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Brasília-DF. Bases NeuroBiológicas e Psicofarmacologia do esPectro da esquizofreNia Elaboração Ana Carolina Dutra Tavares Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração Sumário APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................. 5 ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA .................................................................... 6 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 8 UNIDADE I INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA .......................................... 9 CAPÍTULO 1 EPIDEMIOLOGIA E HISTÓRICO DA ESQUIZOFRENIA .................................................................... 9 CAPÍTULO 2 SINTOMATOLOGIA ................................................................................................................. 13 CAPÍTULO 3 OUTROS TRANSTORNOS ASSOCIADOS À ESQUIZOFRENIA ....................................................... 30 UNIDADE II FATORES QUE INFLUENCIAM O DESENVOLVIMENTO DA ESQUIZOFRENIA................................................ 32 CAPÍTULO 1 FATORES GENÉTICOS .............................................................................................................. 32 CAPÍTULO 2 FATORES AMBIENTAIS .............................................................................................................. 41 UNIDADE III NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA .................................................................................................. 47 CAPÍTULO 1 ALTERAÇÕES MACROSCÓPICAS E FUNCIONAIS ..................................................................... 47 CAPÍTULO 2 ESTRUTURAS ENCEFÁLICAS ENVOLVIDAS NA ESQUIZOFRENIA ................................................... 53 CAPÍTULO 3 VIAS E CIRCUITARIAS ENVOLVIDAS NA ESQUIZOFRENIA ............................................................ 60 UNIDADE IV PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA ......................................................................................... 75 CAPÍTULO 1 HISTÓRICO DO TRATAMENTO DA ESQUIZOFRENIA ................................................................... 75 CAPÍTULO 2 ANTIPSICÓTICOS TÍPICOS ....................................................................................................... 80 CAPÍTULO 3 ANTIPSICÓTICOS ATÍPICOS ..................................................................................................... 87 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 99 5 Apresentação Caro aluno A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade. Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como pela interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia da Educação a Distância – EaD. Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade dos conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos específicos da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém ao profissional que busca a formação continuada para vencer os desafios que a evolução científico-tecnológica impõe ao mundo contemporâneo. Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira. Conselho Editorial 6 Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de Estudos e Pesquisa. Provocação Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor conteudista. Para refletir Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões. Sugestão de estudo complementar Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso. Atenção Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a síntese/conclusão do assunto abordado. 7 Saiba mais Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões sobre o assunto abordado. Sintetizando Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos. Para (não) finalizar Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a aprendizagem ou estimula ponderações complementares sobre o módulo estudado. 8 Introdução Neste módulo, estudaremos a esquizofrenia, uma doença crônica, altamente debilitante e de difícil de tratamento. Ela é constituída por 3 tipos de sintomas: os postivos, negativos e cognitivos. Os sintomas postivos são de fácil tratamento, sendo revertidos pelo uso de antipsicóticos típicos e atípicos. Em contrapartida, os sintomas negativos e cognitivos, em muitos casos, se mostram resistentes, mesmo aos antipsicóticos mais recentes. Muito ainda precisa ser esclarecido sobre esse transtorno, que envolve fatores genéticos e ambientais como gatilhos para o seu desenvolvimento. Atualmente, sabe-se que envolve múltiplos sistemas de neurotransmissão, bem como diferentes regiões encefálicas. Dessa forma, neste módulo, vamos explorar esse transtorno mental: veremos em detalhes a intricada rede de vias e circuitarias envolvidas e como elas interagem entre si, resultando nos sintomas que são identificados nos pacientes; e à luz da neurobiologia, entenderemos como os antipsicóticos agem, promovendo seus efeitos terapêuticos e colaterais/adveros. Vamos juntos entender as bases neurobiológicas e a psicopfarmacologia do espectro da esquizofrenia? Objetivos » Discutir os três tipos de sintomas que compõem a doença. » Identificar os fatores que contribuem para o desenvolvimento desse transtorno. » Identificar as estruturas encefálicas, bem como os sistemas de neurotransmissão e as vias que as interligam, que estão envolvidas na esquizofrenia, e o papel de cada uma na sintomatologia. » Com base no mecanismo de ação das classes terapêuticas utilizadas em cada um dos transtornos, identificar os efeitos terapêuticos e colaterais que são encontrados. 9 UNIDADE I INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA CAPÍTULO 1 Epidemiologia e histórico da esquizofrenia Vamos começar com números... desagradáveis, porém necessários para entendermos o impacto desta desordem sobre o indivíduo, as pessoas que o cercam e sobre a sociedade. A esquizofrenia atinge cerca de 1% da população mundial, sendo por isso uma desordem bastante prevalente. Existem algumas diferenças entre estudos, mas em geral esta é a prevalência média encontrada. Ela está presente em todas as culturas e em todas as classes socioeconômicas. Essa desordem mental apresenta uma diferença marcante entre os sexos.da combinação das “palavras do dicionário”, formando uma história coerente (STAHL, 2014). Assim, a epigenética envolve mecanismos que regulam a atividade genética sem alterar o DNA, sendo tais mecanismos capazes de influenciar o fenótipo do indivíduo. São encontrados desde o período embrionário e perduram por toda a vida. O conceito de epigenética surgiu na década de 1940, com o biólogo Conrad Waddington, que demonstrava interesse pelos processos que permitiam que o genótipo, a carga genética do organismo, conduzisse ao aparecimento de efeitos fenotípicos, as características expressas do organismo. Waddington supunha que existiam mecanismos específicos e complexos que conectavam o material genético às características do organismo; mecanismos estes que estariam interligados, de modo que qualquer alteração em um estágio inicial poderia causar modificações graduais e contínuas nos estágios seguintes. Alguns anos depois, durante a década de 1970, o conceito de epigenética começou a mudar. Descobriu-se que a epigenética seria uma alteração química do DNA, uma metilação. A primeira sugestão de que acrescentar um grupamento metil no DNA teria um papel biológico importante surgiu com estudos sobre a formação da memória de longo prazo no cérebro. A metilação do DNA seria um 37 FATORES QUE INFLUENCIAM O DESENVOLVIMENTO DA ESQUIZOFRENIA│ UNIDADE II mecanismo potencialmente importante para variações na expressão genética, podendo explicar especificamente a ativação ou inativação de determinados genes durante o processo de desenvolvimento do organismo. Mecanismos epigenéticos podem ser compreendidos como mecanismos que atuam sobre o genoma, produzindo modificações nos padrões de regulação da expressão gênica. Tais mecanismos podem mediar tanto sinais provenientes do ambiente interno, no qual a célula se encontra, quanto sinais vindos do ambiente externo, no qual o organismo se encontra. Assim, a epigenética possibilita ao organismo responder ao ambiente por meio de mudanças na expressão gênica. De modo geral, os mecanismos envolvidos na epigenética são a metilação, acetilação ou ainda através de fosforilação e outros processos regulados pela neurotransmissão, por fármacos e pelo ambiente, influenciando na estrutura da cromatina e na expressão gênica. Esses processos químicos podem ocorrer no DNA ou nas histonas. A metilação do DNA envolve a adição de grupos CH3 (metil) em regiões específicas do genoma logo após a replicação do DNA. Quando essas regiões não estão metiladas, os fatores de transcrição (como por exemplo, CREB e BDNF) têm livre acesso aos seus sítios de ligação na região promotora, ocorrendo, assim, a transcrição do gene. Assim, a metilação do DNA impede a transcrição, sendo por isso um mecanismo regulatório da expressão gênica. Esse mecanismo conduz a efeitos de longa duração sobre a expressão do gene e do fenótipo, mas existem modificações epigenéticas que tendem a ser de natureza passageira. Já a acetilação está relacionada à ativação gênica. Eventualmente, a metilação do DNA pode levar à desacetilação das histonas, ativando enzimas denominadas histona-desacetilases (HDAC). A desacetilação das histonas também exerce ação de silenciamento sobre a expressão gênica. A metilação e a desacetilação comprimem a cromatina, o que impede o acesso dos fatores de transcrição às regiões promotoras que ativam os genes. Por outro lado, a desmetilação e a acetilação exercem o efeito oposto: elas descomprimem a cromatina, como se uma comporta molecular fosse aberta, e, em consequência, os fatores de transcrição podem ter acesso às regiões promotoras dos genes e ativá-los. É interessante notar que a metilação do DNA tem sido a aposta para explicar a discordância entre gêmeos monozigóticos. Acima vimos que a concordância entre esses gêmeos é de 50%, quando o esperado seria algo mais próximo de 100%, afinal eles possuem material genético igual, são gêmeos idênticos. Nesse sentido, já foi demonstrado que o gêmeo diagnosticado com esquizofrenia ou transtorno depressivo bipolar apresenta mais metilação do DNA quando comparado ao gêmeo saudável. 38 UNIDADE II │ FATORES QUE INFLUENCIAM O DESENVOLVIMENTO DA ESQUIZOFRENIA Ainda nesse sentido, existe uma enzima, a DNMT-1, que é responsável pela metilação do DNA em várias regiões promotoras em neurônios gabaérgicos. É curioso que essa enzima se encontre aumentada em algumas camadas do córtex de pacientes com esquizofrenia ou com transtorno depressivo bipolar. A metilação do DNA também tem sido encontrada em associação ao sistema serotoninérgico. Um estudo revelou que os indivíduos com diagnóstico de esquizofrenia ou de transtorno depressivo bipolar têm um nível de metilação do gene relacionado ao receptor 5HT1A significativamente aumentado em relação a pessoas saudáveis, o que se acredita resultar em diminuição da sua transcrição, ou seja, seria este o mecanismo responsável pela menor expressão desse receptor em indivíduos diagnosticados com esses transtornos. Por fim, já foi visto que existe uma menor metilação do gene relacionado com as enzimas MAO-B e COMT em pacientes esquizofrênicos. Esse estudo utilizou como metodologia para coleta de amostra a saliva. Assim, vemos que, futuramente, a epigenética poderá contribuir para o diagnóstico da doença, juntamente com a avaliação clínica. De forma sucinta, vimos, então, que esquizofrênicos apresentam alterações genéticas que predispõem a alterações no desenvolvimento e maturação do SNC, nos sistemas glutamatérgico e dopaminérgico e também relacionados com o sistema imune. Isso é interessante pois vemos que pontos que têm sido constantemente associados com o diagnóstico da esquizofrenia, que na maioria das vezes ocorre durante a vida adulta, já se apresentam alterados em nosso “desenho de fábrica”, nosso DNA. Por exemplo, ambos os sistemas, glutamatérgico e dopaminérgico, constituem as duas principais teorias existentes atualmente e que visam explicar a esquizofrenia. Além disso, o fato de genes relacionados às proteínas envolvidas com o desenvolvimento neuronal, com a maturação do SNC e a plasticidade sináptica estarem alterados em nosso DNA reforçam a ideia de que a esquizofrenia é uma doença do neurodesenvolvimento com um caráter crônico e progressivo (neurodegenerativo). Vimos, ainda, que fatores ambientais – como processos inflamatórios, estresse, experiências traumáticas, a aprendizagem, as experiências sensoriais, a privação de sono, exposição às drogas – podem promover alterações químicas (metilação e acetilação principalmente) em nosso DNA e com isso influenciando a atividade genética, o que é chamado de epigenética. 39 FATORES QUE INFLUENCIAM O DESENVOLVIMENTO DA ESQUIZOFRENIA│ UNIDADE II Isto quer dizer que esses fatores ambientais podem aumentar ou diminuir a expressão de uma proteína. Em nossa primeira disciplina, estudamos que proteínas desempenham funções importantíssimas no SNC, atuando como enzimas, canais e receptores. Abaixo temos uma figura para facilitar a visualização das estruturas do cromossomo, que contém o nosso DNA, e das proteínas que são formadas a partir de sequências de aminoácidos. A informação sobre a sequência correta de aminoácidos para formar uma proteína funcional está codificada em nosso DNA. Dessa forma, alterações em nosso DNA podem levar a alterações funcionais em nosso organismo, contribuindo inclusive para o processo de desenvolvimento de transtornos mentais. Dessa forma, pela perspectiva da epigenética, as doenças mentais decorrem não apenas de genes anormais no seu DNA, dando origem a proteínas disfuncionais, mas também de genes normais que produzem proteínas funcionais normais, mas que são ativados ou silenciados nos momentos errados pelo ambiente. Na esquizofrenia, o indivíduo não apenas herda, supostamente, muitos genes anormais, que podem convergir para a formação de sinapses glutamatérgicas, contendo receptoresde NMDA, mas também apresenta, teoricamente, experiências notáveis de um ambiente estressante. Estas provocariam a expressão anormal ou o silenciamento também anormal de genes perfeitamente normais, exatamente na sequência necessária para causar tal doença. Figura 2. Estrutura dos cromossomos e estrutura dos aminoácidos às proteínas. Cromossomo DNA em espiral Dupla hélice de DNA Esqueleto carboidrato e fosfato As quatro bases Guanina Timina Citosina Adenina Estrutura primária Estrutura secundária Estrutura terciária Estrutura quaternária Sequência de aminoácidos Alfa-hélice Cadeia de polipeptídeo Subuidades montadas Fontes: https://www.sobiologia.com.br/conteudos/Seresvivos/Ciencias/biogenoma.php; http://lamoreabio2.blogspot. com/2013/07/estrutura-e-funcoes-das-proteinas.html; http://mestregenoma.com/genomica-genetica-diferenca/cromatina/. https://www.sobiologia.com.br/conteudos/Seresvivos/Ciencias/biogenoma.php http://lamoreabio2.blogspot.com/2013/07/estrutura-e-funcoes-das-proteinas.html http://lamoreabio2.blogspot.com/2013/07/estrutura-e-funcoes-das-proteinas.html http://mestregenoma.com/genomica-genetica-diferenca/cromatina/ 40 UNIDADE II │ FATORES QUE INFLUENCIAM O DESENVOLVIMENTO DA ESQUIZOFRENIA Fontes: https://www.sobiologia.com.br/conteudos/Seresvivos/Ciencias/biogenoma.php; http://lamoreabio2.blogspot. com/2013/07/estrutura-e-funcoes-das-proteinas.html; http://mestregenoma.com/genomica-genetica-diferenca/cromatina/. Se quiser entender melhor como as proteínas são sintetizadas a partir do DNA, assista aos vídeos dos links a seguir: https://www.youtube.com/ watch?v=bsLtaeETwX8 e https://www.youtube.com/watch?v=6nxRxoGME_I Essas abordagens podem vir a ser úteis, sobretudo em termos de tratamento e prognóstico, uma vez que poderão permitir não só a terapêutica dirigida a determinados sintomas, mas também prever a maneira como a doença poderá vir a se manifestar em cada indivíduo. Bom, então existe(m) outro(s) fator(es) que também contribui(em) para o desenvolvimento da esquizofrenia: os fatores ambientais. E é sobre eles que falaremos no próximo capítulo. https://www.sobiologia.com.br/conteudos/Seresvivos/Ciencias/biogenoma.php http://lamoreabio2.blogspot.com/2013/07/estrutura-e-funcoes-das-proteinas.html http://lamoreabio2.blogspot.com/2013/07/estrutura-e-funcoes-das-proteinas.html https://www.youtube.com/watch?v=bsLtaeETwX8 https://www.youtube.com/watch?v=bsLtaeETwX8 https://www.youtube.com/watch?v=6nxRxoGME_I 41 CAPÍTULO 2 Fatores ambientais Atuando em conjunto com os fatores genéticos para o desenvolvimento da esquizofrenia estão os fatores ambientais e psicossociais. Nesse sentido, destacam-se: insultos durante o desenvolvimento e fatores socioculturais. Em relação aos insultos durante o desenvolvimento, têm sido apontadas como fatores importantes as infecções viróticas durante o período gestacional – o que se relaciona com estação do ano do nascimento –, desnutrição acentuada durante as primeiras semanas de gravidez, complicações no parto, incompatibilidade de fator Rh e idade parental avançada. Entretanto, a influência de alguns desses fatores ainda é controversa. Já os fatores socioculturais parecem ter papel mais relevante na manifestação do transtorno, mais como gatilhos do que como causa. Dentre eles, citamos: crescimento em área urbanizada (o que não exclui a possibilidade de haver fatores biológicos nessa variável), grupos minoritários e/ou imigrantes (embora os estudos não sejam conclusivos em relação a isso), associação com o uso de cannabis e outras drogas e traumas durante o desenvolvimento, como história de negligência e/ou abuso (físico, psicológico e/ou sexual). Apesar de a esquizofrenia estar presente em todas as culturas e classes socioeconômicas, quando analisamos nações industrializadas, esse transtorno parece estar mais presente em classes socioeconômicas mais baixas. Existem duas hipóteses para isso. A primeira, de “origem social”, diz que o estresse encontrado no cotidiano de pessoas de classes mais baixas contribuiria para a manifestação da esquizofrenia. Nesse caso, a doença seria uma consequência de eventos que estão relacionados com a posição social e cultural. Já a segunda hipótese, da “mobilização descendente”, postula que uma vez que a doença se manifeste, os indivíduos movem-se para classes mais baixas ou que deixem de ascender a classes superiores, em decorrência das limitações impostas pela desordem. 42 UNIDADE II │ FATORES QUE INFLUENCIAM O DESENVOLVIMENTO DA ESQUIZOFRENIA Nutrição materna e estresse oxidativo Um dos maiores exemplos de como a nutrição materna pode impactar o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos é um estudo feito com crianças nascidas de mães que sofreram durante o “inverno da fome” na Holanda no início dos anos 1940. Durante a Segunda Guerra Mundial, os nazistas bloquearam a Holanda, impedindo-a de adquirir qualquer tipo de comida, como forma de represália pelo fato de a Holanda resistir à ocupação nazista. Isto afetou completamente o perfil nutricional das pessoas que viviam lá nessa época. Muitos anos depois, alguns grupos de pesquisas voltaram seus olhos para os indivíduos que foram gerados sob essas condições. Um dos achados foi que as taxas de esquizofrenia foram marcadamente maiores nesses indivíduos. O período gestacional corresponde a uma fase de crescimento, com intensa necessidade de aporte nutricional para o feto. A mãe é a porta de entrada para tudo o que chega até o feto, sejam coisas boas e necessárias, como os nutrientes e oxigênio, como também coisas ruins, como drogas (álcool, fumo, entre outros). Nesse sentido, micronutrientes, como o ácido fólico, vitamina B12 e ácidos graxos poli-insaturados, têm recebido bastante atenção nos últimos anos. Eles possuem papel relevante nos padrões de metilação do DNA, tendo função, portanto, na regulação da expressão gênica. O ácido fólico, por exemplo, atua como um cofator essencial na síntese de ácidos nucleicos, possuindo um papel importante na transferência de grupos CH3 (metil) para as reações de metilação do DNA. Taxas reduzidas de folato têm sido associadas com instabilidade genômica, defeitos do tubo neural e hipometilação genômica. Isto é, mecanismos epigenéticos estariam envolvidos no mecanismo pela qual a nutrição materna afetaria o desenvolvimento neural. Níveis alterados de micronutrientes afetam a neuroplasticidade, tanto durante o desenvolvimento como também na idade adulta, incluindo a proliferação e diferenciação celular de neurônios e de células da glia, bem como a sobrevivência neuronal. Alguns estudos já vêm investigando a associação entre micronutrientes e a esquizofrenia (BALANZÁ, 2017; BERRIDGE, 2018, MORETTI et al., 2017). De maneira interessante, a deficiência de micronutrientes, como o ácido fólico e a vitamina B12, pode induzir estresse oxidativo. O estresse oxidativo pode ser definido como um desequilíbrio entre a produção de espécies reativas de oxigênio (ERO) e/ ou nitrogênio (ERN) e a capacidade de defesa antioxidante do organismo. O cérebro é particularmente vulnerável ao estresse oxidativo e estudos indicam que alterações nos mecanismos de defesa antioxidante têm um papel crucial na fisiopatologia de 43 FATORES QUE INFLUENCIAM O DESENVOLVIMENTO DA ESQUIZOFRENIA│ UNIDADE II transtornos psiquiátricos, como esquizofrenia, transtorno bipolar e depressão (DAS et al., 2019, MITRA et al., 2017; SMAGA et al., 2015). Resumidamente, a deficiência de micronutrientes durante a gestação (por exemplo, ácido fólico, vitamina B12, vitamina D e ômega-3) é capaz de desencadear estresse oxidativo, levando à diminuição dos níveis de ácidos graxos poli-insaturados cerebrais ao nascer, o que pode contribuir para a manifestação de sintomas clínicos da esquizofrenia tardiamente, participando, então, da patogênese do transtorno. Assim, vemos a importância da nutrição materna balanceada a fim deminimizar o impacto do estresse oxidativo sobre o desenvolvimento neural. Além da importância durante a formação do SNC, já foi demonstrado que próximo ao primeiro evento psicótico, evento que marca o diagnóstico da esquizofrenia, pacientes jovens apresentam alterações nos níveis de micronutrientes, entre eles o ácido fólico. Em consonância a isso, já está bem estabelecido na literatura científica que pacientes esquizofrênicos apresentam alterações nos níveis de marcadores de estresse oxidativo, como o malondialdeido (MDA). Dessa forma, podemos ver que o estresse oxidativo interfere em todo o processo de neurodesenvolvimento desde a gestação, podendo permanecer durante a vida adulta. Complicações no parto e infecções Dentre as complicações no parto que se relacionam com a esquizofrenia está a hipóxia, condição de aporte reduzido de oxigênio durante o parto. Nesse sentido, sabe-se que regiões encefálicas, marcadamente alteradas na esquizofrenia, são particularmente sensíveis à hipóxia, como o hipocampo por exemplo. Quanto às infecções, embora pouco conclusivos, estudos têm apontado que infecções virais e bacterianas também parecem estar associadas à esquizofrenia. Um dos trabalhos pioneiros nesse sentido data da década de 1950. Esse estudo demonstrou que fetos expostos durante o segundo trimestre de gestação ao vírus da influenza A2, durante a epidemia de 1957, apresentavam risco mais elevado para esquizofrenia na vida adulta do que os não expostos. Outro estudo posterior relatou que havia uma tendência de 7% a 15% maior de esquizofrenia em indivíduos nascidos no final do inverno ou no início da primavera do que em outras épocas do ano. Isso chamou a atenção para o vírus influenza, em destaque a gripe epidêmica, que ocorre tipicamente no período de inverno. Entretanto, alguns relatos negativos também têm sido encontrados. 44 UNIDADE II │ FATORES QUE INFLUENCIAM O DESENVOLVIMENTO DA ESQUIZOFRENIA Outros agentes infecciosos também têm sido associados com a esquizofrenia, como o vírus da poliomielite, o da varicela-zoster e o Borna vírus, um RNA vírus com neurotropismo, mas os achados são controversos. Esquizofrenia e dependência química É um fato bem estabelecido na literatura científica que há um percentual acentuadamente maior de uso/abuso de substâncias químicas, de dependência química, entre esquizofrênicos quando comparamos com a população em geral. Destacando-se o uso de tabaco, álcool, maconha e cocaína. De modo geral, o uso de drogas como o tabaco e a maconha estão associados à menor frequência de sintomas negativos e cognitivos (HENQUET et al., 2008). Esses efeitos aparentemente benéficos do uso da droga entre os indivíduos com síndromes psicóticas remetem à ideia de um possível uso da substância como uma automedicação. No entanto, o uso de maconha é frequentemente associado com um aumento no número de recaídas dos sintomas psicóticos. O uso de drogas durante a adolescência também tem sido apontado como um fator relacionado ao desenvolvimento da esquizofrenia. Vários estudos recentes têm mostrado a associação entre o uso da cannabis sativa e tabaco e o surgimento posterior da esquizofrenia e também relacionados a outras síndromes psicóticas (HENQUET et al., 2008; VAN OS et al., 2010). Dessa forma, ainda não está claro se o uso de drogas de abuso é uma consequência ou se pode ser, sim, um fator desencadeador da esquizofrenia. Um estudo de Castle (2013 ) afirmou que a exposição à cannabis pode ser considerada um fator de risco causal para a esquizofrenia, que interage com outros componentes causais, mas que, ao mesmo tempo, esse fator de risco não deve ser considerado nem uma condição necessária nem uma condição suficiente para a gênese do transtorno. Mais uma vez, vemos a ideia de interação entre fatores na determinação do desenvolvimento do transtorno. Assim, as principais teorias que visam explicar a forte associação entre essas desordens, a esquizofrenia e a dependência química, se baseiam nas hipóteses da automedicação e da vulnerabilidade compartilhada. A hipótese da automedicação sugere que o consumo de drogas por pacientes esquizofrênicos seria uma forma de aliviar os sintomas negativos e cognitivos resistentes às medicações usuais e/ou de combater os efeitos colaterais do tratamento dos sintomas positivos. Contudo surgiram evidências de que essa hipótese não explicaria completamente a associação entre a esquizofrenia e a dependência: estudos recentes mostram que a dependência frequentemente precede à 45 FATORES QUE INFLUENCIAM O DESENVOLVIMENTO DA ESQUIZOFRENIA│ UNIDADE II manifestação da esquizofrenia e sugerem uma relação causal inversa daquela proposta pela teoria da automedicação entre essas doenças. Nesse contexto, surgiu a teoria da vulnerabilidade compartilhada, segundo a qual a comorbidade seria resultado de rotas neuropatológicas comuns, isto é, decorreria do fato de que existem fatores genéticos, gatilhos ambientais e disfunções neurológicas que são compartilhadas por ambas as doenças, assim, uma poderia predispor a outra. Como veremos no próximo capítulo, estudos evidenciam que o sistema mesocorticolímbico dopaminérgico é marcadamente envolvido na esquizofrenia. Além disso, esse mesmo sistema é o centro do mecanismo da resposta às drogas de abuso, onde ocorre uma grande liberação de dopamina, associada à sensação de prazer e recompensa, constituindo um dos principais componentes do processo da dependência. Assim, a adição e a esquizofrenia apresentam uma circuitaria neural em comum, na qual sistemas de neurotransmissores interagem. Isso tem fortalecido a teoria da vulnerabilidade compartilhada, contudo ainda não estão claros os mecanismos por trás dessa associação e nenhuma das duas hipóteses foi refutada ou comprovada. Estresse e hipotálamo Toda vez que precisamos nos adaptar a uma situação, seja em condição física ou emocional, o hipotálamo é ativado. Essa região é responsável pela ativação do sistema nervoso autônomo (simpático) bem como do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal. De maneira resumida, estímulos estressantes são processados no hipotálamo e este leva a ativação da glândula adrenal, que, por sua vez, irá liberar cortisol e adrenalina. O cortisol é conhecido como hormônio do estresse, e o sistema nervoso autônomo é aquele que atua nas condições de luta ou fuga. Fisiologicamente, a ativação dessas respostas é um mecanismo importante que permite que nos adaptemos a diferentes condições (frio, calor, ameaças), entre elas, eventos emocionais aversivos como traumas. No entanto, a ativação persistente desse eixo conduz à condição de hipercortisolemia e é capaz de produzir muitos efeitos adversos, como imunossupressão, atraso do crescimento, inibição da libido, alterações do padrão de sono e alimentação e alterações do humor, estando, inclusive, diretamente associada com os transtornos psiquiátricos como ansiedade, transtornos depressivos e a esquizofrenia. Há mais detalhes sobre o funcionamento desse eixo em outros materiais do curso, como no de transtornos depressivos e transtornos ansiosos. 46 UNIDADE II │ FATORES QUE INFLUENCIAM O DESENVOLVIMENTO DA ESQUIZOFRENIA Diversos estudos têm associado a hipercortisolemia à disfunção cognitiva e também ao primeiro evento psicótico da esquizofrenia. Em linha com esses estudos, a regulação da atividade do hipotálamo é feita, entre outras regiões, pelo hipocampo, região esta que está envolvida em processos de memória e possui um menor volume, tanto em pacientes com esquizofrenia, mas também com transtorno depressivo bipolar e unipolar. Resumidamente, a exposição a gatilhos ambientais de estresse repetido pode levar à condição de hipercortisolemia, e essa condição tem sido implicada como participante do desenvolvimento de transtornos psiquiátricos. Vimos nesta unidade que o desenvolvimento da esquizofrenia depende da interação de muitos fatores, sendo que nenhum deles é decididamente necessário nem suficientepara a manifestação da esquizofrenia. Esses fatores são divididos em genéticos e ambientais. No primeiro grupo, vimos que alterações em múltiplos genes estão relacionadas com a esquizofrenia, sendo esse fator definido com poligênico e não determinante. De modo geral, genes relacionados com a neurotransmissão glutamatérgica e dopaminérgica estão envolvidos, bem como genes com participação no desenvolvimento, maturação e neuroplasticidade do SNC. Vimos também que fatores internos e externos são capazes de regular a atividade genética, silenciando ou ativando genes, fenômeno conhecido como epigenética. Dessa forma, tais fatores irão influenciar a expressão de proteínas, o que sabemos pode mudar completamente a atividade de um sistema de neurotransmissão. Dentre os fatores ambientais, vimos que complicações no parto, como a hipóxia, podem contribuir para o desenvolvimento da esquizofrenia, mas não só isso. A má nutrição materna, por meio da epigenética e do estresse oxidativo, pode promover prejuízos no desenvolvimento neural. Infecções maternas durante a gestação também podem comprometer o desenvolvimento saudável do feto. Além disso, eventos que ocorrem durante a vida como exposição às drogas e também a eventos estressantes continuamente podem levar a mecanismos que interajam com outros fatores, levando ao desenvolvimento da esquizofrenia. A esquizofrenia, como muitos transtornos mentais, é resultado de predisposição genética somada a gatilhos ambientais. Quando esses fatores interagem, temos a manifestação da doença. Sem os gatilhos, os genes, por si só, não promoveriam a esquizofrenia. Da mesma forma, sem os genes latentes, sem o “desenho de fábrica” que predispõe ao transtorno, os gatilhos ambientais, os eventos estressantes, não seriam, por si só, capazes de fazer a doença emergir. 47 UNIDADE IIINEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA CAPÍTULO 1 Alterações macroscópicas e funcionais Para estudar a neurobiologia, isto é, os mecanismos neurais envolvidos na esquizofrenia, temos que ter acesso ao cérebro, assim, o conhecimento acerca desse tópico vem de estudos com neuroimagem ou de estudos com modelos animais. É importante mencionar que os estudos com humanos esquizofrênicos muitas vezes são de difícil conclusão, isso porque a doença é tão debilitante que além de o indivíduo apresentar a desordem mental, que é o objeto de estudo, muitos outros fatores como má alimentação ou desnutrição, desenvolvimento em condição de privação social, estresse social, também podem estar presentes. Apesar de eles serem uma consequência da esquizofrenia, eles podem também contribuir para o desfecho que está sendo observado. Isso quer dizer que nem todas as alterações ou nem toda a magnitude da alteração observada nos encéfalos de esquizofrênicos são decorrentes da esquizofrenia por si só, o que torna o trabalho ainda mais difícil. Os pacientes selecionados para participarem de um estudo devem passar por um processo de triagem rigoroso, de forma a evitar ao máximo a interferência desses fatores nos resultados obtidos. Caso algum fator não possa ser excluído, ele deve ser levado em consideração na análise e interpretação dos resultados. Vamos relembrar rapidamente um pouquinho de neuroanatomia... o nosso córtex, ou neocórtex, constitui a superfície do encéfalo e é formado por quatro lobos: o frontal, parietal, temporal e occipital. Esses lobos circundam um espaço, que são os ventrículos. Possuímos quatro ventrículos e entre eles há um espaço, que é preenchido com o fluido cerebroespinal. O fluido cerebroespinal (ou líquor ou líquido cefalorraquidiano) tem função de: 48 UNIDADE III │ NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA a. Nutrição, pois traz nutrientes; b. Proteção, pois age como um amortecedor em caso de lesões, reduzindo o impacto; c. Tem ação de flutuabilidade, pois todo o tecido está imerso nesse fluido, por isso esse líquido é capaz de suavizar o peso do encéfalo sobre a base do crânio e também de reduzir ou prevenir traumas, uma vez que o encéfalo não está em contato direto com a superfície óssea; d. Excreção, porque o movimento desse fluido é unidirecional, assim, depois da sua passagem pela SNC, ele é direcionado para o sangue, retirando impurezas, drogas, metabólitos ou qualquer outra substância. Ele vai passando e vai limpando; e. Endócrina, pois transporta hormônios. O volume de fluido cerebroespinal no SNC é de aproximadamente 150ml e são produzidos de 400 a 500 ml todos os dias. Além do neocórtex e desse espaço produzido pelos ventrículos, temos as regiões que compõem o sistema límbico (amígdala, hipotálamo, hipocampo), os gânglios da base, o tronco encefálico e o cerebelo. De um modo geral, o lobo frontal está envolvido em funções como memória de trabalho e atenção, enquanto o lobo parietal está envolvido com o processamento do ambiente espacial em que estamos inseridos. Os lobos temporais têm sido implicados na memória, bem como na compreensão da linguagem e na informação auditiva e os lobos occipitais estão associados com o processamento da visão. No mesencéfalo, encontramos uma série de feixes de neurônios que são bastante relevantes para o tema desta disciplina e estão relacionados com neurotransmissores, como a dopamina e serotonina. A amígdala está envolvida na emoção; o hipocampo, com a memória e os gânglios da base, que estão envolvidos nos processos cognitivos, emocionais e motores. Essas são as principais estruturas das quais falaremos a respeito da esquizofrenia. Muito do que se sabe sobre a esquizofrenia vem de estudos com neuroimagem. Nesse sentido, os primeiros exames com neuroimagem são da década de 1930. Naquela época, o único exame de imagem disponível era o raio-x, mas esse tipo de exame tem baixíssima sensibilidade. Não era possível distinguir matéria branca da matéria cinzenta nem onde tinha ou não fluido. 49 NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE III Para contornar essa limitação, o neurocirurgião Walter Dandy teve a ideia de retirar parte do fluido cerebroespinal e inserir uma bolha de ar. Essa bolha segue o fluxo do fluido, indo até os ventrículos e depois saindo do SNC. Com essa técnica, Dandy conseguia produzir uma imagem na qual era possível distinguir algumas estruturas e com isso importantes observações foram feitas. A primeira delas e a mais marcante em relação à esquizofrenia é o alargamento dos ventrículos, observou-se também que o volume de regiões, como o lobo frontal e temporal, era menor, os giros eram mais finos e os sulcos mais grossos. Juntos, esses dados revelam uma menor massa encefálica nos indivíduos com esquizofrenia. Por volta da década de 1980, surgiu a ressonância magnética nuclear, e essa técnica revolucionou o conhecimento sobre os transtornos mentais, incluindo a esquizofrenia. A física por trás dessa técnica é bastante complexa, mas de forma resumida, a ressonância magnética consiste em posicionar a cabeça em um campo magnético e esse campo força átomos de hidrogênio a girar em torno de um eixo. Esses átomos são encontrados em maior abundância onde tem água. Um pulso de radiofrequência é administrado, e isso faz com que esses átomos de hidrogênio absorvam e liberem energia. O grau de energia liberado é uma pista de onde estão localizados níveis mais altos ou mais baixos de água no cérebro. Esses níveis de água nos permitem distinguir a massa cinzenta, que são os corpos celulares dos neurônios, da matéria branca, que são os axônios dos neurônios. Ou seja, a ressonância magnética permite uma imagem muito mais detalhada do tecido cerebral, com ela já é possível identificar regiões subcorticais como o hipocampo e amígdala. A partir desses estudos, observações consistentes foram feitas em pacientes esquizofrênicos comparados a sujeitos controle: » Há redução, de aproximadamente 5%, do córtex pré-frontal e do córtex temporal; » Os ventrículos laterais e o 3o ventrículo são em média 20 a 30% maiores; » Há aumentodos gânglios da base. Os dados relativos ao córtex e ventrículos são independentes da técnica utilizada, até mesmo em análises de tecidos post-mortem os mesmos resultados são encontrados. Isto demonstra a robustez dessas observações. Com relação aos achados sobre o aumento dos gânglios da base, interessantemente, esse aumento parece estar relacionado com o uso de antipsicóticos (quantidade e frequência). 50 UNIDADE III │ NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA Também podem ser utilizados estudos com ressonância magnética funcional, em que o objetivo não é analisar a estrutura, mas a funcionalidade em determinadas áreas. Nesse caso, a medida é baseada nos níveis de oxigênio, pois quanto maior a atividade em uma região, maior será o aporte de oxigênio destinado a ela. Geralmente, é solicitado ao paciente que ele execute uma determinada tarefa e observa-se que áreas do encéfalo são ativadas para execução daquela tarefa. Estudos de neuroimagem funcional também foram reveladores sobre a neurobiologia da esquizofrenia, principalmente acerca de funções cognitivas como atenção e memória de trabalho. A atenção pode ser definida como a capacidade de se concentrar em um estímulo específico ou ser capaz de se concentrar em um estímulo específico e ignorar os estímulos que causam distração. A memória de trabalho inclui a capacidade de lembrar de coisas durante um curto período de tempo, segundos ou minutos, e ainda mais importante, a capacidade de manipular essa informação. O exemplo mais utilizado é se lembrar de um número de telefone, mas também ser capaz de revertê-los na sua cabeça. Uma das avaliações feitas com a neuroimagem funcional é o teste de desempenho contínuo, no qual uma série de estímulos é apresentada. Dentre eles, muitos são estímulos distratores e, periodicamente, um estímulo alvo é apresentado. Vimos esse teste na Unidade I, quando abordamos os sintomas cognitivos e a atenção. De forma bastante clara, foi identificada uma ativação reduzida de uma área do córtex frontal, o córtex pré-frontal dorsolateral, em pessoas com esquizofrenia em comparação com controles. Além disso, essa observação é feita mesmo em pessoas recém-diagnosticadas com esquizofrenia (o que demonstra estar de acordo com a ideia de que os sintomas cognitivos são manifestados precocemente, antes mesmo do diagnóstico) e que possuíam exposição mínima à medicação antipsicótica. Além do TDC, diversas outras tarefas podem ser realizadas em associação com exames de neuroimagem. Nesses casos, os estudos têm apontado para uma hipoatividade do CPF durante a execução de tarefas cognitivas e mnemômicas. Alterações em áreas motoras também foram identificadas durante a execução de movimentos. Do ponto de vista funcional, a redução de atividade no CPF compromete a seleção de circuitarias apropriadas para a execução de tarefas rotineiras, pois, como veremos mais à frente, é no CPF que encontramos a base para as funções cognitivas complexas como o raciocínio, o planejamento, além de possuir uma função importante sobre o controle emocional e a personalidade. Estudos com ressonância magnética têm demonstrado que pode haver associação entre as alucinações e alterações no giro temporal superior, onde estão localizadas diversas áreas corticais relacionadas com o processamento da linguagem bem como 51 NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE III alterações no giro parahipocampal, CPF e outras partes do lobo frontal com os sintomas negativos e cognitivos. Assim vemos que na esquizofrenia há uma disfunção cortical generalizada e há uma forte indicação de que essas alterações tenham início em fases iniciais do desenvolvimento humano, o que levaria a esquizofrenia a ser uma doença do desenvolvimento. Vimos anteriormente que alterações genéticas dão suporte à teoria de que a esquizofrenia é uma doença do neurodesenvolvimento, associada a um progresso neurodegenrativo. Tais alterações são referentes a genes relacionados com a síntese de proteínas essenciais ao desenvolvimento, maturação e plasticidade do SN. A deficiência dessas proteínas em estruturas como o hipocampo e o córtex pré-frontal, que são determinantes para a desenvolvimento cognitivo, têm sido apontadas como fatores de risco para a esquizofrenia. Essa teoria teve início a partir de estudos que correlacionaram a presença dos sintomas negativos e cognitivos com alterações na via mesocortical prévias à manifestação dessas disfunções comportamentais. Por motivos que não se conhecem bem ainda, embora as alterações neuroquímicas e neurobiológicas já estejam presentes em fases iniciais do desenvolvimento, os sintomas só se manifestam a partir de um determinado ponto de maior desenvolvimento do SNC e dependem da interação com fatores ambientais como o estresse e a exposição às drogas de abuso. Outra característica da esquizofrenia é a ausência dos padrões normais de lateralidade hemisférica, resultando na chamada assimetria hemisférica (AH). A AH refere-se ao fato de que algumas funções cognitivas são processadas de formas diferentes pelos hemisférios cerebrais direito e esquerdo. Cada hemisfério cerebral apresenta uma tendência a desempenhar funções específicas. Por exemplo, a área de Broca está relacionada com o processo de produção de linguagem em ambos os hemisférios, contudo as funções desempenhadas por essa área no hemisfério esquerdo não são as mesmas no hemisfério direito. No esquerdo, encontramos o processamento relacionado à estrutura e ao conteúdo das frases. No direito, está presente a função chamada de prosódia, isto é, nele há processamento da entonação e do ritmo do discurso, estes, por sua vez, revelam o conteúdo emocional da fala. 52 UNIDADE III │ NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA Estudos comportamentais mostraram que há uma redução da dominância da linguagem no hemisfério esquerdo não somente na esquizofrenia, mas também em pessoas com esquizotipia. Além disso, exames de neuroimagem associados com o teste do TDC revelam que em esquizofrênicos os prejuízos encontrados nesse teste estão associados com alterações no tálamo, giro angular e supramarginal, giros inferior e pós-central. Essas alterações estão presentes apenas no lado esquerdo. Assim, na esquizofrenia, observa-se que o desenvolvimento da AH está prejudicado. 53 CAPÍTULO 2 Estruturas encefálicas envolvidas na esquizofrenia Córtex pré-frontal O córtex pré-frontal (CPF) é o mais elevado nível da hierarquia cortical dedicada à representação e execução de ações. Por isso, ele está interligado com diversas regiões corticais que recebem informações dos sistemas sensoriais e motores e também com várias estruturas subcorticais. É a parte mais anterior do lobo frontal, sendo subdividido em três regiões: orbital, medial (que inclui a porção ventromedial e o giro cingulado anterior) e dorsolateral. A porção dorsolateral é o centro das funções executivas, que serão descritas mais à frente, e por isso tem várias funções cognitivas associadas a ela como a atenção, o planejamento de ações, a memória de trabalho e a flexibilidade mental. Funções estas que estão prejudicadas na esquizofrenia. A divisão orbital está relacionada com aspectos emocionais e também com o controle inibitório e a personalidade. A porção medial está associada com aspectos motivacionais. Dessa forma, disfunções do CPF podem levar a diferentes tipos de alterações comportamentais. É importante lembrar que essas áreas também estão interligadas. Através das funções executivas, o CPF pode controlar, organizar e coordenar várias funções, permitindo ao indivíduo solucionar problemas e antecipar consequências de uma determinada ação. As funções executivas têm como papel fundamental a organização temporal do comportamento, envolvendo também a linguagem e o raciocínio. Para isso, elas usam como base duas funções cognitivas: a memória de trabalho, que manipula as informações necessárias para atingir objetivos; e os ajustes preparatórios, responsáveispela preparação para a execução e antecipação de consequências das ações. Assim, podemos dizer que as funções executivas participam da adaptação ativa do indivíduo ao ambiente. Vimos que a atenção é um domínio cognitivo que está alterado na esquizofrenia e que particularmente o mecanismo de filtro atencional de cima para baixo está prejudicado em esquizofrênicos. A neurobiologia do filtro de cima para baixo está no córtex frontal enquanto que a do de baixo para cima está no tronco encefálico, em regiões como o colículo superior para informação visual e colículo inferior para informação auditiva. Isto quer dizer que pelo CPF podemos voluntariamente 54 UNIDADE III │ NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA selecionar para qual estímulo estaremos mais focados, em detrimento de outros, para atingir um objetivo. Isso acontece porque o CPF pode modular a atividade de outras regiões associadas ao processamento sensorial, exercendo esse filtro chamado de cima para baixo, pois envolve a atividade de um nível hierárquico superior, o CPF, sobre outros de níveis inferiores. Uma forma de avaliar o processamento cima para baixo em pacientes é o teste dicótico. Nele são apresentadas sílabas diferentes, porém com a mesma vogal, para cada um dos ouvidos. Os pacientes são orientados a dizer o que puderam ouvir ou o que identificaram especificamente com um dos dois ouvidos. Assim, testa-se a capacidade de privilegiar uma fonte sensorial em detrimento de outra, e isso é mediado pelo mecanismo cima para baixo, afinal, escolhe-se voluntariamente qual ouvido será o privilegiado e receberá maior atenção. Na primeira condição, quando é requerido que digam o que ouviram (ou seja, uma percepção gerada pela informação vinda dos dois ouvidos), há uma vantagem do ouvido direito. Isto faz sentido, pois a informação sensorial é processada no lado contralateral, isto é, a informação vinda do ouvido direito é processada no hemisfério esquerdo, onde são encontradas estruturas neurais voltadas para a comunicação verbal (uma assimetria normalmente encontrada em humanos). Durante as alucinações, há uma vantagem do ouvido esquerdo, demonstrando um processamento alterado, já que o esperado seria uma propensão à sílaba apresentada ao ouvido direito. As três divisões do CPF estão associadas aos processos de atenção. A divisão dorsolateral relaciona-se com atividades de atenção dividida, o CPF orbital parece estar associado com a atenção sustentada, uma vez que lesões nessa área resultam em distratibilidade associada à hiperatividade e hiperreatividade, e o córtex cingulado anterior, a porção medial do CPF, está relacionado com a atenção seletiva e também com a atenção sustentada, estando envolvido na resistência à interferência de estímulos distratores. A atenção é uma função cognitiva que contribui para o funcionamento das capacidades executivas. Fuster (2005) aponta dois tipos de atenção: uma direcionada para acontecimentos do passado e que faz parte da memória de trabalho, e uma dirigida para o futuro ou focada na antecipação das consequências de eventos e ações do presente, que está relacionada com o ajuste preparatório. Este último é uma função prospectiva na qual a atenção seletiva está dirigida para a preparação da ação, priorizando os estímulos sensoriais e as respostas motoras 55 NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE III que levam à execução de tal ação. Assim, há a supressão de interferências (externas e internas) irrelevantes para o desenvolvimento da ação. Além disso, o CPF também está relacionado com a memória de trabalho. O CPF dorsolateral desempenha um papel fundamental nos processos de memória implicados nas estratégias de codificação e manipulação de informação. Ele também se encontra envolvido na recuperação da informação memorizada e armazenada no hipocampo e lobos temporais mediais, e na memória contextual, que é a capacidade de situar no tempo e no espaço, quando e onde se aprendeu determinada informação. Lesões no CPF impedem que o indivíduo consiga situar tanto no espaço como no tempo a fonte da informação, ou seja, a pessoa evoca a informação memorizada, mas não consegue associar ao contexto ou situação em que aprendeu essa informação, o que a impede de usar a informação que foi evocada de maneira apropriada. Isto faz com que o CPF tenha papel não só na memória de curto-prazo, a memória de trabalho, mas também contribui para a memória de longo prazo, a memória episódica. Agora que vimos as funções sediadas no CPF e que os estudos de neuroimagem demonstram que há redução da atividade dessa região em pacientes esquizofrênicos, conseguimos entender os sintomas cognitivos tão marcantes nesse transtorno mental. Além disso, a magnitude dos sintomas negativos já foi correlacionada positivamente com o nível de hipoatividade nessa região. Não podemos esquecer que existem autores que defendem que os sintomas positivos também teriam origem na disfunção cortical. Falaremos mais sobre isso quando abordarmos as circuitarias. Irmãos não afetados de pacientes com esquizofrenia podem ter o mesmo processamento ineficiente da informação dos pacientes esquizofrênicos no CPF dorsolateral, embora em grau muito menor. Isso foi observado com exames de neuroimagem durante a realização de tarefas cognitivas. Os irmãos não afetados devem compartilhar alguns dos genes de susceptibilidade para a esquizofrenia com o irmão afetado, porém não um número suficiente desses genes de risco para apresentar a síndrome completa da esquizofrenia. A neuroimagem funcional também revelou processamento ineficiente da informação em pacientes pré- sintomáticos clinicamente silenciosos destinados a evoluir para a síndrome completa da esquizofrenia. Movimentos sacádicos são movimentos oculares rápidos que permitem o redirecionamento do foco da nossa visão para o estímulo que está sendo focalizado. O objetivo é centralizar um estímulo na fóvea, parte da retina que apresenta maior acurácia para a formação da imagem. 56 UNIDADE III │ NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA Mas o que os movimentos sacádicos dos olhos estão fazendo aqui, em um material sobre esquizofrenia? Bom, alguns estudos utilizam os movimentos sacádicos dos olhos como forma de avaliar o controle motor, cognição e memória. Isso ocorre porque o controle dos movimentos sacádicos pode ser voluntário ou não. Quando é voluntário, envolve partes do córtex frontal, como, por exemplo, o CPF, para o planejamento da ação de focar a visão e consequentemente a atenção em um estímulo, mas também áreas motoras, que irão realizar a movimentação dos olhos. Eles também podem ser manifestados reflexamente, nesse caso, estruturas do tronco encefálico serão responsáveis por essa ação. Mais uma vez vemos aqui os mecanismos de cima para baixo e de baixo para cima. Lembrando que estruturas hierarquicamente superiores podem controlar a atividade de estruturas inferiores. Além disso, esquizofrênicos apresentam disfunções nos movimentos oculares. Assim, os movimentos sacádicos são uma forma de avaliar processos cognitivos e também representam um traço clínico da esquizofrenia. Quando um alvo se move com direção e velocidade previsíveis, em indivíduos normais ocorre a chamada perseguição lenta, que consiste em perseguir um alvo com os olhos a fim de mantê-lo no foco visual. Em esquizofrênicos, esses movimentos de busca, de perseguição lenta estão disfuncionais. A diminuição na exploração visual tem sido correlacionada a prejuízos funcionais no córtex frontal. Em contrapartida, esquizofrênicos apresentam maior percentual de movimentos sacádicos reflexos, o que seria esperado uma vez que o córtex frontal, que pode modular esses movimentos desencadeados por estruturas de níveis hierárquicos inferiores, está com a sua atividade e funcionalidade alteradas na esquizofrenia. Além disso, essa disfunção dos movimentos oculares pode estar envolvida nos prejuízos exibidos porpacientes esquizofrênicos em reconhecimento facial. Também pode ocorrer na esquizofrenia prejuízos na capacidade de identificar e interpretar emoções com acurácia. Esse prejuízo pode ser decorrente de um processamento ineficiente da informação no CPF ventromedial e na amígdala. Uma forma de avaliar isso é por meio de exame de neuroimagem, associando uma tarefa de análise de expressão facial com a atividade da amígdala. A amígdala costuma ser ativada quando o indivíduo olha para faces assustadoras e ameaçadoras, enquanto que os pacientes com esquizofrenia podem não ter essa capacidade. Isso pode representar uma distorção da realidade, bem como um prejuízo no reconhecimento de emoções negativas e na decodificação de emoções negativas na esquizofrenia. A incapacidade de elaborar a resposta emocional “normal” a um 57 NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE III rosto assustador também pode levar à incapacidade de interpretar pistas sociais e a distorções de julgamento e raciocínio na esquizofrenia. Em contrapartida, um rosto neutro provoca pouca ativação da amígdala em pessoas que não têm esquizofrenia. Contudo, pode causar uma reação excessiva no paciente com esquizofrenia, o qual pode julgar de forma errada pessoas de modo negativo. O processamento emocional inadequado na amígdala pode estar relacionado com sintoma paranoia e levar a prejuízo do funcionamento interpessoal. Alterações no córtex orbitofrontal estão relacionados aos sintomas agressivos. Hipocampo O hipocampo (HP) é uma estrutura cortical localizada no lobo temporal, bilateralmente. Ele é considerado a sede das memórias, sendo responsável pela conversão da memória de curto para longo prazo, e alterações nessa área impedem que a pessoa construa novas memórias. O HP também tem papel importante na percepção de estímulos, pois utilizamos nossa experiência prévia, armazenada no HP, para o processamento de informações. Além disso, o HP possui grande densidade de receptores para glicocorticoides endógenos como o cortisol, sendo por isso um ponto de interação com a exposição ao estresse. Em esquizofrênicos, muitas vezes seu tamanho está reduzido, em especial no hemisfério dominante. Não é de hoje que se sabe do envolvimento de alterações no hipocampo na fisiopatologia desse transtorno. Contudo, com o avanço dos exames de neuroimagem, mais atenção tem sido dada ao HP. Ele envia projeções diretamente para o CPF dorsolateral, com isso, já é de se imaginar que ele seja uma região importante na esquizofrenia. De forma interessante, em modelos animais, a lesão do HP durante fases iniciais do desenvolvimento leva a alterações estruturais nas circuitarias do CPF, além de produzir prejuízos cognitivos que, assim como em humanos, só se manifestam após a puberdade. Assim, surgiu a teoria de que um distúrbio precoce nas interações entre o HP e CPFdl seria o ponto central na fisiopatologia da esquizofrenia. Ainda na década de 1990, um estudo com gêmeos idênticos, porém discordantes na esquizofrenia, a neuroimagem por PET (tomagrafia por emissão de pósitrons) mostrou que quanto maior era a diferença de tamanho entre o HP esquerdo entre os gêmeos, maior era a diferença na ativação do CPFdl durante a execução de um teste cognitivo (WEINBERGER et al., 1992). Essa alteração na conectividade entre 58 UNIDADE III │ NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA essas duas regiões não é encontrada apenas em pacientes crônicos, mas também em pacientes de primeiro episódio e em indivíduos considerados de alto risco à esquizofrenia (BAHNER; MEYER-LINDENBERG, 2017). Núcleos da base Os núcleos da base são o estriado dorsal (formado pelo caudado e putâmen) e ventral (núcleo accumbens), globo pálido, núcleo subtalâmico e a substância negra. Apesar de envolver diferentes estruturas, os núcleos da base funcionam como uma unidade, desempenhando diversas funções sobre o sistema motor, emoção, cognição e avaliação de recompensa. Podemos dizer que os núcleos da base são um importante sítio de processamento de informação, pois praticamente todas as regiões corticais emitem fibras destinadas ao corpo estriado: as que chegam ao caudado são provenientes das regiões associativas, como o CPF, enquanto as que terminam no putâmen são geralmente originárias das regiões sensoriais e motoras. Eles fazem parte de um circuito juntamente com áreas corticais e o tálamo. Esse circuito tem início nas regiões corticais, segue para os núcleos da base; deles, segue para o tálamo e este se comunica com outras áreas corticais. Assim, o circuito é córtex- núcleos da base-tálamo-córtex (CNTC). Embora pareça “simples”, esse circuito é bastante complexo. Há a participação de vários neurotransmissores como glutamato, GABA e dopamina, além de outros neuromoduladores. Pouco se conhece sobre as ações de muitos neurotransmissores e neuromoduladores ativos nos circuitos dos núcleos da base. Para complicar ainda mais, muitas vezes uma estrutura vai inibir uma segunda estrutura, cuja saída (output) também é inibitória para uma terceira estrutura. O resultado dessa sequência é o de desinibir, ou aumentar, a atividade da terceira estrutura, porque a inibição da segunda estrutura reduz sua saída inibitória. Sim, é muito complexo, mas, de uma forma resumida, podemos dizer que os núcleos da base funcionam como um filtro, impedindo o tálamo de enviar informações sensoriais para certas partes do córtex. Esse filtro só é retirado a partir de comandos do próprio córtex, vindos de outras áreas corticais. Cinco alças se destacam em relação à esquizofrenia: » Alça das funções executivas, envolvida com a resolução de problemas, representação e manutenção de objetivos, alocação de recursos atencionais; » CPFdl --- núcleo caudado superior --- tálamo --- CPFdl; 59 NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE III » Alça da atenção seletiva; » Córtex cingulado dorsal – estriado ventral – tálamo – córtex cingulado dorsal; » Alça das emoções, envolvida com medo e inclusive com os transtornos depressivos; » Córtex cingulado anterior (ubgenual ventral) --- núcleo caudado inferior – tálamo – Córtex cingulado anterior (ubgenual ventral); » Alça da impulsividade; » Córtex orbitofrontal – núcleo caudado inferior --- tálamo --- córtex orbito-frontal » Alça da atividade motora; » CPF e córtex pré-motor – putâmen e estriado lateral – tálamo – CPF e córtex pré-motor. Sabemos que esquizofrênicos apresentam uma menor atividade no CPF e considerando que essa é uma região que se comunica com os núcleos da base, podemos inferir que a comunicação estaria comprometida. Nesse sentido, em 1990, Carlsson e Carlsson, demonstraram que alterações neste circuito poderiam estar envolvidas nos sintomas positivos da esquizofrenia, na psicose. Eles propuseram que uma diminuição nas aferências glutamatérgicas do CPF para o estriado bem como o aumento da atividade dopaminérgica nas vias mesolímbica e nigroestriatal, ambos característicos da esquizofrenia, levariam a uma redução do filtro produzido pelos núcleos da base sobre o tálamo. Essa seria a origem dos sintomas positivos, das alucinações e delírios. Dentre os núcleos da base, o núcleo accumbens tem sido particularmente associado com a esquizofrenia. Ele também recebe projeções glutamatérgicas vindas do CPF e também de outras áreas límbicas como a amígdala e o HP. Do Nac partem projeções para os núcleos da base de saída, especialmente o globo pálido. Além disso, o Nac recebe projeções dopaminérgicas vindas da área do tegumento ventral (ATV). Estudos demonstraram que as aferências GLU e DA convergem sobre os mesmos espinhos dendríticos dos neurônios presentes no Nac. Assim, vimos que o CPF, HP e o Nac são regiões encefálicas que estão particularmente envolvidas na fisiopatologia da esquizofrenia e que a interação entre eles envolve basicamente, mas não só, os sistemas GLU e DA. Eles estão envolvidos nas duas principais teorias existentes que tentam explicar a origem da esquizofreniae que veremos a seguir. 60 CAPÍTULO 3 Vias e circuitarias envolvidas na esquizofrenia Agora que conhecemos as principais estruturas encefálicas envolvidas na esquizofrenia, vamos entender mais a fundo a fisiopatologia desse transtorno ou, pelo menos, o que se sabe até agora. Nesse ponto, iremos abordar as circuitarias neurais e os sistemas de neurotransmissores que estão associados com a esquizofrenia. Nesse sentido, o conhecimento dos mecanismos de ação dos fármacos utilizados no tratamento dessa desordem e os modelos animais utilizados para o estudo da esquizofrenia contribuíram bastante para as hipóteses existentes que tentam explicar as alterações encontradas em pacientes esquizofrênicos. Hipóteses dopaminérgicas A teoria mais difundida para explicar a esquizofrenia é a teoria dopaminérgica. A hipótese dopaminérgica da esquizofrenia surgiu basicamente a partir de duas observações. Uma delas é a de que agonistas dopaminérgicos, como a anfetamina, podiam levar à indução de sintomas psicóticos em pessoas saudáveis e exacerbavam esses sintomas em esquizofrênicos. Além disso, os antipsicóticos típicos, os primeiros a serem utilizados, reduzem os sintomas positivos. Foi descoberto que esses fármacos atuam bloqueando os receptores de dopamina do subtipo 2 (D2) e que quanto maior a capacidade da droga em bloquear o receptor, melhores os efeitos de regressão dos sintomas. Assim, o neurotransmissor não produz mais seus efeitos, já que seus receptores estão bloqueados, ao menos esse subtipo. É importante lembrar que o receptor D2 está principalmente expresso em áreas subcorticais do sistema límbico, como o estriado. Daí surgiu a primeira hipótese dopaminérgica da esquizofrenia: a da “hiperatividade dopaminérgica” na via mesolímbica. O sistema de neurotransmissão dopaminérgica apresenta um circuito bastante restrito no SNC. Tem origem nas áreas subcorticais: área do tegumento ventral, hipotálamo e substância negra; e projetam-se para diversas áreas do córtex e também para áreas relacionadas com o controle motor e endócrino. 61 NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE III Existem 4 vias dopaminérgicas principais: » A nigroestriatal, que vai da substância negra do mesencéfalo para a parte dorsal dos núcleos caudado e putâmen e está envolvida na coordenação sensório-motora, habituação e iniciação dos movimentos (faz parte do sistema motor extrapiramidal); » A via mesolímbica, que tem origem na área do tegumento ventral (ATV) do mesencéfalo e se projeta para estruturas límbicas como o núcleo acumbens, a amígdala, o hipocampo e o giro do cíngulo; essa via desempenha um importante papel em vários comportamentos emocionais, inclusive os sintomas positivos da esquizofrenia, além de ser importante para a motivação, o prazer e a recompensa; » A via mesocortical, cujo conjunto de fibras tem origem na ATV e se projeta para algumas áreas do córtex pré-frontal; e » A tuberoinfundibular, que vai do núcleo arqueado à eminência média do hipotálamo e está envolvida na regulação da secreção de prolactina pela hipófise. A quinta via dopaminérgica surge de múltiplos locais, como substância cinzenta central, parte ventral do mesencéfalo, núcleos hipotalâmicos e núcleo parabraquial lateral, e projeta-se para o tálamo. Sua função atualmente não está bem elucidada. Somente as vias mesolímbica e mesocortical estão relacionadas à neurobiologia da esquizofrenia, mas o entendimento das outras vias será importante para compreendermos os efeitos colaterais dos antipsicóticos típicos. O sistema dopaminérgico é considerado um sistema modulador, sendo tanto inibitório como excitatório. Isso porque sua ação depende do tipo receptor que é ativado pela DA. Os receptores dopaminérgicos podem ser divididos em dois grupos: receptores do tipo D2 (D2, D3 e D4) e do tipo D1 (D1 e D5). É interessante notar que a expressão dos receptores dopaminérgicos apresenta diferentes padrões ao longo do desenvolvimento. Os receptores D2, D4 e D5 são altamente expressos na infância, declinando com o passar do tempo. Já o receptor D1 apresenta um padrão de expressão diferente, sendo mais expresso no SNC maduro (CATTS et al., 2013). Além disso, receptores D2, no cérebro maduro, estão principalmente expressos em áreas subcorticais como estriado e Nac. 62 UNIDADE III │ NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA É importante lembrar que os receptores D2 podem ser pré-sinápticos, atuando como autorreceptores, ou pós-sinápticos. Os receptores D2 pré-sinápticos atuam de forma a inibir a liberação de dopamina, logo, quando não estão ocupados, pela DA ou por algum ligante exógeno, a liberação de DA ocorre normalmente. Os pós-sinápticos estão associados a uma maquinaria de segundos mensageiros (proteína G) que leva a inibição da neurotransmissão DA pós-sináptica. Relembre as vias dopaminérgicas e os subtipos de receptores desse sistema de neurotransmissão no material referente à disciplina de Introdução à Neurofisiologia e Farmacologia. Vimos que o CPFdl está implicado na esquizofrenia. Estudos mostram menor concentração de DA no córtex frontal e maior concentração na via mesolímbica e maior sensibilidade de D2 nessas vias. O CPFdl além de receber aferências glutamatérgicas vindas do HP, recebe também aferências DA oriundas do VTA, pela via mesocortical. No CPFdl, os receptores DA estão expressos nos neurônios GLU, assim a ativação de D1 leva à ativação desses neurônios, enquanto que a ativação de D2 os inibe. Vários estudos têm mostrado uma diminuição na expressão do receptor D1 – provavelmente relacionada a alterações na função executiva – e um aumento na expressão de receptores D2 no CPFdl (CATTS et al., 2013). Contudo, existem outras vias dopaminérgicas, não é mesmo? Nesse sentido, a via mesocortical apresenta ramos que seguem para o córtex pré-frontal dorsolateral e regulam a cognição e as funções executivas e ramos que atingem as porções ventromediais, regulando as emoções e o afeto. Pois é, tem sido proposto que os sintomas negativos – embotamento afetivo, alogia, isolamento social – e cognitivos – déficits de atenção, memória de trabalho, cognição social – da esquizofrenia sejam causados por uma diminuição da liberação de dopamina na área pré-frontal do córtex, isto é, envolveria a via mesocortical. De fato, o baixo desempenho apresentado por pacientes esquizofrênicos em testes cognitivos também tem sido associado com uma hipoatividade dopaminérgica no CPFdl (D1). Nesse contexto, surgiu a segunda hipótese DA da esquizofrenia: a teoria de “hipoatividade dopaminérgica” na via mesocortical. Essa teoria supõe que exista uma diminuição na atividade dopaminérgica no córtex pré-frontal, que levaria aos sintomas negativos. O córtex pré-frontal possui função modulatória sobre as áreas subcorticais, assim, em condição de hipoatividade dopaminérgica no CPF, isso alteraria a sua função, impedindo que exerça o controle inibitório sobre a via mesolímbica, que, 63 NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE III por sua vez, em decorrência disso, entraria em modo de hiperatividade, levando aos delírios e alucinações. Pacientes com esquizofrenia apresentam perda de motivação e anedonia. Esses sintomas são considerados negativos, mas também podem estar relacionados com um funcionamento deficiente da via dopaminérgica mesolímbica, e não apenas função deficiente da via dopaminérgica mesocortical. Um fato que corrobora essa ideia é que o tratamento com os antipsicóticos típicos provoca piora dos sintomas negativos e causa um estado de “neurolepsia”, que se assemelha muito aos sintomas negativos da esquizofrenia. Isso significa que uma possível deficiência de funcionamento dentro do sistema dopaminérgico mesolímbico resulta em mecanismos de recompensa inadequados, na forma de comportamentos, como anedonia, além de sintomas negativos, manifestados por falta de interação social gratificante e pela falta de motivação geral e de interesse. Talvez a incidênciamuito maior de uso abusivo de substâncias psicoativas na esquizofrenia, em comparação com adultos saudáveis, particularmente de nicotina (tabaco), mas também de estimulantes e outras substâncias, seja explicada, em parte, como uma tentativa de reforçar a função dos centros dopaminérgicos mesolímbicos de prazer deficientes, possivelmente à custa da ativação de sintomas positivos. De fato, já foi demonstrado que pacientes com esquizofrenia liberam maior quantidade de dopamina do que controles quando submetidos a mesma dose de anfetamina, ou seja, esquizofrênicos apresentam um sistema dopaminérgico hiperresponsivo (LARUELLE et al., 1996). A ativação de D2 está associada ao surgimento ou piora dos sintomas psicóticos. Abi-Darghan et al. (1992) mostraram que a liberação de dopamina foi mais intensa nos pacientes que estavam na fase de exacerbação dos sintomas psicóticos, sugerindo que esse fenômeno está diretamente implicado na ocorrência de sintomas positivos. Além disso, a hiperresponsividade do sistema dopaminérgico é transitória, pois nas fases de remissão de sintomas psicóticos o sistema dopaminérgico se comporta como o de indivíduos sem o transtorno. Esses dados fortalecem a ideia de que as disfunções do sistema dopaminérgico não são uma consequência de um problema primário dos neurônios dopaminérgicos, mas uma alteração nas vias neuronais que controlam do fluxo de DA. Isto tem atraído bastante atenção para sistemas modulatórios do sistema DA, como o sistema glutamatérgico. 64 UNIDADE III │ NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA Sabemos que a observação de que antagonistas D2 produziam melhoras nos sintomas psicóticos contribuíram para a formulação da teoria dopaminérgica da esquizofrenia. Contudo, alguns estudos fizeram observações reveladoras quanto à associação entre a resposta clínica e bloqueio de receptores. Os estudos vêm demonstrando que um certo nível de bloqueio de receptores é necessário (>65%), mas não suficiente para garantir resposta clínica. Isso porque muitos pacientes exibem altos níveis de bloqueio dos receptores D2 sem apresentar resposta clínica adequada. Além disso, fármacos como a clozapina e a quetiapina, antipsicóticos atípicos, são eficazes no tratamento da esquizofrenia, apesar de seu mecanismo de ação envolver a atuação em outros receptores, além dos dopaminérgicos, como, por exemplo, receptores serotoninérgicos. Isso demonstra que outros sistemas de neurotransmissores estão envolvidos na neurobiologia da esquizofrenia bem como podem ser explorados na psicofarmacologia desse transtorno. Os receptores de dopamina 1, 2, 3 e 4 são todos bloqueados por alguns antipsicóticos atípicos. No entanto, ainda não foi esclarecido até que ponto a ação sobre esses receptores contribui para as propriedades clínicas desses fármacos. Hipótese glutamatérgica Apesar de a disfunção dopaminérgica estar bem estabelecida em relação à fisiopatologia da esquizofrenia, alterações em outros sistemas de neurotransmissão, como o glutamatérgico, também têm sido apontadas como contribuintes para o desenvolvimento dessa doença. Kim et al. (1980) demonstraram que pacientes com esquizofrenia apresentavam uma diminuição nos níveis de glutamato do líquido cerebroespinal. Embora esse dado não tenha sido consistentemente reproduzido por outros trabalhos, ele estimulou a investigação da relação desse sistema com a esquizofrenia, sendo, por isso, o pontapé inicial para a teoria glutamatérgica da esquizofrenia. Essa hipótese também ganhou força a partir da observação de que drogas como a cetamina e a fenciclidina produziam sintomas psicóticos. A fenciclidina (PCP), um anestésico dissociativo, foi muito utilizada como droga de abuso (“pó de anjo”) e induzia psicose em seus usuários. Alguns anos depois, descobriu-se que o mecanismo de ação do PCP é o bloqueio de receptores glutamatérgicos do tipo NMDA. Foi demonstrado que outros antagonistas do NMDA, como a cetamina e o MK-801, provocavam psicose também. Assim, surgiu a teoria da “hipoatividade 65 NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE III glutamatérgica”, uma vez que a psicose era induzida pelo bloqueio da ação do glutamato em seus receptores do tipo NMDA. Os antagonistas NMDA não produzem apenas os sintomas positivos, mas também os negativos e cognitivos, tanto em humanos como em modelos animais. Por isso, tornou-se um modelo extensamente utilizado na literatura científica para estudar a esquizofrenia. Além disso, este fato fortalece a hipótese glutamatérgica da esquizofrenia frente à hipótese dopaminérgica. Afinal o uso de agonistas dopaminérgicos como a anfetamina mimetiza apenas os sintomas positivos da doença e não o quadro de sintomas em geral. Ademais, a hipótese gluamatérgica explica as alterações dopaminérficas características desse transtorno, como veremos mais à frente. Nesse sentido, um trabalho interessante desenvolvido por Mohn et al. (1999) utilizou uma espécie de camundongo que, por alterações genéticas, expressa apenas 5% dos níveis normais da subunidade NR1 do receptor NMDA. Essa é a subunidade funcional expressa em todos os subtipos de receptor NMDA. Esses animais apresentaram alterações comportamentais associadas à esquizofrenia, como aumento da atividade locomotora, comportamento esteriotipado e déficit em interação social. Tais comportamentos foram revertidos com tratamento com antipsicóticos típico e atípico (haloperidol e clozapina). Assim, vemos que a disfunção ou desrrgulação da neurotransmissão glutamatérgica mediada pelos receptores NMDA está envolvida no desenvolvimento da esquizofrenia. O glutamato é o principal neurotransmissor excitatório do SNC. Ao contrário do sistema dopaminérgico, o sistema glutamatérgico é amplamente distribuído pelo SNC. Ele participa de inúmeras funções, inclusive de funções cognitivas, como atenção, memória e aprendizado. Existem sete vias glutamatérgicas específicas que são particularmente importantes para a psicofarmacologia e também para a neurobiologia da esquizofrenia. São elas: a. entre o córtex e o tronco encefálico; b. corticoestriatal; c. Via hipocampoestriatal; d. talamocortical; e. corticotalâmica; f. corticocortical (direta) e g. corticocortical (indireta) As vias glutamatérgicas entre o córtex e o tronco encefálico envolvem neurônios piramidais corticais que se projetam para os centros neurotransmissores do tronco encefálico, como o núcleo da rafe para a serotonina, a área tegumental ventral e a 66 UNIDADE III │ NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA substância negra para a dopamina e o locus coeruleus para a noradrenalina. Essas vias constituem uma forma de regulação da liberação desses neurotransmissores pelo CPF, que pode tanto estimular a liberação dos neurotransmissores, por meio de inervação direta, quanto inibir, por meio de inervação indireta (esses neurônios glutamatérgicos se comunicam com neurônios gabaérgicos que, por sua vez, inibem a liberação dos neurotransmissores pelos seus respectivos núcleos). Existem projeções piramidais corticais que atingem o estriado dorsal, sendo essa a via corticoestriatal, que se projetam para o núcleo accumbens ou estriado ventral (via corticoaccumbens). Em ambos os casos, essas vias glutamatérgicas terminam em neurônios gabaérgicos, que, por sua vez, se estendem até o globo pálido. Outra via glutamatérgica essencial projeta-se do hipocampo para o nucleus accumbens, e ela está bastante associada à esquizofrenia. Essa projeção glutamatérgica do hipocampo para o nucleus accumbens também termina em neurônios gabaérgicos, que se projetam para o globo pálido. A via talamocortical transporta a informação do tálamo de volta ao córtex, frequentemente para processar informações sensoriais. Existe uma outra via chamada de corticotalâmica, que se projeta diretamente de volta ao tálamo, onde pode dirigir o modo pelo qual os neurônios reagem à informação sensorial. Finalmente, existe um complexo de muitas vias glutamatérgicas corticocorticaisdentro do córtex. Os neurônios piramidais podem excitar um ao outro dentro do córtex cerebral por meio de impulsos sinápticos diretos de seu próprio neurotransmissor glutamato; assim como podem inibir um ao outro por meio de interneurônios que liberam GABA. Os receptores glutamatérgicos podem ser metabotrópicos (acoplados à proteína G) ou ionotrópicos. Os ionotrópicos são o NMDA, AMPA e cainato. O receptor NMDA é um receptor heterotetramérico, com subunidades NR1, NR2 (A-D) e NR3 (A-B). Esse receptor tem um importante papel na regulação do fluxo de cálcio para o interior do neurônio e está envolvido na potenciação e depressão de longo prazo (LTP e LTD). Esses eventos estão envolvidos no fortalecimento (LTD) ou no enfraquecimento (LTD) nas sinapses e consequentemente na formação ou na perda de circuitarias. Hetem et al. (2000) avaliaram os efeitos da cetamina sobre a memória e acharam alterações no processo de codificação, mas não no processo de recuperação das informações armazenadas. Interessantemente, isso é muito semelhante ao que acontece com esquizofrênicos. As alterações estruturais e funcionais da sinapse, que a tornam mais eficiente, são feitas com o auxílio da disbindina, da DISC-1, e da neurregulina. Na LTP, os receptores NMDA medeiam um rápido aumento na concentração de cálcio intracelular. Isso 67 NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE III promove a ativação de cascatas de sinalização intracelular que culminam no aumento da expressão de receptores AMPA. Esses receptores são importantes para a mediação da neurotransmissão excitatória e para a despolarização das sinapses glutamatérgicas, promovendo a ativação do receptor NMDA. Lembram-se de que ele precisa dessa alteração na voltagem da membrana para expulsar o Mg2+ e enfim permitir o influxo de íons positivos? Assim, o aumento de receptores AMPA significa que a sinapse está sendo fortalecida. É um ciclo. Mais receptores AMPA, mais ativação pelo NMDA, mais despolarização... As neuregulinas são uma família de fatores de crescimento e diferenciação que se ligam à família ErbB de receptores transmembranares de tirosina quinase. A neuregulina-1 é expressa no sistema nervoso central e desempenha papel crucial na formação de sinapses, migração neuronal e plasticidade sináptica. O receptor para a neuregulina-1, ErbB, é colocalizado com o receptor NMDA e provavelmente regula as propriedades cinéticas do receptor NMDA pela fosforilação da subunidade NR2 (MOGHADDAM, 2003). Em oposição, um influxo lento de cálcio leva à ativação de outras vias de sinalização, que, em última análise, leva à diminuição da expressão de receptores AMPA. Já podemos prever que isso prejudicará a ativação dos receptores NMDA, o que leva ao enfraquecimento da sinapse. Os mecanismos envolvidos com a LTP e a LTD da sinapse glutamatérgica nos dão a ideia de uma regulação que é dependente de atividade, isto é, dependente do uso dos receptores NMDA e daquela sinapse glutamatérgica. Isso ocorre não apenas quando essas sinapses se formam pela primeira vez, porém continua durante toda a vida, permitindo que possamos nos adaptar, em um processo de remodelagem contínua em resposta às experiências vivenciadas. As sinapses “fortes” com neurotransmissão NMDA eficiente e muitos receptores AMPA sobrevivem, enquanto as sinapses “fracas” com poucos receptores AMPA podem ser alvos de eliminação. Isso molda os circuitos cerebrais, de modo que as sinapses mais críticas não são apenas fortalecidas, mas também sobrevivem ao processo constante de seleção, sendo mantidas as sinapses mais eficientes e usadas com mais frequência, enquanto são eliminadas as sinapses ineficientes e raramente usadas. Mas imagine se houver algo errado com os genes que regulam o fortalecimento sináptico (disbindina, DISC-1 e neurorregulina)... é possível que isso cause o uso menos efetivo dessas sinapses e torne os receptores NMDA hipoativos, levando a uma LTP ineficaz. 68 UNIDADE III │ NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA Assim, na esquizofrenia, sinapses críticas podem não ser adequadamente fortalecidas, o que pode levar à sua eliminação incorreta, interrompendo o fluxo de informações de circuitos agora privados de conexões sinápticas. Durante o desenvolvimento, “criam-se” muito mais neurônios do que o necessário. As células sobressalentes serão posteriormente perdidas através de um mecanismo chamado de pruning (“poda neural”), que ocorre fisiologicamente por apoptose. O pruning ocorre por ação das sinapses glutamatérgicas, pelo mecanismo da LTD. Normalmente, quase metade das sinapses cerebrais é eliminada na adolescência. Assim, a eliminação competitiva de sinapses “fracas”, porém críticas, durante essa fase do desenvolvimento pode explicar por que a esquizofrenia tem início nessa fase da vida. Afinal, se perdêssemos células importantes em vez daquelas excedentes, graves disfunções seriam geradas. Já foi observado que na esquizofrenia pode ocorrer migração neuronal atípica, diminuição de conexões sinápticas e perda neuronal que, provavelmente, se relacionam a disfunções do sistema glutamatérgico. Ademais, é possível que o impacto negativo de sinapses glutamatérgicas anormais presentes desde o nascimento seja mascarado pela presença de muitas conexões fracas adicionais antes da adolescência, atuando para compensar a conexão glutamatérgica deficiente. Quando essa compensação é destruída pela eliminação competitiva normal das sinapses na adolescência, surge a esquizofrenia. De fato, alterações na expressão dos receptores NMDA já foram identificadas em pacientes esquizofrênicos. Foi demonstrado que há uma diminuição da proteína NR1 no CPF e HP de pacientes com esquizofrenia, além de expressão diminuída de RNAm de subunidades NR1 e NR2C. Outro estudo (MEADOR-WOODRUFF et al., 2004) descreveu um significativo aumento de RNAm de receptores NR3A, sugerindo que os receptores NMDA estão em um estado mais imaturo na esquizofrenia, uma vez que, no “cérebro adulto”, há um aumento de NR1 e uma diminuição de NR3A. Isso parece ser crucial para o desenvolvimento da esquizofrenia, pois a eliminação ou redução dos receptores maduros na vida pós-natal, e principalmente durante a adolescência (fase em que ocorre o pruning), resulta em um fenótipo semelhante à esquizofrenia em modelos animais. Assim, a hipótese glutamatérgica da esquizofrenia sugere que a atividade glutamatérgica nos receptores NMDA durante a vida adulta encontra-se hipofuncional devido a anormalidades na formação de sinapses glutamatérgicas NMDA durante o neurodesenvolvimento. Aqui, mais uma vez reforçamos a ideia de que a esquizofrenia é um transtorno que tem origem no neurodesenvolvimento. 69 NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE III Sistema gabaérgico e a esquizofrenia O GABA é o principal neurotransmissor inibitório. Seus receptores são o GABA-A e GABA-B, que atuam promovendo hiperpolarização em neurônios adultos. Entretanto, durante o desenvolvimento esses receptores, promovem despolarização. Alterações nas vias gabaérgicas também já foram descritas na esquizofrenia. Há redução da GAD67, enzima que transforma o glutamato em GABA, nos interneurônios inibitórios de várias regiões corticais, incluindo o CPFdl, indicando uma neurotransmissão inibitória prejudicada. Além disso, alguns estudos têm mostrado um aumento na expressão da subunidade alfa-2 dos receptores GABA-A no CPFdl de pacientes com esquizofrenia. Em contrapartida, também já foi visto que há uma expressão diminuída das subunidades alfa-1 e alfa-5 desses receptores no CPFdl de esquizofrênicos. Essas mudanças nas subunidades GABA-A estão de acordo com a teoria de que o córtex cerebral na esquizofrenia se encontra em um estado mais imaturo, já que o esperado seria encontrar um aumento da subunidade alfa-1 GABA-A e uma diminuição na expressão da subunidade alfa-2 dos receptores gabaérgicos GABA-A no cérebro adulto (CATTS et al., 2013). Esse sistema também interage com o glutamatérgico.É mais prevalente em homens do que em mulheres, aproximadamente em uma proporção de 2 para 1. Interessantemente, o sexo também tem influência sobre a idade de início, sendo em mulheres o início mais tardio do que em homens. Em mulheres, a idade de início é em torno de 25 a 35 anos, enquanto que em homes é entre 15 e 25 anos. E não para por ai.... O perfil de sintomas manifestados também é diferente entre os sexos. Mulheres tendem a experenciar mais sintomas positivos e, como veremos ao longo do curso, justamente por isso, apresentam melhor resposta aos tratamentos. Além disso, a influência genética em mulheres parece ser mais relevante do que em homens, uma vez que mulheres esquizofrênicas são mais propensas a ter um parente que também apresente o transtorno. Já homens manifestam mais sintomas negativos, sendo estes mais resistentes ao tratamento, o que faz com que o prognóstico de longo prazo seja pior quando comparado ao das mulheres. 10 UNIDADE I │ INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA A esquizofrenia é extremamente debilitante. Por muitas vezes, essa doença impõe tanto sofrimento ao indivíduo que 50% dos esquizofrênicos tentam suicídio em algum momento da vida e, infelizmente, aproximadamente 10% realmente cometem. A Organização Mundial da Saúde (OMS) a inclui numa lista com as 10 doenças mais debilitantes no mundo. Mais especificamente, houve um estudo feito pela OMS, em 2001. que avaliou 14 países em todo o mundo. Esse estudo revelou que a deficiência associada à esquizofrenia, na verdade, é classificada como a terceira condição mais incapacitante do mundo. De fato, a deficiência psicossocial desse transtorno mental era maior que a cegueira e a paraplegia. A esquizofrenia desde os seus primórdios, e também das instituições psiquiátricas, era responsável pela maioria dos internados em hospitais psiquiátricos, aqui no Brasil e no mundo. Com o fechamento de muitos deles, hoje ela é responsável por muitos rejeitados da sociedade e moradores em situação de rua. Esta desordem é impactante também para a sociedade, mesmo que indiretamente. Os custos da esquizofrenia para o sistema de saúde é alto. Isto porque envolve custos diretos, como os medicamentos e internações, e indiretos, como os anos nos quais o indivíduo não pode trabalhar devido à doença, por exemplo. Para termos uma ideia, nos EUA, os custos diretos giram em torno de 750 bilhões por ano. Com isso, vemos o quão importante é aprender sobre a doença, pois só assim poderemos desenvolver novos tratamentos e efetivamente tratá-la. O primeiro passo para um tratamento efetivo reside no diagnóstico. Então vamos dar uma olhada no histórico dessa desordem, que, como o de outras doenças psiquiátricas, remonta aos primórdios dos gregos e romanos. Datam dessa época escrituras que descrevem fenômenos que se assemelham ao humor depressivo e mania. Não há certeza de que sejam exatamente como o que é diagnosticado atualmente, mas de qualquer forma, descrevem doenças psiquiátricas. Dois nomes dessa época se destacam: Hipócrates e Galeno. Hipócrates formulou a teoria dos humores, na qual existiam 4 humores – bile negra, bile amarela, fleuma e sangue – que, quando em equilíbrio, determinavam o estado de saúde saudável. Ainda, segundo essa teoria de Hipócrates, a bile negra estava relacionada com o cérebro, que seria a sede das emoções. Cabe mencionar que Hipócrates e sua teoria dos humores ocorreram por volta do século IV a.C., e esta teoria perdurou até 1500-1600 d.C. 11 INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE I Muitos anos depois, outro nome que se destacou em relação às doenças psiquiátricas foi o norte-americano Benjamin Rush. Em 1812, ele publicou o livro Doenças da Mente. Nesse livro, os diagnósticos eram feitos com base em sintomas específicos. Por exemplo, há uma descrição de “loucura da noite de casamento”, como se a ansiedade pré-nupcial fosse uma doença específica e não um episódio de ansiedade, um transtorno complexo que pode ter como gatilho eventos estressantes, como a proximidade do casamento. Mas notem que nesse caso, atualmente, isso não seria diagnosticado e tratado como uma doença, afinal episódios de ansiedade e de humor deprimido fazem parte da vida e apenas se enquadram como uma desordem quando de fato passam a afetar a rotina do indivíduo, sua vida social e profissional. Conforme avançamos rumo ao final do século XIX e início do século XX, há uma mudança nessa concepção de diagnóstico, passando de sintomas isolados para um conjunto de sintomas que seria causado por uma patologia central. Duas doenças tiveram uma importante contribuição para essa evolução. Uma delas foi a doença de Alzheimer. A análise post-mortem dos cérebros dos pacientes que sofreram durante a vida de determinados sintomas e a observação de alterações consistentes no tecido cerebral destes indivíduos forami determinantes na caracterização de doença de Alzheimer. A segunda foi a neurossífilis. A sífilis era muito comum naquela época e existem registros de hospitais psiquiátricos em que metade das internações era de pacientes com neurossífilis. Essa doença apresenta uma progressão muito característica. Depois de mais ou menos 10 anos latente, o Treponema pallidum entra no SNC e provoca agitação, alucinações e delírios, seguidos de morte. Esses dois fatos juntos, a análise post-mortem dos cérebros dos pacientes com Alzheimer e o fato de que um micro-organismo poderia causar sintomas psiquiátricos, conduziram às descrições categorizadas das desordens mentais. Como fez Emil Kraepelin, o primeiro a descrever o que hoje chamamos de esquizofrenia. Naquela época, ele a nomeou de demência precoce. Seu diagnóstico era baseado não nos sintomas (que envolviam o isolamento social, alucinações e delírios e problemas de atenção e memória), mas no desfecho da doença, que se torna pior à medida que avança no tempo, isto é, tem caráter crônico e progressivo. Ele observou que as pessoas com essa desordem muitas vezes tinham dificuldades em focar sua atenção e em lembrar de coisas. Assim, Kraepelin, em sua descrição inicial da esquizofrenia, que ele chamava de demência precoce, falava sobre esses déficits de atenção e memória e resolução de problemas, isto é, déficits na cognição. No entanto, Eugen Bleuler foi o primeiro a dar o nome “esquizofrenia”. Ele rebatizou esta patologia, pois sua posição era diferente da de Kraepelin, uma vez que 12 UNIDADE I │ INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA ele não acreditava que esse transtorno tivesse início precoce e demência terminal, mas acreditava que envolvia diversos prejuízos psicológicos, que iam desde os surtos agudos de psicose até a dissociação das funções cognitivas e afetivas. “Esquizo” significa “dividido”, e “frenia” vem de “mente”. Apesar da origem da palavra, a esquizofrenia não está relacionada com personalidades fragmentadas. Eugene Bleuer descrevia essa desordem como uma partição da percepção e do pensamento, ou seja, há uma ruptura de processos mentais específicos, mas não de personalidade. 13 CAPÍTULO 2 Sintomatologia Bleuler (1911) descreveu a esquizofrenia como tendo seis sintomas principais, os 6 As de Bleuler (ELKIS, 2000): » Afrouxamento dos nexos associativos ou associações enfraquecidas, ou seja, ideias que são associadas de forma errada e com prejuízo da lógica; » Autismo (comportamento introspectivo, isolamento social e dificuldade de relacionamento e de comunicação com outras pessoas); » Alterações na afetividade, podendo estar embotada, com redução das expressões emocionais, com mímica facial e gestos comunicativos escassos ou artificiais, levando à falta de empatia; ou afetividade ambivalente, caracterizada pela contradição de emoções e sentimentos em diferentes contextos e situações sociais, levando a uma inadequação das expressões afetivas, com reações inesperadas de raiva, tristeza e alegria em situaçõesExistem receptores NMDA expressos em neurônios gabaérgicos, assim o glutamato pode excitar esses neurônios, promovendo um tônus inibitório. Esses neurônios gabaérgicos regulam as vias excitatórias glutamatérgicas corticais e subcorticais, especialmente, no sistema límbico. Dessa forma, a hipoatividade glutamatérgica do CPF diminui a inibição gabaérgica sobre as vias excitatórias glutamatérgicas que saem do CPF para o mesencéfalo (ATV), resultando em uma hiperestimulação córtico-límbica. Segundo Olney e Farber (1995), estas seriam as vias envolvidas na hipótese glutamatérgica da esquizofrenia: com o glutamato do CPF ativando receptores NMDA em neurônios GABAérgicos que mantêm o tônus inibitório sobre neurônios glutamatérgicos que saem do CPF para outras áreas corticais e subcorticais, como o sistema límbico. Assim, a hipoatividade glutamatérgica levaria a uma inibição da ação do GABA sobre essas vias, levando a hiperestimulação corticolímbica. Um ponto que tem sido levantado é que as anormalidades que ocorrem durante o neurodesenvolvimento que afetam a formação de sinapses glutamatérgicas ocorram em um local específico: em determinados interneurônios gabaérgicos do córtex cerebral. 70 UNIDADE III │ NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA Ao que tudo indica, pode ter algo errado na programação genética dos interneurônios gabaérgicos do CPF que contém parvalbumina, uma proteína de ligação do cálcio. Eles são o ponto de chegada dos neurônios glutamatérgicos oriundos do CPF. Devido aos problemas no desenho genético desses neurônios, eles podem formar receptores NMDA defeituosos. Assim, esses interneurônios gabaérgicos contendo parvalbumina apresentam receptores NMDA hipofuncionantes em seus dendritos, sinapses defeituosas entre os axônios neuronais glutamatérgicos e os dendritos interneuronais gabaérgicos e, portanto, informação glutamatérgica defeituosa proveniente do interneurônio gabaérgico. Uma variedade de anomalias genéticas pode interagir e contribuir para a formação dessas sinapses glutamatérgicas defeituosas, com receptores NMDA hipofuncionais. Por isso modelos animais que utilizam o antagonismo dos receptores NMDA mimetizam tão bem diferentes sintomas da esquizofrenia. Afinal eles influenciam as vias glutamatérgicas que projetam para a ATV. Lembrando que da ATV saem duas vias DA: uma que vai para o Nac, a mesolímbica, associada com os sintomas positivos da esquizofrenia; e outra para o CPF, a mesocortical, associada com os sintomas cognitivos e negativos. Interação entre os sistemas glutamatérgico, dopaminérgico e gabaérgico Esses sistemas têm uma grande interação no SNC. Já vimos como interagem no CPF, mas há um outro sítio de interação: sobre as espinhas dendríticas dos interneurônios gabaérgicos localizados no estriado. Lá os receptores NMDA e D2 produzem efeitos opostos sobre os interneurônios gabaérgicos. A ativação do NMDA pelo glutamato leva à excitação do interneurônio gabaérgico enquanto que a ativação de D2 pela dopamina inibe essa célula. Assim, antagonistas gluatamatérgicos e agonistas dopaminérgicos levam à inibição do fluxo de saída gabaérgico. Reparem que nesse cenário, antagonistas D2 são capazes de normalizar o tônus gabaérgico, independentemente da origem da desregulação, seja por hipoatividade glutamatérgica (considerando que o glutamato via NMDA deveria excitar os interneurônios gabaérgicos, a hipoatividade glutamatérgica leva à diminuição da atividade gabaérgica) ou por hiperatividade dopaminérgica (a dopamina inibe os interneurônios gabaérgicos via D2, assim a hiperatividade dopaminérgica também 71 NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE III leva à diminuição da atividade gabaérgica). Em caso de hipoatividade glutamatérgica, bloquear o D2 impede que o efeito inibitório seja ainda maior. Contudo, se considerarmos o CPF, a interação é um pouco diferente. Lá há prevalência de receptor D1. Esse receptor, quando ativado, leva à ativação de uma cascata de sinalização intracelular, envolvendo o AMPc, que tem efeitos estimulatórios sobre o receptor NMDA. Além disso, essa interação leva a um ciclo de retroalimentação positiva, pois a ativação do NMDA também está associada a um recrutamento de receptores D1 para a membrana. Contudo, dependendo das subunidades que compõem o receptor NMDA, em alguns casos, principalmente envolvendo a subunidade NR2A, a interação entre o D1 e o NMDA leva à diminuição da resposta do receptor NMDA. Assim, a depender do efeito predominante, tanto agonistas como antagonistas D1 são capazes de produzir efeitos terapêuticos na esquizofrenia. Tanto em modelos animais (que utilizam antagonistas NMDA) como em pacientes esquizofrênicos já foram demonstrados que há diminuição dos níveis de DA no CPF com um aumento da expressão de receptores D1. Ao que tudo indica, essa suprarregulação dos receptores D1 parece ser uma resposta compensatória aos baixos níveis de DA. Esse aumento da expressão de D1 também está associado a prejuízos na memória de trabalho. Essa alteração na expressão do D1 somente é encontrada no CPF, e as alterações cognitivas da esquizofrenia envolvem outras áreas, então isso, por si só, não explica todos os déficits cognitivos desse transtorno mental. Além do CPF, o tálamo e o lobo temporal também apresentam ativação diminuída durante a execução de testes cognitivos por esquizofrênicos. Assim como os receptores D1, estudos post-mortem revelaram que há alteração na expressão de receptores glutamatérgicos nessas regiões. Por fim, esses sistemas também interagem por meio de projeções glutamatérgicas do CPF com núcleos dopaminérgicos do mesencéfalo, que modulam as atividades destes últimos. Essa modulação ocorre por duas vias, uma que estimula e outra que inibe os neurônios DA. Essa dupla interação entre excitação e inibição permite que o CPF “ajuste” a atividade dopaminérgica. Nesse sentido, os receptores AMPA e NMDA desempenham funções diferentes nesse sistema. Através dos receptores AMPA, o glutamato promove a regulação tônica (“contínua”) inibitória dos neurônios que saem do mesencéfalo para o Nac e uma regulação tônica excitatória de neurônios dopaminérgicos que saem da ATV (no mesencéfalo) para o CPF. Por outro lado, por meio de receptores NMDA, o glutamato promove respostas fásicas (“agudas”) a estímulos que são comportalmentalmente relevantes. 72 UNIDADE III │ NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA Assim, a perda desses inputs glutamatérgicos do CPF para a ATV pode produzir a hiperatividade DA no Nac e a hipoatividade DA no CPF. Sistema serotoninérgico e a esquizofrenia A observação de que drogas que diminuem a neurotransmissão serotoninérgica provocam alucinações visuais, despersonalização e experiências semelhantes a alguns sintomas da esquizofrenia impulsionou a hipótese serotoninérgica. Um exemplo disso é o LSD. Ele atua como agonista dos autorreceptores inibitórios (5HT1) presentes no neurônio pré-sináptico, reduzindo, assim, a liberação de serotonina (5HT) na fenda sináptica. Além disso, ele atua como agonista de receptores 5HT2 nos neurônios pós- sinápticos e isso também contribui para sua ação como alucinógeno, uma vez que esses receptores estão expressos no CPF e Nac. No entanto, a teoria dopaminérgica ganhou tanta força que essa ideia foi colocada de lado e, somente na década de 1980, quando surgiram os antipsicóticos atípicos, ela voltou a ganhar espaço. Nesse sentido, já foi demonstrado em modelos animais que a administração de ritanserina, um antagonista seletivo de receptores 5HT2, pode melhorar sintomas associados aos negativos encontrados na esquizofrenia. Além disso, a administração de clozapina, um antipsicótico atípico, reduz a expressão de RNAm do receptor 5HT2A no CPF em modelos animais. Assim, vemos que há, sim, algum envolvimento do sistema serotoninérgico com a esquizofrenia. De fato, o sistema serotoninérgico se relaciona com o sistema dopaminérgico, e essa interação se dá de maneira oposta. Por exemplo,a administração de drogas psicotogênicas, que reduzem os níveis de serotonina, também causam aumento de DA nas vias mesocortical e mesolímbica. Além disso, baixos níveis de serotonina estão associados com maior impulsividade e agressividade, e indivíduos com essas características comportamentais compartilham semelhanças nas alterações estruturais com esquizofrênicos, como o alargamento dos ventrículos e atrofia cortical. Dados mais diretos entre o sistema serotoninérgico e a esquizofrenia vêm de estudos que mostraram que em esquizofrênicos há redução da expressão do transportador pré-sináptico de 5HT no CPF e também do receptor 5HT2A. Falaremos mais sobre o sistema serotoninérgico e a esquizofrenia na próxima unidade. 73 NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE III Outros neurotransmissores e a esquizofrenia Alterações nos receptores nicotínicos colinérgicos (nAChRs) também são encontradas em pacientes com esquizofrenia. Avaliações postmortem revelaram uma redução da expressão de receptores com subunidades α7 e α4 em diferentes regiões cerebrais, como o hipocampo e córtex (PARIKH et al., 2016). Estudos utilizando neuroimagem sugerem que esquizofrênicos apresentam dessensibilização e turnover alterados do receptor colinérgico nicotínico (nAChR) α4β2 nas regiões do córtex, estriado e hipocampo (PARIKH et al., 2016), sendo que também já foi demonstrado que a exposição crônica a antipsicóticos em ratos afeta a expressão de nAChRs nessas mesmas regiões cerebrais (TERRY et al., 2003, 2005). Essa relação é particularmente importante quando consideramos uma comorbidade bastante comum: a esquizofrenia e o tabagismo. Isso porque a nicotina, o principal componente psicoativo do tabaco, tem como mecanismo de ação primário o agonismo de receptores nAChRs. Neurônios DA que saem da ATV e constituem as vias mesolímbica e mesocortical expressam nAChRs. Esses receptores são ionotrópicos, quando um agonista se liga, seja a acetilcolina (endógeno) ou a nicotina (exógeno), promove a entrada de íons positivos, levando à despolarização. Dessa forma, a nicotina é capaz de promover aumento da liberação de DA no Nac (sendo este o mecanismo pelo qual ela causa a dependência química) e também no CPF. Por isso acreditava-se que esquizofrênicos tabagistas usam o cigarro como forma de automedicação, para aliviar os sintomas negativos e cognitivos da esquizofrenia, que não são bem tratados com a medicação antipsicótica. Já falamos sobre a relação entre a esquizofrenia e a dependência química, bem como sobre as teorias que visam explicar essa associação, na Unidade II. Atualmente, há uma teoria que vai em sentido oposto ao da automedicação. A teoria da vulnerabilidade compartilhada supõe, com base em dados epidemiológicos recentes, que muitas vezes o uso precoce de drogas de abuso como a maconha e o cigarro, podem antecipar o primeiro evento psicótico. Outro sistema de neurotransmissão que pode estar envolvido na fisiopatologia da esquizofrenia é o de adenosina, que tem ação modulatória sobre os sistemas glutamatérgico e dopaminérgico. A adenosina é um neurotransmissor inibitório que atua diminuindo a taxa de disparo de potenciais de ação no sistema nervoso, além de produzir outros efeitos no organismo, como a dilatação dos vasos sanguíneos, redução da 74 UNIDADE III │ NEUROBIOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA frequência cardíaca, da pressão sanguínea e da temperatura corporal. Muitas das ações inibitórias da adenosina podem ser atribuídas à inibição da liberação de neurotransmissores excitatórios dependentes de cálcio, sendo esses efeitos mediados por receptores acoplados à proteína G, porém a adenosina também pode desempenhar ações excitatórias (LOPES et al., 2011). Foram identificados quatro subtipos de receptores de adenosina: A1, que são amplamente expressos no cérebro, possuindo maior densidade no hipocampo, córtex e cerebelo; A2a, são mais prevalentes no estriado e tubérculo olfatório, porém também são expressos no córtex, amígdala, hipocampo, tálamo e cerebelo; A2b, são encontrados em astrócitos e somente são ativados em altas concentrações de adenosina; A3, que majoritariamente são encontrados perifericamente, particularmente em mastócitos e testículos. Em relação à esquizofrenia, os receptores A1 e A2A são particularmente importantes. Durante o desenvolvimento, altos níveis de adenosina têm sido relacionados a alterações como o alargamento ventricular e à redução do volume axonal. Sabe-se que insultos como hipoxia, convulsões, infecções e traumas podem aumentar os níveis de adenosina. Isso pode ser relacionado ao fato de que eventos obstétricos são um fator de risco para a esquizofrenia. Conforme descrito na revisão feita por Ciruela et al. (2011), um conjunto de publicações demonstrou a existência de acoplamentos entre receptores de adenosina e receptores dopaminérgicos e glutamatérgicos. Nesse sentido, o receptor A1 forma um dímero com o D1 enquanto o A2A forma um dímero com o D2. Nesses casos, em que a interação é negativa, a ativação dos receptores de adenosina leva à diminuição da neurotransmissão dopaminérgica a partir da interação com seus receptores. Os receptores de adenosina podem causar dessensibilização e alterar o tráfego dos receptores DA para a membrana do neurônio. O A1 e A2A também formam heterodímeros com receptores metabotrópicos de glutamato, mGlu1α e mGlu5, respectivamente. No entanto esse acoplamento tem efeitos positivos. O receptor mGlu1α parece desempenhar um papel fundamental na prevenção da excitotoxicidade do glutamato, enquanto que para mGlu5 uma interação funcional sinérgica foi demonstrada em ambos os níveis bioquímicos e comportamentais. Nesse sentido, já foi demonstrado que tratamentos farmacológicos que aumentam a atividade de adenosina têm se mostrado efetivos quanto à redução de sintomas positivos em pacientes esquizofrênicos (LARA, et al., 2006). 75 UNIDADE IVPSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA CAPÍTULO 1 Histórico do tratamento da esquizofrenia A história do tratamento está atrelada à “descoberta” da esquizofrenia. Existe uma teoria, chamada de teoria da industrialização, que pressupõe que a esquizofrenia é uma doença que surgiu devido a um novo patógeno. Com a Revolução Industrial, que ocorreu durante os séculos XVIII e XIX, as pessoas passaram a ficar confinadas e em grande número nas fábricas, o que teria favorecido a transmissão do tal patógeno, fazendo o número de casos crescer. Não podemos deixar de lembrar também que até bem pouco tempo antes dos psiquiatras, como os que mencionamos aqui, Rush e Kraepelin, além de outros tão importantes em sua área, boa parte das doenças mentais estava sob domínio religioso ou moral, em vez do âmbito médico, o que pode ter contribuído para que os números da doença, antes de 1700 a 1800, fossem menores. Além do fato de que, historicamente, registros físicos podem ter se perdido. Nesse sentido, há uma segunda teoria que acredita que a esquizofrenia está presente desde os nossos primórdios enquanto espécie, contudo, apenas por volta dos anos 1800 é que realmente passou-se a ter condições de diagnosticar tal doença de forma confiável, o que fez seu número crescer absurdamente. Dessa forma, o aumento nos registros de esquizofrenia por volta dos anos 1800 a 1900 se deve ao advento de formas confiáveis no diagnóstico e ao sub-registro anterior, tanto histórico como devido ao fato de que esta doença, como várias outras doenças mentais, ainda era tratada com misticismo. As primeiras formas de “tratamento” que se tem registro envolviam as sangrias, pois acreditava-se que era preciso trocar o sangue do paciente. Por volta de meados do século XIX, houve um grande movimento iniciado na Europa por nomes como Philippe Pinel e 76 UNIDADE IV │ PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA William Tuke conhecido como “Movimento do Tratamento Moral”. Nele, o tratamento envolvia a criação de ambientes calmos e relaxantes, às vezes era até referidocomo tratamento de ar fresco, com atividades diárias, rotinas bem definidas. Por volta das décadas de 1920 e 1930, surgiram outros tipos de intervenção. A primeira delas foi proposta por Wagner-Jauregg (1917) e surgiu a partir da observação de que depois de febres altas em pacientes com desordens psiquiátricas, havia remissão dos sintomas. Esse tratamento recebeu o nome de cura pela febre e consistia em administrar sangue de pacientes infectados com malária em pacientes com transtornos mentais. Os pacientes eram então monitorados, e a febre era controlada com quinina, um fármaco usado na época para tratamento da malária. De fato, ele identificou melhora nos pacientes com o uso dessa técnica que, inclusive, lhe rendeu um Prêmio Nobel. Outro tratamento que se difundiu naquela época foi a hidroterapia. Existiam salas com diversas banheiras com água em temperaturas diferentes. Acreditava-se que isso acalmava os pacientes agitados. Outro tipo de tratamento era o choque de insulina, postulado por Manfred Sankel (1927). Os pacientes eram induzidos ao coma por meio de choque hipoglicêmico, obtido com a administração de insulina e eram trazidos do coma com a administração de açúcar. E por fim as lobotomias frontais, onde partes do córtex pré-frontal eram retiradas. Algumas das formas citadas são invasivas, inconvenientes, podendo até serem consideradas torturas, mas, naquela época, a psiquiatria ainda engatinhava, não havia conhecimento disponível, e os estudiosos e médicos da época lidavam com o que havia em termos de observação e tentativas. As coisas realmente começaram a mudar em relação ao tratamento da esquizofrenia e também da farmacologia como um todo, quando por acaso, em 1950, o cirurgião francês, Henre Laborit, descobriu acidentalmente o primeiro psicofármaco, a clorpromazina. Laborit era um cirurgião que tinha interesse em novas técnicas cirúrgicas. No entanto, nas tentativas de experimentar as novas técnicas, não era incomum que os pacientes entrassem em choque. A reação de choque consiste na diminuição da frequência cardíaca, diminuição da pressão arterial, diminuição do aporte sanguíneo para as extremidades e, em alguns casos, durante a cirurgia, esses pacientes morriam. Por isso, Laborit estava muito interessado em desenvolver drogas que combatessem esse tipo de reação. Em 1949, ele iniciou alguns experimentos com fármacos que pertenciam a uma classe (fenotiazinas). Elas possuem propriedades anti-histamínicas e o intuito era utilizá-las 77 PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA│ UNIDADE IV na prática anestésica como um agente potencializador e de estabilização autonômica, dentre os quais a prometazina mostrou ser o mais eficaz. Paul Charpentier e Simone Courvoisier (1950) realizaram, no Laboratório Rhône- Poulenc – atual Sanofi-Aventis, diversas modificações estruturais na molécula da prometazina e testaram a eficácia de vários derivados. Um deles se destacou: a clorpromazina, que não se revelou tão eficaz em diminuir a reação de choque, mas, curiosamente, deixava os pacientes muito tranquilos e relaxados. Laborit cogitou que essa droga poderia ser útil em pessoas agitadas, com os sintomas da psicose, ou seja, potenciais pacientes com esquizofrenia. Os psiquiatras Jean Delay e Pierre Deniker (1952) realizaram os primeiros estudos em indivíduos com doença psiquiátrica. Descobriram que, de fato, a administração desta droga diminuía os sintomas, tornando os pacientes menos agitados. Esta foi uma descoberta realmente entusiasmante, já que naquela época não havia nenhum tipo de tratamento efetivo para pessoas com esquizofrenia e outras psicoses. Em 1952, após os bons resultados obtidos por Delay e Deniker em pacientes esquizofrênicos, a clorpromazina foi lançada inicialmente na França e, em 1954, foi aprovada mundialmente. Desta maneira, pequenas modificações estruturais em um anti-histamínico que tinha propriedades sedativas como efeito colateral resultaram na descoberta de uma importante classe de fármacos, iniciando a psicofarmacoterapia. Ouro importante fármaco utilizado no tratamento da esquizofrenia é o haloperidol, que também foi descoberto ao acaso. Isso ocorreu a partir da tentativa de otimizar a atividade analgésica da meperidina. Nesse processo, pesquisadores da Janssen Pharmaceuticals – atual Johnson & Johnson, liderados por Paul A. Janssen, obtiveram vários compostos análogos que continham em sua estrutura o grupo propiofenona. Apesar de apresentarem potência analgésica até 200 vezes maior que à da meperidina, eles apresentavam muita similaridade estrutural a outros compostos por outras companhias farmacêuticas (Merck e Eli Lilly), e por isso foram deixados de lado. Os pesquisadores decidiram substituir o grupo propiofenona pelo grupo butirofenona, além de promover modificações pontuais na estrutura que levaram à síntese do haloperidol. Nos ensaios clínicos, haloperidol apresentou atividade antipsicótica cerca de 50 vezes mais potente que a clorpromazina. Foi lançado na Bélgica, em 1959, e nos Estados Unidos em 1969. A clorpromazina e o haloperidol são, de modo geral, definidas como antagonistas de receptor dopaminérgico do tipo D2. A dopamina somente foi descoberta em 1960. Diante do mecanismo de ação dos fármacos antipsicóticos em bloquear a ação da dopamina e, assim, promoverem melhora nos sintomas, a teoria dopaminérgica da 78 UNIDADE IV │ PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA esquizofrenia foi proposta. Além disso, quanto mais eficazes essas drogas eram em bloquear a ação da dopamina, menor era a quantidade da droga que era necessária para observar melhora nos sintomas. Da mesma forma, drogas que eram menos eficazes em bloquear os receptores de dopamina, doses muito maiores eram necessárias para obter os mesmos efeitos que os medicamentos anti-psicóticos mais poderosos. Como vimos, outro dado que apoiou a primeira teoria dopaminérgica da esquizofrenia foi o uso de anfetaminas. O uso recreativo por longo prazo dessa droga produzia uma série de sintomas que em muitos casos era indistinguível da esquizofrenia. Ou seja, as pessoas que tomaram anfetaminas por longos períodos de tempo passaram a ter delírios e alucinações, isto é, sintomas positivos da esquizofrenia. Em 1958, a companhia farmacêutica suíça Wander AG (atual Novartis) sintetiza um grupo de compostos tricíclicos baseado na estrutura química da imipramina descrito como antidepressivos que apresentavam também propriedades neurolépticas. Desses estudos surgiu, em 1959, a clozapina. Ela apresentou resultados farmacológicos controversos e somente em 1989 foi lançada nos Estados Unidos como o primeiro antipsicótico da classe dos atípicos. Embora apresente bons resultados clínicos, atualmente ela é utilizada apenas como um fármaco de segunda escolha, devido à possibilidade de causar agranulocitose. Na época surgiu a busca por fármacos que tivessem um mecanismo de ação diferente da maioria dos antipsicóticos (isto é, antagonistas dopaminérgicos pós-sináptico - D2). Na década de 80, utilizaram a estratégica de estimulação dos autorreceptores dopaminérgicos pré-sinápticos. Uma molécula apresentou o perfil de agonista dopaminérgico de receptores pré-sinápticos, o que estava sendo buscado, mas também agia como antagonista nos receptores pós-sinápticos. Além disso, seu uso em modelos animais demonstrou melhora dos sintomas negativos sem causar efeitos extrapiramidais (GRADY et al., 2003). Essa molécula foi chamada de aripiprazol. Anos depois, foi demonstrado que o aripiprazol tem mecanismo diferenciado: ele atua também sobre o sistema serotoninérgico. Ele é um agonista parcial dos receptores 5-HT1A e antagonista 5-HT2A, sendo classificado como um estabilizador do sistema dopaminérgico-serotoninérgico. Foi lançado, em 2002, pela farmacêutica Bristol- Myers-Squibb (MAILMAN, 2007). No entanto, quando analisamos os tratamentos disponíveis para a esquizofrenia vemos uma discrepância em relação ao conhecimento gerado nos últimosanos sobre a sua neurobiologia, pois tal conhecimento científico não promoveu um avanço em termos de resultados clínicos nos últimos 100 anos. Desde a década de 50, vários medicamentos antipsicóticos foram lançados, sem nenhuma inovação radical em 79 PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA│ UNIDADE IV termos farmacológicos e, inclusive, clínicos. A grande maioria atua principalmente pela modulação de receptores dopaminérgicos e serotoninérgicos. Nesse sentido, os tratamentos com antipsicóticos são muito efetivos sobre os sintomas positivos, no entanto, os sintomas negativos e os cognitivos são resistentes ou pouco afetados pela medicação. Consequentemente, a busca por novos protótipos é bastante intensa, visto que não existe cura para a esquizofrenia e nem todos os pacientes conseguem êxito no tratamento. Além disso, é muito importante a conjugação com psicoterapias. Antes de adentrarmos o estudo dos antipsicóticos típicos e atípicos de forma mais detalhada, é importante mencionar que essa classe terapêutica apresenta, possivelmente, os mais complexos mecanismos farmacológicos entre qualquer classe de fármacos na psicofarmacologia clínica. 80 CAPÍTULO 2 Antipsicóticos Típicos Os antipsicóticos, também conhecidos como neurolépticos, antiesquizofrênicos ou tranquilizantes maiores, são fármacos referentes ao tratamento da esquizofrenia, embora sejam utilizados também no tratamento de outras doenças como episódios de mania, depressões psicóticas, violência compulsiva e psicoses orgânicas (RANG; DALE, 2012). A “neurolepsia” é uma forma extrema de lentificação ou ausência de movimentos motores, bem como indiferença comportamental. Inicialmente, os antipsicóticos originais foram descobertos, em grande parte, por sua capacidade de produzir esse efeito em animais de laboratório e, por isso, foram chamados de “neurolépticos”. Um equivalente da neurolepsia nos seres humanos também é causado por esses antipsicóticos típicos e caracteriza-se por retardo psicomotor, tranquilização emocional e indiferença afetiva. Existem duas classes principais: os antipsicóticos típicos ou de primeira geração e os atípicos ou de segunda geração. É importante ressaltar que fármacos antipsicóticos tratam os sintomas do transtorno, mas não curam a esquizofrenia. Possuem como ação principal o efeito sedativo ou tranquilizante. São exemplos de antipsicóticos típicos a clorpromazina, haloperidol, flupentixol, zuclopentixol, levomepromazina, flufenazina, loxapina, mesoridazina (de segunda linha devido a problemas farmacocinéticos), perfenazina, pipotiazina, sulpirida, tiotixeno, trifluoperazina, tiorodazina e pimozida (STAHL, 2014). Os compostos piperazínicos são geralmente mais potentes e farmacologicamente mais seletivos do que os outros. Já o haloperidol apresenta maior potência e menores efeitos colaterais autônomos, se destacando entre os típicos. Os antipsicóticos típicos têm como mecanismo de ação principal o antagonismo dos receptores de dopamina nos sistemas dopaminérgicos (via mesolímbica, mesocortical, nigroestriatal e túbero infundibular). Nesse sentido, eles atuam preferencialmente sobre D2, contudo podem apresentar afinidade, ainda que menor, pelo D1. Além disso, eles atuam sobre uma variedade de receptores de diferentes sistemas de neurotransmissores como o de histamina, catecolaminas, acetilcolina e 81 PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA│ UNIDADE IV serotonina. Essa ampla atuação inclusive contribuiu para o nome comercial do primeiro antipsicótico, a clorpromazina (LargactilR). Pensando no antagonismo D2, os efeitos terapêuticos dos antipsicóticos típicos na esquizofrenia seriam decorrentes de sua ação sobre a via mesolímbica, pois, como vimos, os sintomas positivos são associados a um estado hiperdopaminérgico nessa via. Mas um fármaco não é capaz de distinguir entre o receptor D2 de uma via e o de outra, por isso existem muitos efeitos colaterais relacionados ao uso dos antipsicóticos típicos. A via nigroestriatal faz parte do sistema nervoso extrapiramidal e controla os movimentos motores. Uma boa forma de entender o papel da dopamina nessa via com os movimentos é analisando a doença de Parkinson. Nela há uma deficiência de dopamina, que provoca rigidez, acinesia/bradicinesia e tremor. Esses distúrbios do movimento podem ser mimetizados por fármacos que bloqueiam os receptores D2 nessa via, como os antipsicóticos. Por outro lado, a hiperatividade da dopamina na via nigroestriatal constitui um dos pilares de vários distúrbios hipercinéticos do movimento, como coreia, discinesias e tiques. Assim, por bloquear esses receptores na via nigroestriatal, os antipsicóticos causam os efeitos adversos motores. Esses efeitos são conhecidos como “efeitos extrapiramidais” e recebem esse nome, pois estão associados com vias motoras que não cruzam as pirâmides da medula. Tratos motores corticais cruzam a pirâmide medular e comandam motoneurônios no lado contralateral, por isso são chamadas de vias piramidais. Os efeitos extrapiramidais são transtornos do movimento. Os efeitos extrapiramidais mais conhecidos são a discinesia tardia e a distonia aguda. Outros sintomas incluem o parkinsonismo, neste caso induzido pela droga, que corresponde à rigidez muscular, bradicinesia/acinesia (incapacidade de iniciar o movimento); tremor de repouso e instabilidade postural, mais frequente em adultos e idosos; e acatisia que é uma incapacidade de se manter imóvel, é como uma agitação, com vontade incontrolável de mover-se. O antagonismo de receptores serotoninérgicos e/ou muscarínicos reduz os efeitos extrapiramidais. Antipsicóticos que apresentam esse perfil de ligação possuem menos efeitos adversos motores. Veja mais sobre isso na próxima Unidade. A distonia aguda corresponde a movimentos involuntários, incluindo espasmos musculares, agitação, olhar fixo para cima, torcicolo e protusão da língua. Geralmente, vêm acompanhados de parkinsonismo. Ocorrem nas primeiras semanas de uso do 82 UNIDADE IV │ PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA antipsicótico e tendem a diminuir com o tempo e são reversíveis com a interrupção do tratamento. Podem ser mais frequentes em crianças. A discinesia tardia se desenvolve após meses ou anos de uso do medicamento. São movimentos involuntários da face, da língua, principalmente, mas também do tronco e membros. Pode atingir até 40% dos pacientes que fazem uso dos antipsicóticos de primeira geração. Ao contrário da distonia aguda, é incapacitante, irreversível e piora com a retirada do tratamento. Acredita-se que seja mediada por alterações, por vezes irreversíveis, dos receptores D2 da via DA nigroestrital. Especificamente, a hipótese formulada é a de que esses receptores se tornam mais sensíveis ou mais expressos. Dessa forma, o bloqueio crônico dos receptores D2 nessa via pode resultar em distúrbio de movimento hipercinético, conhecido como discinesia tardia induzida por neurolépticos. Na esquizofrenia, a via nigroestriatal em pacientes não tratados pode estar relativamente preservada. Para termos uma ideia, aproximadamente 5% dos pacientes tratados com antipsicóticos típicos irão desenvolver discinesia tardia todos os anos e aproximadamente 25% desenvolverão dentro de 5 anos. Se considerarmos que a esquizofrenia geralmente começa a ser tratada farmacologicamente em torno dos 20 anos de idade e que esse tratamento se mantém por toda a vida, as perspectivas não são animadoras. É importante mencionar que se o bloqueio dos receptores D2 for removido cedo o suficiente, a discinesia tardia pode ser reversível. Provavelmente devido a um reajuste desses receptores D2. Todavia, após tratamento prolongado, o organismo “perde” essa capacidade de se adaptar, e os receptores D2 não podem mais ser reajustados, mesmo quando os antipsicóticos são suspensos. Isso resulta em discinesia tardia, que é irreversível e continua independentemente da administração ou não de antipsicóticos de 1ª geração.Os pacientes que desenvolvem sintomas extrapiramidais no início do tratamento podem ter probabilidade duas vezes maior de apresentar discinesia tardia se o tratamento com antipsicótico convencional for mantido cronicamente. A ação dos antipsicóticos sobre a via tuberoinfundibular tem influência na secreção de prolactina. A prolactina é um hormônio produzido e secretado pela adeno- hipófise. Sua função é estimular a produção de leite pelas glândulas mamárias e o aumento das mamas. A via tuberoinfundibular envolve neurônios dopaminérgicos que saem do núcleo arqueado do hipotálamo e se projetam até a eminência medial. Essa região se conecta 83 PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA│ UNIDADE IV com a hipófise, onde ocorre a produção e secreção de prolactina. A dopamina liberada na eminência medial regula a secreção da prolactina, inibindo a produção e secreção desse hormônio. No estado pós-parto, a atividade desses neurônios dopaminérgicos diminui. Assim, os níveis de prolactina podem aumentar durante a amamentação, de modo que a lactação possa ocorrer. Se o funcionamento dos neurônios dopaminérgicos tuberoinfundibulares for interrompido por lesões ou substâncias, pode ocorrer também elevação dos níveis de prolactina. Os níveis elevados de prolactina estão associados à galactorreia (secreção da mama), à amenorreia (perda da ovulação e dos períodos menstruais) e, possivelmente, a outros problemas, como disfunção sexual. Assim, o bloqueio dos receptores D2 impede a dopamina de atuar levando à hiperprolactinemia, estado de aumento de produção e secreção de prolactina fora da gravidez. A hiperprolactinemia causa nas mulheres alteração do ciclo menstrual e infertilidade; no homem, provoca impotência sexual (por prejudicar a produção de testosterona) e também o aumento das mamas (ginecomastia), por isso encontramos esses efeitos adversos com a administração dos antipsicóticos típicos. Sabemos que por meio dos estudos com modelos animais e de neuroimagem, mais recentemente surgiu uma versão mais refinada da hipótese da dopaminérgica. Essa propõe que, em condições fisiológicas, há um equilíbrio entre a via mesocortical e a mesolímbica, no qual a mesocortical exerce um controle sobre a mesolímbica. Assim, quando há uma diminuição na atividade do sistema mesocortical, como na esquizofrenia, isso gera um desequilíbrio, que promove aumento da atividade no sistema mesolímbico. Assim, a hipótese atual da dopamina argumenta que os sintomas da esquizofrenia podem na verdade ser mais bem conceituados em reduções na atividade do sistema mesocortical e no aumento na atividade do sistema dopaminérgico mesolímbico. A diminuição da atividade dopaminérgica no córtex pré-frontal leva aos sintomas negativos, como retração social, diminuição da fala, embotamento afetivo, e o aumento concomitante da atividade no sistema dopaminérgico mesolímbico leva aos sintomas positivos da esquizofrenia, os delírios e alucinações. Sabemos também que os próprios antipsicóticos, descobertos antes mesmo da dopamina, ajudaram na elaboração da teoria dopaminérgica. A clorpromazina e o haloperidol, que apresentaram bons efeitos sobre os sintomas positivos, agem 84 UNIDADE IV │ PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA bloqueando os receptores D2. Esse subtipo é mais expresso no sistema dopaminérgico mesolímbico e, em menor quantidade, na via mesocortical, ou seja, no CPF. De fato, esses antipsicóticos possuem efeitos sobre os sintomas positivos e provavelmente são resultado do bloqueio dos receptores D2 no sistema mesolímbico. Entretanto, eles não estão expressos no córtex pré-frontal, o que corrobora o fato de que esses fármacos não apresentam efeitos sobre os sintomas negativos e cognitivos. No CPF, encontramos em maior quantidade o receptor D1. No entanto não podemos descartar o fato de que a atuação sobre os poucos receptores D2 expressos no CPF podem contribuir para piora nos sintomas negativos e cognitivos. Além disso, os receptores D2 presentes no Nac estão muito relacionados ao reforço positivo, a sensação de prazer associada a estímulos recompensadores, prazerosos, como comidas, bebidas, sexo, drogas de abuso. O bloqueio desses receptores pela medicação antipsicótica pode provocar anedonia, que é a perda da capacidade de sentir prazer. Embora o antagonismo D2 seja o principal mecanismo de ação dos antipsicóticos típicos, eles não são seletivos para receptores dopaminérgicos. Eles atuam também sobre receptores muscarínicos, histaminérgicos, noradrenérgicos e serotoninérgicos. Veja Tabela 3. Alguns agentes mais modernos como a amissulprida, sulpirida e remoxiprida são seletivos para D2. Essa atuação em receptores de outros sistemas de neurotransmissão contribui para diminuir efeitos adversos do próprio fármaco ou para melhorar sintomas negativos ou cognitivos. Em relação à atuação sobre os receptores serotoninérgicos, os antipsicóticos, tanto típicos como atípicos, bloqueiam o 5HT2A. Esse subtipo tem ação inibitória, pois está acoplado à proteína Gi/G0, assim, diminui a excitabilidade no soma e a liberação de neurotransmissor pelo terminal axonal. Esses receptores podem estar expressos em neurônios dopaminérgicos. Por serem inibitórios, a ativação deles pela serotonina leva à diminuição da liberação de DA. Pensando no contexto da esquizofrenia e da administração de antipsicóticos que são antagonistas, D2 e 5HT2A, o bloqueio dos receptores 5HT2A na via nigroestriatal contribui para a diminuição dos efeitos adversos extrapiramidais (decorrentes do bloqueio D2 nessa via), pois favorece, ou pelo menos não inibe, a liberação de DA. 85 PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA│ UNIDADE IV O antagonismo do 5HT2A leva a um aumento na liberação de DA. Na via mesocortical, isso também tem um efeito benéfico, pois esse bloqueio leva a aumento da liberação de DA e glutamato, amenizando a hipoatividade cortical, o que é um ponto positivo, pois pode amenizar sintomas negativos e cognitivos. Já na via mesolímbica, o efeito da combinação do antagonismo D2 e 5HT2A pelos antipsicóticos tem um efeito positivo, também contribuindo para diminuição dos sintomas positivos. Alguns fármacos, como a quetiapina, são agonistas 5HT1A. Esse subtipo é amplamente expresso no CPF, estando presente nos terminais pré-sinápticos, como vimos anteriormente. Dessa forma, por meio desse mecanismo de ação, a quetiapina reduz a liberação de 5HT no CPF, contribuindo para a melhora nos sintomas cognitivos e negativos, uma vez que a 5HT, por meio dos receptores 5HT2A, atua inibindo a liberação de DA. No estriado, existe ainda a interação do sistema dopaminérgico com o colinérgico. Lá, os neurônios dopaminérgicos se comunicam com neurônios colinérgicos, que expressam D2 e também receptores muscarínicos. Assim, por meio do D2, a DA é capaz de reduzir a atividade do neurônio colinérgico, enquanto que a ativação do receptor muscarínico leva à excitação dessa célula. O equilíbrio entre a ativação DA e colinérgica no interneurônio colinérgico (promovendo um equilíbrio entre a excitação e a inibição deste) é importante para a regulação da atividade DA no estriado. Quando usamos um antipsicótico que atua bloqueando D2, vemos que esse equilíbrio é perdido, pois o antagonismo de D2 leva a um aumento da liberação de acetilcolina pelo interneurônio colinérgico. O aumento de acetilcolina na via nigroestriatal pode contribuir para os efeitos extrapiramidais. Assim, o fármaco que possuir afinidade também pelo receptor muscarínico (M1), sendo capaz de inativá-lo, reestabelece o equilíbrio da ativação do interneurônio colinérgico, reduzindo os efeitos extrapiramidais do antipsicótico em questão. Contudo o antagonismo de receptores muscarínicos provoca efeitos colaterais, principalmente periféricos, como constipação, boca seca, retenção urinária e embaçamento visual. A clorpromazina tem afinidade por receptor muscarínico; e o haloperidol, não. Nesse sentido, temos menos efeitos extrapiramidaiscom a clorpromazina do que com o haloperidol, mas a clorpromazina produz os efeitos anticolinérgicos. 86 UNIDADE IV │ PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA Por bloquearem receptores de histamina do tipo H1, os antipsicóticos produzem sedação e sonolência. Embora o antagonismo de H1 não contribua para a ação antipsicótica, seus efeitos podem ser considerados positivos, principalmente em casos de agitação. A ação sobre receptores noradrenérgicos (α1) leva a um efeito adverso chamado de hipotensão ortostática, que se refere a uma diminuição brusca da pressão arterial quando o indivíduo se levanta, por isso é chamada também de hipotensão postural. Em relação aos efeitos adversos, uma característica que os antipsicóticos compartilham é o aumento de massa corporal. Esse efeito é decorrente da ação dos fármacos sobre os receptores histaminérgicos, serotoninérgicos e muscarínicos. Os antipsicótipicos típicos mais antigos, como a clorpromazina, causam icterícia. Geralmente, ela é leve e desaparece com a suspensão do uso do fármaco e substituição por outro que tenha perfil químico diferente. A icterícia é a alteração da pigmentação da pele para amarelo ou verde, causada por níveis elevados de bilirrubina no sangue. Antipsicóticos podem causar leucopenia e agranulocitose. A leucopenia é a redução dos leucócitos, os glóbulos brancos do sangue, que fazem parte do sistema imune do organismo. A agranulocitose é uma forma grave e aguda de leucopenia. Embora sejam raras (1 em cada 10.000), com a clozapina esse índice é maior (1 a 2% dos pacientes tratados com clozapina). Elas são potencialmente fatais e ocorrem logo nas primeiras semanas de tratamento, por isso o uso de clozapina tem ser feito com monitoração contínua da contagem de células do sangue. Esse efeito é reversível com a interrupção do tratamento. Esse efeito parece estar ausente na olanzapina. Reações na pele (urticárias) são comuns com o uso de antipsicóticos e geralmente são graves. Além disso, pode ocorrer hipersensibilidade à luz ultravioleta. Por fim, pode ocorrer, de forma rara, a síndrome maligna dos antipsicóticos. É semelhante á hipertermia maligna que ocorre com anestésicos. Ocorre rigidez muscular acompanhada de aumento da temperatura corporal e confusão mental. De modo geral, é reversível, mas pode, sim, levar à morte em 10 a 20% dos casos. 87 CAPÍTULO 3 Antipsicóticos atípicos Até aqui você deve ter percebido que o uso dos antipsicóticos típicos representa um dilema. Afinal, embora não haja dúvidas sobre os efeitos benéficos dessa classe sobre os sintomas positivos, o bloqueio dos receptores D2 gera muitos efeitos adversos graves. O ideal seria ter um fármaco que aumentasse a dopamina na via dopaminérgica mesocortical, que além de tratar os sintomas negativos e cognitivos, diminuiria a atividade na via mesolímbica, sem alterar o tônus dopaminérgico nas vias nigroestriatal e tuberoinfundibular para evitar os efeitos colaterais. É aí que entram os antipsicóticos antípicos. O termo “atípico” é muito utilizado, mas não há uma definição. De maneira geral, refere-se a fármacos que apresentam perfil farmacológico diferente dos compostos de primeira geração – eles apresentam menor afinidade pelo receptor D2. Farmacologicamente, eles podem ser definidos como antagonistas da serotonina- dopamina, com antagonismo simultâneo dos receptores de serotonina 5HT2A que acompanham o antagonismo de D2. A distinção entre típico e atípico depende: » Do perfil de receptor ao qual o fármaco se liga e/ou grau de afinidade; » Da incidência de efeitos colaterais extrapiramidais; » Da eficácia em pacientes resistentes; e » Da eficácia sobre outros sintomas, além dos positivos. Em consequência, produzem em menor escala os efeitos adversos motores (extrapiramidais e hiperprolactinemia) e atuam também sobre os sintomas negativos e cognitivos e não somente sobre os positivos, como os típicos. Entretanto são de alto custo. Existem várias teorias que tentam explicar o desenvolvimento da discinesia tardia com o uso de antipsicóticos. Uma delas propõe que o uso continuado do antipsicótico levaria a um aumento gradual da expressão de receptores D2 no estriado. Outra possibilidade é que o bloqueio crônico do D2 leva à ação excitotóxica do glutamato. 88 UNIDADE IV │ PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA Antipsicóticos atípicos, como a olanzapina, clozapina e sertindol, dissociam- se rapidamente do receptor D2 e causam menos efeitos extrapiramidais. Isso acontece porque como o fármaco se desliga rapidamente do receptor a dopamina endógena, ainda que por breves momentos, é capaz de ativar o receptor. Nesse sentido, o uso de agonistas parciais, como o aripiprazol, causaria uma diminuição da hiperatividade dopaminérgica mesolímbica, pois competiria com o agonista total endógeno. Ao mesmo tempo, não levaria aos efeitos extrapiramidais, consequentes do bloqueio do D2 na via nigroestriatal, pois haveria ativação do receptor, ainda que em menor intensidade que a decorrente da ativação pela dopamina. Os antipsicóticos atípicos incluem: clozapina, risperidona, olanzapina, ziprazidona, quetiapina, amisulprida, sertindol, zotepina e o aripiprazol. Além de outros exemplos, essa lista é bastante extensa. Contudo fármacos antigos, como a sulpirida e a tioridazina, também podem ser consideradas atípicas. A clozapina foi o primeiro antipsicótico atípico. Como vimos, ela foi descoberta na década de 1950, mas ela foi “redescoberta” na década de 1980, quando foi utilizada em um grande ensaio clínico randomizado. Nesse estudo, foram avaliados pacientes com antipsicóticos. Os pacientes foram distribuídos aleatoriamente para receber clorpromazina por seis semanas ou esse fármaco “novo” – a clozapina. Foi observado que 30% desses pacientes resistentes realmente mostraram melhora significativa em seus sintomas com a clozapina, o que contrastou com 4% obtidos no grupo clorpromazina. Esse estudo foi importante, pois mostrou que havia um fármaco que poderia ser usado em pacientes resistentes. Além disso, descobriu-se que clozapina não apresentava uma afinidade tão alta pelos receptores D2, tendo seus efeitos associados à ação em outros receptores. Isso impulsionou o desenvolvimento de outros fármacos, surgindo uma variedade de antipsicóticos atípicos. Para compreender os antipsicóticos atípicos, é essencial conhecer a farmacologia dos receptores 5HT2A, bem como os efeitos biológicos relacionados a eles. Como vimos, eles são pós-sinápticos e estão localizados em muitas regiões do cérebro. Nos neurônios piramidais corticais, eles são excitatórios e, por isso podem potencializar a liberação de glutamato no tronco encefálico, isto é, a serotonina liberada no CPF pode excitar neurônios glutamatérgicos dessa região. 89 PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA│ UNIDADE IV Já sabemos que o neurônio glutamatérgico pode atuar regulando a liberação da dopamina no estriado, inibindo-a (lembrem-se dos interneurônios gabaérgicos – o neurônio glutamatérgico sendo estimulado pela 5HT via 5HT2A vai levar à ativação dos interneurônios gabaérgicos). Dessa forma, por meio do glutamato, os receptores serotoninérgicos 5HT2A podem também regular a liberação de dopamina nas vias dopaminérgicas, especialmente as mesolímbica e mesocortical. Assim, o antagonismo de 5HT2A dos neurônios piramidais corticais por um antipsicótico atípico interfere na ação da serotonina, agindo como um freio contra a liberação de dopamina. Isto fará com que os sintomas positivos da esquizofrenia sejam reduzidos. Os receptores 5HT2A também se relacionam com a via nigroestriatal e, portanto, com os efeitos extrapiramidais. Os núcleos da rafe projetam neurônios serotoninérgicos para a substância negra. Lá a serotonina, por meio do receptor 5HT2A, regula a liberação de dopamina pelos neurônios dopaminérgicos que partem da substância negra para o estriado. Essa conexão pode ser direta, entre o neurônio serotoninérgico e oneurônio dopaminérgico, ou indireta, por meio de um interneurônio gabaérgico. A estimulação dos receptores 5HT2A dos neurônios da substância negra bloqueia a liberação de dopamina no estriado. Logo o antagonismo desses receptores por um antipsicótico atípico estimula a liberação de dopamina no estriado, o que reduz a incidência de sintomas extrapiramidais. Vejam que os antipsicóticos atípicos agem como antagonistas D2 e 5HT2A. Pensando no antagonismo D2, se esta fosse a única ação do fármaco, ocorreriam sintomas extrapiramidais. Entretanto, devido à ação de antagonista 5HT2A, esses efeitos não ocorrem ou ocorrem em grau reduzido. A serotonina pode atuar também sobre o receptor 5HT1A, o autorreceptor pré- sináptico que tem ação inibitória. Assim, a ativação deste receptor pode levar à desativação da via serotoninérgica dos núcleos da rafe para o estriado. Dessa forma, a serotonina não é liberada por esses neurônios e não atuará, entã,o nos receptores 5HT2A dos neurônios nigroestriatais, o que levaria à liberação de dopamina no estriado. Assim, a estimulação dos receptores 5HT1A pré-sinápticos reduz os sintomas extrapiramidais. Alguns antipsicóticos atípicos, mas nem todos, apresentam propriedades potentes de agonismo parcial de 5HT1A, como o aripiprazol Diversos fármacos com ações antidepressivas exercem ação sobre os receptores 5HT1A, como a buspirona. 90 UNIDADE IV │ PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA O mecanismo pelo qual o antagonismo parcial de 5HT1A exerce eficácia antidepressiva não é conhecido. Contudo parece estar ligado à liberação de dopamina e de noradrenalina no córtex pré-frontal ou à potencialização dos níveis de serotonina na presença de um inibidor da recaptação de serotonina. Os agonistas parciais provocam mais impulsos dos receptores do que os antagonistas silenciosos, porém menos do que os agonistas completos. Assim, são possíveis muitos que graus de agonismo parcial entre esses dois extremos. Os agonistas completos, os antagonistas e os agonistas parciais podem causar diferentes mudanças na conformação do receptor. Todos os antipsicóticos atípicos têm como risco associado ao seu uso o ganho de peso e risco de obesidade, dislipidemia, diabetes, doença cardiovascular acelerada, o que pode levar à morte prematura. O risco de síndrome metabólica é alto com a clozapina e olanzapina; é moderado com a risperidona, paliperidona, quetiapina, iloperidona; e baixo com ziprasidona, aripiprazol, lurasidona, iloperidona. Os mecanismos farmacológicos dos fatores envolvidos na indução da síndrome metabólica estão apenas começando a ser elucidados. Sabe-se que começa pelo aumento do apetite e pelo ganho de peso e evolui para a obesidade, a resistência à insulina e à dislipidemia, com elevação dos níveis de triglicerídios em jejum. Finalmente, a hiperinsulinemia evolui para a insuficiência das células β pancreáticas até o diabetes. Uma vez estabelecido o diabetes, o risco de eventos cardiovasculares aumenta ainda mais, assim como o risco de morte prematura. Agora vamos abordar algumas particularidades de alguns antipsicóticos atípicos. Clozapina É um antagonista dos receptores 5HT2A e D2, considerada o primeiro dos atípicos. Caracteriza-se por apresentar um dos mais complexos perfis farmacológicos e por não provocar discinesia tardia nem elevação da prolactina. É importante mencionar que a clozapina é o único antipsicótico atípico reconhecidamente efetivo para casos de resistência a outros antipsicóticos. Por isso, é considerada como “padrão-ouro” para a sua eficácia na esquizofrenia e destaca-se no tratamento da agressão e da violência em pacientes psicóticos. Além disso, é o único antipsicótico documentado como capaz de reduzir o risco de suicídio na esquizofrenia e de diminuir a gravidade da discinesia tardia em alguns pacientes com esse problema, particularmente com tratamento prolongado. 91 PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA│ UNIDADE IV Contudo sempre há o outro lado da moeda... A clozapina também é o antipsicótico associado ao maior risco de desenvolver uma complicação possivelmente fatal, a agranulocitose, sendo o mecanismo envolvido nessa ação desconhecido. Por esse motivo, é necessário monitorar o hemograma desses pacientes enquanto estiverem sendo tratados com clozapina. A clozapina também apresenta maior risco de convulsões, particularmente em doses altas. Assim, a clozapina pode apresentar a maior eficácia, mas também é a que tem mais efeitos colaterais entre os antipsicóticos atípicos. Devido aos riscos desses efeitos colaterais, não se considera a clozapina como tratamento de primeira linha, apenas nos casos de resistência. Olanzapina Apesar de apresentar estrutura química e mecanismo de ação (antagonista dos receptores 5HT2A e D2) relacionados com a clozapina, a olanzapina é mais potente e apresenta várias características farmacológicas e clínicas que a diferenciam da clozapina. Não causa sintomas extrapiramidais, mesmo em altas doses. Pode ser um pouco mais sedativa em alguns pacientes, pois apresenta propriedades antagonistas nos receptores muscarínicos M1, histamínicos H1 e α1-adrenérgicos. Não costuma elevar os níveis de prolactina com tratamento prolongado, mas está consistentemente associada a ganho de peso, provavelmente por atuar como anti-histamínica e antagonistas de 5HT2C. Por isso, apresenta graves riscos cardiometabólicos. A olanzapina melhora o humor não apenas na esquizofrenia, mas também no transtorno bipolar e na depressão resistente ao tratamento, em especial quando associada a antidepressivos, como a fluoxetina. Talvez as propriedades antagonistas de 5HT2C, com as propriedades antagonistas mais fracas de 5HT7 e α2 da olanzapina, principalmente quando associadas às propriedades antagonistas de 5HT2C do antidepressivo fluoxetina, expliquem alguns aspectos da aparente eficácia da olanzapina nos sintomas afetivos. Quetiapina A quetiapina também apresenta uma estrutura química relacionada com a clozapina, mas ela é interessante, pois seu efeito é dose-dependente, isto é, suas propriedades 92 UNIDADE IV │ PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA farmacológicas dependem da doses e também diferem de acordo com as formulações. Além disso, a quetiapina possui metabólito ativo, a norquetiapina, que exibe propriedades farmacológicas únicas, destacando-se a inibição do transportador de noradrenalina (NAT), mas também antagonismo de 5HT7, 5HT2C e α2 e ações agonistas parciais de 5HT1A. Todos eles podem contribuir para o perfil clínico global da quetiapina, em especial seus efeitos antidepressivos efetivos. A quetiapina está disponível em 2 tipos de formulações: a de liberação imediata (LI) e a de liberação prolongada (LP). A formulação LI tem início relativamente rápido, contudo, seu efeito é de curta duração de ação. De modo geral a medicação é administrada à noite e isso é interessante, pois a quetiapina é mais sedativa no pico de sua liberação, devido, em grande parte, às suas propriedades anti-histamínicas. O que a um hipnótico ideal, mas não um antipsicótico ideal. Já a formulação LP é ideal como antipsicótico, apresentando menos sedação no pico da dose e com duração de ação que se estende por todo o dia. A quetiapina tem ação antipsicótica em altas doses (800 mg), idealmente na formulação LP. Em doses intermediárias, ela tem ação antidepressiva (300 mg), também idealmente na formulação LP. Já em baixas doses, ela age como sedativo hipnótico (50 mg), idealmente na formulação LI. As doses mais baixas atuam nos receptores que exibem maior afinidade pela quetiapina, particularmente as propriedades anti-histamínicas H1. Com a formulação LI, quase todos os receptores H1 são bloqueados dentro de poucos minutos após sua administração oral. Além disso, com esse tipo de formulação, a ocupação dos receptores H1 diminui rapidamente, o que diminui a probabilidade de um efeito de ressaca. Vale ressaltar que essas doses não estão aprovadas para usocomo hipnótico, podendo esta ser uma opção cara, com riscos metabólicos. As doses intermediárias foram uma surpresa. Embora tenha sido desenvolvida como antipsicótico, foi observado que a quetiapina exercia efeitos antidepressivos em pacientes com depressão bipolar e unipolar, além de ajudá-los no sono. Os efeitos antidepressivos são mais consistentes quando comparados a qualquer agente na depressão bipolar, contudo isso não fazia sentido, quando se analisava o mecanismo de ação da quetiapina. Descobriu-se, então, que seu metabólito ativo possui propriedades de bloqueio da recaptação de noradrenalina e antagonista de 5HT2C, muito maiores que as da própria quetiapina. Esses dois mecanismos podem, individualmente, aumentar a liberação tanto de dopamina quanto de noradrenalina. 93 PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA│ UNIDADE IV Além disso, a quetiapina tem propriedades de agonista parcial de 5HT1A, e antagonista de 5HT7, α2 e 5HT1B/D, também teoricamente ligadas a ações antidepressivas. Embora ambas as formulações pareçam ter eficácia antidepressiva, a formulação LP apresenta ocupação mais consistente dos receptores 5HT2C e dos transportadores de noradrenalina ao longo do dia, bem como de outros receptores-chave. Por esse motivo, pode constituir, teoricamente, a formulação preferida para o tratamento da depressão. A quetiapina foi aprovada tanto para a depressão bipolar quanto como agente potencializador dos ISRS/IRSN na depressão unipolar que não responde suficientemente à monoterapia com esses fármacos. Doses maiores saturam totalmente ambos os receptores de histamina H1 e 5HT2A em ambas as formulações, no entanto a ocupação mais consistente dos receptores D2 acima de 60% ocorre com a formulação LP. Praticamente não provoca nenhum sintoma extrapiramidal em qualquer dose, nem elevação da prolactina. Pode causar ganho de peso, particularmente quando administrada em doses moderadas a altas, devido ao bloqueio de H1. Risperidona Apresenta estrutura química e perfil farmacológico diferentes dos antipsicíticos terminados em “pina”, como os vistos até aqui. Ela é atípica em doses baixas, contudo, em doses altas, pode se tornar mais típica, podendo ocorrer sintoma extrapiramidal. Pode ser usada também no transtorno depressivo bipolar além de outras condições como para o tratamento da irritabilidade associada ao transtorno autístico em crianças e adolescentes. Apesar de produzir pouco os sintomas extrapiramidais, mesmo em doses baixas causa elevação dos níveis de prolactina. A risperidona apresenta risco moderado de ganho de peso e dislipidemia. Aripiprazol Age como um agonista parcial do receptor de dopamina D2, sendo esse um importante diferencial farmacológico. Por isso, embora não atue como antagonista 5HT2A e D2, produz pouco ou nenhum efeito extrapiramidal e hiperprolactinemia. Também exerce ações agonistas parciais de 5HT1A, que são mais potentes do que suas ações de antagonismo de 5HT2A, porém menos potentes que sua afinidade de ligação ao receptor D2. Essa propriedade contribui para suas propriedades clínicas antipsicóticas, conforme já discutido. 94 UNIDADE IV │ PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA É efetivo no tratamento da esquizofrenia e da mania e também foi aprovado para uso em vários grupos de crianças e adolescentes, como aqueles com esquizofrenia, mania aguda/mania mista e irritabilidade relacionada com o autismo. Não tem propriedades associadas à sedação, bem como pouca ou nenhuma propensão a causar ganho de peso. O aripiprazol foi aprovado como antidepressivo para potencializar os ISRS/IRSN no tratamento do transtorno depressivo maior resistente ao tratamento. Além disso, embora não tenha sido especificamente aprovado, é também usado com frequência na depressão bipolar. Suas potentes propriedades de agonista parcial de 5HT1A e de antagonista de 5HT7 oferecem explicações para as ações antidepressivas. Amissulprida A amissulprida foi desenvolvida e empregada antes do reconhecimento completo do conceito de agonismo parcial dopaminérgico. Nesse sentido, acredita-se que ela não apenas seja um antipsicótico atípico, mas também tenha essas propriedades clínicas por ser um agonista parcial, com atividade muito próxima de agonista total. Apesar de causar poucos sintomas extrapiramidais ou hiperprolactinemia, e também de poder atuar sobre os sintomas negativos, não tem afinidade apreciável pelos receptores 5HT2A ou 5HT1A. Todavia atua como antagonista dos receptores 5HT7. Sulpirida A sulpirida é um composto mais antigo, relacionado, estruturalmente, com a amissulprida, que foi desenvolvida como antipsicótico típico. Apesar de produzir sintomas extrapiramidais e hiperprolactinemia, pode ter eficácia nos sintomas negativos da esquizofrenia. A risperidona é um dos fármacos mais estudados. A olanzapina, quetiapina, amisulprida, ziprasidona e o aripiprazol têm indicações semelhantes às da risperidona, no entanto, seus altos custos limitam seus usos. 95 PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA│ UNIDADE IV Tabela 3. Características dos fármacos antipsicóticos. OBS Fármaco D1 D2 alfa 1 H1 mACh 5HT2A Sedação EEP Outros Efeitos Colaterais/AdversosAfinidade pelos receptores + +++ +++ ++ + ++ +++ Aum de prolactina (Ginecomastia) Hipotermia Efeitos anticolinérgicos Reações de hiperessensibilidade Icterícia obstrutiva + +++ ++ - - + - +++ Como a clorpromazina, sem a icterícia Menor freq de efeitos anticolinérgicos ++ +++ +++ - + + Aum de prolactina (Ginecomastia) Agitação Sulpirida - ++ - - - - + ++ Aum de prolactina (Ginecomastia) Mecanismo de ação é dose-dependente Clo rp ro ma zin a Haloperidol Flupentixol + + ++ ++ ++ ++ ++ - Risc o de agranuloc itose (aprox. 1%) Usada em pac ientes resistentes monitorizaç ão sanguínea c onstante Crises c onvulsivas Sal ivaç ão Efeitos antic ol inérgic os Ganho de peso + ++ ++ ++ - +++ ++ ++ Ganho de peso Age em D4 Hipotensão Risco maior de EEP com altas doses + ++ ++ + - +++ + Arritmias ventriculares Ganho de peso Congestão nasal - + ++ + + + ++ - Taquicardia Agonista parcial 5HT1A Agitação Boca seca Constipação Ganho de peso - +++ + + - ++ + - É um agonista parcial Agonista parcial 5HT1A + ++ ++ ++ - ++ + Ganho de peso Hipotensão Arritmias cardíacas + ++ ++ + - +++ - + Cansaço Náusea Ziprasidona Clo za pina Ripseridona Sertindol Quetiapina Aripiprazol Zotepina Fonte: Adaptado de Rang e Dale (2012) pela autora. A tendência clínica é de prescrição das drogas mais potentes, embora os efeitos sedativos e autônomos dessas drogas sejam menos evidentes, elas apresentam mais tendência aos efeitos extrapiramidais agudos. Segundo a Portaria n° 364 (2013), um protocolo com diretrizes para o tratamento da esquizofrenia no Brasil, qualquer antipsicótico, exceto a clozapina, pode ser escolhido para o tratamento da esquizofrenia, sem qualquer ordem de preferência. Mas existem critérios: » Os tratamentos devem ser feitos com um medicamento de cada vez (monoterapia), de acordo com o perfil de segurança e a tolerabilidade do paciente; » Em caso de falha terapêutica (definida como o uso de quaisquer desses fármacos, por pelo menos seis semanas, nas doses adequadas, sem melhora de pelo menos 30% na escala de Avaliação Psiquiátrica Breve (British Psychiatric Rating Scale – BPRS), uma segunda tentativa com algum outro antipsicótico deverá ser feita; 96 UNIDADE IV │ PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA » A utilização deve ser considerada apenas em situações clínicas nas quais existem evidências da sua eficácia. Clinicamente observamos que cada paciente responde melhor ou pior a um fármaco e o que é efetivo para um indivíduo não necessariamente é efetivo para outro. Isso acontece por dois motivos: » Cada fármaco tem um perfil diferente de interação com os receptores – a combinação de ligação aos receptores difere muito entre os antipsicóticos (típicos e atípicos), além do fato de apresentarem afinidades diferentes para um mesmo receptor.Por exemplo, a clorpromazina se liga aos receptores dos 5 istemas de neurotransmissão, enquanto que o haloperidol não se liga a receptores muscarínicos e histaminérgicos. Isso faz com que esses fármacos pertencentes à classe dos típicos tenham efeitos bastante diferentes; » Além disso, o equilíbrio entre os sintomas de cada um dos 3 tipos presentes na esquizofrenia varia bastante de paciente para paciente e isso influencia a eficácia dos antipsicóticos, pois cada paciente tem uma necessidade diferente. Dessa forma, os critérios de preferência da prescrição dos antipsicóticos devem ser bem avaliados e respeitados, uma vez em que cada um dos fármacos apresenta eficácia diferenciada. Outros critérios deverão ser levados em consideração como preferência do paciente, grau de adesão e intolerância aos efeitos colaterais. O surgimento da clozapina levou a questões sobre qual dos tipos de antipsicóticos pode ser mais eficaz. Os antipsicóticos de segunda geração, os atípicos, são mais eficazes? Nesse sentido, não há evidência conclusiva de vantagem dos atípicos. Uma metanálise (LEUCHT et al., 2009) mostrou que apenas a amilsuprida, clozapina, olanzapina e risperidona são melhores do que os típicos de modo geral. Nesse trabalho, foi observado que os outros atípicos não superam os típicos, nem mesmo sobre os sintomas negativos e cognitivos. Nesse sentido, os típicos e atípicos tratam muito bem os sintomas positivos, no entanto, mesmo os antipsicóticos atípicos apresentam pouca eficácia sobre os sintomas negativos e cognitivos, sendo o tratamento desses sintomas um grande desafio ainda. Os antipsicóticos são indicados primariamente para tratamento da esquizofrenia, mas podem ser usados também no tratamento do transtorno depressivo unipolar, quando há sintomas psicóticos; no transtorno depressivo bipolar, por terem efeitos positivos 97 PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA│ UNIDADE IV sobre a mania ou em casos de sintomas psicóticos; podem ter efeitos antidepressivos (sulpirida), além de serem utilizados em emergências comportamentais agudas (clorpromazina, haloperidol, olanzapina, risperidona), soluço intratável e tiques motores. Em relação à esquizofrenia, os antipsicóticos têm um alto impacto na redução de hospitalização, mas não podemos deixar de ressaltar que nos últimos anos houve uma grande mudança, para melhor, na postura dos profissionais de saúde, o que também contribui para uma melhor qualidade de vida desses pacientes. Outro grande desafio da terapia farmacológica atualmente são os pacientes resistentes. Não se sabe ao certo o motivo da resistência à terapia tradicional e porque a clozapina é eficiente nesses casos, mas acredita-se que esteja relacionado a polimorfismos genéticos nos receptores serotoninérgicos e dopaminérgicos. Têm sido investigados diversos novos alvos farmacológicos para tratamento da esquizofrenia. Agonistas de receptores glutamatérgicos metabotrópicos do tipo II (mGluR2 e mGluR3) já se mostraram eficazes sobre os sintomas positivos. Agonistas de receptor mGluR5 melhoraram sintomas positivos, negativos e cognitivos, o que levantou a hipótese da utilização de moduladores alostéricos de receptores glutamatérgicos, a fim de aumentar a ação do glutamato endógeno. Além disso, estudos com esquizofrênicos fumantes apontaram um papel importante dos receptores colinérgicos nicotínicos do subtipo α7 sobre os sintomas cognitivos, o que tem feito com que moléculas agonistas desse receptor venham sendo estudadas para tratamento da esquizofrenia. A estimulação dos receptores 5HT2C é uma abordagem experimental para um novo antipsicótico. Os receptores 5HT2C são pós-sinápticos e regulam a liberação tanto de dopamina quanto de noradrenalina. Esse mecanismo parece suprimir a liberação de dopamina com maior intensidade na via mesolímbica do que na via nigroestriatal. Também é uma abordagem experimental no tratamento da obesidade, visto que resulta em perda de peso em estudos tanto pré-clínicos quanto clínicos. Vale ressaltar que alguns antipsicóticos atípicos têm propriedades antagonistas de 5HT2C potentes, particularmente os antipsicóticos “pina”, como aqueles com ação antidepressiva conhecida, como a quetiapina e a olanzapina. Os receptores 5HT6 também são pós-sinápticos e podem constituir reguladores essenciais da liberação de acetilcolina e dos processos cognitivos. O bloqueio desse receptor melhora a aprendizagem e a memória em modelos animais. Os antagonistas dos receptores 5HT6 foram propostos como novos agentes pró-cognitivos para os 98 UNIDADE IV │ PSICOFARMACOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA sintomas cognitivos da esquizofrenia, quando acrescentados a um antipsicótico atípico. Alguns antipsicóticos atípicos são potentes antagonistas dos receptores 5HT6 (clozapina, olanzapina, asenapina) com relação à ligação aos receptores D2, enquanto outros apresentam ligação moderada ou fraca aos receptores 5HT6 em comparação com os receptores D2 (quetiapina, ziprasidona, iloperidona, aripiprazol, brexpiprazol). Todavia, ainda não foi esclarecido como essa ação contribui para qualquer de seus perfis clínicos. Embora este curso seja dedicado à psicofarmacologia, é cada vez mais evidente que as psicoterapias podem ser combinadas com antipsicóticos para alavancar a eficiência desses agentes. A psicoterapia cognitivo-comportamental juntamente com os antipsicóticos podem aumentar a capacidade de cognição do paciente, utilizando exercícios mentais e auto-observação, colaborando para torná-lo capaz de lidar melhor com os sintomas positivos residuais, o que aumenta a probabilidade de ter uma vida independente. O apoio familiar e externo é de importância fundamental para promover interações sociais positivas, que, por sua vez, podem ajudar a manter os delírios sob controle. Esse apoio é essencial para a adesão aos antipsicóticos e também ajuda no reconhecimento dos primeiros sinais de recidiva ou efeitos colaterais. 99 Referências ABI-DARGHAM, A.; GIL, R.; KRYSTAL, J.; BALDWIN, R. M.; SEIBYL, J. P.; BOWERS, M. et al. Increased striatal dopamine transmission in schizophrenia: confirmationin a second cohort. Am J Psychiatry, n. 155, p. 761-767, 1998. ABI-DARGHAM, A..; MAWLAWI, O.; LOMBARDO, I.; GIL, R.; MARTINEZ, D.; HUANG, Y.; HWANG, D. 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Atualmente, temos duas principais fontes nosológicas sobre os transtornos mentais: o Manual de diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, 5ª edição (DSM-V) e a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, 10ª edição (CID-10). A CID-10, desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde, utiliza nove sintomas principais para o diagnóstico da esquizofrenia. Veja a tabela abaixo: 14 UNIDADE I │ INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA Tabela 1: Grupos de sintomas relacionados no CID-10 para diretrizes diagnósticas. A) Eco do pensamento, inserção ou roubo do pensamento, irradiação do pensamento; B) Delírios de controle, influência ou passividade claramente referindo-se ao corpo ou movimentos dos membros ou pensamentos específicos, ações ou sensações, percepção delirante; C) Vozes alucinatórias comentando o comportamento do paciente ou discutindo entre elas sobre o paciente ou outros tipos de vozes alucinatórias vindos de alguma parte do corpo; D) Delírios persistentes de outros tipos que são culturalmente inapropriados e completamente impossíveis, tais como identidade política ou religiosa ou poderes e capacidades sobre-humanas (p. ex., ser capaz de controlar o tempo ou de se comunicar com alienígenas de outro planeta); E) Alucinações persistentes de qualquer modalidade, quando acompanhadas por delírios “superficiais” ou parciais, sem claro conteúdo afetivo, ou por ideias sobrevaloradas persistentes ou quando ocorrem todos os dias, durante semanas ou meses continuadamente; F) Intercepções ou interpolações no curso do pensamento, resultando em discurso incoerente, irrelevante ou neologismos; G) Comportamento catatônico, tal como excitação, postura inadequada ou flexibilidade cérea, negativismo, mutismo e estupor; H) Sintomas “negativos”, tais como apatia marcante, pobreza do discurso e embotamento ou incongruência de respostas emocionais, usualmente resultando em retraimento social e diminuição do desempenho social; deve ficar claro que esses sintomas não são decorrentes de depressão ou medicação neuroléptica; I) Uma alteração significativa e consistente na qualidade global de alguns aspectos do comportamento pessoal, manifestada por perda de interesse, falta de objetivos, inatividade, uma atitude ensimesmada e retraimento social. Fonte: Adaptado de CID-10 pela autora. Por exemplo, na primeira classe, encontramos sintomas como a irradiação do pensamento, que consiste em acreditar que seus pensamentos são ouvidos por outras pessoas, eles não ficam contidos no seu cérebro, mas irradiam. No segundo, temos o delírio de que os movimentos ou pensamentos são controlados por entidades que não o próprio indivíduo. Na classe C, encontramos as alucinações auditivas, que geralmente envolvem comandos ou comentários sobre o comportamento do paciente. Na quarta classe, temos delírios que envolvem questões culturais, sendo muitas vezes impossíveis de ocorrem e que estão associadas a poderes. A classe E inclui alucinações. Na classe F, começamos a ver a desorganização do pensamento. Na sétima classe, temos a catatonia, que pode se manifestar de várias formas, como, por exemplo, a flexibilidade cérea, que nada mais é do que, quando colocado em uma posição, o paciente permanece nela, imóvel, por muito tempo. Nas últimas classes, temos os sintomas negativos e a avolia, a falta de interesse. É importante termos em mente que o mais comum é que haja uma mistura dos sintomas. A diretriz segundo o CID-10 é que haja um mínimo de um sintoma claro (e, em geral, dois ou mais, se são menos claros) pertencente a qualquer um dos grupos listados como (a) e (d), acima, ou sintomas de pelo menos dois dos grupos referidos como (e) a (h) devem estar claramente presentes pela maior parte do tempo durante um período de 1 mês ou mais. As condições que preenchem essas exigências sintomatológicas, porém de duração menor do que 1 mês (tratadas ou não), devem ser diagnosticadas em primeira instância como transtorno psicótico esquizofreniforme agudo e reclassificadas como esquizofrenia, se os sintomas persistirem por períodos mais longos. 15 INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE I Existem outros subtipos de acordo com o CID-10, como o paranoide, no qual o transtorno é marcado por delírios de perseguição. O subtipo hebefrênico, que está associado a uma profunda desorganização do pensamento, incluindo a “salada de palavras”, distúrbios do pensamento lógico. Há um terceiro subtipo, marcado pelos sintomas negativos, como a avolia, isolamento social. E, por fim, a esquizofrenia simples. Nela não estão presentes sintomas positivos exuberantes como alucinações e delírios, que são de fácil diagnóstico, mas há uma redução gradual e marcante da interação social, da comunicação. O DSM-V é um manual sobre desordens psiquiátricas desenvolvido nos EUA e enquadra a esquizofrenia juntamente com outros transtornos, como, por exemplo, a personalidade esquizotípica. Isso porque esses transtornos apresentam sintomas em comum que são delírios, alucinações, discurso desorganizado, sintomas classificados como negativos e catatonia ou comportamento grosseiramente desorganizado. A Tabela 2 mostra outros transtornos, além dos ilustrados abaixo, o DSM-V também menciona transtornos psicóticos ou catatonia decorrentes de outras condições médicas ou do uso de substâncias. Falaremos um pouco sobre os outros subtipos de transtornos, mas o foco deste material é na esquizofrenia. Tabela 2: Transtornos incluídos no espectro da esquizofrenia. Espectro da esquizofrenia Transtorno da personalidade esquizotípica Transtorno delirante (com subtipos) Transtorno psicótico breve Transtorno esquizofreniforme Esquizofrenia Transtorno esquizoafetivo (com subtipos) Fonte: Adaptado de DSM-V pela autora. É importante mencionar que há bastante sobreposição entre os manuais. No DSM-V, também é necessário pelo menos um mês de um desses sintomas: alucinação, delírio, discurso desorganizado ou comportamento grosseiramente desorganizado ou catatonia (critério A). Contudo esse manual ainda leva em consideração o nível de funcionamento em áreas importantes como o trabalho ou autocuidado; requer que as perturbações tenham seis meses de persistência. Mas diante de todos esses tipos, subtipos e diferentes manuais, o que fica, o que marca a esquizofrenia? De um modo geral, a esquizofrenia é marcada pela perda de 16 UNIDADE I │ INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA contato com a realidade, pela presença de graves prejuízos cognitivos e por alterações emocionais. Assim, podemos ver que a esquizofrenia é constituída pela combinação de 3 tipos de sintomas: os positivos, negativos e os cognitivos. Vamos entendê-los melhor... Sintomas positivos Os sintomas positivos são caracterizados pelas alucinações e delírios. As alucinações são experiências sensoriais que não ocorreram de fato. O indivíduo tem uma percepção associada a um estímulo sensorial que não aconteceu. É por meio dos nossos sistemas sensoriais (visão, audição, olfato, paladar e somestesia – que inclui o tato, a propriocepção, a sensibilidade térmica e de dor) que obtemos informações sobre o mundo ao nosso redor e também sobre nosso estado interno. Transformamos esses diferentes estímulos sensoriais em impulsos nervosos – sensação – e os processamos em nosso córtex, atribuímos a eles valores subjetivos, o que caracteriza a “percepção”. Dessa forma, vemos que a nossa relação com o ambiente se dá pelo processamento e pela interpretação adequados desses estímulos. Normalmente, a percepção vem acompanhada da sensação,mas na esquizofrenia, não. É daí que vem a perda de contato com a realidade, pois a psicose (caracterizada pelas alucinações e delírios) impede que o indivíduo se relacione de forma apropriada com o mundo. O indivíduo pode processar de forma errada, ou seja, processa um estímulo que não ocorreu, ou quando o estímulo de fato ocorre, o indivíduo pode interpretá-lo de forma distorcida. A principal forma de alucinação é a auditiva, mas elas podem ser táteis, visuais, olfativas e gustativas também. O indivíduo ouve vozes que comentam o seu comportamento ou que lhe dão ordens, o que pode influenciar bastante na qualidade de interação social desse indivíduo. Algumas alucinações são consideradas bizarras, como, por exemplo, achar que seus órgãos foram retirados e substituídos por outros. Existe um tipo de alucinação chamada de liliputiana, no qual um objeto se apresenta em tamanho muito menor do que o normal. Já na gulliveriana, os objetos são gigantescos. Esses nomes tiveram inspiração no livro As viagens de Gulliver. Outra forma é a extracampina, na qual o paciente vê coisas que não estão de fato no seu campo de visão, como por exemplo, ver alguém atrás e uma parede ou algo atrás de si próprio. 17 INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE I Os delírios estão associados a crenças ou ideias irracionais ou incompatíveis com a norma cultural. Eles são classificados de acordo com o foco de preocupação do paciente. Geralmente, eles são de grandiosidade como, por exemplo, achar que é um agente de Deus ou o próprio Deus ou Jesus ou ainda de que possuem poderes especiais que os diferenciam das outras pessoas; ou persecutórios (paranoide), nos quais os indivíduos acreditam que estão sendo perseguidos por outras pessoas, às vezes por entidades policiais como a CIA. Outra forma de delírio é a de referência. Nesse tipo, o indivíduo acredita que sempre estão falando dele ou se referindo a ele. Então ele assume, por exemplo, que coisas faladas no rádio ou na televisão estão sendo ditas diretamente para ele ou por causa dele. Os delírios podem ser somáticos, quando os pacientes acreditam sentir uma eletricidade pelo seu corpo, por exemplo. E por fim, alguns podem relatar estarem sendo controlados em um nível assustador como, por exemplo, que seus pensamentos estão sendo retirados ou inseridos. Com isso, vemos o quanto esses sintomas positivos podem ser incapacitantes e causadores de sofrimento, pois eles ocasionam a perda de contato com a realidade, o indivíduo não sabe mais o que é real ou o que é resultado de alterações graves, que geram esses sintomas. A psicose pode ser definida como um conjunto de sintomas no qual a capacidade mental, a resposta afetiva e a capacidade do indivíduo de reconhecer a realidade, de se comunicar e de se relacionar com o ambiente ao seu redor e com as pessoas estão comprometidas. A esquizofrenia é considerada um transtorno psicótico. Esses transtornos apresentam sintomas psicóticos como características definidoras, contudo existem outros transtornos nos quais pode haver sintomas psicóticos, porém sua presença não é necessária para o diagnóstico. Além da esquizofrenia, transtornos que exigem a presença de psicose como característica necessária para o diagnóstico são os transtornos psicóticos induzidos por substâncias, transtorno esquizofreniforme, transtorno esquizoafetivo, transtorno delirante, transtorno psicótico breve e transtorno psicótico devido à condição médica geral, como observado no CID-10 e no DSM-V. Já aqueles que podem ou não apresentar sintomas psicóticos como características associadas são a mania e a depressão, bem como vários transtornos cognitivos, como a doença de Alzheimer. 18 UNIDADE I │ INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA A psicose pode ser de vários tipos (paranoide, desorganizada/excitada ou depressiva), contudo, em qualquer uma delas, podem ocorrer distorções perceptivas e distúrbios motores. Os distúrbios motores consistem em posturas rígidas peculiares; sinais claros de tensão; sorrisos ou risadas inadequados; gestos peculiares repetidos; conversar, sussurrar ou resmungar consigo mesmo; ou olhar ao redor como se estivesse ouvindo vozes. O delirium é outra desordem na qual sintomas psicóticos podem estar presentes. É um distúrbio da consciência, podendo ocorrer redução da clareza da consciência quanto ao ambiente, prejuízos atencionais, desorientação quanto ao tempo e espaço, há tendência de confundir o novo com o familiar, alucinações, entre outros sintomas. Pinturas feitas por um artista chamado Louis Wain ficaram muito conhecidas. Ele costumava desenhar cenas típicas do cotidiano, porém utilizando gatos. Por isso, os desenhos são chamados de gatos antropomorfizados, pois remetem a situações humanas realizadas por gatos. Seus desenhos ficaram muitos famosos na Inglaterra e nos Estados Unidos da América por volta do início dos anos 1900. Por volta das décadas de 20 e 30 do século XX, Louis Wain começou a desenvolver alguns sintomas psicóticos. Existe uma discussão sobre qual era o transtorno que ele desenvolveu, há quem diga que ele apresentava a Síndrome de Asperger, contudo seus sintomas são muito consistentes com o que hoje é descrito como esquizofrenia. Após o início desses sintomas, ele foi encaminhado para um hospital psiquiátrico. Ele continuou a pintar, porém seus desenhos mudaram bastante e passaram a apresentar sinais da mudança do seu comportamento. Ele passou a desenhar gatos com olhos grandes, o que poderia ser resultado de paranoia e, em algumas pinturas, é até difícil reconhecer o desenho, o que poderia ser resultado de alterações na sua percepção do mundo. Esse caso é bastante interessante e dele podemos pontuar duas características dessa desordem. A primeira é que geralmente há uma oscilação na gravidade dos sintomas ao longo do tempo. A outra é que essa é uma patologia com forte alteração de função cognitiva (alteração no processamento sensorial, na interpretação de estímulos, comprometendo a percepção do mundo ao redor; de prestar atenção; de lembrar de coisas). 19 INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE I Figura 1: Algumas pinturas de Louis Wain. Fontes: Retirado de: https://www.davidbrassrarebooks.com/pages/books/01144/louis-wain-artist/the-good-puss e https:// illustrationchronicles.com/Cute-Cats-and-Psychedelia-The-Tragic-Life-of-Louis-Wain. Mas a esquizofrenia não é composta apenas de sintomas positivos. Ela é mais do que um transtorno psicótico. Sintomas negativos Os sintomas negativos são caracterizados por prejuízos comportamentais, geralmente ausência de um comportamento. Um tipo de sintoma é a avolição, que é uma inabilidade de manter uma rotina ou de se automotivar a manter uma rotina, de realizar tarefas cotidianas. A alogia também está presente e pode ser definida como uma inabilidade ou um empobrecimento na linguagem, na fala. Alguns esquizofrênicos podem ficar semanas sem falar nada. A anedonia é caracterizada por uma incapacidade de sentir prazer frente a situações que normalmente despertariam efeitos positivos. Os indivíduos também podem apresentar dificuldade de interação social, o que pode ser uma parte bastante devastadora do transtorno, pois eles param ou reduzem muito o contato com amigos ou familiares, passando muito tempo sozinhos. Uma das consequências disso, é que o autocuidado fica muito prejudicado, a própria higiene é afetada. Dentro dessa classe de sintomas, também está inserido o embotamento afetivo, uma dificuldade de expressar sentimentos. Uma característica marcante dos sintomas negativos e dos cognitivos, que veremos adiante, é que eles se mantém durante o curso da doença e tendem a piorar. Além disso, são bastante resistentes aos tratamentos disponíveis, por isso, têm despertado bastante interesse dos que trabalham e estudam a esquizofrenia. Em esquizofrênicos,a atribuição de valor hedônico real ou o valor emocional dos estímulos em nosso ambiente está intacta. Isto quer dizer que diante de interação social positiva ou quando se come ou bebe algo do qual se gosta, https://www.davidbrassrarebooks.com/pages/books/01144/louis-wain-artist/the-good-puss https://illustrationchronicles.com/Cute-Cats-and-Psychedelia-The-Tragic-Life-of-Louis-Wain https://illustrationchronicles.com/Cute-Cats-and-Psychedelia-The-Tragic-Life-of-Louis-Wain 20 UNIDADE I │ INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA o sentimento prazeroso é igualmente reconhecido em esquizofrênicos e indivíduos sem a doença. Acredita-se que a capacidade de representar o que esses estímulos são e o que podem proporcionar no futuro, isso sim está alterado, isto é, o processamento da sensação está comprometido, alterando a percepção do estímulo como recompensador. Sintomas cognitivos A terceira classe de sintomas é definida como sintomas cognitivos, que são alterações no pensamento. Podemos incluir como áreas da cognição a atenção, abstração, memória verbal, memória espacial, linguagem e habilidades sensoriais e motoras. É interessante que indivíduos com esquizofrenia apresentam prejuízos em todas essas áreas quando comparados a indivíduos sem o transtorno. Isso significa que eles apresentam déficits de atenção, prejuízos na memória, dificuldade na resolução de problemas. Esquizofrênicos também apresentam redução de QI, em média de 15 a 30 pontos em relação à média de indivíduos sem a doença. Vemos que há uma ampla faixa de sintomas que se enquadra nessa classe, no entanto as funções cognitivas afetadas e o nível de alteração em cada uma delas irão variar de paciente para paciente. É interessante notar que a heterogeneidade entre os indivíduos ocorre não somente em relação aos sintomas classificados como cognitivos, mas também em relação à combinação de sintomas, por exemplo, algumas pessoas apresentam déficits severos na cognição, outras têm déficits muito leves ou não têm déficits na cognição, outras apresentam prevalência de sintomas positivos em detrimento de outros. De modo geral, esses sintomas resultam em uma desorganização generalizada, seja comportamental, seja de pensamento e incluem também funções emocionais e enquadramento social. Em alguns casos, ao receber notícias ruins, o indivíduo pode rir. Assim, entendemos que os sintomas cognitivos também apresentam impacto bastante negativo sobre o desempenho profissional, social e individual do paciente, isto é, os déficits cognitivos têm uma relação próxima com o resultado funcional, aqueles com os déficits mais graves geralmente são os que encontramos em instituições psiquiátricas. A desorganização pode ser tão intensa que existe um tipo bem severo de sintoma cognitivo conhecido como salada de palavras, onde o esquizofrênico junta aleatoriamente palavras que não fazem sentido nenhum para quem está ouvindo. 21 INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE I Kraepelin (1909-1913) e Bleuler (1911) já falavam destes déficits, que hoje enquandramos como os sintomas negativos e cognitivos (ELKIS, 2000; NET; ELKIS, 2ª edição). Contudo, apenas nos últimos 20 a 30 anos é que fato passamos a estudar e investigar as alterações na cognição e no afeto encontrados na esquizofrenia. Como vimos, a atenção é uma função cognitiva. Atenção é quando utilizamos nossos recursos neurais para acompanhar melhor, com foco, algum determinado fenômeno, seja ele externo ou interno. Pode ser definida como nossa capacidade de manter o foco em um estímulo, diminuindo o nível de consciência de outros estímulos. Por exemplo, quando estamos muito focados assistindo a algo na televisão, por vezes não percebemos o telefone tocar ou não percebemos que tem alguém falando ao nosso lado. É como se fosse um filtro... Não é que elimine um processo sensorial para “valorizar” outro, mas diminui a demanda cognitiva dispensada ao primeiro e aumenta em relação àquele que se torna objeto da atenção naquele momento. É difícil sustentar a atenção em determinado evento ou estímulo por mais de 1 hora, a menos que este seja prazeroso ou que represente risco ao indivíduo. Existem 3 mecanismos atencionais já bem conhecidos: a atenção sustentada, a dividida e a seletiva. A atenção sustentada consiste em sustentar, manter a atenção, o estado de alerta, o foco, em um estímulo por um longo período de tempo. O teste mais utilizado para estudar esse tipo de atenção em esquizofrênicos é o teste de desempenho contínuo (TDC). Nele, são apresentados vários cartões em sequência, quando o cartão que contém o item determinado previamente (uma letra, um número ou uma imagem) é apresentado, o paciente aperta um botão e sinaliza para o experimentador. Este teste tem demonstrado déficits de atenção sustentada em esquizofrênicos. A atenção dividida se refere à capacidade de uma pessoa em desempenhar mais de uma atividade ao mesmo tempo. Temos também a atenção seletiva, que é a capacidade de escanear eventos e selecionar aquele que é relevante, o que envolve alterar o foco de atenção em curto espaço de tempo. Envolve direcionar a atenção para um estímulo enquanto os demais são desprezados. A atenção pode ser direcionada a um estímulo por duas formas de processamento: de baixo para cima ou de cima para baixo. No primeiro, um estímulo sensorial não processado direciona a nossa atenção a ele. Nós somos levados a prestar atenção nele, é como um reflexo. O oposto acontece com o processamento de cima para baixo. Nesse caso, nós prestamos atenção em um estímulo de forma ativa 22 UNIDADE I │ INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA e consciente, queremos direcionar nossa atenção, nosso estado de alerta, para um determinado evento. É uma filtragem do processamento de baixo para cima. Podemos dizer que o processamento de cima para baixo é um processo voluntário, no qual queremos realçar o valor de determinado estímulo. Por exemplo, enquanto você lê este material, provavelmente tem algum som ao seu redor (seja de um ventilador ou ar-condicionado ou talvez carros passando na rua), no entanto, apesar de existir esse estímulo sensorial capaz de ativar o processamento de baixo para cima, é como se esse estímulo “não estivesse presente”, pois você está filtrando as aferências sensoriais e por uma decisão sua, você se mantém focado na leitura. Esse é processamento de cima para baixo. No entanto, se ocorrer uma explosão ou uma batida de carro, por mais que a leitura esteja muito prazerosa, imediatamente sua atenção será voltada para esse evento. Aí teremos um processamento de baixo para cima. Veja que, em ambos os casos, os exemplos envolveram estímulos sonoros, porque essa filtragem é possível e necessária, mas dependendo do estímulo e principalmente da intensidade do estímulo sensorial, este irá direcionar a nossa atenção até ele. Considerando a atenção no processamento de informação visual, como em esquizofrênicos o mecanismo de filtro de cima para baixo está prejudicado, isso tem consequências negativas sobre a seleção de detalhes em imagens. Os pacientes ficam reativos a todas as informações visuais e não se atêm aos detalhes. Em contrapartida, esses pacientes apresentam uma maior orientação reflexiva, desempenhada pelo mecanismo baixo para cima. Assim, qualquer estímulo sensorial é capaz de atrair a atenção deles. De forma similar, encontramos maior resposta reflexiva a outras modalidades sensoriais, como a audição. Acredita-se que alterações nessa transição entre os processamentos de atenção estejam envolvidas também nos sintomas positivos, como as alucinações auditivas. Dessa forma, vemos que a atenção está intimamente relacionada com o processamento sensorial, com o nível de consciência que este atinge (diante da nossa filtragem ativa) e, consequentemente, está envolvida na apreensão da percepção desses estímulos (o que eles representam paracada um de nós) e é inclusive necessária para a formação de memória. Déficits atencionais têm sido relacionados a problemas no processamento de informações sensoriais. Diversos autores defendem a ideia de que a origem de todos os sintomas encontrados na esquizofrenia reside em alterações nos substratos neurais envolvidos com as funções cognitivas. Essas teorias começaram a surgir por volta da década de 1990. Veremos esses mecanismos neurobiológicos mais à frente. 23 INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE I Déficits na atenção seletiva são marcantes na esquizofrenia. Em indivíduos normais, rapidamente há a acomodação a estímulos que são familiares ou estímulos que não têm uma grande consequência. A resposta ocorre apenas aos estímulos relevantes ou inesperados. Na esquizofrenia, essa capacidade de discriminar ou não estímulos significativos está comprometida, assim, o barulho do ventilador na sala pode ter a mesma importância que a voz de uma pessoa. Isso acontece também com os pensamentos dos esquizofrênicos. Alterações na atenção não são exclusividade da esquizofrenia. Indivíduos com TDAH apresentam dificuldade em manter a atenção em um estímulo. Em alguns casos, eles até conseguem manter, mas apenas se o paciente julgar aquela atividade prazerosa. Nessa desordem, o processamento de baixo para cima está mais acentuado. Já em casos de ataque de pânico, o nível de alerta está elevado, o que prejudica a flexibilidade atencional, uma vez que o indivíduo só consegue sustentar o foco naquele evento que dispara o ataque. A memória também é bastante estudada nesse transtorno. Uma função cognitiva comumente avaliada em esquizofrênicos é a memória episódica, que são memórias formadas rapidamente, mas que também desaparecem rapidamente, ou seja, são de curto prazo. Um exemplo seria pensar sobre o que você comeu no café da manhã. Você provavelmente vai lembrar, no entanto, lembrar-se do café da manhã do dia anterior é mais difícil, se for o de duas manhãs atrás é mais difícil ainda. A memória episódica tem a característica de estar relacionada a um contexto, envolvendo um tempo e um lugar e é uma memória acessada de forma consciente. Geralmente, utiliza-se dois tipos de tarefas para avaliar esse tipo de memória. Um deles são tarefas de aprendizado de lista e no outro tipo uma história é lida para um paciente e ele precisa lembrar o máximo possível da história. Os estudos que analisaram a memória episódica mostraram fatos interessantes. Esquizofrênicos apresentam prejuízos nessa memória, contudo o déficit parece estar na codificação e não na consolidação ou recuperação. Isto é, logo após uma informação ser apresentada a um esquizofrênico, ele demonstrará dificuldade de se lembrar dessa informação ou de processá-la. Inicialmente, lembremos dos déficits atencionais encontrados em esquizofrênicos. Curiosamente, após um período necessário para que a informação seja armazenada, consolidada, a informação é acessada, ou seja, o armazenamento não está prejudicado na esquizofrenia. Assim, esquizofrênicos apresentam déficits na admissão e no processamento da informação, o que pode estar relacionado com os déficits 24 UNIDADE I │ INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA de atenção que esses indivíduos apresentam, mas a capacidade de armazenar essas informações ao longo do tempo parece estar intacta. Achados semelhantes foram encontrados para memória episódica não verbal. A linguagem também é avaliada em esquizofrênicos como forma de acessar déficits cognitivos. Um exemplo de teste é o que se fornece uma letra do alfabeto aos indivíduos e após algum tempo é solicitado que recitem o máximo de palavras possível contendo essa letra. Esquizofrênicos apresentam prejuízos nessa tarefa, além de déficits em habilidades como a fluência verbal. Outra forma de avaliar a linguagem é por meio de teste de ambiguidade nas sentenças. Nele, é avaliado se o indivíduo é capaz de formar significado a partir do contexto no qual a sentença está incluída ou o significado global está frequentemente prejudicado. A memória de trabalho também tem recebido bastante atenção. Ela envolve a coleta de informações e a manipulação dessas informações de alguma forma. Por exemplo, em esquizofrênicos, ela pode ser avaliada por uma tarefa na qual uma série de números é lida e, em seguida, o paciente precisa se lembrar dos números e repeti-los em ordem inversa. De maneira geral, os déficits de memória de trabalho, na verdade para quase todas as funções cognitivas, giram na faixa de um a dois desvios padrão quando comparadas com indivíduos saudáveis. Vimos que o processamento sensorial também se mostra prejudicado em esquizofrênicos. Em comparação com indivíduos controle (sem o transtorno), já foi demonstrado que pacientes com esquizofrenia apresentam uma deficiência na capacidade de detectar pequenas mudanças na frequência de um estímulo auditivo ou pequenas mudanças na duração de um estímulo auditivo ou visual. A idéia é que, se o processamento sensorial elementar básico do ambiente estiver prejudicado, pode ser muito difícil criar representações desses eventos na memória. A cognição social pode ser definida como a maneira pela qual percebemos ou interpretamos nosso mundo social. Ao avaliar a cognição social, o objetivo é verificar o processamento de informações, a maneira como pode-se estar inclinado a perceber certos estímulos do ambiente, ignorando outros. A cognição social pode ser dividida em quatro categorias principais: » Percepção de afeto – capacidade de reconhecimento de emoção facial, processamento do tom de voz, tipo de paralinguística ou demonstrações não verbais de emoção. 25 INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE I » Percepção social – capacidade de adequação às regras sociais em um ambiente específico. » Teoria da mente – capacidade de exteriorizar intenções ou pensamentos precisos. » Estilo de atributo – capacidade de atribuir corretamente eventos a si próprio, a terceiros ou ao ambiente. Esses quatro domínios da cognição social começaram a ser mais bem estudados nos últimos 15 a 20 anos. A cognição social está associada com o processamento emocional e também com a percepção dos estímulos relacionados ao convívio social. Os estudos revelaram que há déficits em todas essas áreas diferentes da cognição social. Geralmente, utiliza-se estímulos faciais, interações sociais e outros tipos de estímulos relacionados à sociedade. Do ponto de vista cognitivo, temos, então, os déficits relacionados à memória de trabalho, habilidades motoras e sensoriais, de atenção, de linguagem e os déficits associados à cognição social. Não é difícil perceber que os déficits cognitivos são os principais causadores de dificuldades funcionais nesses pacientes e por isso têm atraído a atenção da comunidade científica. O objetivo é estudar e conhecer as bases neurobiológicas da doença para que tratamentos mais efetivos venham a estar disponíveis, pois melhorar a funcionalidade cognitiva desses pacientes significaria uma melhoria no cotidiano social desses indivíduos, afinal essas funções estão associadas com a independência e com um senso de convívio social. Isto porque a cognição prejudicada (déficits de atenção, memória episódica, memória de trabalho) pode levar a repetidas falhas em experiências cotidianas. Com essas repetidas experiências de fracasso, esses déficits cognitivos elementares produzem crenças disfuncionais. Por exemplo, um esquizofrênico acha que necessariamente vai fracassar em uma tarefa e isso acaba levando a uma retração da interação social, uma retração de tentar aprender novas habilidades ou de se envolver em novos ambientes. Existem teorias psicológicas baseadas nas disfunções cognitivas que tentam explicar a esquizofrenia. A primeira delas foi proposta por Christopher Frith, na década de 1990. 26 UNIDADEI │ INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA Segundo essa teoria, existem três tipos centrais de sintomas na esquizofrenia, e eles levariam a todos os outros sintomas. São eles: » Déficits na ação voluntária; » Distúrbio na atribuição correta da geração dos próprios pensamentos; e » Déficit na capacidade de interpretar os pensamentos dos outros. Por esse ponto de vista, a desordem na ação voluntária, que seria uma incapacidade de gerar comportamentos, levaria aos sintomas negativos – alogia, retirada social, diminuição de qualquer tipo de comportamento motivado. A incapacidade de identificar os pensamentos como próprios levaria a experiências de inserção de pensamento e eles também poderiam estar envolvidos no surgimento de alucinações, afinal o indivíduo é incapaz de marcá-lo como se fosse seu, então esse pensamento se torna uma voz de fora. E, finalmente, a incapacidade de fazer as devidas atribuições sobre o comportamento de outras pessoas pode levar a ilusões paranoicas. Ou seja, se você não puder monitorar o comportamento de outras pessoas corretamente, isso conduzirá a interpretações imprecisas e negativas do comportamento de outras pessoas. Essa ideia de que os déficits cognitivos podem estar por trás das alucinações auditivas na esquizofrenia é conhecida na psicologia como “modelo de monitoramento de fonte”, uma vez que esses indivíduos possuem alterações na capacidade de monitorar a origem de suas experiências psicológicas. Experimentalmente, tem-se tentando acessar essa hipótese dando um feedback auditivo distorcido. Nesse paradigma, solicita-se a um esquizofrênico, que apresenta alucinações auditivas, a dizer coisas e depois se ouvir dizendo. No entanto, esse feedback é enviado com alguma alteração, às vezes no tom da voz, na duração da fala. Pegue como exemplo aquelas ligações ruins com atraso e nas quais ouvimos nossas próprias vozes. É bem esquisito, não é? A ideia por trás desse experimento é que se as pessoas com esquizofrenia realmente têm dificuldade em identificar suas próprias vozes geradas, elas serão menos perturbadas por esse feedback auditivo alterado. Contudo, foi demonstrado que elas são mais afetadas por esse feedback alterado, sugerindo que não seja esse tipo de inconveniente cognitivo que está levando ao surgimento de alucinações auditivas. Outra proposta foi a de que existam dois conjuntos principais de processos cognitivos: » Um deles é a função cognitiva direcionada por objetivos, que envolve esforço da nossa parte de orientar nosso comportamento. Envolve 27 INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE I sintonizar nossos sistemas sensoriais e motores à situação apropriada em que estamos. » O segundo sistema cognitivo é um sistema reativo, que reage automaticamente a estímulos no ambiente. Vejam que é bem parecido com o que vimos sobre o processamento atencional. Pense numa ida ao mercado com uma lista de coisas que você precisa comprar, por exemplo, arroz e feijão. Este é o seu objetivo. Você está usando sua memória de trabalho para manter esses itens em sua cabeça e executar a sua tarefa. Esse é um tipo de atividade cognitiva dependente de contexto e direcionada a um objetivo. Mas no meio das suas compras, você encontra um amigo e sua atenção se vira para esse novo estímulo, prejudicando a memória de trabalho. A manutenção do seu objetivo está temporariamente interrompida, contudo, após o encontro, você ainda é capaz de se lembrar da sua lista e voltar a fazer suas compras. Para alguém com esquizofrenia, esse sistema dirigido por objetivos é tão prejudicado que ela não conseguirá retornar à lista de itens de compras. Paul e John Lysaker (2008) propuseram um outro modelo, no qual consideram que na esquizofrenia ocorra uma ruptura da experiência subjetiva do eu, de si mesmo. A autoexperiência de cada um de nós surge a partir de nossas interações com as pessoas e com o ambiente que nos cerca. Segundo esses autores, desenvolvemos as chamadas autoposições, somos maridos ou esposas, mas ao mesmo tempo somos professores ou motoristas, ou seja, possuímos diferentes posições dependendo do contexto, por exemplo, pessoal e profissional. Isso envolve um senso de identidade, e para cada autoposição desempenhamos comportamentos diferentes. A ideia é que pessoas saudáveis fazem essas mudanças nas autoposições com muita facilidade. De acordo com esse modelo, as pessoas com esquizofrenia têm uma disfunção na mudança dessas autoposições, que podem estar interrompidas de maneiras diferentes. Um exemplo de disfunção na autoposição é uma pessoa ficar presa em uma posição específica e ser incapaz de mudar para outras. Outro exemplo seriam casos nos quais a pessoa com esquizofrenia sequer consiga desenvolver uma posição própria. Em função disso, desenvolvem uma extrema retirada e isolamento social, porque eles são incapazes de ter alguma noção de si mesmo. Por meio da psicoterapia ou outras intervenções psicossociais, as pessoas com esquizofrenia possam de fato desenvolver autoposições. De um modo geral, podemos dizer que os sintomas positivos têm predomínio em indivíduos jovens. Os sintomas negativos estão mais presentes em pessoas mais velhas, contudo, estes e os sintomas cognitivos têm início anterior ao 28 UNIDADE I │ INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA diagnóstico de esquizofrenia, começando a serem manifestados precocemente. Isto quer dizer que eles têm caráter prodrômico. O diagnóstico da esquizofrenia precisa da identificação clínica dos sintomas positivos para ser realizado. Eles se manifestam apenas tardiamente, geralmente ao final da adolescência/início da idade adulta, enquanto que os negativos e cognitivos ocorrem mais precocemente. Embora eles não preencham os critérios diagnósticos para esquizofrenia, é importante detectar e monitorar ao longo do tempo estes sintomas prodrômicos em pacientes de alto risco, de modo ao tratamento ser iniciado aos primeiros sinais de psicose. O tratamento dos sintomas cognitivos e negativos é mais difícil, e o prognóstico desses sintomas é pior. Os atuais tratamentos com agentes antipsicóticos são limitados em sua capacidade de tratar os sintomas negativos, porém intervenções psicossociais, com os antipsicóticos, podem ser úteis para reduzir os sintomas negativos. Existe até mesmo a possibilidade de que a instituição do tratamento para os sintomas negativos durante a fase prodrômica da esquizofrenia retarde ou evite o início da doença, mas isso ainda continua sendo objeto de pesquisa. A idade de início costuma ser um fator que caracteriza a evolução da doença como crônica e progressiva. Contudo, é importante salientar que o perfil de sintomas (dentro dos grandes tipos) apresentados tem característica individual, isto é, varia bastante de paciente para paciente. Em alguns livros encontraremos ainda outras duas dimensões de sintomas: agressivos e afetivos. Quanto aos sintomas afetivos, pode ser bem difícil distingui- los dos sintomas de disfunção cognitiva e dos sintomas negativos. Os sintomas agressivos (ofensas, comportamentos verbalmente abusivos e violência), podem ocorrer junto com os delírios e alucinações, sendo confundidos com os próprios sintomas positivos. As intervenções comportamentais são particularmente úteis para evitar a violência associada à impulsividade, o que reduz as provocações provenientes do ambiente. Alguns antipsicóticos atípicos, como a clozapina, ou doses muito altas de antipsicóticos típicos podem ser úteis para os sintomas agressivos e a violência demonstrados por alguns pacientes. É comum as pessoas acharem que indivíduos diagnosticados com esquizofrenia são altamente violentos. Parte disso se deve a casos famosos de assassinatos, 29 INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE I principalmente nos Estados Unidos da América, nos quais os indivíduos que realizaram o ataquepossuíam diagnóstico de esquizofrenia. Como exemplo, citamos o ataque que ocorreu em Tucson, no Arizona em 2011, no qual Jared Lee Loughner atirou contra pessoas reunidas em um ato político e deixou 5 mortos. Outro ataque ocorreu em 2012, em Aurora, Colorado. O atirador James Holmes, de 24 anos, abriu fogo durante uma sessão de cinema. Mas isto não é uma verdade... Os índices de agressividade e violência em pessoas com esquizofrenia são apenas um pouco maior do que a população em geral, sendo estes índices mais altos em outros transtornos, como, por exemplo, os transtornos depressivos. Além disso, muitas vezes esses indivíduos, devido aos seus sintomas, tornam-se mais vulneráveis a sofrer violência do que praticá-la. Os sintomas cognitivos da esquizofrenia não incluem os sintomas da demência e os distúrbios de memória, mais característicos da doença de Alzheimer, mas enfatizam “disfunção executiva”. Isso envolve problemas no estabelecimento e na manutenção de metas, na alocação dos recursos de atenção, na avaliação e no monitoramento do desempenho e no uso dessas habilidades para a resolução de problemas. É importante reconhecer e monitorar os sintomas cognitivos da esquizofrenia, visto que constituem o único e mais forte correlato de funcionamento no mundo real, ainda mais nítido do que os sintomas negativos. 30 CAPÍTULO 3 Outros transtornos associados à esquizofrenia Segundo o DSM-V, em relação aos transtornos que envolvem sintomas psicóticos, temos, além da esquizofrenia, o transtorno de personalidade esquizotípica, o esquizofreniforme e o esquizoafetivo. Mais uma vez, ressalto que o foco desta disciplina está na esquizofrenia, mas vamos brevemente abordar cada um desses outros transtornos relacionados. O transtorno esquizofreniforme pode ser grosso modo entendido como uma esquizofrenia mais branda, de menor duração. O transtorno esquizofreniforme compreende os mesmos sintomas da esquizofrenia, porém manifestados por um período entre um e seis meses. Caso os sintomas permaneçam por mais de seis meses, o diagnóstico deve ser alterado para esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo ou até mesmo para um transtorno de humor. O transtorno esquizoafetivo é caracterizado por uma combinação ou sobreposição de sintomas da esquizofrenia e dos transtornos de humor. Existem várias teorias para tentar explicar o seria esse transtorno, mas há bastante controvérsia. Há aqueles que digam que é uma forma atípica de esquizofrenia, isto é, uma esquizofrenia associada à alteração no humor. Outros dizem que é o oposto, um transtorno de humor atípico, no qual é encontrado também perda de contato com a realidade. Estudos recentes têm apontado que talvez haja um continuum entre os transtornos de humor e a esquizofrenia, e o transtorno esquizoafetivo estaria no meio dessa transição, entre uma desordem e outra. O transtorno esquizoafetivo é mais comum em mulheres e apresenta uma prevalência de 0,3% para a população geral durante toda a vida. O tratamento farmacológico desse transtorno inclui antipsicóticos, estabilizadores do humor e antidepressivos. Por fim, o transtorno da personalidade esquizotípica é melhor enquadrado dentro de transtornos de personalidade. O DSM-V caracteriza transtorno de personalidade como comportamentos e experiências subjetivas que destoam da cultura na qual o paciente está inserido, de forma persistente e padronizada. No caso da personalidade esquizotípica, o padrão comportamental e de experiências internas está associado com desconforto nas relações íntimas, havendo também alterações cognitivas e de percepção, além de excentricidades e bizarrices no comportamento e pensamento. É como se estivesse “no meio do caminho entre o transtorno de personalidade esquizoide e a esquizofrenia”. 31 INTRODUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO PSICOPATOLÓGICA DA ESQUIZOFRENIA │ UNIDADE I O transtorno de personalidade esquizoide é caracterizado pela presença de sintomas negativos associados à esquizofrenia. São eles: embotamento afetivo, isolamento social, falta de iniciativa, pensamento empobrecido e falta de interesse. Não há presença de sintomas positivos, do tipo psicótico. O que marca esse transtorno são os prejuízos relacionados à parte afetiva. De modo geral, são indivíduos que não apresentam relação de casal, tendem a trabalhar em funções que não exijam muito contato interpessoal. 32 UNIDADE II FATORES QUE INFLUENCIAM O DESENVOLVIMENTO DA ESQUIZOFRENIA CAPÍTULO 1 Fatores genéticos Achados importantes sobre a esquizofrenia vieram de estudos genéticos. De forma semelhante a outras desordens mentais, os estudos comparam a prevalência entre gêmeos, adotados e parentes próximos, como forma de verificar o papel da genética e da hereditariedade nessas doenças. Então vamos dar uma olhada no que esses estudos já revelaram. Quando consideramos a população em geral, isto é, sem considerar subpopulações com características genéticas semelhantes (como, por exemplo, parentes próximos ou gêmeos), a prevalência é de cerca de 1%. Contudo, se o indivíduo possuir um parente de 1º grau (pais ou irmãos) com esquizofrenia, a probabilidade de ele vir a desenvolver também esse transtorno mental aumenta consideravelmente, pois a prevalência nesses casos é de 10%. Em casos de gêmeos monozigóticos, os gêmeos idênticos, que compartilham 100% do material genético, a probabilidade é de 50%, ou seja, se um deles tiver, há 50% de chance de o irmão vir a desenvolver também. Mas há estudos que relatam que essa concordância pode chegar a 80% em gêmeos monozigóticos. Em gêmeos dizigóticos, a concordância é de 10-15%. Com o intuito de se estabelecer uma separação entre fatores de risco genéticos e fatores de risco ambientais, estudos com adoção são realizados. São estudados dois grupos: o primeiro inclui indivíduos adotados cujos pais biológicos são esquizofrênicos, mas criados por pais adotivos “normais”, o segundo grupo é composto por indivíduos adotados cujos pais são “normais”, mas são criados por pais diagnosticados com a esquizofrenia. Bem, no primeiro grupo a probabilidade dessa criança vir a manifestar a esquizofrenia é de aproximadamente 20%, já no segundo é de 10%. Isto mostra que 33 FATORES QUE INFLUENCIAM O DESENVOLVIMENTO DA ESQUIZOFRENIA│ UNIDADE II tanto a herança genética quanto fatores ambientais com esquizofrenia constituem um fator de risco para a síndrome, embora sugira que os fatores de risco genéticos tenham um impacto maior que os fatores de risco ambientais. Embora a esquizofrenia esteja associada com um decréscimo da geração de descendentes, devido às suas características sociais e comportamentais, a prevalência desse transtorno permanece praticamente inalterada a mais de um século. Por ser considerada uma desordem de caráter genético, seria esperado que com a diminuição do repasse para as gerações seguintes, a prevalência viesse a diminuir ao longo dos anos, no entanto, não é isso o que acontece, constituindo um enigma a ser desvendado. De qualquer forma, esses dados sugerem a participação dos genes no desenvolvimento da esquizofrenia. No entanto, estudos que tentaram identificar e associar genes específicos ao desenvolvimento dessa desordem mental, encontraram resultados que tendem a ser controversos. Isso porque muitas vezes os achados de um estudo, embora pareçam evidentes, dificilmente são replicados em outro estudo. Existem várias formas de se estudar a participação do genótipo no desenvolvimento de uma determinada patologia. Um tipo de estudo são os chamados estudos de ligação (linkage), que tentam associar o genótipo dos pacientes, com alterações restritas a um ou a poucos genes, à patologia estudada. Além desses, existem também os estudos de associação, que buscam a identificação de locus que aumentam a susceptibilidade à doença estudada, associando uma variação gênica ao fenótipo do transtorno. Eles são estudos genéticos complexos, pois consideram um grande número de variáveisgenéticas – que, combinadas entre si e com outras variáveis – ambientais – culminam no desenvolvimento do transtorno. Esse tipo de estudo é mais indicado para doenças de herança poligênica, que como veremos, é o caso da esquizofrenia. Com o objetivo de investigar essa associação entre a genética e as doenças psiquiátricas, está sendo realizado um grande projeto de mapeamento do genoma humano com foco nos transtornos mentais, o GWAS (genome-wide association studies – estudo de associação genômica ampla). Esse projeto reuniu dezenas de grupos de pesquisa em várias partes do mundo e ainda está em andamento. Esses estudos de associação buscam pelas CNVs (copy number variations), que são variações estruturais resultantes de perda (deleção) ou ganho (duplicação) de bases do DNA e por polimorfismos genéticos, que são variabilidades na sequência de DNA. Esses mecanismos estão envolvidos na variabilidade genética normal, mas também 34 UNIDADE II │ FATORES QUE INFLUENCIAM O DESENVOLVIMENTO DA ESQUIZOFRENIA estão envolvidos nas mutações associadas a fatores de risco para doenças, anomalias do desenvolvimento e os mecanismos mutacionais presentes na evolução. Combinadas, essas mudanças sequenciais no material genético seriam responsáveis pelo risco para determinadas doenças, entre elas, a esquizofrenia. Um dos primeiros destaques dos estudos com marcadores genéticos é que a contribuição é poligênica e não determinante, no qual o risco hereditário seria resultado da interação de diferentes variações genéticas combinadas, cada qual com um impacto relativo sobre o risco total. Isto demonstra a complexidade envolvida nesse campo de estudo e revela que o fator genético está associado com aumento da probabilidade do desenvolvimento do transtorno. Quando consideramos que a exposição à variação genética pode ocorrer desde os estágios iniciais do desenvolvimento humano, vemos que o risco genético está presente logo no início da cadeia de eventos que conduz ao desenvolvimento do transtorno, representando o primeiro elemento de um processo complexo e que envolve múltiplos fatores. Um dos genes alterados frequentemente associados com a esquizofrenia é o gene DISC-1 (disrupted-in-schizophrenia 1 – alterado na esquizofrenia-1). Esse gene foi relacionado pela primeira vez com a esquizofrenia em 2001, mas pode estar associado também com o transtorno depressivo bipolar e o autismo. O DISC-1 tem papel importante em várias etapas do desenvolvimento, estando envolvido com a proliferação e diferenciação celular, com migração neuronal, crescimento e organização dos dendritos, transporte mitocondrial e adesão celular, ou seja, está envolvido com o desenvolvimento e a maturação do SNC. Além disso, também afeta o transporte de vesículas sinápticas nos terminais nervosos glutamatérgicos pré-sinápticos e que regula a sinalização do cAMP, o que afetaria as funções da neurotransmissão glutamatérgica mediada por receptores metabotrópicos de glutamato. Em modelos animais, a proteína codificada por esse gene, que recebe o mesmo nome, tem sido associada com o desenvolvimento do córtex frontal, por atuar regulando a proliferação celular nessa área e também no giro denteado, uma das camadas que formam o hipocampo. Ambas regiões estão alteradas em pacientes esquizofrênicos e vamos falar bastante sobre elas na Unidade III. De forma consistente também têm sido apontadas alterações em genes relacionados com a neurotransmissão glutamatérgica e dopaminérgica. Vale ressaltar que as hipóteses dopaminérgica e glutamatérgica são as principais teorias que visam explicar a esquizofrenia atualmente. Foram encontrados polimorfismos nos genes que codificam as enzimas de degradação MAO-A, MAO-B e COMT e também o receptor D2, o que demonstra que a neurotransmissão dopaminérgica deve estar alterada. 35 FATORES QUE INFLUENCIAM O DESENVOLVIMENTO DA ESQUIZOFRENIA│ UNIDADE II Em relação à via glutamatérgica, foram relatados polimorfismos nos genes NOS1AP, ERBB4, GRID2, GRM1, RELN e NRG1. Destacamos o gene RELN, que codifica a relina, uma glicoproteína presente em neurônios gabaérgicos com função importante sobre o posicionamento correto dos neurônios durante o desenvolvimento, e que está diminuída em pacientes esquizofrênicos; o gene NRG1 codifica a neurorregulina-1, que é uma proteína de adesão celular também associada com a plasticidade sináptica; o gene ERBB4 codifica um receptor (receptor de proteína tirosina cinase) que é ativado pela neurorregulina. Interessantemente, esse receptor está localizado com os receptores NMDA, interagindo com a densidade pós-sináptica de sinapses glutamatérgicas e podendo inclusive estar envolvidos na mediação da neuroplasticidade desencadeada por receptores NMDA. Outro gene associado com a sinapse glutamatérgica, que está alterado na esquizofrenia, é o gene para o DAOA (ativador da D-aminoácido oxidase). Ele codifica uma proteína que ativa a enzima DAO (D-aminoácido oxidase), que degrada o cotransmissor D-serina. Esse cotransmissor atua nas sinapses glutamatérgicas e nos receptores NMDA. Outro gene de susceptibilidade para a esquizofrenia, diretamente relacionado com as sinapses glutamatérgicas, é o RSG4 (regulador da sinalização da proteína G). Ele tem influência sobre a sinalização do receptor metabotrópico de glutamato, por meio do sistema de transdução de sinais acoplado à proteína G. O gene DTNBP1, que codifica a proteína disbindina, também tem sido correlacionado com a esquizofrenia. Essa proteína está presente principalmente em regiões como o cerebelo e hipocampo. A disbindina está envolvida na formação de estruturas sinápticas e na regulação da atividade do transportador vesicular de glutamato (vGluT). Além disso, genes relacionados ao sistema imunológico como: CSMD1 e CSMD2, que codificam proteínas do sistema complemento, e genes da interleucina 10 (IL10) e IL1beta encontram-se alterados em pacientes esquizofrênicos. O envolvimento do sistema imunológico sugere papel importante do processo inflamatório no desenvolvimento da esquizofrenia. Por fim, polimorfismo no gene do BDNF (fator neurotrófico derivado do cérebro) é encontrado em pacientes esquizofrênicos. É um dado consistente na literatura, até mesmo em modelos animais, que na esquizofrenia a expressão de BDNF está diminuída. Esse fator tem papel crucial na sobrevivência neuronal e também na neurogênese, sendo principalmente expresso no córtex e hipocampo. Em relação às CNVs, existe a hipótese das “múltiplas variações raras”, que são alterações robustas no DNA que predisporiam ao transtorno devido à perturbação da função gênica, mais do que devido à alteração estrutural. Essas variações raras 36 UNIDADE II │ FATORES QUE INFLUENCIAM O DESENVOLVIMENTO DA ESQUIZOFRENIA parecem ser significativamente mais comuns em pacientes esquizofrênicos. Foram identificadas associações entre perda de material genético nos cromossomos 1q21.1, 3q29, 15q13.3 e 22q11.2, bem como duplicações em 16p11.2 e 16p13.1 e o diagnóstico de esquizofrenia. No entanto, a prevalência dessas alterações é de, respectivamente, 0,2% e 0,3%. Além disso, têm sido apontados mecanismos epigenéticos envolvidos na esquizofrenia. A epigenética relaciona o material genético, herdado dos nossos pais, com os fatores ambientais. De forma mais exata, é o campo que estuda como fatores ambientais podem ser capazes de influenciar a atividade genética, culminando na determinação das características comportamentais exibidas pelo indivíduo. Assim, a epigenética surge como ferramenta para entender as bases moleculares da origem dos transtornos mentais. A genética refere-se ao código do DNA pelo qual uma célula pode transcrever RNA ou traduzir proteínas específicas. Existem mais de 20.000 genes no genoma humano, mas nem todos são expressos. A epigenética determina se um gene é expresso ou se é silenciado. De forma metafórica, a genética seria o dicionário, e a epigenética seria a “história” que resulta