................................................129 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................140 BIBLIOGRAFIA...............................................................................................144 ANEXOS..........................................................................................................151 Estudos sobre processos de mudanças sócio-espaciais nas cidades contemporâneas, revelam a complexidade da vida urbana. Há mais de cem anos, a formação de favelas tornou-se uma marca das principais médias e grandes cidades do Brasil. A análise sobre as diversas formas de consolidação de favelas pode revelar uma multiplicidade de referências espaciais e sociais elaboradas pelos moradores a partir de diferentes redes de significado. Ao emergir como campo de estudo da Antropologia, as questões referentes aos contextos urbanos proporcionou uma série de aproximações e diferenciações com a tradição antropológica baseada em estudos sobre povos distantes no tempo e no espaço, sociedades que durante um longo período, foram consideradas primitivas. A partir da compreensão de Magnani (2000), é possível dizer que as questões que se colocaram, inicialmente, para a antropologia urbana convergiam para a construção de uma abordagem teórico- metodológica voltada para esta nova condição, quando “o campo é a cidade”. No Brasil, os estudos antropológicos sobre questões derivadas do fenômeno urbano são evidentes a partir dos anos 70, quando os grupos tradicionalmente estudados pela Antropologia como índios, negros, favelados. sofrem um deslocamento de sentido, ou seja, de grupos sociais marginais para novos atores sociais e políticos. De acordo com Magnani, Essa conjuntura – política, acadêmica, institucional – abriu espaço para estudos de caráter antropológico sobre a realidade dos grandes centros urbanos, pois era preciso conhecer de perto esses atores, seu modo de vida, aspirações – já que conceitos como ‘consciência de classe’, ‘interesses de classe’ e outros não davam conta de uma dinâmica que se processava no cotidiano. Quem são? Onde moram? Em que acreditam? Como passam seu tempo livre? Nesse particular a antropologia estava à vontade, pois [...] tais perguntas sempre estiveram presentes, norteando a pesquisa etnográfica (2000; p. 28- 29). 14 As pesquisas no âmbito da Antropologia Urbana possibilitam a compreensão de como se estabelecem configurações sócio-espaciais nos cenários urbanos a partir de “dentro”. Estas pesquisas utilizam os métodos e técnicas já consagrados nos estudos com grupos tradicionais, tais como: observação participante, documentação censitária, histórias de vida, entrevistas dirigidas, entre outros, os quais permitem apreender o que as populações urbanas pensam a respeito de suas condições de vida, seus valores ou, ainda, dos seus ordenamentos, que constroem o sentido de pertencimento a um determinado espaço. Em geral, os estudos antropológicos desenvolvidos com as populações urbanas tratam de suas estratégias de sobrevivência, religião, formas de lazer, formação de favelas e tantos outros temas que expressam as manifestações do fenômeno urbano na cidade. A produção antropológica na área urbana no Brasil impôs novos desafios e problemas para a pesquisa e reflexão antropológica. De acordo com Eunice Durham, [...] não se desenvolveu no Brasil uma antropologia urbana propriamente, nos moldes em que foi iniciada pela Escola de Chicago, uma tentativa de compreender o fenômeno urbano em si mesmo. Ao contrário, trata-se de pesquisas que operam com temas, conceitos e métodos da antropologia, mas voltados para o estudo de populações que vivem nas cidades. A cidade é, portanto, antes o lugar da investigação do que seu objeto (1986; p.19). A cidade e o contexto urbano tornaram-se um laboratório privilegiado para as reflexões antropológicas, permitindo novos estudos e interpretações sobre a cultura urbana. A partir da composição deste quadro de referências sobre a experiência urbana, a Antropologia estabeleceu novos recortes e incorporou outras categorias; um exemplo disso são os trabalhos que abordam 15 os campos da marginalidade, segregação sócio-espacial, periferia, favelas, entre outros. Entre estas abordagens chamou-nos a atenção os estudos sobre a construção de configurações sócio-espacias no interior de favelas situadas no cenário da cidade moderna. Em se tratando da discussão sobre favelas, uma importante reflexão encontra-se em Janice Perlman, a qual pesquisou o fenômeno das favelas, a fim de analisar o conjunto de estereótipos sobre a pobreza urbana, especialmente, na realidade das médias e grandes cidades latino-americanas. Para a autora, De fora, a favela típica parece um formigueiro humano congestionado e imundo. Mulheres andam de um lado para outro carregando grandes latas de água na cabeça ou se aglomeram ao redor da bica de água que serve à comunidade, lavando roupa. Homens ficam pelos bares conversando ou jogando carta, aparentemente sem nada para fazer. Crianças nuas brincam na terra e na lama. As casas parecem, no mínimo, inseguras, feitas como são de pedaços desencontrados de refugo. [...] Por dentro, porém, as coisas parecem bem diferentes. [...] O observador fortuito tampouco percebe o notável grau de coesão social e confiança mútua, e a complexa organização social interna, que se expressa em numerosos clubes e associações espontâneas (1977; p.40-41). O estudo de Perlman focaliza uma análise das formas da dinâmica cultural das favelas, combinada à descrição de características grupais que distinguem seus moradores da visão que confere uma classificação estigmatizadora sobre os modos de vida nas favelas. Percebida como um problema, praticamente quando surge, no Brasil, as diversas tentativas para a sua “resolução” passaram por um processo de mudança de significado, a partir da década de 70. No contexto da transição democrática brasileira, os movimentos reivindicatórios ligados às questões urbanas deram visibilidade aos problemas relativos à ocupação, habitação, 16 saúde, saneamento, segurança no âmbito das favelas e exigiam que as soluções fossem construídas com a participação dos moradores. A implementação de projetos e programas pelo poder público, tanto simbólica como materialmente, transformam a organização sócio-espacial das favelas. A avaliação destas ações possibilita apreender em que medida seus resultados refletem as reivindicações dos moradores. É sob esta perspectiva que me proponho a estudar o “Complexo Favelar do Passo da Pátria”, localizado em Natal/RN, o qual corresponde a um aglomerado que, desde 2002, vivencia um processo de urbanização engendrado pelo poder público através do Projeto Integrado do Passo da Pátria. O Passo da Pátria está localizado na Zona Leste da cidade de Natal/RN, próximo a três bairros de grande importância histórica e comercial para a cidade, os bairros da Cidade Alta, da Ribeira e do Alecrim. Sua área totaliza205.506m2 e comporta quatro comunidades: Pedra do Rosário, Passo, Areado e Pantanal. A área em que se situa o Passo da Pátria era de Patrimônio da União e foi caracterizado como um assentamento subnormal. Em seu interior encontramos aproximadamente, 952 habitações e uma população estimada em mais de 3.700 pessoas (MIRANDA, 2002). Como nos demais assentamentos subnormais de Natal/RN, os moradores não possuem a propriedade do terreno; a ocupação apresenta alto adensamento, localiza-se em área de risco e chama a atenção pelo acesso precário aos serviços públicos essenciais. Nem sempre o Passo da Pátria foi conhecido, no contexto urbano de Natal, como um “complexo favelar”. No início da sua formação, no final do séc. XIX, o Passo da Pátria era um importante local de encontro e lazer na cidade, 17 onde funcionavam um porto e uma feira. Os primeiros moradores estavam relacionados a estas atividades e, em geral, eram pessoas de baixo poder aquisitivo, que vislumbraram no Passo da Pátria uma solução para a sua necessidade de moradia, local que, além disso, possuía como vantagem a sua localização estratégica próxima à área central da cidade. MAPA 01 - PRINCIPAIS BAIRROS DA CIDADE DE NATAL, COM LOCALIZAÇÃO DO PASSO DA PÁTRIA( área em vermelho) FONTE – PREFEITURA MUNICIPAL DE NATAL. PROJETO INTEGRADO DO PASSO DA PÁTRIA (2002). Outro aspecto relevante na composição do Passo da Pátria é sua configuração sócio-espacial, que divide o espaço em Pedra do Rosário, Passo, 18 Areado e Pantanal. O manejo de símbolos e códigos em seu interior configura cada pedaço como ponto de distinção das referências identitárias de seus moradores. Em relação à composição do Passo da Pátria, a classificação oficial determinada pelos órgãos públicos considera que o complexo favelar é composto por três favelas: Passo da Pátria, Areado e Pantanal. A identificação destas favelas deu-se em virtude da autodenominação atribuída pelos moradores e da presença de três Associações Comunitárias: Associação dos Moradores do Passo da Pátria, Associação dos Moradores do Areado e Associação dos Moradores do Pantanal. A partir da observação direta, que realizamos durante a pesquisa, percebemos que há uma outra nomenclatura atribuída pelos moradores para determinar parte da área que a leitura oficial denomina de Passo da Pátria, a qual corresponde à Pedra do Rosário. Menos dependente da existência de Associações Comunitárias, essa denominação atribuída pelos moradores sinalizam para outros elementos da dinâmica espacial da área, os quais conferem uma identidade diferenciada ao local. Sendo assim, consideramos que os moradores definem a área do Passo da Pátria englobando quatro pedaços: Pedra do Rosário, Passo, Areado e Pantanal. A delimitação espacial elaborada pelos moradores, que configura uma hierarquização entre os pedaços no Passo da Pátria, está associada ao tempo de moradia, o que confere aos moradores mais antigos, os da Pedra do Rosário e do Passo, uma característica grupal distintiva em relação ao Areado e Pantanal, pedaços de ocupação mais recente. 19 Desde 2002, a Prefeitura Municipal de Natal, vem implementando no Passo da Pátria ações voltadas para a urbanização, através do Projeto Integrado do Passo da Pátria proveniente do Programa Habitar Brasil1 - HBB. A principal ação do Projeto Integrado do Passo da Pátria é a reforma, ou remoção das habitações, com o intuito de homogeneizar os arranjos, formas e referências das redes de relações dos seus moradores, transformando num bairro planejado. Esta proposição do Projeto Integrado é um dos principais motivos da falta de consenso entre os moradores e os agentes do poder público. Isto porque está previsto para o grupo de moradores mais antigos a remoção de suas residências. Tratam-se dos moradores da Pedra do Rosário e de alguns do Passo que estão em áreas consideradas de risco pelo poder público. A existência dos quatro pedaços é um dos suportes para as diferenças existentes entre os moradores do Passo da Pátria e há uma resistência por parte da maioria dos moradores mais antigos em estabelecerem laços identitários e de sociabilidade com aqueles que residem nos pedaços constituídos mais recentemente. A pesquisa “Da Pedra do Rosário ao Pantanal: espaço e urbanização no Passo da Pátria (Natal/RN)” teve como objetivo geral identificar as formas de apropriação do espaço urbano, as quais configuram a existência de quatro pedaços no Passo da Pátria e seus significados simbólicos para os moradores, 1 Programa realizado com os recursos previstos na parceria entre a União Federal e o BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento. Tem como Órgão Gestor o Ministério das Cidades, sendo a CAIXA o agente financeiro, técnico e operacional. Em Natal, a Prefeitura Municipal é responsável pela execução e o Passo da Pátria é uma experiência piloto de urbanização de favelas do HBB no município, como discutiremos melhor no terceiro capítulo deste estudo. 20 analisando a percepção dos moradores quanto à integração dos pedaços proposta no Projeto Integrado do Passo da Pátria. Procuramos reconstruir a história da expansão do Passo da Pátria e apreender os diversos recortes espaciais estabelecidos pelos moradores, identificando marcas exclusivas, as quais delimitam as referências identitárias e/ou a construção de diferenciações nestas áreas. Para identificar a efetividade do Projeto Integrado do Passo da Pátria consideraremos as avaliações, falas e repertórios de linguagem mobilizados pelos moradores. Os objetivos específicos foram: a) Descrever o processo de formação e expansão do Passo da Pátria, o estabelecimento dos quatro pedaços: Pedra do Rosário, Passo, Areado e Pantanal; b) identificar as práticas sociais que operam no sistema de classificações que singulariza cada pedaços; c) analisar as ações do Projeto Integrado que incidem diretamente no reordenamento do espaço urbano no Passo da Pátria; e d) avaliar a percepção dos moradores sobre as ações do Projeto que visam redefinir a dinâmica sócio-espacial do Passo da Pátria. O nosso interesse intelectual pelas temáticas do crescimento urbano das favelas, do processo de segregação sócio-espacial, do Espaço e das políticas públicas urbanas deu-se a partir de alguns trabalhos acadêmicos realizados no âmbito do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como os da disciplina Questão Agrária e Urbana, na qual foi possível conhecer abordagens teóricas multidisciplinares sobre as categorias teóricas citadas. Entre estas abordagens, chamaram-nos a atenção os métodos e técnicas utilizados pela Antropologia Urbana. Para pensar questões como a 21 construção de configurações sócio-espacias no interior de favelas situadas no cenário da cidade moderna, como é o caso do Passo da Pátria, as abordagens da Antropologia Urbana são importantes, porque situam as populações urbanas como legítimos objetos de estudo. Em 2003, fui estagiária do Projeto Integrado do Passo da Pátria, período em que pude perceber sua configuração sócio-espacial e imaginar a possibilidade do desenvolvimento de um estudo sobre a relação entre Espaço e Urbanização no Passo da Pátria. Isto porque, além de ser uma experiência piloto no município, a remoção de algumas moradias e o remanejamento de moradores têm sido a principal razão da falta de consenso entre os moradores e os agentes do poder público no processo de urbanização do Passo da Pátria. A experiência no Projeto foi fundamental para esta pesquisa, tanto pelo fato de ter obtido diversos dados documentais sobre o Passo da Pátria e a urbanização, como também pela aproximação com alguns moradores, o que me garantiu identificar as principais lideranças dos quatro pedaços: Pedra do Rosário, Passo, Areado e Pantanal. No período 2005/2007 realizeio trabalho de campo que subsidia este estudo. Para isto, estabeleci contato com um jovem morador, uma pessoa que conheci em outros circuitos da cidade e descobri que morava no Passo da Pátria em uma reunião com lideranças, articulada pela equipe do Projeto Integrado em 2003. Solicitei, então, seu auxílio para dar início à pesquisa na área e o fato de este haver concordado foi o que tornou viável este trabalho. Isto porque, num universo social de uma favela, é quase impossível para um pesquisador desenvolver um estudo sem a legitimação da sua presença por alguma rede de relações. Para um “estranho” existem várias interdições 22 que tornam impossível qualquer estudo, como por exemplo, transitar, indiscriminadamente, por todos os espaços, em qualquer hora. Não deixei de cultivar o envolvimento com outros moradores, mas este jovem, em especial, tornou-se auxiliar desta pesquisa, sem o qual teria sido difícil conhecer bem todos os pedaços do Passo da Pátria e seus moradores; os mais antigos, os mais novos, os desempregados, as lideranças e aqueles que dificilmente me concederiam uma entrevista. Neste sentido, a pesquisa consistiu, primeiramente, em uma revisão bibliográfica da literatura sobre os temas Espaço, Favela, Cidade, Políticas Públicas de Urbanização, Memória e Identidade, e textos sobre o Passo da Pátria, para a construção das referências teórico-analíticas. Em seguida, realizamos coleta de dados documentais em instituições de pesquisa e órgãos do poder público local, nos quais foi possível perceber a trajetória histórica do Passo da Pátria e as intencionalidades das ações de urbanização e estabelecer a comparação com os resultados efetivamente encontrados. Posteriormente, organizamos mapas e desenhos sobre a área, onde reunimos, tanto os existentes em documentos oficiais como aqueles que elaboramos. Estes mapas e desenhos foram fundamentais para melhor descrever a divisão do Passo da Pátria em quatro pedaços. Soma-se a isso a reunião de fotografias que também possibilitam uma melhor apreensão das dimensões internas da vida social no Passo da Pátria. Finalmente, realizamos treze entrevistas com os moradores de cada pedaço. Como critério para a escolha dos entrevistados buscamos lideranças e pessoas que possuem um significativo tempo de moradia em cada um deles. 23 Além disso, entrevistamos agentes do poder público local que executam o Projeto Integrado do Passo da Pátria. Nos depoimentos foi possível perceber como a concepção de urbanização e integração dos pedaços empreendida no âmbito do Projeto vem sendo percebida pelos moradores, no que se refere à melhoria da qualidade de vida e à percepção sobre a redefinição sócio-espacial do Passo da Pátria. Por uma melhor operacionalização do roteiro do trabalho de campo percorremos o Passo da Pátria, de uma a outra extremidade, a partir da seguinte ordem: 1- Pedra do Rosário; 2 – Passo; 3 – Areado; e 4 - Pantanal. Esta ordem também segue a cronologia das ocupações no Passo da Pátria. O presente estudo constitui-se de três capítulos. No primeiro capítulo discutimos a noção de favela, a qual atravessou nos últimos trinta anos um processo de reclassificação, apontando que nesta noção a participação dos moradores em projetos e programas de urbanização das áreas de favelas tem importância crucial na busca de soluções para os problemas de crescimento das cidades. Neste sentido, também se discute, no primeiro capítulo, as categorias teórico-analíticas que permitem uma melhor apreensão sobre a análise dos usos e apropriações do espaço em áreas de favelas. No último tópico do capítulo fazemos uma discussão sobre a avaliação de políticas públicas de urbanização, focalizando o diálogo com a realidade dos projetos e programas desenvolvidos em áreas de favelas. No segundo capítulo, fazemos uma descrição sobre o Complexo Favelar do Passo da Pátria. Neste capítulo, procura-se identificar o cenário do Passo da Pátria desde os seus primeiros registros históricos, do final do século XIX, até a sua atual formação. Trata-se de um processo de ocupação e crescimento 24 o qual produziu um ordenamento sócio-espacial, que divide a área em quatro pedaços. Estes pedaços são suportes para uma hierarquização das formas do viver no Passo da Pátria que estabelecem distinções entre os grupos de moradores. No terceiro capítulo, realizamos uma análise sobre o Projeto Integrado do Passo da Pátria, acerca das ações que estão voltadas para a idéia de integração dos quatro pedaços. Nesta análise destacamos as ações de remanejamento de moradores e remoção de moradias; a formação de uma comissão de moradores, composta por representantes de cada pedaço, que objetiva a unificação das associações comunitárias. A análise do Projeto Integrado privilegia a ótica dos moradores e sua compreensão sobre a integração. Nas considerações finais, fazemos algumas reflexões sobre a relação Espaço e Urbanização no Passo da Pátria. Destacamos a relevância da incorporação da ótica dos moradores na implementação de projetos que visam a redefinição da dinâmica sócio-espacial do lugar em que vivem. 25 Nos anos 70 do século XX, a crítica ao crescimento desordenado das cidades ampliou-se no interior das elaborações dos movimentos sociais urbanos tanto nos países de capitalismo central como nos países em desenvolvimento. A atuação destes movimentos foi fundamental para dar visibilidade às questões urbanas, entre as quais se destaca a formação de áreas de moradia compostas por habitações precárias, com um arranjo social que apresenta baixos índices de qualidade de vida, além de compor o conjunto dos problemas que agravam a questão ambiental urbana. Um exemplo disto são as favelas, carentes e desprivilegiadas em termos de infra-estrutura e serviços públicos (CALDEIRA, 1984; ZALUAR, 2000; ROLNIK, 2004; VALLADARES, 1980; 2003). No Brasil, a partir da década de 70, os movimentos reivindicatórios ligados às questões urbanas estão inseridos no que se chamou de novos movimentos sociais e emergem no contexto da transição democrática brasileira (SCHERER-WARREN, 1987). Quando o alcance das críticas elaboradas pelos movimentos sociais urbanos chega à opinião pública e questiona os problemas provocados pela organização sócio-espacial das cidades modernas, a favela passa a adquirir um novo sentido e se constituir como campo de atuação de atores sociais e políticos que exigem soluções para os problemas relativos à ocupação, habitação, saúde, saneamento, segurança, etc. Quando as demandas por bens e serviços de infra-estrutura são articuladas através dos movimentos sociais urbanos e incorporadas na agenda pública, não dão visibilidade apenas aos problemas urbanos que envolvem as cidades, mas também à necessidade de implementação de projetos e programas de urbanização nas favelas como uma alternativa viável na busca de soluções para os problemas sócio- ambientais das cidades. 28 A intervenção urbanística nas áreas de favelas, através de políticas públicas, tem-se constituído numa das vias básicas para as ações do poder público, na tentativa de reverter, no âmbito do desenvolvimento urbano da cidade, o processo de exclusão dessas áreas. A avaliação destas ações possibilita apreender em que medida seus resultados refletem as reivindicações dos moradores. Isto porque, ainda que seja prevista a participação da população local nos processos de implementação de projetos e programas na área urbana, nem sempre esta participação se dá de maneira efetiva e não autoritária. A não participação efetiva dos moradores em todo o processo, ou seja, na escolha das prioridades, na implementação das ações e avaliação das políticas públicas urbanas, pode implicar na exclusão de uma multiplicidade de referências espaciais elaboradas ao longo do tempo pelos próprios moradores, as quais são cruciais para o planejamentoadequado da intervenção urbanística nas favelas. Para situarmos, teoricamente, a configuração sócio-espacial do Passo da Pátria, neste capítulo discutiremos como, gradativamente, as comunidades consideradas favelas vivenciaram um processo de reclassificação, o qual busca redimensionar a segregação e a estigmatização que atribuía características morais e culturais negativas a seus moradores. Também discutiremos os usos e apropriações de espaços no interior das favelas, as formas de classificação e atribuição de sentido operadas pelos moradores, as quais constituem a diversidade de ordenamentos sócio-espaciais nas favelas. Finalizamos com a discussão sobre algumas questões de ordem teórico- metodológica que envolve as políticas públicas de urbanização, as quais, por um lado, são mobilizadoras do discurso da reclassificação das favelas e, por outro, possuem uma visão instrumental sobre o manejo de símbolos e códigos, em cujo 29 interior configuram espaços como pontos de distinção das referências identitárias de seus moradores. 1.1 – A FAVELA NA CIDADE A concepção de cidade engloba não só aspectos econômicos; isto é, até mesmo aquelas localidades, que do ponto de vista do crescimento econômico, não seriam classificadas como cidades podem ser assim definidas pela existência de uma estrutura político-administrativa. Para Max Weber, “a cidade tem que se apresentar como uma associação autônoma em algum nível, como um aglomerado com instituições políticas e administrativas especiais” (WEBER, 1987, p. 76). Cidades de formação histórica e social diferentes comportam esta característica em comum: a existência de instituições políticas e administrativas que lhes proporcionam, em algum nível, autonomia. De acordo com Raquel Rolnik, a cidade nasce com o processo de sedentarização e seu aparecimento delimita uma nova relação homem/natureza: para fixar-se em um ponto para plantar é preciso garantir o domínio permanente de um território. Imbricada, portanto com a natureza mesma da cidade está a organização da vida social e consequentemente a necessidade de gestão da produção coletiva. Indissociável à existência material da cidade está a sua existência política (2004, p.08). Da necessidade de uma dimensão pública na gestão da vida coletiva e da importância do seu papel na organização das regras e ordenamentos destinados ao funcionamento da vida na cidade, institui-se uma autoridade político administrativa. Esta condição se coloca para a vida urbana até mesmo nas cidades mais simples e rudimentares. A dimensão pública corresponde à possibilidade de existência da cidade. Sua importância para o funcionamento da cidade dá-se, na medida em que surge a necessidade de conceber e administrar as atividades produtivas e regular os modos 30 de habitar que, como discute Raquel Rolnik, são “regulamentos e organizações que estabelecem uma certa ordem na cidade definindo movimentos permitidos, bloqueando passagens proibidas” (2004, p.19). A partir do século XIX, com o paradigma da industrialização, vivenciou-se um processo de desenvolvimento nas cidades, em que a busca pelo progresso significava o alcance de bons resultados, no que se refere ao crescimento econômico. Este processo de desenvolvimento, instituído no século XIX, de matriz tradicional, tem como principais pilares a industrialização e o uso incessante de tecnologia como paradigma de mudança social, logo, sinônimo do próprio desenvolvimento. Este ideário, que ancora a concepção tradicional de desenvolvimento moldou o espaço e a sociedade urbano-industrial. Nos últimos trinta anos do século XX, a idéia de que a industrialização e o uso incessante de tecnologia garantiriam mudança social foi colocada em cheque pelas crises ambientais, econômicas e sociais. No que se refere à cidade, existe um consenso crítico que a coloca como expressão deste modelo de desenvolvimento tradicional além de epicentro dos problemas sócio-ambientais atuais. A expansão das atividades produtivas modernas no cenário da cidade foi um dos fatores que configurou um processo de urbanização, produzindo novas espacialidades, entre as quais destacam-se a composição de “periferias, subúrbios, distritos industriais, estradas e vias expressas que recobrem e absorvem zonas agrícolas” (ROLNIK, 2004, p.12). Um exemplo disto é a sua consolidação enquanto metrópole, a qual resultou num modelo de urbanização com uma dinâmica produtora de segregações sócio-espaciais. A imagem da cidade ficou também associada ao sentido de atração que esta desempenhou sobre grandes contingentes populacionais, quando se tornou o centro 31 das atividades produtivas modernas; e ao acelerado processo de transformação das suas paisagens. As práticas materiais e simbólicas desempenhadas na cidade são assim permeadas pelo aspecto da heterogeneidade, para Magnani: “A cidade, [...] não só admite e abriga grupos heterogêneos (seja do ponto de vista de origem étnica, procedência, linhagens, crenças, ofícios etc.) como está fundada nesta heterogeneidade, pressupõe sua presença” (2000, p. 48). A presença da heterogeneidade na cidade pode ser associada ao percurso histórico do crescimento urbano de grandes cidades como Nova York, São Paulo ou Rio de Janeiro. A instalação de indústrias atraiu grandes contingentes populacionais em ritmo acelerado, contribuindo para aumentar o padrão desordenado de crescimento. A construção de estradas, ferrovias, edificações, pontes, transformou e ressignificou suas paisagens. Neste contexto, predominavam a migração e a falta de moradia, impulsionando a apropriação “irregular” do espaço urbano. Nas cidades modernas, o processo de urbanização apresentou consequências sociais e econômicas que agravaram a questão urbana. Uma das principais expressões disto é o fenômeno da constituição de favelas. Mike Davis discute que, Desde 1970, o crescimento das favelas em todo o hemisfério sul ultrapassou a urbanização propriamente dita. [...] As favelas de São Paulo – meros 1,2% da população em 1973, mas 19,8% em 1993 – cresceram na década de 1990 no ritmo explosivo de 16,4% ao ano. Na Amazônia, uma das fronteiras urbanas que crescem com mais velocidade em todo o mundo, 80% do crescimento das cidades tem-se dado nas favelas, privadas, em sua maior parte, de serviços públicos e transporte municipal, tornando assim sinônimos “urbanização” e “favelização“ ( 2006, p. 27). As favelas representam os aglomerados urbanos que não se encontram adequadas às regras e normas propostas nas ações de ordenação espacial das cidades. Ao mesmo tempo, desde que passam a existir, demandam intervenções 32 urbanísticas de correção ou controle no sentido da adequação à estrutura urbana das cidades. Como lugar de moradia, desde sua origem, a favela foi constituída por habitações irregulares, resultado da pobreza dos seus habitantes que se estabeleceram sob a ausência de saneamento e de serviços públicos, devido ao descaso do poder público, fatores que até hoje compõem o quadro dos problemas sócio-ambientais urbanos. No que se referem às dimensões sociais, os moradores das favelas eram associados a imagens da carência, da falta e do vazio de valores morais. Na segunda metade do século XX, quando se intensifica o crescimento das favelas, é evidente a construção de um imaginário social ancorado em referências negativas pré-concebidas, que distingue os moradores das favelas dos residentes de outros ordenamentos sócio-espaciais da cidade. Além disso, as primeiras propostas de intervenção do poder público partiam do imaginário que o “problema das favelas” era “problema de Polícia”, determinando para estas áreas a sua destruição, sob o critério da saúde e da qualidade de vida, principalmente, para os demais moradores da cidade. Na maioria dos planos urbanísticos, a favela é considerada uma “patologia social”, um duplo problema sanitário e policial.Pode-se dizer que as favelas tornaram-se presentes na configuração territorial da maioria das médias e grandes cidades do Brasil, desde o início do século passado. A cidade do Rio de Janeiro é a expressão do processo de modernização do país e destaca-se no quadro do assim chamado “problema das favelas2” no Brasil: 2A primeira favela do Rio de Janeiro, no morro da Providência, surgiu na década de 1880 (DAVIS, 2006, p. 37). 33 Pode-se dizer que as favelas tornaram-se uma marca da (antiga) capital federal [...]. Cidade desde o início marcada pelo paradoxo, a derrubada dos cortiços resultou no crescimento da população pobre nos morros, charcos e demais áreas vazias em torno da capital. Mas isso também deveu-se à criatividade cultural e política, à capacidade de luta e de organização demonstradas pelos favelados nos 100 anos de sua história (ZALUAR & ALVITO, 2004, p.07). No contexto cultural e político carioca pós década de 60, a consolidação da favela envolveu a construção da categoria favelado. Esta categoria está relacionada com as organizações de moradores envolvidas na luta contra as ações de remoção das favelas. Atitudes como a organização de congressos de favelados articuladas à atuação de algumas entidades ligadas à Igreja buscavam influenciar as ações implementadas pelos governos. As proposições dos movimentos sociais urbanos de favelados objetivavam compatibilizar as particularidades da realidade ambiental, cultural, econômica e social das favelas com o contexto mais geral do desenvolvimento urbano da cidade do Rio de Janeiro. Segundo Marcelo Burgos, Organizados politicamente e representados por uma Fafeg3 [...], os habitantes das favelas lutariam de forma desesperada para não serem removidos, entrincheirados na identidade politicamente construída de favelado. A história dessas remoções, ocorridas sobretudo entre 1968 e 1975, representa um dos capítulos mais violentos da longa história da repressão e exclusão do Estado brasileiro ( 2004, p.36). Como assinala Burgos, a resistência das organizações de moradores às ações de remoção é contemporânea da idéia autoritária de urbanização presente nas ações do poder público. No entanto, como demonstra o autor, o alcance dessa resistência foi limitado pelas constantes ações de violência que caracterizaram a maioria dos processos de remoção. 3 Federação da Associação de Favelas do Estado da Guanabara. Fundada em 1963 tinha como objetivo a incorporação política dos moradores das favelas à vida das cidades; congregava cerca de 100 associações (BURGOS, 2004). 34 Embora a formação das favelas, em cada cidade, deva-se a processos de urbanização distintos, o que há em comum é que sua constituição deu-se em oposição à cidade, ou seja, configurou-se como lugares da falta, da carência e da violência, percebidos como separados da cidade. De acordo com Alba Zaluar e Marcos Alvito, ao longo deste século, a favela foi representada como um dos fantasmas prediletos do imaginário urbano: como foco de doenças, gerador de mortais epidemias; como sítio por excelência de malandros e ociosos, negros inimigos do trabalho duro e honesto; como amontoado promíscuo de populações sem moral (2004, p.14). Estabeleceu-se uma idéia sobre a favela e seus moradores baseada na desagregação e ausência de valores morais. Esse discurso sobre a favela deixava de lado outros aspectos, os quais o colocariam em contradição, tais como a existência de uma vida social baseada em laços de vizinhança, crianças com suas brincadeiras de infância ocupando as ruas ou, ainda, o transitar dos trabalhadores saindo de casa e voltando para ela. Desde sua formação, a favela é considerada como um problema para a cidade, um lugar carregado de negatividades e indesejado. Este imaginário que estigmatizou seus moradores orientou algumas decisões do poder público, tanto no sentido da ausência de investimentos em infra-estrutura e serviços nestes lugares, quanto no intuito da sua remoção ou destruição. O tratamento negativo dispensado às favelas, por parte do poder público, e a percepção social construída em torno dos seus moradores constroem o espaço da favela como excluída ou separada da cidade. Apesar de se apresentarem com muitas características de outros bairros da cidade, tais como: ruas, casas, comércio próprio e alguns equipamentos urbanos, a favela não era considerada como integrada à cidade formal. 35 No final do século XX, no Brasil, durante a transição democrática, a emergência de novos atores sociais e políticos e as lutas pelo atendimento de suas demandas por direitos sociais e participação redimensionaram as políticas públicas urbanas (SADER,1988). O ingresso das favelas nas prioridades de projetos e programas sociais vem, ao longo do tempo, redefinindo a situação de exclusão do reconhecimento oficial a que estiveram submetidos seus moradores. Ações de estabelecimento de infra-estrutura urbana, melhorias habitacionais e de regularização fundiária passam a ser previstos nos projetos e programas voltados para as áreas de favelas (MOYSÉS; BERNARDES e AGUIAR, 2005). A remoção ainda continuava presente nos planos e ações do poder público na área das favelas, mas como um processo negociado com os moradores. A possibilidade de obter uma casa em outra região da cidade ou uma indenização para compra de outro imóvel são alternativas de reurbanização nestas áreas (VALLADARES, 1980). Outra mudança importante, resultado da emergência e atuação destes novos atores sociais e políticos foi, certamente, o investimento na construção de um novo sistema classificatório para as áreas de favelas. A definição de AEIS – Áreas Especiais de Interesse Social por exemplo, corresponde a uma denominação utilizada para designar as áreas de moradias localizadas em terreno de propriedade alheia, pública ou particular, geralmente situadas em áreas de risco e que apresentam ausência de serviços públicos essenciais, características comumente encontradas nas favelas e que se destinam a ações de urbanização e regularização fundiária. Além disso, esta definição busca desconstruir a carga de negatividade atribuída, ao longo do tempo, aos moradores das favelas. 36 As favelas passam a ser incluídas num discurso que busca a sua integração à cidade; a sua transformação em bairro popular e a ampliação da participação de seus moradores em processos de urbanização. Um exemplo recente de consolidação deste discurso foi a criação do Estatuto das Cidades4 (Lei Federal 10.257/01). De acordo com Alexandre Weber, o Estatuto das Cidades proporcionou uma mudança de perspectiva metodológica: essas áreas, então denominadas oficialmente favelas, passaram a ser definidas a partir de uma leitura puramente espacial e jurídica, por suas carências de infra-estrutura e pela situação fundiária da ocupação, e não pelos preconceitos que atribuíam características morais e culturais a seus moradores (2005, p. 275). Esse processo de reclassificação contribuiu para que a favela se constituísse em um espaço urbano relevante para a cidade, lugar da implementação de políticas públicas de urbanização, as quais se distanciam de proposições que visam “destruir” ou remover as moradias. Neste contexto, novos desafios aos moradores das favelas se colocaram, tais como a possibilidade da participação em todo o processo de implementação das políticas públicas de urbanização, superando a intervenção, muitas vezes autoritária, desempenhada pelo poder público. Com as discussões sobre a participação democrática que se amplificaram pós anos 70, a urbanização das favelas deve-se configurar como uma decisão negociada entre o poder público e os moradores (MOYSÉS; BERNARDES & AGUIAR, 2005; VALLADARES,1980). Em Natal/RN, os movimentos sociais urbanos que atuaram durantea transição democrática tiveram pouca visibilidade e abrangência; além disso, não estavam diretamente ligados às questões sociais das favelas (DOMINGOS, 1987). A 4 O Estatuto das Cidades foi sancionado em 2001, prevê instrumentos de controle social, regulamentação e planejamento das cidades, tais como: o Plano Diretor dos municípios; a participação popular através de conselhos, entre outros. Ver Estatuto das Cidades (2001). 37 fragilidade desse campo nas experiências dos movimentos sociais urbanos de Natal/RN contribuiu para que o fomento à participação, no interior das favelas, fosse articulada por atores sociais e políticos de matriz conservadora, os quais se apropriaram do discurso participativo e democrático e organizaram diversos conselhos comunitários nas chamadas “comunidades carentes” da cidade. O discurso democrático e participativo que prevaleceu no âmbito das favelas de Natal/RN foi permeado por práticas políticas tradicionais privatistas da esfera pública, patrimonialista e clientelística, contribuindo para o desvirtuamento destas noções e o esvaziamento do seu possível sentido transformador (COSTA, 1995). Ainda assim, o investimento na geração de um novo sistema classificatório para as áreas de favelas, resultado da atuação dos movimentos sociais urbanos no contexto nacional, implicou também em uma mudança de postura no que se refere à atuação do poder público de Natal/RN nestas áreas. Neste sentido, é importante perceber que, quando estabelecemos determinados recortes espaciais na cidade, como um Bairro ou uma favela, constata-se que no interior destes espaços configuram-se coesões sociais que estabelecem redes de relações, as quais implicam no cumprimento de determinadas regras de lealdade e proteção; no compartilhar memórias, identidades e construção de alteridades. Esse conjunto de práticas culturais é exercido numa relação, ao mesmo tempo simbólica e concreta com o espaço vivenciado, tornando a apropriação de cada espaço densa de significação (GEERTZ, 1973). Quando se trata de intervenções urbanísticas em áreas de favelas, existe um tipo de situação que é emblemática, da não participação dos moradores na formulação de projetos de urbanização. Trata-se das ações de redefinição da dinâmica sócio-espacial, presentes nos projetos de urbanização, as quais visam 38 estabelecer uma classificação oficial para a organização dessas áreas, deixando de considerar as fronteiras simbólicas e as classificações localmente produzidas. Em nosso estudo, analisamos o processo de configuração do Passo da Pátria em favela, inserido no contexto mais geral do crescimento urbano da cidade de Natal/RN. O que foi denominado como Complexo Favelar do Passo da Pátria pelos meios de comunicação e pelo próprio poder público corresponde, na ótica dos moradores, a um espaço dividido em: a Pedra do Rosário, Passo, Areado e Pantanal. A área que engloba os quatro deixou, desde o ano de 2002, de ser considerada pela administração pública municipal como um Assentamento Sub- Normal5 e passou a ser classificado como uma Área Especial de Interesse Social e vivencia um processo de urbanização desenvolvido pelo poder público, através do Projeto Integrado do Passo da Pátria. Durante as negociações entre os moradores e o poder público visando à implementação deste projeto, era constante o conflito de opiniões sobre o significado do morar, que se diferenciavam entre os quatro pedaços: Pedra do Rosário, Passo, Areado e Pantanal. O epicentro deste conflito era a idéia de remoção das moradias. Compreendemos que, ampliar o conhecimento sobre as formas de apropriação destes espaços como lugares de moradia é entender melhor a questão da urbanização das áreas de favelas e da própria cidade de Natal como um todo. Os registros de como os moradores das favelas percebem, usam e constroem as configurações sócio-espaciais no lugar em que vivem têm-se constituído em uma importante ferramenta na busca pela efetividade das políticas públicas de 5 “Assentamento habitacional irregular – favela, mocambo, palafita e assemelhados - localizado em terreno de propriedade alheia, pública ou particular, ocupado de forma desordenada e densa, carente de serviços públicos essenciais, inclusive em área de risco ou legalmente protegida” (PREFEITURA DO NATAL, 2002, P.09). 39 urbanização. Estes registros põem em cheque as idealizações urbanísticas para as áreas de favelas e garantem representatividade às reivindicações específicas de seus moradores. 1.2 – ESPAÇO: APROPRIAÇÃO E SIGNIFICADO Cada sociedade tem elementos e formas diferentes de organização espacial. Verificar os processos culturais de apropriação dos espaços nas cidades é essencial para entender seu crescimento e sua urbanização. No que se refere aos usos e apropriações do espaço, é necessário saber quem são seus usuários e moradores, como desempenham o sentimento de pertencimento ao lugar, que atividades e acontecimentos caracterizam a vida vivenciada nele. Diferentes da leitura oficial que classifica e mapeia a cidade utilizada por órgãos e instituições públicas existem outras formas de classificá-la, as quais são estabelecidas por histórias de vida e redes de relações sociais que, em vez de homogeneizá-la constroem-na a partir de uma multiplicidade de referências sócio- espaciais que nem sempre legitimam o discurso da intervenção oficial nas cidades. Para Carlos Nelson dos Santos, Há dois tipos principais de espaços nas nossas cidades: o construído, fechado e, em maior ou menor grau, privatizado (exs – casas, lojas, fábricas, escolas, bares); e o aberto e de uso coletivo (exs – ruas, becos, largos, praças, jardins públicos, praias). Entre estes dois pólos, que servem para armar as representações do urbano, se estabelecem relações de apropriação diferencial. As manifestações sócio-culturais características de um grupo e que servem para distingui-lo, em relação a quem é de fora e para seus próprios membros, sempre estarão referidas a conceitos de abertura dos espaços (1985, p.13). 40 Desta forma, a experiência cotidiana de moradia e ocupação nas favelas é imbuída de sentidos e significados que constroem identidades sociais, distinguem grupos e legitimam o exercício da diferenciação entre espaços. As classificações que distinguem espaços revelam a existência de uma apropriação material, mas também simbólica, que permite estabelecer vínculos com um determinado espaço. De acordo com Magnani: Quando o espaço - ou um segmento dele - assim demarcado torna-se ponto de referência para distinguir determinado grupo de freqüentadores como pertencentes a uma rede de relações, recebia o nome de "pedaço". [...] Uma primeira análise mostrou que essa noção era formada por dois elementos básicos: um de ordem espacial, física - configurando um território claramente demarcado ou constituído por certos equipamentos - e outro social, na forma de uma rede de relações que se estendia sobre esse território (2000, p. 21). O ângulo escolhido para abordar a realidade do Passo da Pátria foi a relação que os moradores dos quatro pedaços estabelecem, ao configurá-los como lugares de moradia que se distinguem entre si. Com o programa de urbanização coloca-se a possibilidade de mudar a localização das moradias, o que pode significar adentrar em outro pedaço, nem sempre “aberto”, mobilizando, assim, práticas de identificação ou de segregação. É comum, em áreas de favelas, a existência de pedaços que se diferenciam entre si. São arranjos sócio-espaciais estabelecidos pelos próprios moradores, os quais determinam suas formas de transitar, usufruir e estabelecer relações entre os diversos grupos sociais. O sistema de classificações operado por moradores de espaços urbanos sinaliza para singularidades no que se refereaos aspectos e práticas culturais de determinados grupos sociais. No caso das favelas, existem sistemas de oposições que dão sentido aos espaços, estabelecendo códigos de reconhecimento entre seus moradores, tais como: moradores de “antes” /moradores de “depois”, igreja/terreiro ou 41 trabalhadores/desempregados. Assim, a classificação produzida pelos moradores, internamente, diferencia-se das representações oficiais e constroem regras que regulam os relacionamentos entre os pedaços. A apropriação dos espaços nas favelas está ordenada em hierarquias de lugares que definem sua valorização ou desvalorização. Muitas vezes não há grandes diferenças entre os moradores de cada pedaço, no que se refere à origem social, ocupação, renda ou escolaridade; mas basta conversar com alguém, observar os comportamentos e reações regulares, para perceber como os moradores de cada pedaço consideram-se distintos dos demais. Como exemplo disto, pode-se refletir sobre os processos de remoção que visam deslocar moradores que residem, há um tempo significativo, 40, 50 anos ou mais, na favela. A problemática torna-se mais complexa quando o objetivo das intervenções urbanísticas é desloca-los para a vizinhança dos moradores instalados mais recentemente. Geralmente, são os pedaços mais antigos os cenários de maior resistência a políticas de urbanização, devido ao fato de seus moradores repudiarem a idéia de se tornarem vizinhos daqueles com os quais não compartilharam práticas de identificação comunitária. Além disto, demonstram insatisfação quanto aos valores atribuídos pelo poder público para suas moradias. Isto acontece, especialmente, com aqueles que conseguiram ampliar a estrutura de suas casas, capazes de abrigar grandes famílias e desenvolver atividades comerciais, mas não encontram consenso para recriarem sua infra-estrutura particular na nova moradia. Há toda uma literatura dedicada à análise das categorias Identidade e Espaço, seja na Antropologia, na História, na Geografia, ou entre outros campos científicos, que procura detalhar as diferentes concepções que cercam as suas 42 conceituações. Cada abordagem teórico-analítica legitima que estas categorias podem ser tratadas enquanto objetos de análise. Em nosso trabalho fazemos uma leitura mais instrumental destes estudos, o que nos ajuda na análise do Espaço, partindo de duas dimensões, uma material e outra simbólica. Para Roberto DaMatta, “ o espaço se confunde com a própria ordem social, de modo que, sem entender a sociedade com suas redes de relações sociais e valores, não se pode interpretar como o espaço é construído” (1985, p.30). Milton Santos afirma que o espaço “reúne a materialidade e a vida que a anima” (1997, p.51), ou seja, não se trata de considerar as configurações territoriais e as relações sociais separadamente, mas, sim, de enxergá-las de maneira imbricada. Neste sentido, abordar a questão do espaço numa dada realidade significa trabalhar o resultado desta interação. Um dos elementos do espaço urbano que fundamenta estas duas dimensões é a Rua. Segundo Carlos Nelson Santos, Para nossa cultura é impossível imaginar o urbano sem o recurso à noção e à imagem de ruas. A importância de que desfrutam pode ser percebida pela constatação da quantidade de atividades e significados para os quais servem de apoio ou de lócus. [...] Um “microcosmo real” de espaços e relações (Jacobs, 1973) que tem a ver com repouso e movimento, com dentro e fora, com intimidade e exposição e assim por diante. Que serve para referenciar bons e maus lugares (1985, p. 24). O movimento de uma Rua, seu trânsito, as diversas atividades desenvolvidas, seus principais acontecimentos históricos e o conjunto de seus usuários, moradores ou não, configuram um repertório de referências espaciais num mesmo espaço. A Rua pode ser a referência para delimitar territorialidades diferentes, tais como a divisão entre comunidades de uma mesma região. A Rua compõe o quadro das 43 diferenciações espaciais e possibilita o encontro de grupos sociais diversos, que interagem construindo fronteiras simbólicas que regulam a apropriação do espaço. Ocorre que, nas favelas, áreas que se estabeleceram sob a ausência de planejamento urbano e de ações do poder público, existem códigos próprios que impõem a inserção numa determinada rede de relações para que se possa transitar nas ruas “livremente”. Vale ressaltar que, conhecer todo o emaranhado de acessos e caminhos que constituem a maioria das favelas é portar um saber necessário e funcional que, como discute Alexandre Weber: permite aos moradores distinguirem as áreas de conflito intenso, de ocupação e atuação do tráfico – que devem ser evitadas pelos riscos e porque são moralmente desqualificadas -, das áreas residenciais, ditas mais tranqüilas, onde o tráfico tem menor atuação (WEBER, 2005, p. 251). Num processo de urbanização de áreas de favela, deter esse conhecimento espacial é fundamental na elaboração das ações, especialmente, quando constam no plano de intervenção, ações de deslocamento de moradores e reordenamento dos espaços que, ao longo do tempo, configuraram-se como suportes de identidades diferenciadas. As práticas culturais de apropriação do espaço que distinguem moradores também têm como suporte o tempo de moradia na favela. Os grupos de moradores mais antigos estabelecem relações com os moradores mais recentes, baseadas no sentido de superioridade. De acordo com Nobert Elias e John Scotson, um grupo tem um índice de coesão mais alto do que o outro e essa integração diferencial contribui substancialmente para seu excedente de poder; sua maior coesão permite que esse grupo reserve para seus membros as posições sociais com potencial de poder mais elevado e de outro tipo, o que vem reforçar sua coesão, e excluir dessas posições os membros dos outros grupos – o que se pretende dizer ao falar de uma figuração estabelecidos-outsiders (2000, p.23). 44 O grupo de “estabelecidos” atribui a si mesmo valores humanos superiores e estigmatizam os moradores dos espaços de formação mais recentes, os “outsiders”. O sentido de pertencimento a um dos grupos de moradores, os mais antigos ou os que residem há menos tempo, denota o prestígio e a diferenciação que dão suporte para representações acerca das fronteiras simbólicas existentes no interior de uma única favela. Enquanto o grupo de “estabelecidos” se configura a partir de antigos laços de solidariedade e vizinhança, aquele considerado “outsider” é identificado pelo não cumprimento de regras de lealdade e proteção para com o grupo de “estabelecidos” e muitas vezes em relação ao seu próprio grupo. Elias & Scotson discutem que, A estigmatização, como um aspecto da relação entre estabelecidos e outsiders, associa-se, muitas vezes, a um tipo específico de fantasia coletiva criada pelo grupo estabelecido. Ela reflete e, ao mesmo tempo, justifica a aversão – o preconceito – que seus membros sentem perante os que compõem o grupo outsider (2000, p.23). No Passo da Pátria, a delimitação espacial elaborada pelos moradores, a qual distingue os quatro pedaços, também está associada ao tempo de moradia na área. Na Pedra do Rosário surgiu o primeiro grupo de moradores e os do Passo vieram logo em seguida. O tempo em que residem os moradores destes dois pedaços é praticamente igual, uma característica grupal distintiva em relação aos demais, colocando-os, neste tipo de análise, na posição de “estabelecidos”. Não existem grandes diferenças de origem, formas de ocupação, renda e escolaridade entre os moradores dos quatro pedaços, mas no Areado e Pantanal predominam moradores que se instalaram recentemente, o que podemos considerar como “outsiders”. Os “estabelecidos” se conhecem há mais de duas gerações, compartilham memórias e uma vida em comum, que consolidou laços de vizinhança e solidariedade. 45 Nãoobstante esses laços de vizinhança do grupo de “estabelecidos” terem sido ampliados ao alcance de alguns moradores “outsiders”, a estrutura da hierarquia moradores antigos/moradores recentes permanece, na classificação do espaço no interior do Passo da Pátria, configurando quatro pedaços. Portanto, observando melhor a configuração espacial do Passo da Pátria, a partir da ótica dos moradores, percebe-se que existe um confronto entre as classificações espaciais localmente produzidas e a definição adotada pelos agentes do poder público, a qual enquadra os quatro pedaços num todo chamado de “Complexo Favelar do Passo da Pátria”. Para o poder público local, o Complexo Favelar do Passo da Pátria é formado por uma área em que se identificam três favelas: Passo da Pátria, Areado e Pantanal. Dá-se esta classificação, em virtude da existência de três Associações Comunitárias: Associação dos Moradores do Passo da Pátria, Associação dos Moradores do Areado e Associação dos Moradores do Pantanal. A partir da observação direta que realizamos durante o trabalho de campo, percebemos que há uma outra nomenclatura, atribuída pelos moradores, para determinar parte do espaço no Passo da Pátria, a qual corresponde à Pedra do Rosário. Menos dependente da existência de Associações Comunitárias, essa denominação atribuída pelos moradores sinaliza para outros elementos da dinâmica espacial da área, os quais conferem uma identidade diferenciada ao local. Sendo assim, consideramos que a área do Passo da Pátria engloba quatro pedaços: Pedra do Rosário, Passo, Areado e Pantanal. No Passo da Pátria, a intervenção do poder público local considera as diferentes formas de uso e apropriação dos espaços como mobilizadoras de conflitos sociais e entraves à urbanização. Esta visão dos agentes do poder público 46 não identifica as diferentes situações da dinâmica cultural estabelecida nos espaços do Passo da Pátria, as quais constituem elementos importantes da vida social e fundamentais para impulsionar processos de desenvolvimento socialmente justos. 1.3 – POLÍTICAS PÚBLICAS DE REURBANIZAÇÃO DAS FAVELAS Uma política pública é, sem dúvida, o resultado do processo em que um “estado de coisas” constituiu-se em um problema político e passa a compor a agenda pública governamental. De acordo com Graças Rua, uma decisão em política pública representa apenas um amontoado de intenções sobre a solução de um problema, expressas na forma de determinações legais: decretos, resoluções, etc... Nada disso garante que a decisão se transforme em ação e que a demanda que deu origem ao processo seja efetivamente atendida (Mimeo, p.12). Quando uma decisão política referente às demandas pela solução de algum problema passa a constar, legalmente, no ordenamento das gestões públicas, significa que se instituiu uma política pública. Apenas a avaliação desta poderá apreender quais os resultados obtidos nos distintos momentos de sua constituição e implementação e quais os elementos para a sua correção. Avaliar significa afirmar valores, independente dos modelos e metodologias adotados para a avaliação de políticas públicas. O processo de avaliar um programa ou projeto tem, antes de tudo, um atributo de valor, como a concepção de sociedade desejada, de justiça, etc. No Brasil, os estudos relacionados com a temática das políticas públicas de urbanização das favelas podem ser generalizados em dois grandes quadros: um primeiro, situado no período anterior à década de 70 do século XX, constituído pelo conjunto de planos e projetos, cujo ideário urbanístico de cidade estabelecia para as 47 favelas a sua remoção ou destruição. Um segundo momento é composto pelas proposições e projetos desenvolvidos no período pós década de 70, onde se encontram os programas públicos, cujo modelo objetiva a “integração” da favela à cidade. No primeiro quadro, nos planos e projetos que expressaram a visão tradicional de urbanização, a intervenção do poder público caracterizou-se pela ação autoritária do Estado. No Brasil, temos como exemplo, os grandes planos urbanísticos para as capitais, nos quais as favelas eram consideradas “aberrações” urbanas, um problema moral, restando para estas áreas a sua destruição. Neste período, destacam-se as ações engendradas pelos moradores, no sentido da resistência à remoção. Diante da ameaça de perderem suas casas, os moradores das favelas se organizaram, como forma de se oporem aos planos urbanísticos que impunham o deslocamento forçado. Enquanto ator político, os moradores das favelas tinham seu poder de barganha limitado pelo fato de que, como assinala Burgos, “ a preservação, pela Constituição de 1946, da restrição ao voto dos analfabetos ainda mantinha fora da competição política a grande maioria de seus moradores, inibindo sua participação até mesmo em engrenagens de tipo clientelística” (2004, p. 29). Na verdade, a participação e mobilização política dos moradores das favelas destacaram-se pelo diálogo com a Igreja, o qual favorecia a resolução de problemas como a ausência de serviços básicos como água, esgoto, luz e redes viárias, além de estimular a criação de centros sociais e a melhoria das habitações. Sob esta ótica, atuou a Fundação Leão XIII, pioneira na parceria com o poder público que desenvolveu ações junto às favelas cariocas (BURGOS, 2004). 48 O segundo quadro comporta o processo de democratização e de organização da sociedade brasileira, vivenciado pós-década de 70. A emergência de novos atores sociais e políticos instituiu novas possibilidades de consolidação de um ambiente democrático de participação e debate público. Neste ambiente democrático, aumentaram as exigências pelo cumprimento de direitos sociais e participação, redimensionando, assim, a intervenção política no âmbito das favelas. A construção dos programas que atenderiam às populações nas favelas passa a ser caracterizada por um distanciamento da ação remocionista e investimento na urbanização das favelas. A urbanização incide diretamente na consolidação das áreas de favelas e torna-se essencial para o discurso da integração da favela à cidade (BURGOS, 2004). Por meio de diferentes estratégias, através das políticas públicas de urbanização, ações são implementadas, as quais devem expressar os interesses específicos da população que vive na favela, além de consolidá-la como uma área “regularizada” da cidade. As propostas dos planejadores nem sempre encontram respaldo nas ordens próprias criadas pelos moradores; por isto é essencial o conhecimento sobre a população-alvo do programa e sobre os possíveis efeitos das intervenções na dinâmica cultural do conjunto de moradores. A avaliação dos diversos aspectos que envolvem as políticas públicas de urbanização é um recurso metodológico que permite perceber como os efeitos das intervenções urbanísticas são sentidos por um número considerável de pessoas que vivem nas favelas. Nem sempre a dinâmica cultural dos espaços urbanos se adequou às regras e normas propostas nas ações oficiais de ordenação espacial. Como aponta Lisabete Coradini, existem, 49 de um lado, inúmeras tentativas por parte da administração pública, no sentido de ordenar, vigiar e disciplinar o espaço urbano. Do outro, uma multiplicidade de vozes, cada uma expressando uma visão de mundo, tentando subverter, desordenar, libertar-se do olhar disciplinador e ressignificar a vida social (1995, p.29). Diferentes da leitura oficial da cidade existem outras formas de classificá-la, as quais são estabelecidas por histórias de vida e redes de relações sociais que, em vez de homogeneizá-la, constroem-na a partir de uma multiplicidade de referências sócio-espaciais que nem sempre legitimam o discurso da intervenção oficial nas cidades. Quando se trata da intervenção do Estado numa realidade social, visando a implementação de políticas públicas é fundamental
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