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capa 30 • caesegatos.com.br Quando a dor não é opção capa 30 • caesegatos.com.br caesegatos.com.br • 31 › Glaucia Bezerra, da redação glaucia.bezerra@curuca.org A associação da anestesia geral e local garante a eficiência analgésica durante o procedimento cirúrgico e pós-operatório odontológico. União para o bem-estar animal rande parte dos tratamentos realizados na boca potencialmente causam algum grau de sensibilidade. Esta ação pode se transfor- mar em dor quando o procedimento torna- se invasivo, como o tratamento de canal de dentes com polpa viva, extrações, biópsias, correções e plásticas gengivais, reduções de fraturas ou ressecções de mandíbula e maxila em casos de neoplasia. O fenômeno da dor é percebido pelo cérebro após sequências de eventos neu- rológicos que se iniciam no estímulo, ou seja, no momento em que o cirurgião incisa a gengiva ou atinge a polpa do dente. A ação é conduzida até uma região na base do cérebro e só então ao córtex, local que permite ao indivíduo ter consciência da dor. O fato importante é que efeitos danosos do evento de dor podem ocorrer antes de sua percepção, ou seja, mesmo animais sob anestesia geral sofrem as consequências do estímulo doloroso se ele não for correta- mente inibido. Estas reações podem alterar o comportamento do paciente durante o procedimento, interferir na cicatrização das feridas cirúrgicas e alterar o tempo e o padrão de recuperação do animal. Assim, o médico veterinário, cirurgião, Mestre e Doutor em Cirurgia pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ-USP), especialista em Odontologia Animal e sub coordenador do curso de Especialização em Odontologia de Pequenos Animais da Associação Nacional dos Clínicos Veteri- nários de Pequenos Animais do Estado de São Paulo (Anclivepa-SP) - instituições sediadas em São Paulo (SP) -, Daniel Fer- ro, destaca como benefícios dos bloqueios regionais em odontologia o aumento da eficiência analgésica durante e após as intervenções cirúrgicas; a redução do volume de anestésico volátil inalado pelo paciente; recuperação prematura da consciência; melhor qualidade do resta- belecimento do paciente por iniciar a caesegatos.com.br • 31 capa 32 • caesegatos.com.br rápida ingestão de alimento e água após a cirurgia, além de redução de hemorragia local - quando se faz uso de vasoconstrito- res associados aos anestésicos. Ferro salienta que qualquer procedi- mento odontológico em animais deve ne- cessariamente ser realizado sob anestesia geral volátil, pois em animais de compa- nhia, os bloqueios regionais em boca não substituem a anestesia geral. O Colégio Americano de Odontologia Veterinária (AVDC, American Veterinary Dental Colle- ge, em inglês, Haddonfield/Estado Unidos) e a Associação Brasileira de Odontologia Veterinária (ABOV, São Paulo/SP) con- sideram imperícia e negligência médica o exercício da odontologia de pequenos animais sem anestesia geral. Prática que, infelizmente, ainda é observada no Brasil e nos Estados Unidos. Portanto, quaisquer outras técnicas de analgesia serão sempre complementares e realizadas em pacientes sob a ação de anestesia geral. “É importante entender que a anestesia geral pode não impedir o organismo de sofrer efeitos de estímulos de dor durante uma intervenção cirúrgica”, frisa o especialista. Segundo ele, por muito tempo persistiu a ideia na qual o animal ou uma pessoa sob o efeito de anestesia geral não sente dor e, portanto, os resultados no- civos decorrentes deste tipo de estímulo, também não são sentidos. Este conceito ainda é bastante difundido na Medicina Veterinária, a despeito do advento da especialidade de anestesiologia. A perda da consciência do paciente após entrar em plano anestésico adequa- do impede que ele perceba a dor e isso é fundamental para o trabalho da parceria cirurgião-anestesista. A anestesia volátil tem ação analgésica sobre este paciente, mas ela é limitada. “Há efeitos nocivos causados pela lesão cirúrgica e decorrentes da inflamação local que só serão contro- lados por meio da ação local de drogas específicas. Substâncias estas capazes de bloquear a condutância dos canais de sódio da membrana celular e impedir a defla- gração do potencial de ação na condução nervosa”, frisa Ferro. É preciso considerar que as técnicas de anestesia local e bloqueio regional em odontologia não são difundidos no meio veterinário, e esta também é uma limitação importante para a difusão do seu uso. Evo- luções significativas estão relacionadas ao ajuste do volume aplicado em animais mui- to pequenos por meio de associação com solução salina, o que melhora a perfusão e espalhamento da molécula ao redor do ner- vo. “O uso de vasoconstritores associados aos anestésicos tem sido considerado em mais infiltrações, já que a redução do cali- bre dos vasos periféricos retarda a captação Figura 1. Imagem da região pterigomaxilar de cão. A infiltração do anestésico é realizada na fossa maxilar distal ao dente segundo molar Figura 2. Imagem do crânio de cão mostrando forâme pterigomaxilar, local de infiltração de anestésico para bloqueio nervoso da hemimaxila ipsilateral Figura 3. Imagem da região de maxila de cão evidenciando punção para bloqueio anestésico em forâme infraorbitário do anestésico pela corrente sanguínea e sua metabolização, aumentando assim o tempo de ação. Além disso, a vasoconstrição reduz consideravelmente a hemorragia no local da intervenção”, pontua o especialista. Outra novidade mencionada por Ferro é a associação de anestésicos com carac- terísticas diferentes para aproveitamento de suas ações principais. Desse modo, a junção de bupivacaína com lidocaína, por exemplo, reduz o tempo de latência da primeira (já que a lidocaína tem período de latência menor) e aumenta o tempo de ação local da lidocaína (a lidocaína possui tempo máximo de ação de 2 horas). O principal motivo de se realizar blo- Fo to s: D an ie l F er ro caesegatos.com.br • 33 Figura 4. Imagem do crânio de cão mostrando forâme infraorbitário, local de infiltração de anestésico para bloqueio nervoso da porção rostral da hemimaxila ipsilateral Figura 6. Imagem do crânio de cão mostrando forâmes incisivos, local de infiltração do anestésico para bloqueio nervoso da região de dentes incisivos exemplos) o estímulo nocivo é convertido em impulso elétrico nas terminações ner- vosas sensoriais periféricas (transdução) e, transmitido para o corno dorsal da medula espinhal (transmissão). Os impulsos do nervo aferente, já no corno dorsal, podem então ser moderados ou ampliados (mo- dulação). Neste último caso, por exemplo, o efeito pode durar mesmo após a injúria inicial ter cessado. Ao ser transmitido até o cérebro (projeção), o impulso nervoso é finalmente reconhecido como dor pelo indivíduo (percepção). Um dos efeitos mais importantes deste processo está justamente ligado a este mecanismo. Qualquer injúria tecidual gera inflamação. É quando mediadores inflamatórios são liberados e diminuem o limiar de estímulo das terminações. Em outras palavras, o local da cirurgia passa a ser mais sensível à dor e à cascata de transdução-modulação. Trata-se de um ciclo que é agravado por outras ações deletérias ao organismo decorrentes da dor como aumento de cortisol circulante, desregulação de pressão arterial e de fre- quências cardíaca e respiratória, além da liberação dos mediadores inflamatórios como as prostaglandinas. Técnicas anesTésicas A anestesia local pode ser realizada por meio da técnica de anestesia terminal ou por bloqueios (regionais ou tronculares). A anestesia terminal é aplicada exatamente ou muito próxima da regiãoa ser abordada pelo cirurgião. Um exemplo são as infil- trações intraligamentares, realizadas no espaço periodontal ou as intrapulpares. Em geral são superficiais e atingem somente mucosa com 0,5 a 1 mm de profundidade. De acordo com a médica veterinária, especialista em Anestesiologia Veterinária e mestranda em Anestesiologia pela FM- VZ-USP, Fernanda Devito, as anestesias realizadas por bloqueios são, sem dúvida, as mais utilizadas em odontologia veterinária, especialmente os bloqueios regionais. Para a especialista, em abordagens nas regiões de maxila, pode-se optar pelo bloqueio na fossa pterigopalatina (figuras 1 e 2) que permite dessensibilização de toda a hemimaxila ipsilateral; bloqueio no forâme infraorbitário (figura 3 e 4) que, dependendo de sua profundidade, permite anestesia rostralmente ao dente terceiro pré-molar; forâmes palatinos maior e menor (figura 5), pouco usados, que permitem anestesia principalmente da mucosa palatina do lado bloqueado; e forâmes incisivos (figura 6) que permitem bloqueio de mucosa e dentes incisivos. Quando a abordagem é realizada em mandíbula, as duas regiões principais a serem bloqueadas são a região pte- Figura 5. Imagem do crânio de cão mostrando forâmes palatinos maiores (setas vermelhas) e menores (setas amarelas), locais de infiltração de anestésico para bloqueio nervoso de mucosa palatina queios regionais em tratamentos odonto- lógicos está diretamente relacionado aos efeitos da injúria tecidual e seus efeitos, ao qual a anestesia geral volátil não consegue controlar. Para entender melhor este me- canismo, vale um entendimento a respeito do processo fisiológico de geração e de propagação da dor. “Para ser percebida pelo indivíduo a dor é processada desde o momento da lesão do tecido e passa por cinco fases: trans- dução, transmissão, modulação, projeção e percepção”, explica o especialista. Ele ressalta que no momento da injúria (inci- são da gengiva, luxação de um dente para extração, acesso à polpa viva do dente são capa 34 • caesegatos.com.br rigomandibular no forâme mandibular (figura 7 e 8) que permite bloqueio de toda a mandíbula escolhida; e os forâmes mentonianos maior e menor (figura 9 e 10) que permitem anestesia da região de mucosa e gengivas dos dentes rostrais ao segundo pré-molar inferior. VanTagens e cuidados da anesTesia local Entre os benefícios da combinação aneste- sia local e geral estão certamente à possibi- lidade de redução do volume de anestésico volátil administrado ao paciente durante o procedimento, aumento da eficiência analgésica nas regiões de injúria cirúrgica tanto no trans quanto no pós-operatório, redução considerável dos efeitos deletérios da condução do estímulo doloroso e da in- flamação desencadeada, melhor reparação tecidual e recuperação da região tratada, excelente restabelecimento do paciente decorrente da ingestão mais precoce de água e de alimento, redução da hemorragia local durante a intervenção e facilidade de aplicação das técnicas. A prática, assim como toda ação vete- rinária, deve ser realizada com atenção e cuidados especiais, conforme orienta Ferro. Para ele, a primeira precaução é de não puncionar artérias próximas à região a ser bloqueada. Já que os bloqueios regionais são realizados em plexos vásculonervosos formados pelo conjunto artéria-nervo-veia- vaso linfático. A punção de uma artéria acarreta o risco de infiltração de anestésico na circulação sanguínea, podendo ocasio- nar efeitos sistêmicos indesejados. Além disso, a hemorragia causada pela punção da artéria maxilar (infraorbitária) pode levar a protrusão temporária do globo ocular por acúmulo de sangue na região. A lesão do nervo bloqueado por trauma causado pela agulha é raro, mas deve ser considerado. “Os bloqueios pterigomaxi- lares podem estender-se ao ramo oftálmico e palpebral do nervo bloqueado gerando ptose palpebral, midríase e centralização do globo ocular temporárias e reversíveis”, esclarece o especialista. Ele explica que Figura 7. Imagem da região de mandíbula distal de cão evidenciando punção para bloqueio anestésico em forâme ptérigomandibular, distalmente ao dente terceiro molar Para Fernanda devito, as anestesias realizadas por bloqueios são as mais utilizadas em odontologia veterinária, especialmente os bloqueios regionais Figura 8. Imagem do crânio de cão mostrando o forâme ptérigomandibular, local de infiltração do anestésico para bloqueio nervoso de toda a mandíbula ipsilateral. A linha tracejada mostra a direção que a agulha deve percorrer para um correto bloqueio. Ela deve seguir desde a cúspide do dente terceiro molar em direção ao processo angular da mandíbula e a infiltração é realizada na metade da distância entre as duas estruturas to, intoxicação e parestesia são raras, ainda que tenham sido relatadas na literatura. Não há impedimentos para realização de bloqueios em animais, mas é importante considerar algumas potenciais complica- ções e dificuldades. As técnicas aplicadas tome nota O bloqueio regional ou a anestesia local impedem reversivelmente à propagação do impulso nervoso para além da área que foi bloqueada em mandíbula, bloqueios de grande volume podem atingir e dessensibilizar o ramo lingual do nervo alveolar. Se o proce- dimento encerrar antes do fim da ação do anestésico local, o paciente não terá sensibilidade na língua ao acordar. Por isso, é importante a vigília do paciente em recuperação anestésica para que se mantenha em decúbito esternal, evitando assim que a língua permaneça entre os dentes caso ele permaneça em decúbito lateral. Neste caso, pode haver laceração grave da língua (figuras 11 e 12) com risco de amputação, no entan- em animais braquicefálicos podem apresentar variações em virtude da alteração da anatomia e da localização dos plexos bloqueados. Basi- camente, a escolha do medi- camento a ser aplicado para o bloqueio regional deve ser realizada com base no plane- jamento da cirurgia. Procedi- mentos com menos de 2 horas de duração podem utilizar lidocaína em virtude de seu tempo de ação de cerca de 1 a 2 horas. “Procedimentos como maxilectomia e mandibulecto- mia ou correções de fraturas com maior duração podem Fo to s: D an ie l F er ro Fo to : d iv ul ga çã o caesegatos.com.br • 35 é IMporTanTE EnTEndEr QuE a anESTESIa GEraL podE não IMpEdIr o orGanISMo dE SoFrEr EFEIToS dE ESTÍMuLoS dE dor duranTE uMa InTErVEnção CIrÚrGICa caesegatos.com.br • 35 QuE a anESTESIa GEraL podE o orGanISMo dE SoFrEr EFEIToS dE ESTÍMuLoS dE dor duranTE uMa InTErVEnção CIrÚrGICa dispender o uso de bupivacaína com tempo de ação de 4 a 8 horas”, frisa o especialista. A mepivacaína é opção para ocasiões em que a intervenção ocorra em regiões de abscesso ou com infl amação instalada. Nestes casos, lidocaína e bupivacaína podem não atingir o nível desejado Figura 12. Imagem de língua de cão (vista lateral) com laceração importante consequente de mordidas durante a recuperação anestésica de bloqueio e dessensibilização de nervo alveolar para procedimento odontológico Tais doses referem-se a um volume total de anestésico que deverá ser dis- tribuído pelos quatro quadrantes da boca do animal, caso seja necessário o bloqueio total. Importante destacar que a mepivacaína possui um pKa mais baixo o que permite uma melhor ação da molécula em ambientes com infl amação e infecção. Figura 10. Imagem do crânio de cão mostrando forâmes mentonianos maior e menor, locais de infi ltração do anestésico para bloqueio nervoso da região rostral da mandíbula a partir do dente segundo pré-molar Figura 9. Imagem da região de mandíbula rostral de cão evidenciandopunção para bloqueio anestésico em forâmes mentonianos maior e menor Figura 11. Imagem de língua de cão (vista dorsal) com laceração importante decorrente de mordidas durante a recuperação anestésica de bloqueio e dessensibilização de nervo alveolar para procedimento odontológico de analgesia em virtude do baixo pH do ambiente infi ltrado. “A molécula de mepi- vacaína, com pKa mais baixo que as me- dicações anteriores, tem condições de agir adequadamente antes de ser dissociada”, fi naliza Ferro. ◘ caesegatos.com.br • 35 apLICação › lidocaína 2% nas doses de 2 a 7 mg/kg (sem epinefrina) e 9 mg/kg (com epinefrina) para o cão e 3 a 4 mg/kg para o gato; › Bupivacaína 0,5% nas doses de 2 mg/kg para o cão e de 1,5 mg/kg para o gato; › Mepivacaína 2 ou 3% nas doses de 6 mg/kg para o cão e de 3 mg/kg para o gato; › Prilocaína 4% na dose de 9 mg/kg para o cão (não foram encontradas referências de doses para gatos). Fo nt e: D an ie l F er ro , a da pt ad o C & G V F Fo to : d iv ul ga çã o DANIEL FERRO, mÉDICo VeteRInÁRIo, CIRURGIÃo e eSPeCIaLISta em oDontoLoGIa anImaL
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