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cadernos didáticos/Atividade prático-poiética.pdf filosofia da educação filosofia da educação postpost --scriptum 1scriptum 1 A EDUCAÇÃO COMO ATIVIDADE PRÁTICOA EDUCAÇÃO COMO ATIVIDADE PRÁTICO-- POIÉTICAPOIÉTICA A expressão prático-‐poiética tenta resolver um falso impasse entre duas possibilidades que, na Etica a Nicômaco, Aristóteles elencou, ao analisar os tipos de atividade humana. AS ATIVIDADES «POIAS ATIVIDADES «POIÉTICAS»ÉTICAS» Há, dizia o filósofo, entre as atividades a que se dedicam os humanos, algumas que têm uma finalidade objetiva, finalidade que é possível definir antecipadamente. E isso porque estas atividades visam sempre uma produção, a produção de algo de bem determinado, sendo chamadas de «poiéticas» – do grego poíesis, que significa fabricar, fazer. Daí se segue que essas atividades não têm sentido se não atingem este objetivo, se não produzem este resultado que é, aliás, sua única razão de ser – elas não têm, portanto, fim em si mesmas. E quando, por fim, elas cumprem sua finalidade, realizando seu produto, elas são dadas por encerradas. Note-‐se, assim, que as atividades denominadas de «poiéticas» são aquelas que têm não apenas uma finalidade precisa, mas também um término que pode ser claramente fixado: e assim sendo, elas podem ser avaliadas objetivamente, em função da realização de um «produto» exterior a elas. Ü A atividade educacional deve ser compreendida como poiética, na medida em que é necessário que se fixem para ela objetivos comuns e públicos, capazes de fornecer parâmetros para o acompanhamento, a prestação de contas e a avaliação do trabalho realizado. Mas houve uma corrente, bastante difundida nos anos 1970, que proclamava que o êxito do processo educacional filosofia da educação filosofia da educação dependia quase que inteiramente da fixação de «objetivos instrumentais», isso é, que afirmava que o professor devia ser capaz de traduzir todas as suas finalidades em uma lista de metas bem objetivas e facilmente observáveis. Aristóteles também identificou, porém, atividades para as quais não se podiam designar fins objetiváveis, já que elas não visam nenhuma finalidade além de seu próprio exercício. Não se concluindo pela realização de nenhum «produto», não tendo uma finalidade exterior a elas, diz-‐se que estas atividades têm fim em si mesmas, ou que elas são seu próprio fim. Aristóteles as apelidou de «práticas», na medida em que elas são definidas, não por um produto, mas por uma ação – em grego, prâxis. As atividades práticas não se concluem forçosamente pela fabricação de um «produto»: isso torna impossível a fixação de um momento preciso e definitivo para seu encerramento, tanto quanto impossibilita qualquer tentativa de se proceder à sua «avaliação objetiva». Ü Na medida em que se pode dizer que a ação educacional consiste essencialmente na formação, ou na auto-‐formação humana, cabe defini-‐la como uma atividade prática: como fixar um fim para a auto-‐formação, separá-‐la artificialmente da própria existência? Como avaliar objetivamente uma ação que não tem um «resultado» ou um «efeito» preciso, mas refere-‐se ao que cada humano é e faz de si? Examinando os limites da distinção operada por Aristóteles, Cornelius Castoriadis identificou três casos em que ela não parece adequada, todos eles relativos a atividades de formação humana: a política, a educação e a psicanálise. É fácil verificar o que Castoriadis pretendia, observando a educação, da qual se deve dizer que é tanto uma poíesis quanto uma prâxis. Por um lado, sucessivas «objetivações» são necessárias, já a educação se passa entre humanos, que precisam de definições para agir e se comunicar; mas, por outro lado, estas definições têm aqui um caráter não somente limitado, não dando conta de tudo que o processo significa, como provisório, já que elas forçosamente se modificam, ao longo do processo. O professor não pode perder de vista estes «objetivos limitados e provisórios, mas tampouco pode se fiar inteiramente neles, porque isto seria reduzir a educação a um mero treinamento… Tomemos a finalidade mais importante da educação, a construção da autonomia: repare-‐se que ela se constitui, ao mesmo tempo, no fim a ser buscado e na própria atividade. Em outras palavras, na filosofia da educação filosofia da educação educação, o processo e o produto, os meios e os fins se confundem, não há como distingui-‐los inteiramente: por isso cabe defini-‐la como uma atividade prático-‐poiética. Na educação, a autonomia é, concomitantemente, o meio para se chegar ao fim e o próprio fim buscado. cadernos didáticos/Texto 1.pdf ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo 1 tteexxttoo 11 PPOORR UUMMAA DDEEFFIINNIIÇÇÃÃOO FFIILLOOSSÓÓFFIICCAA DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO ccoonnttrriibbuuiiççõõeess ddaa ffiilloossooffiiaa ppaarraa ppeennssaarr oo ffaazzeerr eedduuccaattiivvoo Haveria, ainda hoje, sentido em se buscar a filosofia para definir a educação? O que teria, atualmente, a filosofia a contribuir para a teoria sobre a educação? Para aqueles que a ela não foram introduzidos, a filosofia passa freqüentemente por ser um conhecimento abstrato e distante de tudo o que se vive, e o seu ensino uma longa enumeração de respostas que autores do passado remoto forneceram a questões que não são mais as nossas, que jamais nos ocorreria interrogar. Em uma palavra, um conhecimento… inútil e enfadonho, e ainda por cima muito difícil de ser apreendido. Se hoje essa maneira de ver as coisas se apóia em velhos preconceitos e em um certo acomodamento mental, isso nem sempre foi assim: no passado, longe de nascer das resistências que a reflexão pode engendrar face ao imediatismo e à rapidez que nosso estilo de vida comporta atualmente, ela se constituiu numa reação contra o poder dogmático que em ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo 2 nome da filosofia foi exercido pelo Estado, pela tradição ou pelos religiosos. A substituição da antiga autoridade filosófica pelas referências provenientes do saber científico consolidou-se no século passado, em função da crescente confiabilidade que esse último alcançou, e foi finalmente selada, em nossos tempos, pela definitiva adoção da identidade que as «ciências da educação» passaram a conceder à pedagogia. Assim, resume Franco Cambi, no século XX o saber pedagógico se emancipou do modelo metafísico que, desde a antigüidade até pelo menos o século XVII, dominou a educação, fornecendo definições acabadas sobre sua natureza e seus fins. …o declínio do modelo metafísico da pedagogia (…) tinha começado entre os séculos XVII e XVIII, com Locke, aumentando depois com Rousseau e Kant, com o romantismo e o positivismo, para expandir-se em nosso século, onde permaneceu como apanágio de posições… como o idealismo, como o pensamento católico, neoescolástico ou espiritualístico). A centralidade da especulação filosófica como guia da pedagogia foi substituída no pensamento contemporâneo pela centralidade da ciência, e de uma ciência autônoma, cada vez mais autônoma em relação à filosofia.1 A concepção histórica que Cambi defende para a pedagogia – a concepção científica – manteve-se largamente dominante na educação a partir da modernidade, sobretudo no que se refere à definição da prática educacional, que teria sido libertada da dependência das verdades definidas de uma vez por todas pela metafísica. Antes, o fazer educativo era apenas um espaço de aplicação das leis e determinações absolutas engendradas pela especulação; com o advento da ciência, introduz-se uma atitude radicalmente diferente, que enfatiza e valoriza a criação e 1 Franco Cambi, História da Pedagogia. São Paulo: Ed. UNESP, 1999, p. 402. ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo 3 experimentação de novos métodos e procedimentos técnicos para o ensino, tanto quanto para a administração da educação escolarizada. Na definição cientificista da educação, o fazer educativo é campo de permanente exploração das ciências humanas – feitas, agora, «ciências da educação». Assim, a influência da filosofia foi sendo substituída pela autoridade do conhecimento científico, que, à medida que vai se especializando e complexificando, passa a fornecer tantas definições para a educação quantos são os ramos da ciência e, em seu interior, as correntes assumidas pelos cientistas. Para muitos, isso representou a superação definitiva do pensamento filosófico, como fonte de construção dos sentidos do que é a educação, de suas finalidades, de como e porque se deve ensinar. E, de fato, para muitos, sem o aval que a crença numa verdade absoluta e incorruptível lhe outorgava, isso é, sem poder recorrer à autoridade metafísica, que a ciência havia destronado, a filosofia teria que ter seu papel definitivamente reduzido. De disciplina específica e soberana, que anunciava as verdades que nada nem ninguém poderia contestar, tudo a que ela poderia aspirar, de agora por diante, era ao posto de uma reflexão que as ciências deveriam manter sobre sua própria prática – sobre seu método, sobre sua coerência interna, sobre a validade de seus argumentos, definições e deduções, em sua contextualização histórica. A filosofia havia se transformado em apenas um momento do fazer metodológico do investigador. Mas, paralelamente a essa redução a que foi submetida pela ciência, que a tornou uma etapa especializada de seu fazer investigativo, a filosofia se viu – como, por exemplo, no caso da política e da educação – objeto do movimento oposto, que a ampliou de uma forma inaudita. ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo 4 Assim, no início do século, Antonio Gramsci proclamava: «todos são filósofos»!2 No campo da educação, a concepção gramsciana de filosofia exerceu uma enorme influência, sobretudo a partir dos anos 1980, vindo somar-se a uma tendência mais antiga, de designar como filosofia não mais uma atividade conscientemente realizada, mas, genericamente, um «modo de ser» de um indivíduo ou de um grupo: Na medida de nossas forças, construímos, então, uma filosofia e a ela nos acomodamos, tão bem como tão mal, em nossa ânsia e inquietação de compreender e de pacificar o espírito. Tais filosofias individuais não se articulam, porém, em sistemas filosóficos. Esses, quando não são criações pedantes de gabinete, mas expressões reais de filosofia, representam e caracterizam uma época, um povo ou uma classe de pessoas. Porque, no sentido realístico de que falamos de filosofia, tal seja a vida, tal seja a civilização, tal será a filosofia. A filosofia de um grupo que luta corajosamente para viver, não é a mesma de outro cujas facilidades transcorrem em uma tranqüila e rica abundância. Conforme o tipo de experiência de cada um, será a filosofia de cada um.3 Ou, como resumiu o autor dessas palavras, o educador Anísio Teixeira: «conforme o tipo de experiência de cada um, será a filosofia de cada um»4. Face à decadência dos grandes sistemas teóricos e das verdades que produziam, a filosofia já pode ser confundida com a própria «a atividade de pensar»5. É bem verdade que essa definição mais «democrática» da filosofia rompia com o elitismo que consistia em reservar o saber a uma pequena elite afastada do cotidiano dos seres «comuns»; mas, em contrapartida, ao naturalizar a prática filosófica – isso é, ao supor que a 2 Antonio Gramsci, Introdução ao estudo da filosofia e do materialismo histórico. Alguns pontos de referência preliminares, in Obras escolhidas. Lisboa: Editorial Estampa, 1974, p. 25. 3 Anísio Teixeira, Pequena introdução à filosofia da educação – A Escola Progressiva ou A Transformação da Escola. 6 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p. 170) 4 Id., ibid., p. 170. 5 Id., ib., p. 168. ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo 5 filosofia se realiza sempre e em toda parte, espontâneamente, sem que seja necessária qualquer decisão deliberada, ao identificar inteiramente a cultura de um povo a uma filosofia – essa tendência por ocultar o que significou, em sua origem, a invenção da filosofia. Pois a filosofia não começou como um «pensar» genérico, nem apareceu do movimento irrefletido pelo qual as sociedades se constróem estabelecendo valores, normas, costumes e finalidades comuns: sua invenção está historicamente ligada à invenção da democracia, correspondendo ao projeto de crítica e superação dos dogmas e das dominações, ao projeto de autonomia. Decerto esta vocação original da filosofia foi muito cedo interrompida, para começar com a escola platônica, que se opôs firmemente a mais de duzentos anos de tradição democrática; e não há como negar que a história da filosofia é uma história elitista. Mas também é preciso dizer que foi como luta contra este elitismo que as mais belas páginas filosóficas foram escritas. Há que se temer que a naturalização da filosofia leve não só a desperdiçar esse rico patrimônio que é o de nosso pensamento, mas, o que é ainda pior, a que nossa atualidade rompa definitivamente com ele, tornando-se cegamente submissa aos novos dogmas e dominações de nossa sociedade. Definida como atividade plenamente inserida na vida cotidiana de cada um – pesquisador ou homem comum, a filosofia torna-se o campo das escolhas, dos valores. Mas – questão que os filósofos nunca deixaram de fazer – em que então a filosofia, a reflexão, se apoiaria, para fundamentar essa decisão? Como, para a modernidade, a filosofia só é atividade especializada se ela se fizer «científica», a resposta mais evidente é: ela deveria se amparar na crítica racional, na razão científica que se emancipou do dogmatismo metafísico. Considerando a imensidão do terreno sobre o qual se debruça o «pensar» e o agir humano, como garantir, em ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo 6 toda parte e sempre, o domínio das regras científicas? É preciso convir que é impossível fazer caber a realidade humana nos estreitos limites da racionalidade científica. Assim, deduz Anísio Teixeira, tudo que não decorre das certezas rigorosas da razão, deve ser comparado à arte, à profecia… à crença: A filosofia não busca verdade no sentido estritamente científico do termo, mas valores, sentido, interpretações mais ou menos ricas de vida. Vai às «causas últimas» para usar a velha expressão, porquanto nos deve levar à compreensão mais larga, mais profunda e mais cheia de sentido que for possível obter, do universo, à vista de tudo que o homem fez e conhece na terra. A filosofia tem, assim, tanto de literário quanto de científico. Científicas devem ser as suas bases, os seus postulados, as suas premissas; literárias ou artísticas as suas conclusões, a sua projeção, as suas profecias, a sua visão. E, nesse sentido, a filosofia se confunde com a atividade de pensar, no que ela encerra de perplexidade, de dúvida, de imaginação e de hipotético. Quando o conhecimento é suscetível de verificação, transforma-se em ciência, e enquanto permanece como visão, como simples hipótese de valor, sujeito aos vaivéns da apreciação atual dos homens e do estado presente de suas instituições, diremos, é filosofia.6 Haveria, pois, uma produção científica da educação que teria por tarefa a identificação de determinações observáveis, de regularidades verificáveis, de explicações capazes de dotar o fazer educativo de instrumentos de controle, de predição e de planificação; e haveria, também, uma produção filosófica da educação, que, mantida e apoiada pela própria racionalidade científica, estaria presente e atuante nas «ciências da educação». Quanto àquilo que a razão não pode afiançar, essa seria uma elaboração filosófica que, não podendo se converter em ciência, deveria permanecer como intuição, como «visão», como «hipótese de valor». 6 Id., ibid., p. 168. ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo 7 É que, a partir da modernidade, a educação – como tantos outros domínios da vida social – esteve inteiramente subjugada pela valorização do saber, ou dos saberes científicos. Essa confiança na razão foi tão desmesurada que aquilo que se apresentara originalmente como resposta de ruptura do dogmatismo da metafísica, acabou por se tornar como um novo dogma. E, tal como ocorrera com a filosofia, ainda que abrindo espaço para muitos inegáveis avanços, a ciência não tardou a pretender apresentar-se como saber absoluto. Especialmente no campo das ciências humanas, e muito particularmente na formação humana, a aspiração a um saber totamente objetivo, a pretensão à certeza, ainda que disfórmica e conflituosa, sobre o enigma humano, sobre o enigma da educação estão na base do dogma científico e toda a mistificação em torno dos «métodos» geniais, das «técnicas» todo- poderosas e das «tecnologias» milagrosas. Ora, da insistência – anteriormente metafísica e, na modernidade, científica – na identificação de fontes legítimas para a explicação, o controle e a predição do sentido humano e social resulta a incapacidade de lidar com o que não pode ser inteiramente determinado, definido de antemão, resulta também a tendência a querer eliminar totalmente do horizonte de nossas preocupações o processo pelo qual o homem cria, continuamente, social e coletivamente, as determinações para seu modo de existência individual e coletiva. De modo que se, sob a influência científica, o fazer educacional de fato se «emancipou» das concepções dogmáticas da filosofia, que o reduziam a mero terreno de aplicação de suas verdades, foi só para melhor se submetê-lo ao domínio da autoridade científica – que, ela ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo 8 também, pretendeu estabelecer, antecipadamente, as regras e os procedimentos pelos quais a educação deveria forçosamente se pautar. Assim sendo, a natureza indeterminada e indeterminável do fazer educativo, pela qual ele existe como criação permanente de um sentido sempre singular, e como deliberação racional e razoável que só a liberdade pode colocar em perspectiva, acabou mais uma vez sendo ocultada. A democracia é o projeto de romper o fechamento em nível coletivo. A filosofia, que cria a subjetividade com capacidade de refletir, é o projeto de romper com o fechamnto do pensamento… O nascimento da filosofia e o nascimento da democracia não coincidem, eles co-significam. Ambos são expressões e encarnações centrais do projeto de autonomia.7 Portanto, sob a perspectiva democrática, isso é, à luz do projeto de autonomia individual e coletiva, a filosofia não é a atividade espontânea pela qual as sociedades criam seus costumes, valores, representações e finalidades, mas a forma sistemática e deliberada de interrogar esta criação. Ela é a busca de definição, em primeiro lugar, do espaço que cabe à deliberação e à iniciativa humana: individualmente, como decisão que constitui a conduta ética; e, coletivamente, como política, nessa acepção que, em grande escala, o autor mencionado compartilhava com Hannah Arendt. Do ponto de vista, ainda, da democracia, tampouco a crítica da modernidade ao pensamento metafísico pode ser avaliada pelo que dela resultou, ou pelo seu «fracasso»: mais do que um acontecimento meramente intelectual, à modernidade corresponderam conquistas 7 Cornelius Castoriadis, «O fim da filosofia?» in Encruzilhadas do Labirinto III – O Mundo fragmentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 235. ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo 9 sociais que a tornaram um momento muito especial de criação social-histórica. Nesse momento, e após muitos séculos, a definição filosófica da educação voltou a buscar, na radicalidade de sua tradição de questionamento, seu caráter eminentemente instituinte. Essa dimensão instituinte do fazer educativo foi proclamada com insistência durante o período da Revolução Francesa, que redescobriu a direta relação entre este fazer e a instituição política da sociedade. Decorre daí uma nova definição filosófica da educação, uma definição política. Aos poucos, porém, em face das exigências de construção de uma sociedade nova e unificada, a autoridade científica foi retomando o poder que havia sido subtraído ao dogma: a prática do controle se reinstituiu, pela ambição ampliada de uma definição científica da educação, que promove as «ciências da educação» em referências absolutas para os métodos e procedimentos de administração e de realização do fazer educativo. Muito particularmente a psicologia – no que se refere aos aspectos individuais – e a estatística – no que se refere ao aspecto coletivo – passam a ser irrestritamente valorizadas no campo educativo. Não se pode dizer que essas definições especializadas da educação tenham liberado o fazer educativo de seus enigmas, apenas ajudaram a ocultá-lo. Sem dúvida, nossos tempos já não desconhecem os efeitos nefastos do mito do «progresso» técnico-científico, que Jean-Jacques Rousseau começara a denunciar, e os riscos da descontrolada ambição de domínio racional da realidade. Como diria Agnes Heller, hoje sabemos que tudo tem seu preço. Mas nem por isso nos tornamos mais capazes de interferir, coletivamente, sobre esses processos. Nem por isso nos tornamos mais imunes à sedução do mito da eficácia das técnicas e da validade universal dos discursos especializados. ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo 10 Por isso, na área da educação, as diferentes disciplinas dificilmente convergirão para uma compreensão organizada e harmônica da realidade humana e social – e não é essa a função da filosofia. Ao contrário, sem o questionamento de seus limites, essas perspectivas continuarão disputando o privilégio de fornecer a definição acabada e total para a educação, sob a forma da resposta mais conveniente para os dilemas que ela coloca. Mas a tentação de fornecer as explicações acabadas para o humano e a sociedade é um traço comum entre a ciência e a filosofia da modernidade. Um dos maiores expoentes da filosofia moderna, Immanuel Kant havia começado a demonstrar os limites do conhecimento científico, no que se refere ao homem e à sociedade: sob esse aspecto, sua contribuição para a definição filosófica da educação é inegável, ainda que pouco explorada. No entanto, ele julgou poder estabelecer não só os fundamentos universais e absolutos para o entendimento humano, mas também as bases inquestionáveis de um «conhecimento prático», sucumbindo à tentação de estabelecer parâmetros universais que reduziriam a educação a uma simples questão de método. Todavia, qualquer «definição» que parta apenas das determinações que pesam sobre a natureza humana e social, e não, igualmente, do questionamento dos limites dessas determinações é nefasta para a educação. Volta-se, assim, repetidamente, à tradição platônica, e à herança metafísica: Com Platão começa a torção, e a distorção, platônica que dominou a história da filosofia ou, pelo menos, a sua principal corrente. O filósofo deixa de ser um cidadão. Sai da pólis, ou coloca-se acima dela, e diz às ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo 11 pessoas o que devem fazer, deduzindo isso de [seu próprio conhecimento]8 Começa com Platão, diz Cornelius Castoriadis, a crença de que se possa encontrar uma teoria única e válida para todas as questões sobre o humano, uma ontologia unitária, da qual, em seguida, se tenta derivar o regime político ideal. É essa a «torção e a distorção» que sofrem, primeiramente, a filosofia e, em seguida, a ciência moderna: a de acreditar que o conhecimento pode e deve substituir a liberdade humana. Em fins do século XIX, Friedrich Nietzsche afirmava que só seríamos de fato «modernos» quando, enterrando de uma vez por todas a tradição platônica, abraçássemos definitivamente o nihilismo. Não haveria, então, outra opção, para superar o ideal do saber absoluto? Não são poucos os que, buscando evitar os erros modernos, acabam por ceder ante outras seduções, como a do subjetivismo e do relativismo das concepções que pretendem que nada é possível dizer sobre o humano, e que suspeitam das intenções dominadoras de todo projeto educativo. Dessa forma, alguns críticos pós-modernos renunciam à filosofia como práxis e à educação como ação deliberada e racional. Mas, feita compromisso racional e deliberado com o projeto de autonomia, a filosofia pode definir a educação como prática de formação coletiva de subjetividades reflexivas e deliberantes de que a democracia carece. Mas não há método, ou regra, ou receita, que garanta antecipadamente o êxito de uma empreitada em que se trata, na verdade, de socializar os indivíduos, com base nas instituições 8 Idem, p. 236-237. ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo 12 heterônomas da sociedade (e já encarnadas por eles), para a criação de um novo modo de existência individual e coletiva, em que a autonomia seja possível. Não há método, ou regra, ou receita eficaz para garantir que se vai desistir para sempre de toda ambição de controle da educação; ou para garantir que se vá admitir a liberdade, a rebeldia, o erro, a singularidade do aluno – sua auto-criação concretamente manifestada – não como um obstáculo, mas como uma condição essencial da construção comum da educação. Não há método, ou regra, ou receita, que garanta antecipadamente o êxito de uma empreitada em que se trata de realizar, a cada dia, a descoberta do imponderável da criação, com base em todas as teorias e métodos e técnicas que, tomados dogmaticamente, acabam por ocultá-la. Não há método, ou regra, ou receita, que garanta antecipadamente o êxito do fazer educativo. Eis o que é próprio da definição filosófica da educação: à luz do projeto de autonomia humana, individual e coletiva, elucidar o enigma do fazer educativo (cf. infra, p. 22). 13 AANNÍÍSSIIOO TTEEIIXXEEIIRRAA Na medida de nossas forças, construímos, então, uma filosofia e a ela nos acomodamos, tão bem como tão mal, em nossa ânsia e inquietação de compreender e de pacificar o espírito. Tais filosofias individuais não se articulam, porém, em sistemas filosóficos. Esses, quando não são criações pedantes de gabinete, mas expressões reais de filosofia, representam e caracterizam uma época, um povo ou uma classe de pessoas. Porque, no sentido realístico de que falamos de filosofia, tal seja a vida, tal seja a civilização, tal será a filosofia. A filosofia de um grupo que luta corajosamente para viver, não é a mesma de outro cujas facilidades transcorrem em uma tranqüila e rica abundância. Conforme o tipo de experiência de cada um, será a filosofia de cada um… TEIXEIRA, A. Pequena introdução à filosofia da educação – A Escola Progressiva ou A Transformação da Escola. 6 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000, p. 170. A filosofia se traduz, assim, «em educação, e educação só é digna desse nome quando está percorrida de uma larga visão filosófica. Filosofia da educação não é, pois, senão o estudo dos problemas que se referem à formação dos melhores hábitos mentais e morais em relação às dificuldades da vida social contemporânea.» [Dewey]. Considerada assim, a filosofia, como a investigadora dos valores mentais e morais mais compreensivos, mais harmoniosos e mais ricos que possam existir na vida social contemporânea, está claro que a filosofia dependerá, como a educação, do tipo de sociedade que se tiver em vista. Id., p. 171) De todos os lados [da educação] lhe batem à porta. De todos os lados as instituições humanas se abalam e se transformam. Transforma-se a família, transforma-se a vida econômica, transforma-se a vida industrial, transforma-se a igreja, transforma-se o estado, transformam-se todas as instituições, as mais rígidas e as mais sólidas – e de todas essas transformações chegam à escola um eco e uma exigência… A escola tem que dar ouvidos a todos e a todos servir. Será o teste de sua flexibilidade, da inteligência de sua organização e da inteligência dos seus servidores. Esses têm de honrar as responsabilidades que as circunstâncias lhes confiam, e só o poderão fazer, transformando-se a si mesmos e transformando a escola. (Id., p. 173) 14 CCOORRNNEELLIIUUSS CCAASSTTOORRIIAADDIISS Atravessamos um período de crise prolongada da cultura ocidental. À crise pertencem também a proclamação – em particular por Heidegger, mas não só por ele – do “fim da filosofia” e toda a gama de retóricas desconstrucionistas e pós-modernistas. Pois a filosofia é um elemento central do projeto greco- ocidental de autonomia individual e social; o fim da filosofia significaria nem mais nem menos do que o fim da liberdade. A liberdade não está apenas ameaçada pelos regimes totalitários ou autoritários. E sim, de maneira mais escondida, porém não menos forte, pela atrofia do conflito e da crítica, pela expansão da amnésia e da irrelevância, pela incapacidade crescente de questionar o presente e as instituições existentes, quer sejam propriamente políticas ou contenham concepções do mundo. Nessa crítica, a filosofia sempre teve uma parte central, ainda que, na maior parte do tempo, sua ação tenha sido indireta. CASTORIADIS, C. «O ‘fim da filosofia’?» in As encruzilhadas do labirinto III: o mundo fragmentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. pp. 239-240. Um filósofo escreve e publica porque crê que tem coisas verdadeiras e importantes a dizer, mas, também, porque quer ser discutido. Ser discutido implica a possibilidade de ser criticado e, eventualmente, refutado. E todos os grandes filósofos do passado – inclusive Kant, Fichte e Schelling – explicitamente discutiram, criticaram e refutaram – ou pensaram que refutaram – seus predecessores. Pensavam, com razão, que pertenciam a um espaço social-histórico público e transtemporal, na ágora trans-histórica da reflexão, e que sua crítica pública dos outros filósofos era um fator essencial da manutenção e do alargamento desse espaço como sendo de liberdade (…). (…) É por isso que, para um filósofo, não pode haver história da filosofia a não ser crítica. A crítica pressupõe evidentemente o esforço mais laborioso e mais desinteressado para compreender a obra crítica. Mas ela exige também uma vigilância constante quanto às limitações possíveis desta obra, limitações que resultam do fechamento quase inevitável de toda obra de pensamento que acompanha a sua ruptura com o fechamento precedente. Id., p. 243-244. 15 IIMMMMAANNUUEELL KKAANNTT O homem é a única criatura que precisa ser educada. Por educação entende- se o cuidado de sua infância (a conservação, o trato), a disciplina e a instrução com a formação. Conseqüentemente, o homem é infante, educando e discípulo. (…) A disciplina transforma a animalidade em humanidade. Um animal é por seu próprio instinto tudo aquilo que pode ser; uma razão exterior a ele tomou por ele antecipadamente todos os cuidados necessários. Mas, o homem tem necessidade de sua própria razão. Não tem instinto, e precisa formar por si mesmo o projeto de sua conduta. Entretanto, porque ele não tem a capacidade imediata de o realizar, mas vem ao mundo em estado bruto, outros devem fazê-lo por ele. KANT, I. Sobre a Pedagogia. Piracicaba: UNIMEP, 1996. pp. 11-12. Mas, o homem é tão naturalmente inclinado à liberdade que, depois que se acostuma a ela por longo tempo, a ela tudo sacrifica. Ora, este é o motivo preciso, pelo qual é conveniente recorrer cedo à disciplina; pois, de outro modo, seria muito difícil mudar depois o homem. Ele seguiria, então, todos os seus caprichos. Do mesmo modo, pode-se ver que os selvagens jamais se habituam a viver como os europeus, ainda que permaneçam por muito tempo a seu serviço. O que neles não deriva, como opinam Rousseau e outros, de uma nobre tendência à liberdade, mas de uma certa rudeza, uma vez que o animal ainda não desenvolveu a humanidade em si mesmo numa certa medida. Assim, é preciso acostumá-lo logo a submeter-se aos preceitos da razão. Id., p. 13. O homem não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz. Note-se que ele só pode receber esta educação de outros homens, os quais a receberam igualmente de outros. Portanto, a falta de disciplina e de instrução em certos homens os torna mestres muito ruins de seus educandos. Se um ser de natureza superior tomasse cuidado da nossa educação, ver-se-ia, então, o que poderíamos nos tornar. Mas, assim como, por um lado, a educação ensina alguma coisa aos homens e, por outro lado, não faz mais que desenvolver nele certas qualidades, não se pode saber até onde nos levariam as nossas disposições naturais. Id., p. 15. 16 HHAANNNNAAHH AARREENNDDTT A filosofia tem duas boas razões para não se limitar a apenas encontrar o lugar onde surge a política. A primeira é: a) Zoon politikon: como se no homem houvesse algo político que pertencesse à sua essência – conceito que não procede; o homem é a-político. A política surge no entre-os-homens; portanto, totalmente fora dos homens. Por conseguinte, não existe nenhuma substância política original. A política surge no intra-espaço e se estabelece como relação. Hobbes compreendeu isso. b) A concepção monoteísta de Deus, em cuja imagem o homem deve ter sido criado. Daí só pode haver o homem, e os homens tornam-se sua repetição mais ou menos bem-sucedida. O homem, criado à imagem da solidão de Deus, serve de base ao state of nature as a war of all against all, de Hobbes. É a rebelião de cada um contra todos os outros, odiados porque existem sem sentido – sem sentido exclusivamente para o homem criado à imagem da solidão de Deus. ARENDT, H. O que é política. Rio de Janeiro: Bretrand Brasil, 1998. p. 23. Ao se falar de política, em nosso tempo, é preciso começar pelos preconceitos que todos nós temos contra a política – quando não somos políticos profissionais (…).Não se precisa deplorar e, em nenhum caso, deve-se tentar modificar o fato de os preconceitos desempenharem um papel tão extraordinário no cotidiano – e com isso, na política. Pois nenhum homem pode viver sem preconceitos, não apenas porque não teria inteligência ou conhecimento suficiente para julgar de novo tudo que exi- gisse um juízo seu no decorrer de sua vida, mas sim porque tal falta de preconceito requereria um estado de alerta sobre-humano. Por isso, a política tem de lidar sempre e em toda parte com o esclarecimento e com a dispersão de preconceitos, o que não significa tratar-se, no caso de uma educação para a perda de preconceitos, nem que aqueles que se esforcem para fazer tal esclarecimento sejam livres de preconceitos. Id., p. 28-29. Se o sentido da política é a liberdade, isso significa que nesse espaço – e em nenhum outro – temos de fato o direito de esperar milagres. Não porque fôssemos crentes em milagres, mas sim porque os homens, enquanto puderem agir, estão em condições de fazer o improvável e o incalculável e, saibam eles ou não, estão sempre fazendo. (…) A pergunta hoje quase não é: qual é o sentido da política? É muito mais natural ao sentimento dos povos que por toda parte se sentem ameaçados pela política e nos quais os melhores se distanciam da política de maneira consciente que a pergunta seja: tem a política ainda algum sentido? Id., p. 44 cadernos didáticos/Texto 2.pdf ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo tteexxttoo 22 AA CCOONNCCEEPPÇÇÃÃOO FFIILLOOSSÓÓFFIICCAA DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO ee oo eessttaattuuttoo ddaa tteeoorriiaa Muitas vezes, no passado, o ensino da filosofia da educação tomou a forma de uma apresentação mais ou menos cronológica das «teorias» ou das «concepções filosóficas» produzidas para a prática educativa. Esse procedimento inspirava-se em uma tradição didática fortemente arraigada na própria área de filosofia e tinha o mérito de fornecer um painel bastante abrangente dos grandes filósofos do passado. No entanto, o preço a pagar por esse lustre cultural era sem dúvida excessivo: em primeiro lugar, a ênfase em um conjunto acabado de idéias, e não na atividade de reflexão em que a filosofia, antes de qualquer outra coisa, se constitui; e, em decorrência disso, a construção de um «saber» teórico que, livre de toda relação com a realidade daquele a quem se dirige, tende a revestir-se de uma autoridade inquestionável. Não é ademais difícil perceber, na origem dessa tradição, as posições analisadas no texto 1, já que o fundamento desse modo descontextualizado de se ensinar a filosofia da educação é 2 a velha crença de que o verdadeiro saber não precisa da prática nem para se organizar nem para se validar. Se, todavia, a filosofia tem um papel central na formação dos educadores e dos pesquisadores em educação é porque a natureza do fazer educativo impõe à teoria ser muito mais do que uma série de belos desenvolvimentos, e mais também do que um corpo coerente de explicações previamente organizado. Diante dos enigmas que a existência humana e social colocam para a educação, qualquer teoria fracassará, se não for acompanhada de um contínuo questionamento, se não for vivificada pela constante reflexão. E, para isso, a filosofia pode certamente ajudar: pois de seu passado ela pode nos oferecer não somente conceitos e teorias, mas igualmente as interrogações de que se originaram. E, de fato, a filosofia dizia Cornelius Castoriadis, é compromisso com a totalidade do pensável. Não apenas, portanto, com a totalidade daquilo que já foi pensado mas, sobretudo, com tudo que ainda há para pensar. Assim definida, aliás, a questão do ensino da filosofia, a questão de porque apreendê-la se desloca: não se trata de buscar avidamente conhecer tudo o que já foi escrito e pensado (desafio de todo modo irrealizável), nem sequer de se preparar antecipadamente para responder a todas as questões que possam ser levantadas (projeto simplesmente insano!), mas de buscar no estudo os meios de explorar ao máximo possível as possibilidades de pensamento que são as nossas, lá onde estamos. A atitude de interrogação a que visa a filosofia se fundamenta não no poder de uma racionalidade humana impessoal, mas na convicção do poder da criação humana, que decerto 3 se manifesta na cultura que nos precede e que supera os limites de nossas experiências, mas que também se manifesta em nossa própria existência. Logo, essa atitude implica uma responsabilidade para consigo mesmo, para com seu meio, sua época, sua espécie; e implica, igualmente, a capacidade de manter sob constante exame crítico suas próprias limitações. Em outros termos, essa atitude só se justifica por um projeto de autonomia que sempre começa pelo questionamento do mito de uma razão controladora e todo-poderosa cujas «teorias», ao invés de liberar nossa reflexão e criatividade, nos tornam mais alheios a nosso próprio pensamento, mais conformados com o instituído, imobilizados. A filosofia é, assim, esse compromisso com a interrogação que não quer se fechar, e é dessa forma que ela é prática de emancipação, que ela é terreno de luta pela autonomia. Assim, se a «concepção filosófica da educação» nos interessa é porque, remetendo àquilo que foi um dia pensado, ela nos ajuda a descortinar franjas enormes daquilo que ainda não pensamos, daquilo que ainda não nos interrogamos em nossa atividade cotidiana. É numa luta permanente contra nossa tendência à acomodação, nossa preferência pelas respostas, ao invés de perguntas, contra nosso desejo de reconforto – de que as verdades acabadas se alimentam, que o pensamento tenta se fazer. É isso que as grandes páginas da filosofia nos ajudam a perceber, nos ensinam. Eis como conceber filosoficamente a educação pode significar entendê-la como terreno de permanente questionamento, de interrogação aberta. E é assim que a filosofia pode colocar- se a serviço da educação e da valorização do professor – mas não oferecendo uma espécie de «menu» de concepções a serem escolhidas para compor nosso prato feito educacional. 4 E se isso é assim, é porque a educação é, ao mesmo tempo, um enigma e uma atividade prático-poiética. Kant decretou que ela era, juntamente com a política, «a mais difícil das artes». Freud a chamou, simplesmente, de «impossibilidade». A educação e a política – e, acrescentaria Freud, a psicanálise – são atividades impossíveis. Essa é uma afirmação muito profunda, mas só a entenderá quem se colocar na mesma perspectiva que era a de Freud, ao dizê-lo: a da autonomia humana. A natureza, os objetos criados pelo homem podem ser inteiramente desvendados naquilo que são e na forma como se comportam por uma ciência, no sentido mais estrito do termo: eles podem ser inteiramente explicados pela teoria. O que é uma cadeira, o que é um cão, o que é um raio – o que é um vírus, como se comportará um ciclone, estas e outras questões, muito mais difíceis, podem ter embaraçado e podem embaraçar, ainda, nosso entendimento. Porém, no caso do humano, nunca é possível dizer inteiramente o que é, nunca se poderá prever totalmente seu comportamento, pela simples razão que o modo de ser do homem, sua existência, toma a forma de autocriação incessante. Por isso não há, para ele, um conhecimento preciso e infalível. Não se pode dizer o que o homem será ao nascer, nem ao menos aquilo em que se tornará, a partir daí. Sempre haverá, entre a legítima necessidade de compreender o humano e a realidade, uma enorme fenda, e esta fenda se chama criação. Por isso, a educação é um enigma. A criação é também a origem e o fundamento da autonomia humana. Nisso consiste a impossibilidade da educação: como é possível educar um ser autônomo? A educação tem por 5 finalidade construir a autonomia do indivíduo, como o próprio termo (autonomia) já anuncia, essa construção é sempre, necessariamente, uma autocriação. Em suma, para educar o humano, para torná-lo um ser autônomo, deve-se partir e deve-se tomar como base algo que ainda não está lá – essa própria autonomia. Por isso, diz Castoriadis, a educação é uma atividade prático-poiética. A expressão prático-poiética tenta resolver um falso impasse entre duas possibilidades que Aristóteles1 elencou, para definir a natureza das atividades humanas: há, dizia o filósofo, algumas atividades que têm uma finalidade determinada, que visam a produção de alguma coisa objetivável, uma coisa ou um efeito sobre algo. A essas atividades que não têm, portanto, fim em si mesmas, mas cujo fim é sempre exterior, Aristóteles chamou de poiesis (que se poderia traduzir aqui como fabricação). E há, também, atividades que não visam a produção de nada: sua finalidade está em seu próprio exercício. Aristóteles denomina essas atividades, que têm fim em si mesmas, de praxis. Ora, essa distinção parece que não se aplica à educação. Para ela, a autonomia deve se constituir, ao mesmo tempo, em fim a ser buscado e na própria atividade. Em outras palavras, na educação, o processo e o produto, meio (poiesis) e fim (praxis) se confundem, não há como distingui-los inteiramente: ela é uma atividade prático-poiética. Na educação, a autonomia é, concomitantemente, o meio para se chegar ao fim e o próprio fim buscado. O problema se apresenta como um dilema quando se opõe, equivocadamente, instrução e formação: poderia a comunicação de um conhecimento ser um fim, ou deveria ela ser sempre 1 Aristóteles, Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2002 6 um meio da educação? Até onde se pode ir em uma atividade que pretenda tão-somente dar a conhecer um conhecimento, ou um saber-fazer, sem considerar a dimensão formativa indissociavelmente ligada à instrução? E como pretender formar alguém sem atentar para o que é meio e matéria dessa formação?2 Não há respostas absolutas para essas questões, nem é possível estabelecer uma regra para determinar onde acaba a preocupação com os meios e onde começa o cuidado com os fins. Meios e fins só encontram justificação nessa permanente tensão que os liga – e que, desafiando a capacidade de questionamento e de criação do professor, põe em movimento a ação educativa. Mas a criatividade e a deliberação do professor não são garantias absolutas! Quem é ou já foi professor reconhece essa característica de seu ofício: algo de absolutamente essencial sempre escapa – e o que escapa não é nada de irrisório, mas justamente o que mais importa, o cerne da educação: o fato de que só o próprio indivíduo pode se construir, de que cada indivíduo necessariamente cria, cria a cada vez, nas palavras de C. Castoriadis, seu «modo próprio de existência». Mas de que, por sua vez, essa autocriação, longe de implicar auto- suficiência, não só admite, mas exige a saída de si, a socialização, as trocas com o mundo – exige, enfim, a educação. Assim, a resistência que a realidade educativa oferece às tentativas de conhecimento absoluto e de controle é um fato e, mais do que isso, uma preciosa oportunidade para que o professor se questione acerca de suas próprias «certezas». A resistência é a marca permanentemente manifesta da liberdade alheia, da liberdade humana em geral – da liberdade 2 Essas questões serão aprofundadas no textos 3 e 4. 7 do aluno, como da própria liberdade, também. Por isso, dizer que a educação é um enigma significa, igualmente, dizer: pode-se – e deve-se! – tentar elucidar esse enigma, mas jamais será possível reduzi-lo a certezas. Para o educador comprometido com o projeto de autonomia, esse conceito abstrato sobre o qual tantos filósofos, tantos políticos, tantos sociólogos tentaram teorizar – a liberdade humana – se apresenta como realidade quotidiana. Não é, pois, à idéia de Deus, ou à noção de um «direito natural» que ele recorre, como a teoria tantas vezes fez, para afirmar uma noção abstrata que a prática social não cessa de negar. A liberdade que conhece esse educador se apresenta a ele sob seu verdadeiro nome: criação humana. O humano cria, e sua primeira criação é a si próprio. Historicamente, essa evidência – de que «o modo de ser» próprio da espécie humana é a criação – foi e vem sendo sistematicamente ocultada. A isso Castoriadis chama de heteronomia: a alienação individual e coletiva. Uma sociedade heterônoma tende a produzir indivíduos que desconhecem e alienam esse poder criador em si mesmos. Isso se reflete, paradoxalmente na tentativa de controle; no campo educacional, na equivocada noção de que o processo educativo pode ser inteiramente explicado e seus resultados preditos pelas teorias, conquistados pela rigorosa aplicação dos métodos, concretizados no recurso sistemático às técnicas. E, dessa forma, na ausência da autonomia social e individual, a educação fica reduzida ao que não é: ao espaço de mera aplicação de teorias e de procedimentos pensados a priori. Como essas teorias e procedimentos não são postos em questão, disso resulta que a resistência ao controle sobre a qual falávamos vai ser interpretada como erro, vai ser explicada pela identificação de «culpados»: de um lado, o 8 aluno – que é «rebelde», que é «violento», que é «indisciplinado», que é «incapaz»… de outro, o professor – que é «incompetente», que «falha» em sua tarefa. No entanto, contrariamente ao que se pensa, a educação não pode ser entendida como mero domínio aplicado, como campo de aplicação de leis, teorias, determinações vindas de fora. Por pelo menos duas razões gritantes: o aluno e o professor – dois seres que são livres, porque são criadores. E, por mais que o poder criador possa ser limitado, e ocultado, e obstruído, por mais que a criação de si se dê em condições de heteronomia, isso é, como mera ratificação do que está instituído, o que resiste, tanto no professor quanto no aluno, ainda é suficientemente expressivo, manifesto e resistente para atuar como uma espécie de denúncia espontânea das ilusões da tecnocracia da educação. Castoriadis tem, a esse respeito, uma frase bastante eloqüente e profunda: falando da psicanálise, – isso é, de uma outra dessas atividades «impossíveis» que, visando a autonomia humana, sugerem uma intervenção externa ali onde só pode autocriação – ao falar da psicanálise, Castoriadis afirma que, aí as teorias servem para não serem usadas: … o analista, diz ele, tem principalmente necessidade do seu saber para não lançar mão dele, ou melhor, para saber o que não deve ser feito, para atribuir-lhe o papel do demônio de Sócrates: a injunção negativa», e isto porque «a teoria orienta, define classes infinitas de possíveis e de impossíveis, mas não pode predizer nem produzir a solução.»3 A função emancipadora da educação não deve, portanto, ser entendida tão-somente como atualização das faculdades do indivíduo, como ativação de uma potência que preexistiria, como atualização de algo que podemos definir a priori, como um poder ser alguma coisa que já 3 in As Encruzilhadas do Labirinto, vol. I. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 41. 9 sei de antemão que ele é, tal como a filosofia tradicionalmente concebeu. Na educação, o projeto de autonomia depende da atualização de um poder poder ser. Explique-se: este «poder poder» ser significa que não há um conteúdo objetivo para definir como o humano é determinado desde o nascimento, não há uma virtude específica, uma predisposição particular que definam o que o humano é ao nascer. Esse modo de conceber a educação, que entende sua tarefa como a de simples atualização de germens, das «potencialidades» que estão presentes em cada indivíduo é, sem dúvida, muito corrente em educação. É com base nessa concepção que, desde Aristóteles, considerou-se que os mestres deviam «avaliar» o potencial de seus discípulos, para determinar aqueles que deveriam ser objeto de maior ou de menor investimento e atenção educacionais. Além de altamente perigosa, pelos preconceitos e injustiças que acaba por legitimar, esta posição apóia-se em uma falsa antropologia. Se ela fosse consistente, o humano nada criaria, apenas teria a opção de desenvolver, ou não, talentos rigidamente determinados por sua disposição natural. Mas são muitas as evidências de que a natureza humana é infinitamente mais rica, e deve ser definida como possibilidade de criar suas próprias possibilidades como ser. A esse poder, chamamos, justamente, criação. Justamente porque o humano é, na feliz expressão Castoriadis, «efeito que ultrapassa suas causas e causa que seus efeitos não esgotam», a teoria, que só considera o que é universal, que adota necessariamente a linguagem da generalização, não consegue exprimi-lo totalmente, não esgota os sentidos que ele tem. Por isso, aquilo que o indivíduo é não pode ser reduzido a uma formulação teórica, por mais perfeita que ela seja. Pode-se, pois, dizer que o que permanecerá, para a teoria, como irredutível, já que resiste às «explicações» que para ele são 10 fornecidas, ao controle que os métodos proclamam, ao fazer automático que as técnicas parecem por vezes supor. É claro, porém, que isso não significa que o indivíduo seja o incognoscível absoluto, mas sim que, diz ainda Castoriadis, a criação não pode ser inteiramente explicada, sua origem nunca pode ser inteiramente identificada. Não se pode explicar o que o humano é de forma acabada e exaustiva e, assim, não se pode prever a criação. Pode-se explicar inteiramente os fenômenos físicos e biológicos, mas não o chamado «fenômeno humano». É claro que a teoria pode dar conta de muitos aspectos da condição e da existência humana – pode explicar como o indivíduo contrai a hepatite, pode explicar e prever as conseqüências de um tombo, se todas as variáveis, as condições objetivas desta queda são controladas e levadas em conta. Mas nada disso é suficiente para explicar o que realmente nos importa aqui, o mais fundamental: o fenômeno pelo qual o homem é como ele é – diferente, a cada vez, dos outros homens. E o fenômeno pelo qual ele se cria a si mesmo a cada vez como singularidade, como ser absolutamente único ainda que sempre se criando como membro de uma só espécie. Porém, se a teoria, no caso do que é essencialmente humano, e especificamente naquilo que interessa à educação, não pode explicar, prever e controlar tudo, ela pode e deve elucidar. No que se refere à realidade humana e social, a finalidade da teoria não é a de explicação, mas a elucidação. O tipo de conhecimento que se pode e se deve obter para a educação nunca é o conhecimento objetivo, explicativo e preditivo que caracteriza outras atividades teóricas. Não é um conhecimento que produz certezas, leis a serem aplicadas, mas interrogações que não serão 11 jamais totalmente respondidas, ainda que sobre elas se deva, na prática, deliberar. Assim, a deliberação nunca será determinada, fornecida de antemão pela teoria – pois, de outro modo, ela não seria uma deliberação. Deliberar é uma atividade criadora que cabe ao educador. Uma vez que, por envolver seres humanos, cada situação educativa é única, o educador, por mais que apoiado nas teorias, nos métodos e técnicas que tem a seu dispor, está sempre diante desse grande enigma, de uma interrogação que não lhe cabe desvendar, nem responder, porque esta interrogação refere-se ao ser do outro, à sua liberdade. Nessa perspectiva, deve-se dizer que, também para o próprio aluno, o seu poder ser é um enigma, que supera qualquer previsão, mas que depende de sua criação incessante, ao longo de sua vida: pode-se, pois, afirmar que educar é, essencialmente, ter em mente esse fato e ajudar o aluno a tomar consciência da responsabilidade que lhe cabe em sua autocriação. Educar é construir, a cada momento, o sentido do que é educar, tanto quanto viver é, a cada momento, fazer e refazer o sentido do que é viver, e existir é fazer e refazer incessantemente o sentido muito próprio que a existência humana adquire em cada um de nós. Infelizmente, em educação, na maioria das vezes, a teoria não é entendida assim. Ao buscar nas teorias pedagógicas e educacionais e nos métodos e técnicas que delas derivam aquilo que não podem fornecer, os educadores, longe de melhorar suas perfomances, ao menos no que diz respeito à construção da autonomia dos alunos e à luta pela emancipação humana, perdem de vez a chance de oferecer uma contribuição positiva. Nessas circunstâncias, as teorias, métodos, técnicas e procedimentos que poderiam servir de bons aliados passam a ter a 12 função de tornar os educadores «…surdos ao novo, a essa emergência [sempre imprevisível que é a] singularidade do sujeito.»4 Diante da singularidade humana, fica claro que nem mesmo a posteriori, isso é, nem mesmo como aquisição da experiência repetidamente feita, a teoria é capaz de predizer, de explicar uma vez por todas o ato educativo, o aluno, seu modo de ser, de aprender, de se auto- construir. A auto-alteração dos indivíduos, que a educação ajuda a provocar e de que deve tornar cada aluno consciente, nunca é, em suma, o resultado da aplicação de uma teoria, «produto» de um fazer técnico. Mas cabe à educação cuidar para que o aluno tome consciência de sua autonomia; de que ele não está, apesar das aparências, inteiramente condicionado pelas determinações sociais, biológicas, históricas e educacionais. Se a liberdade está na criação, a emancipação humana está na possibilidade de que o indivíduo passa a ser dotado, pela reflexão, de tomar consciência de seu poder de deliberar. As deliberações, as decisões que cabem a cada um de nós, em nossa auto-criação, podem se tornar, pela educação, pela psicanálise, pela reflexão, conscientes. Usando um exemplo: a psicanálise pode, a partir daquilo que chamam «um sintoma», voltar até as condições que ocasionaram o trauma. Mas ela jamais explicará porque o indivíduo reagiu ao trauma por aquele sintoma, e não por outro. Da mesma forma, analisando as condições educacionais colocadas em ação, pode-se até avaliar mais ou menos objetivamente o que o aluno aprendeu, mas jamais se poderá prever 4 ibid, p. 97. 13 aquilo que fará, ou explicar aquilo no que se tornou como resultado direto de uma ação educativa objetivada. No entanto, elucidar aquilo que somos, ou aquilo em que nos tornamos é perceber que o que somos não resulta de uma fatalidade, mas sempre, também, de uma escolha, de uma deliberação. A elucidação é a tomada de consciência de que o papel de cada um, diante de si mesmo e diante da sociedade, nunca é passivo, é a tomada de consciência de seu poder criador. Talvez mais ainda do que a psicanálise, a verdadeira função da educação seja a de denunciar a suposta fatalidade que se acredita pesar sobre a sociedade e sobre os indivíduos – sobre os alunos, sobre a escola, sobre a própria prática. Esta é a missão emancipadora que a educação pode e deve assumir. Diante dela, parafraseando Castoriadis, …o professor está preso à exigência constante de um «pensar» e de um «fazer» diante do desenrolar de um enigma interminável… que ele deve elucidar na realidade concreta, por meio de construções «teóricas», sucessivas, sempre fragmentárias, essencialmente incompletas, nunca rigorosamente «demonstráveis»… 5 Por fim, todas estas reflexões levam a reconsiderar o status que se deve conceder ao campo educacional. Como conjunto de construções teóricas com pretensões explicativas, a educação dá forçosamente lugar a um conhecimento que é sempre, como diz Castoriadis, fragmentário, incompleto, provisório. Como prática de atuação, a educação é uma recriação constante dos procedimentos, dos métodos, do modo como nos relacionamos com as técnicas pedagógicas e instrucionais, mas é também o terreno em que se operam essas e outras deliberações mais 5 Ibid. p. 94-5. 14 importantes, que não podem ser garantidas ou determinadas a priori, legitimadas pela autoridade teórica ou técnica. Sobre essas decisões, o professor tem que poder prestar contas a seu aluno, aos pais, à sociedade. Pois dizer que educar é criar o sentido de educar implica em devolver ao professor a sua responsabilidade, sua iniciativa no ato educativo. Elucidar o que é e o que se pensa que deve ser a educação é concebê-la filosoficamente. A filosofia tem esse papel importante, e ineliminável, em toda educação que se quer emancipadora: tal como a teoria, ela não fornece à prática educacional garantias, ela não pode justificar nem antecipadamente nem posteriormente as nossas ações, ela não pode se substituir à iniciativa que é sempre a do professor; mas ela é o instrumento pelo qual se pode ganhar consciência da liberdade, da necessidade de deliberação frente à questão: «o que penso que deve ser a educação?» Ela permite tomar consciência e prestar contas daquilo que se faz de si mesmo mim e de sua prática e, desta forma, permite participar de modo sempre próprio e específico da construção coletiva do sentido da educação. A filosofia é instrumento para elucidação dos sentidos que a educação veio adquirindo e adquire em cada contexto social e histórico particular, e ela permite identificar todas estas questões como essenciais para a prática da educação. E, assim, fica claro que a concepção filosófica da educação é uma tarefa de auto-reflexão individual e coletiva, e que seu objeto parte e tem como fim a emancipação humana e, portanto, a construção de uma sociedade democrática. 15 IIMMMMAANNUUEELL KKAANNTT A educação, portanto, é o maior e o mais difícil problema que pode ser proposto aos homens. De fato, os conhecimentos dependem da educação e esta, por sua vez, depende daqueles. Por isso, a educação não poderia dar um passo à frente a não ser pouco a pouco, e somente pode surgir um conceito da arte de educar na medida em que cada geração transmite suas experiências e seus conhecimentos à geração seguinte, a qual lhes acrescenta algo de seu e os transmite à geração que lhe segue. KANT, I. Sobre a Pedagogia. Piracicaba: UNIMEP, 1996. p. 20. Uma vez que as disposições naturais do ser humano não se desenvolvem por si mesmas, toda educação é uma arte. A natureza não depositou nele nenhum instinto para essa finalidade. A origem da arte da educação, assim como o seu progresso, é: ou mecânica, ordenada sem plano conforme as circunstâncias, ou raciocinada. A arte da educação não é mecânica senão em certas oportunidades, em que aprendemos por experiência se uma coisa é prejudicial ou útil ao homem. Toda arte desse tipo, a qual fosse puramente mecânica, conteria muitos erros e lacunas, pois que não obedeceria a plano algum. A arte da educação ou pedagogia deve, portanto, ser raciocinada, se ela deve desenvolver a natureza humana de tal modo que esta possa conseguir o seu destino. Os pais, os quais já receberam uma certa educação, são exemplos pelos quais os filhos se regulam. Mas, se estes devem tornar-se melhores, a pedagogia deve tornar-se um estudo; de outro modo, nada se poderia dela esperar e a educação seria confiada a pessoas não educadas corretamente. É preciso colocar a ciência em lugar do mecanicismo, no que tange à arte da educação; de outro modo, esta não se tornará jamais um esforço coerente; e uma geração poderia destruir tudo o que uma outra anterior teria edificado. KANT, I. Sobre a Pedagogia. Piracicaba: UNIMEP, 1996. pp. 21-22. 16 CCOORRNNEELLIIUUSS CCAASSTTOORRIIAADDIISS Nossa relação com a história da filosofia cria, por si só, uma questão filosófica de primeira grandeza – o que é natural, já que toda reflexão é também auto-reflexão, e a reflexão não começa hoje. Dos múltiplos aspectos dessa questão, um é particularmente importante aqui. Ruptura do fechamento, a reflexão tende, no entanto, demaneira irresistível, a se fechar novamente sobre si mesma. Isso é inevitável… já que, de outro modo, a reflexão se limitaria a ser um ponto de interrogação indeterminado e vazio. Mas a verdade da filosofia é a ruptura do fechamento, desestabilização das evidências recebidas, inclusive e sobretudo as filosóficas. Ela é esse movimento, mas um movimento que cria o solo sobre o qual caminha, e que não é, nem pode ser uma coisa qualquer – ele define, delimita, forma e determina. 0 próprio de uma grande filosofa é permitir que se vá além de seu próprio solo, e inclusive incitar a isso. Como ela tende – e deve tender – ao compromisso com a totalidade do pensável, tende a fechar-se sobre si mesma. Mas, se é grande, nela encontraremos, ao menos, as evidências de que o movimento do pensamento não pode se deter aí e até parte dos meios para prossegui-lo. Tanto uns quanto outros tomam a forma de aporias, de antinomias, de francas contradições, de nódulos heterogêneos. CASTORIADIS, C. Feito e a ser feito; as encruzilhadas do labirinto V. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. p. 27. A pedagogia começa na idade zero, e ninguém sabe quando termina. O objetivo da pedagogia – falo, evidentemente, de um ponto de vista normativo – é ajudar o recém-nascido, esse hopeful and dreadful monster a tornar-se um ser humano. O fim da paidéia é ajudar esse feixe de pulsões e de imaginação a tomar-se um anthropos, no sentido indicado mais acima, de um ser autônomo. Podemos também dizer, lembrando Aristóteles: um ser capaz de governar e ser governado. A pedagogia deve, a todo instante, desenvolver a atividade própria do sujeito, utilizando, por assim dizer, essa mesma atividade própria. O objeto da pedagogia não é ensinar matérias específicas, mas desenvolver a capacidade de aprender do sujeito – aprender a aprender, aprender a descobrir, aprender a inventar. Isso, evidentemente. a pedagogia não pode fazer um ensinar certas matérias – tampouco a análise pode progredir sem as interpretações do analista. Mas, assim como essas interpretações, as matérias ensinadas devem ser consideradas como degraus ou pontos de apoio, servindo não só para tomar possível o ensino de uma quantidade crescente de matérias, mas para desenvolver as 17 capacidades da criança de aprender, descobrir e inventar. A pedagogia deve necessariamente também ensinar – desse ponto de vista, devemos condenar os exageros de vários pedagogos modernos. Mas dois princípios devem ser firmemente defendidos: – todo processo de educação que não visa a desenvolver ao máximo a atividade própria dos alunos é mau; – todo sistema educativo incapaz de fornecer uma resposta racional à pergunta dos alunos – por que deveríamos aprender isso? – é defeituoso. CASTORIADIS, C. As encruzilhadas do labirinto III: o mundo fragmentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 156-157. A impossibilidade da psicanálise e da pedagogia consiste em que ambas devem apoiar-se numa autonomia que ainda não existe, a fim de ajudar a criação da autonomia do sujeito. Isso aparece, do ponto de vista da lógica ordinária, a lógica conjuntista-identitária, como uma impossibilidade lógica. Entretanto, a impossibilidade parece consistir, também, particularmente no caso da pedagogia, na tentativa de fazer homens e mulheres autônomos, no quadro de uma sociedade heteronímica; e, além disso, no seguinte enigma aparentemente insolúvel: ajudar os seres humanos a aceder à autonomia, ao mesmo tempo que absorvem e interiorizam as instituições existentes, ou apesar disso. A solução desse enigma é a tarefa "impossível" da política – tanto mais impossível quanto deve, aqui ainda, apoiar-se numa autonomia que ainda não existe, a fim de fazer surgir a autonomia. Id., p. 158. A criação do projeto de autonomia, a atividade reflexiva do pensamento e a luta pela criação de instituições auto-reflexivas, isto é, democráticas, são resultados e manifestações do fazer humano. Foi a atividade humana que gerou a exigência de uma verdade, quebrando o muro das representações da tribo, a cada vez instituídas. Foi a atividade humana que criou a exigência de liberdade, de igualdade, de justiça, na sua luta contra as instituições estabelecidas. E é o nosso reconhecimento, livre e histórico, da validade desse projeto, e a efetividade da sua realização, até aqui parcial, que nos liga a essas exigências – de verdade, liberdade, igualdade, justiça – e nos motiva na continuação dessa luta. (Id., p. 258-259) Id., p. 258-259. JJEEAANN--JJAACCQQUUEESS RROOUUSSSSEEAAUU 18 Todo animal tem idéias, posto que tem sentidos; chega mesmo a combinar suas idéias até certo ponto e o homem, a esse respeito, só se diferencia da besta pela intensidade. Alguns filósofos chegaram mesmo a afirmar que existe maior diferença entre um homem e outro do que entre um certo homem e certa besta. Não é, pois, tanto o entendimento, quanto a qualidade de agente livre possuída pelo homem que constitui, entre os animais, a distinção específica daquele. A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se manifesta a espiritualidade de sua alma, pois a física, de certo modo, explica o mecanismo dos sentidos e a formação das idéias, mas no poder de querer, ou antes, de escolher e no sentimento desse poder só se encontram atos puramente espirituais que de modo algum serão explicados pelas leis da mecânica. ROUSSEAU, J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p.243. [Os Pensadores] Mas, ainda se as dificuldades que cercam todas essas questões deixassem, por um instante, de causar discussão…, haveria uma outra qualidade, muito específica, que os distinguiria e a respeito da qual não pode haver contestação – é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo; o animal, pelo contrário, ao fim de alguns meses, é o que será por toda a vida, e sua espécie, no fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano desses milhares. Por que só o homem é suscetível de se tornar imbecil? Não será porque volta, assim, ao seu estado primitivo e – enquanto a besta, que nada adquiriu e também nada tem de bom a perder, fica sempre com seu instinto – o homem, tornando a perder, pela velhice ou por outros acidentes, tudo o que sua perfectibilidade lhe fizera adquirir, volta a cair, desse modo, mais baixo do que a própria besta? Seria triste, para nós, vermo-nos forçados a convir que seja essa faculdade, distintiva e quase ilimitada, a fonte de todos os males do homem; que seja ela que, com o tempo, o tira dessa condição original na qual passaria dias tranqüilos e inocentes; que seja ela que, fazendo com que através dos séculos desabrochem suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o torna com o tempo o tirano de si mesmo e da natureza. Seria horrível ter de louvar como um ser benfeitor o primeiro a sugerir aos habitantes das margens do Orinoco o uso dessas tabuazinhas que aplicam nas têmporas de seus filhos e que, pelo menos, lhes asseguram uma parte de sua imbecilidade e de sua felicidade original. Id. 19 É fácil de ver, com efeito, que entre as diferenças que distinguem os homens, inúmeras, consideradas como naturais, são unicamente obra do hábito e dos vários gêneros de vida que os homens adotam em sociedade. Assim, um temperamento robusto ou delicado, a força ou a fraqueza, que dele derivam, resultam mais freqüentemente da maneira dura ou afeminada pela qual se foi educado, do que da constituição primitiva dos corpos. A mesma coisa acontece com as forças do espírito; a educação não só estabelece diferença entre os espíritos cultos e os que não o são, como também aumenta a que existe entre os primeiros na proporção da cultura, pois, quando um gigante e um anão andam pelo mesmo caminho, cada passo que um e outro dêem trará uma vantagem a mais ao gigante. Ora, fazendo-se uma comparação entre a diversidade prodigiosa de educação e de gêneros de vida que reina nas várias ordens do estado civil e a simplicidade e uniformidade da vida animal e selvagem – na qual todos se alimentam com os mesmos alimentos, vivem da mesma maneira e fazem exatamente as mesmas coisas – compreender-se-á quanto deve a diferença de homem para homem ser menor no estado de natureza do que no estado de sociedade e quanto aumenta a desigualdade natural na espécie humana por causa da desigualdade de instituição. Id., p. 257. cadernos didáticos/Texto 3.pdf ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo tteexxttoo 33 OO CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO EESSCCOOLLAARR ee aa qquueerreellaa ddooss mmeeiiooss ee ddooss ffiinnss ddaa eedduuccaaççããoo No texto anterior, discutiu-se a natureza do conhecimento próprio a uma «teoria da educação» – aquele que se constitui para fornecer orientação e lucidez às deliberações requeridas pela prática educativa. A interrogação que motiva essas linhas tem ainda por objeto o conhecimento, dessa vez entendido como um corpo de saberes que, acredita-se, devem ser compartilhados por todos os cidadãos; e que é instituído como tal pela tradição, pelas leis de ensino, por dirigentes e técnicos, pelos professores. Assim, no vasto e indeterminável conjunto que se poderia chamar de conhecimento humano, o conceito a ser aqui examinado refere-se a um seu subconjunto bastante específico – a tal ponto que, por vezes, tende a se isolar inteiramente de seu contexto social de produção: o «conhecimento escolar». Ora, se as reflexões dos textos 1 e 2 procedem, a análise a ser realizada se voltará, então, não para o terreno das determinações objetivas, das regularidades observáveis que caracterizam a ciência, para daí tentar deduzir logicamente o sentido e o conteúdo dessa noção, mas para o terreno das criações humanas, do qual o conhecimento escolar retira todo o seu ffiilloossooffiiaa ddaa eedduuccaaççããoo significado. Em outras palavras, em razão da natureza própria à educação, o presente exame deverá nos guiar até o domínio das razões políticas, e não para o domínio natural (do qual o homem participa, sem entretanto, fixar suas
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