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2º GED - Fenilcetonúria Caso Clínico: Menina de um ano é levada ao consultório do seu pediatra pela mãe que afirma estar preocupada com o seu desenvolvimento. Ela nasceu fora dos Estados Unidos de parto sem complicações. A mãe relata que o bebê não está atingindo as marcas normais para um bebê de sua idade, e também descreve um odor estranho em sua urina e algumas áreas de hipopigmentação na pele e cabelo. No exame físico, a menina apresenta hipotonia muscular e microcefalia. A urina é coletada apresenta um odor “de rato”. Qual é o diagnóstico mais provável? Qual é a fundamentação bioquímica da hipopigmentação da pele e do cabelo? Resumo: menina de um ano nascida fora dos Estados Unidos com atraso do desenvolvimento, hipotonia, hipopigmentação e urina com odor desagradável. •Diagnóstico mais provável: Fenilcetonúria (PKU, do inglês, phenylketonuria) •Bases bioquímicas da hipopigmentação: Fenilalanina é o inibidor competitivo da tirosinase (enzima- chave na síntese da melanina). ABORDAGEM CLÍNICA: Fenilalanina elevada pode ser causadas por várias deficiências enzimáticas diferentes, resultando em conversão diminuída de fenilalanina em tirosina. A deficiência mais comum é a de fenilalanina-hidroxilase (autossômica recessiva), que resulta no quadro clássico de PKU. Duas outras deficiências enzimáticas que conduzem a PKU incluem di-hidrobiopterina-redutase e 6-pirruvoil- tetra-hidropterina-sintase, uma enzima na via biossintética de tetra-hidrobiopterina. Com PKU, o bebê parece normal ao nascimento, mas depois não consegue atingir metas de desenvolvimento normais. Se não identificado, a criança desenvolverá retardo mental profundo e comprometimento da função cerebral. Um odor desagradável na pele, cabelo e urina pode muitas vezes ser detectado clinicamente. Áreas de hipopigmentação desenvolvem-se secundariamente à interrupção da síntese de melanina. Nos Estados Unidos, todas as crianças são rastreadas para PKU, visando à prevenção das complicações graves ao longo da vida. O tratamento consiste em modificações na dieta, com a limitação da ingesta de fenilalanina e a suplementação de tirosina. O diagnóstico de PKU e o início da modificação da dieta deve ser implementada antes de três semanas de idade para prevenir o retardo mental e outros sinais clássicos de PKU. ABORDAGEM À FENILCETONÚRIA OBJETIVOS 1.Descrever a conversão bioquímica de fenilalanina em tirosina. 2.Descrever os eventos bioquímicos que ocorrem quando a conversão de fenilalanina em tirosina está inibida. DEFINIÇÕES HIPOPIGMENTAÇÃO: falta de cor na pele ou no cabelo em razão da ausência ou baixa quantidade do pigmento melanina na pele e no cabelo, um produto do metabolismo de tirosina (e fenilalanina). TETRA-HIDROBIOPTERINA: uma forma reduzida de quatro elétrons do agente redutor biopterina necessário para fornecer elétrons para fenilalanina-hidroxilase para a conversão de fenilalanina no seu produto hidroxilado, o aminoácido tirosina. FENILCETONÚRIA: a presença de quantidades elevadas de fenilcetonas, principalmente fenilpiruvato, na urina; uma indicação principal de alteração do metabolismo da fenilalanina resultante da transaminação elevada de fenilalanina devido à redução da hidroxilação de fenilalanina em tirosina. UFJF- Instituto de Ciências Biológicas – Departamento de Bioquímica Disciplina: Bioquímica I - Profª Drª Valquíria Medeiros DISCUSSÃO A fenilcetonúria é uma doença facilmente diagnosticável na infância e é importante que seja diagnosticada o mais cedo possível, para que a evolução clínica seja a melhor possível. Testes de laboratório podem ser realizados no período neonatal, e, agora, o teste genético pode identificar a doença antes do nascimento. A fenilcetonúria se desenvolve a partir de níveis elevados de fenilpiruvato na urina do paciente. Como pode ser visto na Figura 38.1, fenilpiruvato é o α-cetoácido correspondente do aminoácido fenilalanina. Ele é formado por transaminação da fenilalanina e α-cetoglutarato para produzir glutamato e fenilpiruvato. Essa reação é livremente reversível, portanto, é acionada por concentrações elevadas de reagentes ou produtos. Para conversão em larga escala de fenilalanina para fenilpiruvato, deve ocorrer um aumento na concentração da fenilalanina para impulsionar a reação de transaminação para a formação de fenilpiruvato. Esses níveis elevados de fenilalanina irão refletir no sangue como hiperfenilalaninemia, que é definida como níveis plasmáticos de fenilalanina acima de 120 μmol/L. A causa mais provável é uma alteração na reação da fenilalanina-hidroxilase. Os estados de doença resultante das alterações da reação de fenilalanina-hidroxilase podem ser encontrados: (1) no nível das enzimas, na reação, se refletir na ausência ou na alteração de proteínas; (2) no nível metabólico, refletido em efeitos semelhantes em outros processos metabólicos; e (3) no nível cognitivo, refletido em mudanças na função cerebral e retardo mental. Figura 38.1 Transaminação da fenilalanina para produzir fenilpiruvato, uma fenilcetona. Reação de hidroxilação da fenilalanina e seus componentes. Como pode ser visto na Figura 38.2, a reação de hidroxilação da fenilalanina é a via pela qual fenilalanina da dieta pode ser convertida em tirosina, aliviando a sua necessidade na dieta. Essa reação é catalisada pela fenilalanina-hidroxilase, uma mono-oxigenase que requer oxigênio molecular e um doador específico de dois elétrons, a tetra-hidrobiopterina. Um átomo de oxigênio molecular aparece no produto tirosina com um grupo hidroxila na posição “para”, ao passo que o átomo de oxigênio remanescente aparece no produto água. Figura 38.2 Conversão normal de fenilalanina no aminoácido tirosina catalisada pela fenilalanina- hidroxilase. O fornecimento de equivalentes redutores para fenilalanina-hidroxilase é dependente da redução da di- hidrobiopterina por NADH, catalisada pela enzima di-hidrobiopterina-redutase (Figura 38.2). Essa redução é dependente da disponibilidade de biopterina e, portanto, da via de síntese de biopterina. Assim, qualquer defeito genético ou de enovelamento em qualquer di-hidrobiopterina-redutase ou nas enzimas da via biossintética da biopterina, iria comprometer a eficácia da hidroxilação de fenilalanina em tirosina, resultando em hiperfenilalaninemia e também fenilcetonúria resultante do aumento da transaminação de fenilalanina para fenilpiruvato. A principal enzima nesta via é fenilalanina-hidroxilase. O gene da fenilalanina-hidroxilase está localizado no cromossomo 12 na região q23.2 e abrange 100 kb de DNA genômico. Centenas de alelos causadores de estados de doença foram identificados nesse gene, mais de 60% deles são classificados como alelos de sentido trocado (missense). Populações europeias e chinesas apresentam uma incidência maior, na faixa de uma ordem de grandeza, do que pessoas de ascendência africana. Essa expressão específica populacional de alelos causadores da doença pode explicar o vasto leque de incidência para esse distúrbio (5 a 350 casos/milhão de nascidos vivos). Destinos da tirosina A tirosina pode ser degradada por processos oxidativos em acetoacetato e fumarato, os quais entram nas vias de geração de energia do ciclo do ácido cítrico para produzir CO2 e ATP, assim como indicado na Figura 38.2. A tirosina pode ser posteriormente metabolizada para produzir vários neurotransmissores, como dopamina, adrenalina e norepinefrina. Hidroxilação de tirosina pela tirosina-hidroxilase produz di- hidroxifenilalanina (DOPA). Essa enzima, como a fenilalanina-hidroxilase, requer oxigênio molecular e tetra-hidrobiopterina. Como é o caso da fenilalanina-hidroxilase, a reação da tirosina-hidroxilase é sensível a alterações na di-hidrobiopterina-redutase ou na via de síntese de biopterina,qualquer um dos quais pode levar a uma interrupção na hidroxilação de tirosina, aumento nos níveis de tirosina e aumento da transaminação de tirosina para formar o seu α-cetoácido correspondente, para-hidroxifenilpiruvato, que também aparece na urina como um contribuinte para fenilcetonúria. A tirosina é também o precursor para a formação de melanina em melanócitos, a primeira etapa sendo catalisada pela tirosinase, como mostrado na Figura 38.3. Essa reação é uma reação em duas etapas em que DOPA é um intermediário na formação de dopaquinona. O fechamento do anel da porção alanina da dopaquinona forma um anel pirrol, e as reações subsequentes dão origem a melaninas, o pigmento escuro primário associado com a coloração da pele sendo eumelanina. A falta de tirosinase dá origem ao albinismo clássico. A fenilalanina é um inibidor competitivo da tirosina pela tirosinase. Assim, em uma situação em que a atividade de fenilalanina- hidroxilase é deficiente, não só ocorre o aumento do produto de transaminação o α-cetoácido correspondente fenilpiruvato, mas o mesmo acontece com os níveis de fenilalanina. Assim, o excesso de fenilalanina inibe a tirosinase e a formação de melanina, resultando em hipopigmentação da pele e do cabelo em pessoas afetadas. Figura 38.3 Conversão da tirosina em dopaquinona pela enzima tirosinase, uma enzima dependente de Cu+2 em melanócitos. Referencia Bibliográfica: TOY, Eugene C.; JR., William E S.; STROBEL, Henry W.; et al. Casos clínicos em bioquímica. 3rd ed. Porto Alegre: ArtMed, 2016. E-book. p.iv. ISBN 9788580555752. Fenilcetonúria: diagnóstico e tratamento Ciências Saúde (Adaptado de Artigo de Revisão: Santos MP, Haack A. Fenilcetonúria: diagnóstico e tratamento. Ciências Saúde, 23(4):263-270, 2012. A fenilcetonúria (FNC) é um erro inato do metabolismo, mais especificamente no metabolismo de aminoácidos, sendo uma doença de herança genética com característica autossômica recessiva. A modificação da sequência de bases do DNA (ácido desoxirribonucleico) ocasiona mutações gênicas, sendo que as aminoacidopatias (erros inatos do metabolismo de aminoácidos) são consequências dessas mutações. Aproximadamente 97% dos indivíduos afetados por hiperfenilalaninemias cursam com deficiência da enzima fenilalanina-hidroxilase. Defeitos de síntese e regeneração de BH4 (coenzima tetrahidro- biopterina) abrangem os restantes 2% dos casos, que devem ser considerados como diagnóstico diferencial das hiperfenilalaninemias, pois o seu tratamento e prognóstico são diferentes. Na fenilcetonúria, o metabolismo da FAL (fenilalanina) é prejudicado pela falta da enzima, assim a via metabólica normal não ocorre de maneira correta impedindo o metabolismo da tirosina e do triptofano, além de prejudicar a formação de melanina, serotonina, catecolaminas e outros neurotransmissores. Outro prejuízo da hiperfenilalaninemia é o acúmulo de FAL nos tecidos, originando outros compostos, como o ácido fenilpirúvico, presente em grandes quantidades na urina, deixando-a com um cheiro muito forte e estranho. A FNC é a mais comum e mais grave das hiperfenilalaninemias, que resultam do comprometimento da conversão de FAL em tirosina, estando à falta de tratamento adequado associada com alto risco para alteração do desenvolvimento cognitivo. O tratamento da FNC baseia-se na dieta restrita em FAL, e no uso de fórmula metabólica rica em aminoácidos, porém isenta de FAL. Por meio deste tratamento, os níveis de FAL no sangue tendem a diminuir, evitando-se o dano neurológico nos pacientes que têm diagnóstico precoce, e mantendo-se o consumo satisfatório de proteínas de modo a atender as necessidades de crescimento do paciente. O diagnóstico e o início de tratamento precoce resulta num desenvolvimento intelectual normal, havendo uma relação inversa entre o Quociente Intelectual (QI) da criança e a idade de início do tratamento do fenilcetonúrico. Diagnóstico da Fenilcetonúria Formas variadas da FNC foram descobertas desde a década de 70, exigindo a frequência de exames laboratoriais adicionais para permitir o aperfeiçoamento da diferenciação dos tipos, a fim de possibilitar o diagnóstico clínico e a prescrição de tratamento adequado. O diagnóstico deve ser feito precocemente por meio de exames laboratoriais que quantificam a fenilalanina sanguínea, pois aguardar manifestações clínicas pode provocar sequelas irreversíveis no indivíduo portador da doença. Os métodos laboratoriais utilizados para avaliar a FAL são espectrometria de massa, cromatografia líquida de alto desempenho (HPLC), cromatografia gasosa e testes enzimáticos e fluorimétricos. Níveis de FAL acima de 2 mg/dl devem ser confirmados com uma segunda análise de FAL e tirosina. Em casos confirmados de FNC, geralmente a razão FAL/tirosina é 3. Nos pacientes com FNC, a tirosina está diminuída, e a análise da urina mostra excreção aumentada de fenilpiruvato, fenilactato e fenilacetato. A triagem neonatal, conhecida como “Teste do pezinho”, é obrigatória no Brasil desde 1992. Esta é uma ação preventiva que permite diagnosticar doenças congênitas, assintomáticas no período neonatal possibilitando o estabelecimento de tratamento precoce específico e a diminuição ou eliminação das sequelas associadas a cada doença. O exame que diagnostica a FNC é um direito garantido a todo recém-nascido pela Portaria n.º 822/ GM, de 06 de junho de 2001. Quando realizados precocemente, o diagnóstico neonatal e o início do tratamento nutricional podem prevenir os danos neurológicos decorrentes do metabolismo inadequado de FAL. O rastreamento da FNC é efetuado com base na detecção de hiperfenilalaninemia. O nível de FAL nos recém-nascidos com FNC é normal ao nascer, mas aumenta rapidamente nos primeiros dias de vida após a ingestão de leite. A partir do “Teste do Pezinho” a fenilcetonúria pode ser classificada de três formas, conforme o nível de atividade percentual da fenilalanina-hidroxilase. A Tabela 1 mostra esta classificação. Esta última classificação indica uma condição benigna, que não causa nenhuma sintomatologia clínica e não necessita de tratamento. Na Triagem Neonatal, os valores de FAL considerados normais devem estar abaixo de 4 mg/dl. Na presença de hiperfenilalaninema (valores acima de 4 mg/dl), o exame deverá ser repetido, e sendo acima de 10 mg/dl, com o paciente recebendo uma dieta normal, com ingestão de 2-3 gramas de proteína/kg/dia, o tratamento dietético deve ser iniciado. Embora haja falta de consenso no que diz respeito à classificação das hiperfenilalaninemias, o objetivo é sempre o mesmo, apontar a necessidade ou não da implementação de tratamento dietético imediatamente após o diagnóstico. Tratamento Nutricional da Fenilcetonúria O tratamento padrão da FNC compreende duas estratégias conjuntas principais: a dieta restrita em FAL, e o uso de fórmula metabólica rica em aminoácidos, porém isenta de FAL. Por meio deste tratamento, os níveis sanguíneos de FAL tendem a diminuir, evitando-se o dano neurológico nos pacientes que têm diagnóstico precoce, e mantém-se o consumo proteico satisfatório para atender as necessidades de crescimento do paciente. A adesão imediata à dieta e a continuidade do tratamento dietético podem ser influenciadas por fatores cognitivos, emocionais, fisiológicos e culturais, além da limitação financeira devido ao elevado custo dos alimentos especiais e das implicações da dieta na saúde do paciente, tornando-se necessário, portanto, o constante acompanhamento para os pacientes e para suas famílias. O tratamento deve ser supervisionado por nutricionista especializado e pediatra, consistindo em monitoramento periódico por métodos clínicos, bioquímicos e avaliação do estado nutricional, analisando principalmente mudanças fisiológicas e fisiopatológicas que possam induzir o aumento ou a redução dos níveis séricos de fenilalanina. A periodicidade do acompanhamento divide-se da seguinte forma: mensal até os 6meses; bimestral dos 6 meses aos 12 meses de idade; trimestral do 1.º ao 3.º ano de idade; trianual dos 3 aos 12 anos; bianual após os 12 anos de idade. A dieta com baixo teor de FAL deve ser iniciada ainda nos primeiros meses de vida, preferencialmente no primeiro mês, para evitar o retardo mental e a manifestação clínica mais severa da doença. A FNC não contraindica o aleitamento materno e a possibilidade de mantê-lo como fonte de FAL permite ofertar ao lactente fenilcetonúrico todas as vantagens provenientes do leite materno, além de fortalecer o vínculo entre mãe e filho e proporcionar uma melhor aceitação da doença. Contudo, para que os ajustes dietéticos constantes sejam feitos a fim de manter o controle metabólico adequado, é indispensável que os pacientes sejam acompanhados freqüentemente. Pacientes portadores de fenilcetonúria precisam seguir uma dieta natural com restrição protéica, visando controlar a quantidade de proteína natural consumida, a fim de reduzir a ingestão de fenilalanina, e ao mesmo tempo evitar efeitos de uma dieta carente. Uma vez que a dieta é restrita de proteínas, pode ser comparada a uma dieta vegan no que diz respeito à composição de alimentos naturais permitidos. Entretanto, alguns alimentos naturais, como cereais e nozes, que são permitidos ao vegan, são restritos na dieta de fenilcetonúricos devido ao seu alto conteúdo protéico. Sendo a dieta restrita, torna-se necessária a suplementação nutricional, que é feita por meio da administração de fórmulas especiais, à base de misturas de L-aminoácidos isentas de fenilalanina. CONCLUSÃO A fenilcetonúria deve ser diagnosticada e tratada o mais precocemente possível. O diagnóstico assim como o tratamento tardio de fenilcetonúria pode ocasionar sequelas, como distúrbios comportamentais, crises convulsivas e perda progressiva da função cerebral, bem como déficit de desenvolvimento. O rastreamento da doença por meio do Teste do Pezinho evita que os portadores de fenilcetonúria cresçam sem o devido acompanhamento e tratamento. Embora existam diversos estudos referentes ao tratamento de fenilcetonúria, a dieta continua sendo o fator principal do tratamento, logo a orientação dietética deve ser realizada de forma adequada e o acompanhamento do estado nutricional de portadores de fenilcetonúria deve persistir por toda a vida. Além dos profissionais de saúde, a família também deve compreender a importância da terapia nutricional, pois influencia diretamente no seguimento e monitoramento da dieta, além de permitir o crescimento e desenvolvimento dos fenilcetonúricos. Referência: Santos MP, Haack A. Fenilcetonúria: diagnóstico e tratamento. Ciências Saúde, 23(4):263-270, 2012.